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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Contribuições da psicanálise à medicina: grupo com residentes em um programa de cancerologia clínica

 

Contributions of psychoanalysis to medicine: group with residents of a clinical cancerology program

 

 

Marcus Vinícius Rezende Fagundes Netto1, I, II; Ana Merzel Kernkraut2, I

IHospital Israelita Albert Einstein (HIAE), São Paulo
IIUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo

 

 


RESUMO

Em nossa atuação em uma unidade de internação oncológica nos deparamos frequentemente com o sofrimento dos médicos, que fazem parte do programa de residência em cancerologia clínica de nosso hospital. Dificuldades com o manejo da transferência/contratransferência, precipitadas na relação médico-paciente, a queda dos ideais com relação ao saber, bem como o sentimento de impotência decorrente da impossibilidade curativa do tratamento oncológico geralmente fazem-se presentes nas interconsultas ou, de maneira menos evidente, em produções sintomáticas e acting-outs. Assim, a criação de um grupo, como um espaço de elaboração para tais questões, foi a estratégia de intervenção proposta à coordenação do programa de residência. A partir disso, temos dois objetivos com esse artigo: a) delinear e discutir os temas que se precipitam e se repetem no trabalho em grupo; