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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Manifestações corporais do sofrimento psíquico: psicossomática em contexto de pronto-socorro

 

Manifestations of the psychic suffering: psychosomatic in the context of the emergency room

 

 

Thaís Kristine Milhorim1; Sebastião Benício da Costa Neto2

Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, Goiânia/GO

 

 


RESUMO

Manifestações psicossomáticas referem-se à expressão de conflitos e angústias por meio de sintomas corporais, após a superação da capacidade de assimilação mental. O objetivo desse trabalho é compreender a dinâmica dos aspectos psicológicos em pacientes que chegam à unidade de um Pronto-Socorro, e em como esses aspectos podem estar relacionados à eclosão e/ou ao curso de um adoecimento. Trata-se de um estudo transversal, descritivo e exploratório, de abordagem clínico-qualitativa, que utiliza como recurso metodológico o estudo-série de casos. Participaram do estudo dois pacientes de um hospital de nível terciário. Para análise dos dados, utilizou-se a Análise Fenomenológica Interpretativa (AFI). A partir da consideração acerca dos casos descritos, foram elencadas sete categorias para discussão, sendo: dimensão do luto; histórico de perdas; rede de apoio; estruturas psicológicas e estratégias de enfrentamento; lida com a dimensão psicossomática; relação com o ambiente hospitalar; e rede de saúde. Foi possível considerar a relevância dos aspectos psicológicos na manifestação e curso dos sintomas corporais, destacando-se a necessidade de compreender e evidenciar aspectos subjetivos associados aos sintomas.

Palavras-chave: psicossomática; urgência; pronto-socorro; somatização.


ABSTRACT

Psychosomatic manifestations are the expression of conflicts and anguishes through bodily symptoms, after the limits of mental assimilation are surpassed. The objective of this work is understanding the presence of psychological aspects in patients who arrive at an Emergency Room, and how these aspects relate to the eclosion or the course of a disease. This is a cross-sectional, descriptive and exploratory study, with a clinical-qualitative approach, using a case-series study as a methodological resource. Two patients from a tertiary level hospital participated in the study. Data were analyzed according to Interpretative Phenomenological Analysis (IPA). The consideration of the cases described led to the definition of six categories for discussion, which were: the dimension of grief and loss history; support networks; psychological structures and coping mechanisms; dealing with the psychosomatic dimension; relation to the hospital environment; and health network. It was possible to consider the relevance of the psychological aspects in the manifestation and course of the bodily symptoms, and the need to understand and make clear subjective aspects associated to the symptoms.

Keywords: psychosomatic medicine; urgency; emergency room; somatization.


 

 

O processo de funcionamento de um Pronto Socorro (PS) abarca em sua rotina demandas e necessidades específicas no contexto de um hospital geral. Dentro da rotina hospitalar, a unidade recebe pacientes com queixas de variados tipos, em diferentes graus de urgência ou necessidade de atendimento. O PS acaba sendo então porta de entrada para problemas que são emergentes, no sentido de sua imediaticidade e necessidade rápida de suporte; ou problemas crônicos em crises de agravo, que demandam também atendimento.

Para um paciente que está no Pronto-Socorro, o que é urgente em um primeiro momento são suas necessidades físicas vitais que precisam ser atendidas para garantir sua sobrevivência/estabilidade orgânica. Em qualquer ocasião, entretanto, a ocorrência dos sintomas expressos pode apresentar algumas especificidades que superam a capacidade de lida do saber científico biológico e do aparato tecnológico (Coppe & Miranda, 2002). Muitos sintomas atendidos no PS, assim, não surgem apenas em virtude de aspectos orgânicos/biológicos, mas também podem estar associados a conteúdos emocionais e/ou cognitivos que precisam ser mais bem compreendidos pelos profissionais da área da saúde.

Além da urgência física, é possível considerar outro modo de urgência, imbricada diretamente a cada sujeito e a cada história. Calazans e Bastos (2008) abordam a noção de urgência subjetiva enquanto fenômeno e enquanto recurso clínico-institucional. Inicialmente, à entrada na instituição, a urgência ainda não é subjetiva, mas geral e massificada, definida por protocolos de conduta e por definições dos serviços médicos (Moura, 1996). A noção da urgência subjetiva enquanto fenômeno, entretanto, é a da ordem daquilo que também não pode esperar, que remete ao traumático e a crise, mas que carrega em si uma singularidade inespecífica até o momento da escuta qualificada profissional, onde a experiência pode se desdobrar e se clarificar, e o paciente alterar sua condição de objeto de intervenção para sujeito (Calazans & Bastos, 2008).

Trabalha-se, portanto, com o acolhimento emergencial do sofrimento psíquico, não prescindindo-se da dimensão social, médica e institucional estabelecidas, mas reposicionando sua diferença, sua interlocução e seu acréscimo ao trabalho desenvolvido. É possível compreender, por exemplo, que para um mesmo acontecimento/evento ocorrido, há uma compreensão e uma conduta previamente determinada para a maioria de uma equipe em um contexto de saúde. Sob o viés psicológico, entretanto, um mesmo acontecimento pode trazer diferentes modos de urgência e reações, que exigem tempo e espaço de compreensão, dada a singularidade e o caráter subjetivo de cada vivência e pessoa que a experiência (Calazans & Bastos, 2008).

As manifestações corporais do sofrimento emocional recebem, no contexto da saúde, diferentes denominações, tais como: amplificação somática, sintomas médicos inexplicáveis, somatização, transtornos somatoformes, psicossomática, simulação, conversão histérica, hipocondria, dentre outras (Ávila & Terra, 2010). Há, assim, uma não especificidade do termo, que dificulta uma linguagem única e prejudica a definição diagnóstica. Entretanto, é necessário um ponto de partida em relação à compreensão do lugar do qual se parte.

Galdi & Campos (2017) trazem duas considerações importantes: a primeira refere que a definição sobre é termo é, de fato, difusa, e que muitos pontos de discussão se cercam sobre questões referentes à existência ou não de uma entidade clínica presente nos fenômenos psicossomáticos, de uma articulação simbólica da doença, entre outros pontos considerados não consensuais. Os autores trazem que a psicanálise, de maneira geral, apesar das várias dissonâncias e vertentes, considera a noção de psicossomática como "todo fenômeno que não se restringe apenas às explicações biológicas médicas, mas que insiste em aparecer, permanecer, e que também não se enquadra nos sintomas de neuroses clássicas"; e que, nessa linha de pensamento, estaria a base das concepções de Pierre Marty (1918-1993).

Esse estudo, particularmente, embasa-se nas noções desse autor, psicanalista francês, considerando a relevância de sua teoria no desenvolvimento histórico da área. Sua teoria surge dentro de um dos grupos expoentes em estudos no campo, a chamada Escola Psicossomática de Paris, formada por diversos psicanalistas franceses entre a década de 60 e 70, liderados por Marty. A Escola trouxe, de maneira substancial, críticas e contribuições ao campo, diferindo-se em diversos pontos de outros grupos, como a também tradicional Escola Psicossomática Americana, por exemplo (Volich, 2000).

Marty considera que a função fundamental da mente está na assimilação de traumatismos que são apresentados pela vida, e que a mente, em certas condições, pode não assimilar esse traumatismo e provocar uma vulnerabilidade do soma – que resultará na somatização (Vieira, 2005). A patologia somática, assim, surge como uma consequência de uma falha na elaboração da excitação psíquica, por meio de recursos escassos nos planos representativos e emocionais do sujeito. Marty define uma hierarquização progressiva, definindo três domínios adaptativos do sujeito na lida com as mobilizações ao longo da vida: o aparelho somático, mais arcaico; o aparelho mental, sujeito a regressões e reorganizações; e, o comportamento, presente no desenvolvimento e relacionado ao domínio mental (Capitão & Carvalho, 2006).

Em qualquer fase da vida, as funções podem integrar apenas uma quantidade limitada de excitações pulsionais; quando persistem, com intensidade elevada, os sistemas funcionais se desorganizam. Assim, situações traumatizantes, no sentido de queda ou de excesso de excitações, podem desorganizar os aparelhos funcionais até que se encontre um sistema de contenção. Em um processo regressivo, haveria um ponto de fixação somática, surgindo como defesa e modo do sujeito para lidar com uma vivência (Capitão & Carvalho, 2006; Marty, 1993). Isso quer dizer que o excesso de excitações, ao conduzir a uma vivência traumática – que depende dos recursos constituídos ao longo da vida e da intensidade do estímulo – faz com que a economia psicossomática reaja de duas maneiras: pela regressão ou pela desorganização progressiva (Volich, 2000).

Por regressão, temos o movimento de busca de reorganização e equilíbrio, a partir de pontos de fixação anteriores no desenvolvimento. Por desorganização progressiva, temos a insuficiência de recursos regressivos e de fixações da economia psicossomática, que conduzirão ao desequilíbrio da hierarquia funcional. Inicialmente, desequilíbrio do funcionamento psíquico, em seguida do comportamento para, como extremo, tornar-se possibilidade a descarga de recursos mais rudimentares, da ordem da motricidade ou de reações orgânicas (Volich, 2000; Marty, 1993).

Em 1962, Marty e Michel de M'Uzan propuseram a noção de pensamento operatório, evidenciando nesse perfil de sujeitos a carência de atividades oníricas e simbólicas, incluindo-se os mecanismos de defesa psicológicos como os deslocamentos, condensações, introjeções, projeções, identificações etc. No pensamento operatório, portanto, haveria o aporte no mundo externo para expressão de um discurso que seria aprendido: daí, portanto, as impressões impessoais, racionais, monótonas, factuais e descoloridas do sujeito, com desvinculação afetiva e uso precário de referências pessoais e verbais (Capitão & Carvalho, 2006; Marty, 1993).

Seria a mentalização, isto é, os movimentos mentais de reflexão e conexão interna de representação e simbolização que regulariam o equilíbrio psicossomático. Essa falta ou empobrecimento podem acarretar consequências. A ausência da atividade fantasmática, portanto, favorece a utilização do funcionamento operatório que, em utilização recorrente, propicia o surgimento de enfermidades. Apesar de poder ocorrer em maior ou menor grau, e de se tratar de uma via fundamental ou passageira, é possível observar, de maneira geral, a insuficiência relacionada a capacidade simbólica daqueles que vivenciam a somatização (Peres, 2006). A dificuldade de simbolização dos próprios sentimentos, portanto, relaciona-se a essas "lacunas no aparelho mental que favorecem a tradução corporal de uma história sem palavras" (Peres, 2006, p. 173).

Em síntese, para Vieira (2005, p. 17), a originalidade de Marty está na constatação de que "a capacidade de assimilação mental tem limites e que estes são maiores ou menores conforme os indivíduos, e em um mesmo indivíduo, conforme o momento da vida". Partimos do pressuposto, portanto, de que a psicossomática está atrelada às manifestações corporais do sofrimento psíquico, ressaltando que essa compreensão de sofrimento pode, inclusive, ser ou não percebida pelo sujeito (Marty, 1998; Volich, 2000) em uma organização psíquica que lhe é peculiar; mas que diz, invariavelmente, de um excesso de assimilação psíquica exigida que não encontra vias de elaboração possíveis.

Essa dificuldade engloba, para Almeida (2006), a dificuldade tanto de identificar os próprios sentimentos como em descrevê-los aos outros, e pode acarretar, de maneira subsequente, dificuldade tanto para o paciente, como para seus familiares/correlatos e para a equipe que o acompanha. Esse trabalho busca, a partir disso, compreender a dinâmica dos aspectos psicológicos presentes em pacientes que chegam à unidade de um Pronto-Socorro, e como esses aspectos podem estar relacionados à eclosão e/ou ao curso de um adoecimento nos pacientes observados.

 

Método

Trata-se de um estudo transversal, descritivo e exploratório, de abordagem clínico-qualitativa. Utiliza como recurso metodológico o estudo-série de casos (Turato, 2000).

Participantes

Participaram do estudo dois pacientes do Pronto-Socorro (PS) de um hospital universitário público de nível terciário. O PS da unidade recebe prioritariamente pacientes crônicos com complicações ou crises de agravos clínicas, sendo a grande maioria deles já vinculada ao próprio hospital, ou proveniente de encaminhamentos de outras unidades por meio da regulação realizada pelo Sistema Único de Saúde.

Como critério de inclusão, foram considerados pacientes atendidos na instituição que despertaram discussões na equipe acerca da possível gênese psicossomática dos quadros, considerando queixas tidas pela equipe médica como desproporcionais do ponto de vista do corpo orgânico. Uma vez que o critério psicossomático se pauta essencialmente por um diagnóstico de exclusão (Galdi & Campos, 2017), consideramos tais quadros como elegíveis para entrevistas e melhor observação/análise das queixas apresentadas, à luz da teoria psicossomática apresentada. Os pacientes também deveriam concordar com a participação no estudo. Como critérios de exclusão, consideraram-se pacientes que evoluíssem com alterações de nível de consciência, de linguagem e/ou pensamento.

Instrumentos

Foi utilizado primeiramente o Questionário Sociodemográfico e de Informações Clínicas, elaborado pelos pesquisadores e referentes a variáveis sociais e demográficas (sexo, idade, estado civil, renda familiar, escolaridade, número de filhos, situação de moradia, ocupação e doença preexistente). Posteriormente, usou-se um Roteiro de Entrevista Psicossomática Semiestruturada, elaborado também pelos pesquisadores, e com perguntas que visavam compreender: a motivação pela busca ao PS; compreensão sobre o estado de saúde e informes da equipe a esse respeito; as vivências dos últimos dias; descrição sobre a história de vida, de maneira geral, e os eventos considerados mais marcantes; a percepção sobre figuras de apoio e de estratégias de enfrentamento; estados de humor, afetivos e de sono observados, assim como o nível de satisfação/insatisfação pessoal em relação às situações descritas. Por fim, foi utilizado um diário de campo, no qual foram anotadas as impressões e gestos dos entrevistados, considerando também outros comportamentos não-verbais que pudessem ser de relevância para a análise.

Procedimentos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, mediante o número de parecer 2.338.871 (CAAE: 68701817.1.0000.5078), sendo seguidas as normas definidas pelo Conselho Nacional de Saúde em Resolução nº 196/96 sobre pesquisas envolvendo seres humanos. As entrevistas foram realizadas durante o segundo semestre do ano de 2017. Ocorreram individualmente, em sala reservada, com condições de privacidade e segurança, sem adversidades ao longo da coleta. Os encontros ocorreram após atendimento de triagem realizado pela pesquisadora, como parte do serviço de rotina da unidade, considerando-se os aspectos relatados pelo paciente, pela equipe e por informações disponíveis nos prontuários.

Os participantes foram abordados, e após aceite de participação expresso verbalmente, registraram acordo com a caracterização da pesquisa mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A sugestão das entrevistas foi recebida com abertura pelos participantes, considerando contato inicial desenvolvido em atendimento prévio de triagem na unidade. Tiveram duração média aproximada de quarenta e cinco minutos e foram audiogravadas para posterior transcrição na íntegra.

Análise de Dados

Após transcrição literal das entrevistas, foi utilizada a Análise Fenomenológica Interpretativa (AFI). A AFI analisa a maneira pela qual os indivíduos dão sentido às suas experiências, buscando a compreensão da construção do significado do mundo experiencial do participante. Trata-se de um método descritivo e empático – que se preocupa em apresentar o fenômeno tal como aparece e é elaborado pelo indivíduo – e interpretativo, na medida em que busca compreendê-lo de maneira crítica e investigativa. A AFI é também ideográfica, focaliza o particular, e busca descrições ricas e detalhadas dos fenômenos (Smith & Eatough, 2010).

A respeito das etapas, ela pode ocorrer por meio das seguintes fases analíticas: leitura rigorosa e detalhada dos dados; identificação de temas iniciais, organizados em feixes e analisados em relação aos dados; refinamento dos temas, condensados e examinados de acordo com a relação que estabeleçam entre si; e, por fim, exposição narrativa da interação entre a atividade interpretativa do pesquisador e o relato experiencial do participante (Smith & Eatough, 2010).

 

Resultados

Caso 1

Trata-se de Rosana (nome fictício), 41 anos, divorciada, aposentada, quatro filhos, ensino fundamental incompleto, evangélica, renda de 01 a 03 salários mínimos.

A entrevistada deu entrada no serviço hospitalar com queixa de dor abdominal persistente. Havia sido internada dois meses antes na instituição para a realização de uma cirurgia exploradora, sendo evidenciado na ocasião isquemia mesentérica – ou, em suas palavras, "trombose no intestino". Concomitante à internação, seu pai faleceu por conta de uma parada cardiorrespiratória súbita em casa, e a família optou por não contar sobre o ocorrido. O receio era que a paciente pudesse se fragilizar e se debilitar ainda mais em seu período pré-operatório, e que isso pudesse ser um agravante significativo para seu estado de saúde geral. Assim, tomou conhecimento do fato apenas 25 dias depois, em seu pós-operatório.

Pouco após chegar ao Pronto-Socorro, a equipe de enfermagem solicitou atendimento psicológico para a paciente, que apresentava-se bastante chorosa e com traços de humor rebaixado. Foi realizado atendimento inicial de triagem, com foco em identificação de demandas, apoio/suporte emocional e escuta ativa. Paciente relatava sentir-se sozinha e queixava-se de dor de forte intensidade. Foi realizado contato com equipe médica da unidade e com equipe da cirurgia vascular que acompanhava a paciente previamente, de maneira a intermediar as queixas/demandas da paciente com o que era levantado pela equipe. Posteriormente, nos reunimos em conjunto com a paciente, e os dois médicos que acompanhavam o caso na unidade informaram que não havia nenhum achado nos exames (laboratoriais, raio-x e tomografia) que indicasse comprometimento ou alteração que justificasse a persistência dos sintomas apresentados.

Foi realizado, então, encaminhamento para a psiquiatria e a psicologia. Ainda em abordagem conjunta com equipe, foi explicitado com a paciente e família a importância do apoio familiar, e sobre a veracidade e legitimidade da dor/sintoma. Foi abordado que o fato de não haver achado nos exames nos sugeria que precisaríamos entender sua dor de outra maneira, sob outra ótica, que exigiria tempo e dedicação. Foi salientado e resgatado, além disso, a dimensão dos últimos acontecimentos (internação, cirurgia, falecimento do pai) e o sofrimento/dificuldade esperado desse processo. A noção psicoeducativa, assim, foi a de trazer o conceito de "dor total", enquanto sofrimento que se relaciona não apenas a danos e lesões físicas. Realizada orientação com paciente e família, foi combinado retorno para novo atendimento e realização da entrevista. Em seguida, foi realizada discussão com equipe sobre o caso no local.

Caso 2

Refere-se a José (nome fictício), 23 anos, solteiro, vendedor, sem filhos, ensino fundamental incompleto, evangélico, renda de 01 a 03 salários mínimos.

O entrevistado foi recebido no serviço com queixa de dor nas costas, no peito e falta de ar. Possui diagnóstico de anemia falciforme, doença hematológica hereditária relacionada a uma modificação genética que provoca mudança no formato das hemácias, e consequente alteração na oxigenação do corpo de maneira satisfatória. É usuário da instituição desde a infância, onde descobriu a doença. Em vista das crises álgicas que são comuns à condição, interna-se frequentemente no local, com oscilação em relação ao número de vezes ao longo do ano. Com ele, foram necessárias duas entrevistas para a coleta de dados. Mostrou-se receptivo para ambas, entretanto, queixava-se de dor na primeira, e optou-se então por interrompê-la para dar continuidade em outro momento.

José referiu que estava há cinco meses sem ter nenhuma crise, e que nesta os sintomas começaram de maneira súbita. Indo para o trabalho de manhã, sentiu as dores e caiu dentro do ônibus em que estava. Um amigo que estava presente, já ciente de suas questões de saúde, buscou ajuda e juntos foram para o CAIS da cidade; de lá, foi encaminhado para o hospital. Refere que a dor era de intensidade máxima em sua chegada, e que diminuía para a metade com o uso de morfina. Segundo ele, as dores nos últimos tempos têm sido mais fortes e incapacitantes do que antes. Após realização da última entrevista, paciente recebeu alta na unidade em dia no qual não havia a presença de psicólogo no setor. Não foi possível, portanto, acompanhar desfecho do caso no local e encaminhamentos/condutas realizadas pela equipe.

Inicialmente, José refere que estava tudo "bem e normal" nos últimos dias. Responde que tem se sentido mais cansado e agitado, mas que não sabe identificar o motivo. Diz ele: "[estava] até bem... tava normal, faço atividade física... jogo bola. Faço tudo. Mas aí ontem não sei o que aconteceu não". Quando solicitado que contasse um pouco sobre sua história, refere que nasceu na Bahia e que seus pais, primos primeiros, tiveram dez filhos – dois faleceram ao longo dos anos. Seu pai trabalhava como vaqueiro e a mãe era do lar, ambos ainda moram na região rural do interior do estado da Bahia. Com cinco anos de idade, seu irmão veio para cá realizar exames e após algumas crises foi diagnosticado com anemia falciforme. A mãe, por solicitação médica, ligou para a família e pediu para que o esposo viesse com o restante dos filhos, para que também realizassem os exames. Além do irmão mais velho diagnosticado inicialmente, ele e o caçula também tiveram resultado positivo.

Já com nove anos, o irmão mais velho sofreu crises intensas e, após algumas internações, veio a óbito. José não manifesta muitas coisas a esse respeito no momento, e opta por contar outros detalhes de sua vida: trabalha como vendedor em uma feira da cidade; mora com a irmã e os sobrinhos; foi usuário de cocaína a partir dos 16 anos; já foi casado quatro vezes. Respondendo a questão sobre qualidade atual do sono, refere que consegue dormir bem, e que às vezes costuma sonhar.

Questionado sobre a incidência de algum sonho mais frequente, ou de uma temática recorrente, responde: "eu sonho, tipo, muito com esse meu irmão que morreu. Eu sonho bastante com ele, uma lembrança dele. Eu não tinha muitos anos não, mas eu tinha uns cinco anos". Prossegue-se a entrevista: "e como ele está no sonho?". Ele diz: "bem, já era grandão já. Já era adulto já. Nós jogava bola". Nesse momento, o entrevistado começou a queixar-se da dor, gemer e dizer não dar mais conta de responder às questões. Encerrou-se a entrevista e permaneceu-se algum tempo junto a ele, até que se sentisse melhor. Paciente não dispunha de acompanhante no local, tendo sido necessária a ligação pela equipe do Serviço Social durante a internação para localizar os familiares do paciente. Sua mãe, que estava de visita na cidade, realizou uma visita no período da tarde.

No segundo encontro, referindo alívio da dor e disponibilidade para continuação, José relata outros aspectos de suas vivências. Diz, em relação à pergunta sobre como observa que costuma resolver seus conflitos/problemas, que geralmente gosta de conversar. Refere, assim, que não tem o costume de brigar ou discutir, mas que no dia anterior à internação ocorreu uma discussão que havia lhe chateado. Em uma discussão entre sua sobrinha e seu cunhado, brigou com seu cunhado após ameaça deste de agredir fisicamente a adolescente. Após a briga, optou por levá-la, junto com seus outros dois sobrinhos, para a casa de outra irmã, onde dormiram. Na manhã seguinte, ocorreu o mal-estar dentro do ônibus, a caminho do trabalho.

 

Discussão

A partir da consideração acerca dos casos descritos, algumas categorias foram elencadas para discussão: 1) dimensão do luto e os sintomas depressivos; 2) histórico de perdas; 3) rede de apoio; 4) lida com a dimensão psicossomática; 5) estruturas psicológicas e estratégias de enfrentamento; 6) relação com o ambiente hospitalar; e, 7) rede de saúde.

Dimensão do luto

A fala de Rosana sugere a lida com o luto como um dos grandes eixos em relação às dificuldades emocionais e ao sofrimento que vivencia. O luto, como experiência singular e subjetiva, depende de múltiplos fatores. O vínculo da entrevistada com o pai foi descrito como muito significativo, de abertura e confiança. Salienta ela: "Ele sempre conversava comigo. Não tinha, assim, aquele negócio de segredo, sabe. De mim com o pai, do pai comigo. Não, não tinha segredo. Tudo que ele sabia, que ele podia fazer [por mim] ele fazia". O tipo da morte, uma parada cardiorrespiratória ainda em casa, na fazenda, caracteriza-a como inesperada/abrupta, um fator complicador considerável em relação a esse processo (Braz & Franco, 2017).

Não foi possível, também, realizar despedidas ou os rituais funerários significativos, considerando sua importância no processo de simbolização/elaboração da experiência (Coelho, 2012). Após tomar conhecimento do fato, todos os rituais já haviam sido realizados, e a família já estava inserida em outra etapa do processo de luto, diferente da sua. Seu tempo para viver o processo, portanto, além de menor, delineou-se como mais solitário e isolado.

Como processo de crise agravante, encontra-se a hospitalização e o adoecimento. Ela diz: "tudo bem se eu não tivesse visto ele e eu tivesse bem, tivesse sadia, eu ia sim sentir a falta dele, eu ia sentir, mas eu acho que eu não ia sentir tanto como eu estou sentindo agora". A escolha da família em não anunciar o óbito, ainda que provavelmente embasada em um intuito de proteção, abriu espaço para um processo de difícil elaboração, que estava sendo vivido sob a avaliação de falta de apoio/suporte familiar pela privação de sua lida com a realidade e com o luto. O sentimento vivido no momento, portanto, era o de frustração e solidão. Braz e Franco (2017) sugerem o tipo de apoio (como é percebido em uma avaliação subjetiva, isto é, inadequado ou adequado) como outro componente relevante no processo.

Rosana trouxe, também, que estava pensando em mudar-se para a fazenda dos pais assim que terminasse o tratamento, e que havia negado o convite do pai em fazê-lo até estar melhor fisicamente. Após seu falecimento, o sentimento foi também de culpa e arrependimento, pois estava longe do pai e, ao mesmo tempo, sentia que não havia melhorado.

É importante ressaltar, portanto - compreendendo a magnitude dos fatores de risco e a quantidade relevante deles presente em sua experiência - o fenômeno descrito como "luto complicado". Nessa dimensão, consideramos o fenômeno não enquanto dimensão patológica, mas como dimensão que se organiza de maneira distinta e que exige cuidados diferentes em termos de prevenção e intervenção (Braz & Franco, 2017). Segundo as autoras, são manifestações que necessitam de maior atenção: expressão de sentimentos intensos que persistem após a perda; mudanças radicais no estilo de vida que tendem ao isolamento, baixa autoestima, impulso autodestrutivo, alterações no peso e sono, ideias de ruína e somatizações frequentes. Nessa fala, Rosana salienta a dificuldade em relação a todo o processo:

E somente isso entrava na minha cabeça: o pai não morreu, ele tá em algum canto, ele vai voltar. Isso fica na minha cabeça, sabe? Às vezes o telefone toca e eu penso: 'nossa, pode ser o pai'. E eu vou e não é. Então assim, cada realidade que eu caio nela, pra mim é uma surpresa. E agora eu não sei assim, dizer pra senhora se eu vou conseguir superar (...). Parecia assim que meu pai era minhas pernas e meus braços. E de uma pra outra eu fiquei sem ele, e ainda por cima ter que aceitar que os outros mentiram pra mim.

Histórico de perdas

José, em relação às perdas familiares, traz menos elementos, como o fato de ter tido grande afinidade com o irmão e ainda sonhar com ele. Alguns fatores podem estar relacionados com a menor frequência da menção em relação às perdas por parte do entrevistado. Vale salientar que a última perda de Rosana é recente, ao contrário da de José, e que sua perda está imbuída em diversos fatores complicadores, conforme mencionado. Considerando outras questões, aponta-se também no caso de José a existência de aspectos de uma estrutura psicossomática em termos mais tradicionais, conforme será explicitado adiante.

Assim, um importante aspecto a ser considerado a partir da narrativa dos dois entrevistados é o histórico de perdas. José relata a perda do irmão – o que, segundo seu relato, era o que mais se afeiçoava. Ele diz: "(...) Aí depois transferiu pra cá. Chegou aqui, já era cirrose. Aí foi a primeira vez pra UTI. Aí foi quatro vezes, na quarta morreu (...) ele era o irmão que eu mais gostava... os que mais se apegava, nós dois". Ele refere que tinha oito anos na época e que, aproximadamente seis meses depois, desenvolveu a primeira crise de anemia falciforme.

Rosana, por outro lado, relata perdas significativas em outro ponto de seu ciclo vital. Há aproximadamente 20 anos teve três filhos do primeiro casamento, e pouco tempo após separar-se do marido, estava grávida e teve um parto com complicações. O parto culminou na necessidade de uma histerectomia (retirada de útero e ovários), tendo havido risco de morte significativo. Passados quatro meses, a criança faleceu. Ela salienta:

Quase morri. Aí passado quatro meses depois, essa criança morreu. Não tive mais como conseguir outra, né... perdi essa criança (...) foi assim, péssimo, péssimo, muito difícil pra mim, sabe... Foi muito acontecimento. Mas... foi uma coisa que eu vi, que eu tive nos braços... e meu pai não, meu pai nem ver eu vi.

A entrevistada compara, assim, a morte do filho com a morte do pai, salientando que em relação a perda do pai não lhe foi possível o contato, a despedida e a possibilidade de maior simbolização/elaboração psíquica.

O histórico de perdas pode influir como aspecto significativo tanto no processo de somatização, como na vivência hospitalar como um todo (Florisbal & Donelli, 2017). Ainda que diferente em termos de fases no ciclo vital – infância e vida adulta – os entrevistados apresentam perdas significativas relacionadas a membros do núcleo familiar. Durão (2015, p. 121) afirma: "num atendimento, poderá aparecer algum evento que marcou de forma avassaladora a vida do sujeito como uma perda inesperada, uma mudança repentina ou um episódio de traição e, a partir disso, a doença psicossomática foi desencadeada".

É possível visualizar, portanto, como antecedentes pré-mórbidos, as perdas familiares, a separação conjugal, a mudança de cidade/estado, entre outros. Mudanças e perdas configuram episódios de luto comuns a todos, entretanto, se não elaborados, podem desencadear crises aparentemente desproporcionais, mas que se acumulam significativamente na história do sujeito (Coelho, 2012).

Rede de apoio

Condição relevante na oferta de suporte social e psicológica, o apoio familiar apresentou-se enfraquecido em relação aos dois entrevistados. Rosana refere morar apenas com a irmã e diz que os filhos pouco a visitam, o que lhe deixa entristecida. A relação com a irmã, que realizou visitas na unidade, é descrita como satisfatória, sendo ela considerada como uma mãe. Essa irmã vende cocadas na rua durante o dia, e a renda é complementada com a aposentadoria por afastamento de Rosana, desde a cirurgia de um câncer que teve há dois anos. Sua mãe, apesar de ser descrita como uma figura de confiança e apoio, reside na zona rural e a vê com frequência de uma vez a cada mês ou mais. A rede familiar, portanto, sugere-se restrita, com poucos vínculos significativos presentes no cotidiano e na rotina.

José, a esse respeito, e quando questionado sobre com quem costuma conversar quando necessita, refere a irmã e um amigo. A relação é salientada basicamente em termos de conselhos e orientações: "ela conversa comigo bastante. Ela fala pra mim o que que pode e o que não pode (...) converso com ele bastante também. Ele me dá muito conselho". Com relação ao episódio de tensão familiar, não há descrição de conversa sobre o ocorrido com pares da família e/ou amigos. A talvez dificuldade ou oportunidade da verbalização revela outros aspectos importantes a serem considerados, ligados às estratégias de enfrentamento dos problemas (coping) e estruturas psicológicas.

Estratégias de enfrentamento (coping) e estruturas psicológicas

Com relação à maneira percebida sobre o enfrentamento dos próprios problemas, José aponta que costuma tentar conversar. Diz não gostar de confusão e de briga, e que quando possível, prefere o diálogo. No dia anterior, entretanto, a conversa demonstrou não ter sido suficiente para a resolução do conflito familiar, e surgiu então uma discussão/briga com o cunhado e a atitude da saída de casa. Seria equivocado relacionar de maneira estritamente direta ou linear os dois fatos, sem considerar a complexidade dos fenômenos e suas diversas articulações com elementos objetivos e subjetivos; entretanto, convém apontar que no dia seguinte, pela manhã, surgiram as crises álgicas e a necessidade de internação.

Um importante aspecto a ser observado na fala de José, de maneira geral, corresponde ao precário tom afetivo relacionado aos conflitos e às perdas. As expressões verbais possuem tom predominantemente impessoal, racional e concreto. Assemelham-se, assim, à noção do pensamento operatório, conforme descrição salientada por Pierre Marty e Michel de M'Uzan, relacionada à estrutura psicossomática (1962). Ferraz (2015) salienta que nesse caso os relatos prendem-se a dados objetivos da realidade, sem repercussões subjetivas, com dificuldade de expressão emocional, e que se assemelham à um repórter que descreve fatos. Assim, até os sonhos, quando existem, tendem a apresentar-se como repetições da realidade, sendo precária a vida fantasiosa/imaginativa.

Volich (2000) acrescenta que são característicos, também, os elementos de alienação em relação ao sofrimento e a própria história, negligência do passado, comportamentos automáticos e adaptativos. A fala e expressão de José nos trazem, portanto, uma descrição mais próxima ao que classicamente é compreendido como uma estrutura psicossomática sob a ótica de Pierre Marty, a partir da noção da carência funcional psíquica denotada pelo pensamento operatório. O termo, portanto, não remete apenas a uma modalidade de pensamento, mas sim a um tipo de organização psíquica (Peres, 2006), sendo forte em Marty a ideia de uma estrutura de personalidade psicossomática. Convém destacar, embora não seja o foco de nossa discussão, que essa estrutura clínica se diferenciaria da estrutura neurótica, e psicótica e perversa, para Marty e outros teóricos (Marty, 1998).

É relevante notar que a expressão de José, portanto, assemelha-se à descrição categorizada por Marty, o que não significa que todos os pacientes somáticos devem demonstrar os mesmos indícios de uso do pensamento operatório. Conforme salienta Peres (2006, p. 170), "o adoecimento, como não se pode perder de vista, é um processo complexo, cujo curso, determinado pela interação de diversos fatores, é irredutível a um único padrão". Há, portanto, uma grande variabilidade de funcionamentos psíquicos, o que não nos furta à necessidade de apontar tais aspectos sobre o modo de expressão de José.

Já Rosana refere dificuldade para a conversa, dizendo que atualmente não costuma se abrir com ninguém, mas que antes costumava brigar quando precisava resolver algo. A maneira mais recente referida de enfrentar os problemas passa, portanto, a caracterizar-se com tom maior de desinvestimento, isolamento, apatia e avolia, componentes depressivos presentes em seu processo de luto.

Apesar da pouca verbalização sobre os próprios conflitos no cotidiano, Rosana identifica e reconhece o sofrimento vivenciado. A própria verbalização sobre a não-verbalização, por assim dizer, nos aponta maior uso da palavra enquanto recurso e contato com os próprios afetos – o que a diferencia sua expressão da apresentada por José. Sua fala, ainda, é carregada de tom afetivo que aponta o grande grau de sofrimento pessoal e a dificuldade em relação a lida com todo o processo. Ela diz:

O que eu mais torço, assim, é que eu não fique sofrendo, sabe. Porque fia, você viver atormentada, você viver uma vida assim, é doído demais. Você não vive, você ta vegetando (...) tem dia que eu tenho vontade de ficar sozinha, sem conversar com ninguém, sabe, só com meus pensamentos mesmo. Ficar calada, às vezes chorar bastante. (...) Eu me sinto sozinha.

Evidencia-se, ainda que seja sob formas diferentes para ambos, a pouca verbalização dos conteúdos. Considerando a necessidade da escuta como ferramenta que possibilite a abertura, Arrais, Oliveira e Paula (2012) apontam o trabalho do psicólogo da saúde como capaz de propiciar uma escuta diferenciada ao paciente para falar de si, ou de qualquer coisa que queira, buscando por meio da palavra uma forma de enfrentamento da situação emergencial.

As situações de urgência, sob o ponto de vista psíquico, abarcam sensações físicas e psíquicas intensas, algumas vezes reprimidas, que não encontram meios eficazes de simbolização como forma de enfrentamento. Essa escuta permitiria a facilitação do processo de uma nova relação do sujeito com seu corpo enquanto canal de expressão de sentimentos, uma vez que se tornaria presente e sabida a possibilidade de outras vias de expressão, como a verbal.

Lida com a dimensão psicossomática

Durante a abordagem da equipe médica com Rosana, na qual foi elucidado que não haviam achados físicos nos exames (dos de simples aos de alta complexidade) que justificassem suas queixas, paciente demonstrou compreender o que lhe foi explicitado. No momento da entrevista, entretanto, demonstrou incompreensão e desacordo com o que foi colocado pela equipe. Quando questionada sobre o que havia sido dito pela equipe médica, ela salienta:

Não, eles disseram que a passagem do sangue tava boa. Mas só que o principal daqui que eu sinto [abdome] eles não falaram nada. Até um dia a minha irmã falou pra mim: 'Rose, será que isso não é da sua cabeça?'. Eu falei assim 'não é não, não é coisa da minha cabeça' (...) Às vezes as pessoas pensam assim 'ela ta encabulada'. Não to encabulada. Agora, muito sentimento dentro de mim tem.

A paciente, portanto, reconhece a noção do intenso sofrimento vivido, apesar de dissociá-lo da possibilidade de estar relacionado ao sintoma físico. A fala de José sobre seus sintomas, por outro lado, aparece desvinculada da relação com algum tipo de sofrimento, ou com alguma questão em relação a sua história pessoal. Além da descrição factual e do tom unívoco em relação às suas experiências, os sintomas são percebidos como essencialmente orgânicos e comuns às afecções de sua doença hematológica. Nesse caso, torna-se mais difícil a elucidação com o paciente em relação ao componente psicossomático, uma vez que nem mesmo o sofrimento psíquico ou a dificuldade/conflito são percebidos como significativos no seu cotidiano. De todo modo, o envolvimento de José em um processo psicoterapêutico poderia favorecer a oportunidade de construção de novos sentidos de sua enfermidade e, particularmente, de suas manifestações álgicas.

Coelho e Ávila (2007) propõem que a adoção de um "rótulo" costuma legitimar as queixas do paciente, evita o estigma de um transtorno psiquiátrico/psicológico, e confirma que o problema não é visto pelos outros como imaginário. Trata-se, assim, da forma do indivíduo em se fazer ouvido em uma linguagem que aceite e valide sua demanda. Paradoxalmente, sua linguagem não é percebida enquanto demanda, uma vez que aparece desvinculada de aspectos psicossociais para o próprio indivíduo e para a equipe que o acompanha.

Relação com o ambiente hospitalar – o ganho secundário

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a relação dos entrevistados com o contexto hospitalar. Estar internado no sistema hospitalar pode ser uma experiência vivida com muita dificuldade e desafios. Entretanto, pode-se também vivenciar fenômenos que são vividos de maneira distinta nesse contexto. Os ganhos/benefícios secundários, por exemplo, são aqueles que resultam das consequências benéficas ou vantajosas da doença (Catani & Souza, 2015). Nem sempre tais ganhos são percebidos deliberadamente, no entanto, costumam ser ganhos que mobilizam aspectos psicológicos e/ou sociais. José aponta alguns desses aspectos em sua fala:

Aqui todo mundo me conhece. O enfermeiro chega e diz 'olha, o José', 'olha, o José chegou'. Ainda mais no Pronto-Socorro. Tem o Fernando, chego lá, ele é bom enfermeiro demais. Vê que eu tô sentindo dor. Se não tiver remédio na hora ele olha, se eu tiver sozinho ele conversa com o médico, pra ver que que pode fazer. Gente boa demais.

Em sua fala expressa e em sua expressão ao dizê-la, José aponta o fato de ser conhecido por todos como algo positivo, isto é, como se se tratasse de uma visita esperada e bem recebida em um local. É, portanto, um espaço familiar, no qual se sente reconhecido e cuidado por aqueles que ali estão.

A impressão da equipe de saúde, entretanto, costuma ser a de desgosto com a necessidade de realizar um atendimento para um paciente já estigmatizado. A equipe sinaliza, além da recorrência de internações, as queixas e expressões de dor observadas como desproporcionais em relação ao quadro; a baixa tolerância e pouca resposta do paciente em relação aos medicamentos analgésicos, como a morfina; e sua não adesão ao acompanhamento ambulatorial, indicado como muito relevante para sua condição.

Para Velasco (2010), parece haver uma classificação dos sintomas segundo sua etiologia: não seria o mesmo ter um sintoma de etiologia orgânica que um psicossomático, na medida em que o primeiro goza de um status "privilegiado" com relação ao segundo. O sintoma psicossomático, então, costumeiramente tende a ser considerado a partir de perspectivas tais como "nervos", "simulação", "secundário" ou "não científico". O paciente, por outro lado, seria tratado por termos como "hipocondríaco", "pitizento", "poliqueixoso", "cansativo" e "chato" (Coelho & Ávila, 2007). O fato de José ainda manter essa percepção, entretanto, diz da realização de um acolhimento e de um serviço que ainda consegue dissociar-se parcialmente da impressão estabelecida, conseguindo suprir cuidados necessários apesar da estigmatização.

José prossegue: "olha, esse hospital aqui, dos que eu já internei – e eu já internei muito – esse aqui é uma maravilha de hospital. Eu chego aqui eles me tratam bem, me recebem bem. Eu não tenho o que falar desse hospital". Os ganhos secundários podem favorecer a acomodação da doença e a permanência do sujeito à situação de adoecimento, uma que vez que ele se torna alvo de cuidados especiais ( Santos & Sebastiani, 2003). Não dizem respeito, entretanto, a um sujeito que se utiliza com má-fé dos recursos de saúde, mas sim de um sujeito que se depara com aspectos positivos em uma condição que geralmente envolve uma rede de apoio precária e uma fragilidade, seja social, material ou afetiva.

Com relação a Rosana, pode-se notar algumas diferenças. Há uma divergência, por exemplo, em relação à angústia sobre a descoberta de achados físicos em exames que justifiquem os sintomas. Rosana demonstra com frequência, inclusive por conta de pressões familiares, a crença de problemas da instituição e de que novos exames deveriam ser realizados, uma vez que os já realizados não demonstravam alterações significativas. José, em contrapartida, não traz essas questões, e aponta com maior frequência a doença já diagnosticada e o benefício de estar internado no hospital, recebendo os cuidados considerados adequados e necessários. Além disso, estar internado é algo comum para ele e para sua família, uma vez que o histórico de internações e a própria instituição já fazem parte de sua história.

Rede de saúde

Rosana aponta alguns aspectos quando se queixa sobre a não continuidade de seu acompanhamento médico (não psiquiátrico) após a internação:

Não falou mais nada, não mandou procurar o médico que mexe com aparelho digestivo, e só isso. Não me deu encaminhamento, não me deu um caminho pra poder fazer, nada. (...) Aí peguei e deixei tudo de mão, deixei pra lá (...) Porque eles deveriam saber né. Infelizmente.

Importante salientar que Rosana toma medicações psiquiátricas prescritas por um clínico geral, segundo seu relato. As medicações, de acordo com o que diz, são muitas e confusas, e são prescritas sem acompanhamento efetivo, apenas com renovação automática das receitas. Rosana refere que não realiza consulta com o profissional há muito tempo.

É necessário considerar a relação com a rede de saúde de forma ampla, e em como essa se configura. Miranda e Mourthé (2015, p.129) afirmam que, historicamente, os serviços de urgência tem sido "o local de acesso à população que busca uma oportunidade para a resolução de seus problemas, seja de ordem orgânica, psicossocial e político-econômica". O Pronto-Socorro, então, configura-se como espaço de acolhimento também às demandas sociais e psicológicas da população.

Por limitações institucionais, entretanto, não é possível lidar com toda a gama das dimensões psicossomáticas no serviço de urgência apenas no espaço e no tempo de inserção do paciente na unidade, sem considerar a necessidade de encaminhá-lo quando julgado necessário. As afecções psicossomáticas podem estar relacionadas a questões de manejo relativamente simples, com a obtenção de benefícios a partir uma escuta pontual e qualificada que favoreça a elaboração de conflitos, geralmente de caráter relacional e/ou interpessoal (Coelho, 2012; Arrais et al., 2012); ou, de fato, a estruturas de organização psíquica imersas em questões densas e complexas, que demandam cuidado aprofundado (Ranña, 2015). O contato com questões do mundo interno, afinal, demanda tempo.

É comum, contudo, que os pacientes recebam alta para casa sem compreensão mínima sobre a dimensão emocional ou noção sobre próximos passos em relação ao cuidado de si. Questiona-se, a partir disso: para onde vão esses pacientes? Como é pensada a necessidade em relação à extensão do cuidado?

O tratamento médico atual, segundo Coelho e Ávila (2007), não prepara a equipe para reconhecer e tratar pacientes que somatizam. O que se espera, para eles, é que o paciente se queixe de uma forma e proporção esperadas para determinada patologia, sabendo diferenciar exatamente sintomas físicos em termos orgânicos e conflitos emocionais em termos psicológicos. Alia-se à construção histórica e social dessa compreensão, a superespecialização da categoria médica, a excessiva demanda dos serviços sobrecarregados e a precariedade econômica e técnica de muitas instituições (Coelho & Ávila, 2007), que não permitem por parte dos diversos profissionais a construção de uma escuta mais ampla e integral.

O que se observa, a partir disso, é a também precária compreensão sobre redes de atenção em saúde e sobre dispositivos que podem auxiliar na continuidade de um acompanhamento. O hospital universitário desse estudo recebe pacientes de diferentes localidades do estado, e a unidade conta para questões desse cunho com o apoio da assistente social e com o conhecimento em saúde pública em diferentes níveis dos demais profissionais.

É preciso que se pense a promoção, prevenção e a atenção especializada em saúde mental também no contexto hospitalar. Por meio da palavra e da escuta, pode-se pensar na ampliação dos espectros sobre espaços possíveis de cuidado e de fortalecimento – pautados, inclusive, em outras formas de expressão e de recursos, como a via artística, esportiva, ou de práticas corporais diversas que consigam trabalhar aspectos da sensorialidade e dos registros no corpo. Se falamos do corpo como ferramenta em um adoecimento, é a partir dele, também, que muito do trabalho preliminar do pensamento, da paraexcitação, e da representação pode se fazer possível - considerando a dificuldade, sobretudo inicial, de expressão da subjetividade de muitos desses sujeitos que relatam não saber o que dizer ou o que sentem (Soares, 2015).

O corpo pode, assim, ser usado como via de acesso ou como estratégia de enfrentamento em uma dimensão ressignificada de si próprio, mas de maneira funcional e não adoecida e destrutiva. O cuidado psicológico configura-se imprescindível, entretanto, a noção de saúde e adoecimento não pode ser considerada exclusivamente sob a ótica intrapsíquica e verbal, mesmo que esteja emaranhada a essa dimensão. É necessário, portanto, pensar em outros dispositivos possíveis e extensivos de cuidado dentro da rede, de acordo com a demanda e desejo do usuário.

Apesar da dificuldade que frequentemente se encontra, em termos da organização dos fluxos de atenção na saúde (Zurba,2011), essa tarefa se faz necessária e fundamental. Sem o encaminhamento apropriado e possível, não há como pedir ao paciente que saiba procurar adequadamente a qual unidade se dirigir, diferenciar suas queixas em físicas e psicológicas, ou não reconhecer o hospital como espaço de auxílio a demandas psicossociais. Essa noção auxilia-nos, sobretudo, a compreender a dimensão psicossomática para além de um olhar sobre a crise/doença/urgência, considerando uma visão que vislumbre a promoção e, consequentemente, a menor incidência dos fatos mencionados.

 

Conclusões

O presente estudo observou a presença de aspectos psicológicos e sua relação com a eclosão e curso dos sintomas físicos de pacientes internados na unidade do Pronto-Socorro. Poucos são os estudos centrados na prática do PS sobre o tema, sendo necessário maior número de pesquisas e estudos para uma compreensão ampla e integrativa.

É necessário ponderar o corpo como espaço, território de manejos, via de escoamento e implosões de conflitos pessoais e sociais. Há inúmeras formas de manifestações dos sofrimentos, sendo todas legitimamente humanas. É possível, entretanto, vislumbrar alternativas que não sobrecarreguem o corpo como sendo a única via possível de comunicação e enfrentamento, de forma restrita e adoecida. A partir da fala e da escuta, pode-se possibilitar um espaço de ressignificação sobre questões pessoais e relacionais, e facilitar a percepção e criação de novas dimensões menos adoecedoras, considerando caminhos possíveis dentro da rede de saúde.

Compreender e evidenciar os aspectos subjetivos associados aos sintomas, assim, torna-se importante na medida em que possibilita trazer luz sobre essa dimensão geralmente não evidenciada nos contextos de saúde. Salientamos, portanto, a importância do cuidado e preparo da equipe de saúde, no reconhecimento e lida com essas questões, e a possibilidade do psicólogo da saúde como profissional que oferece ferramentas para dar voz ao corpo e à urgência subjetiva.

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1 Psicóloga especialista em Urgência e Emergência pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC –UFG). Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: thais.milhorim@gmail.com.
2 Orientador de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás); psicólogo hospitalar do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG); docente e preceptor de Residência Multiprofissional em Área da Saúde. E-mail: sebastiãobenicio@gmail.com.

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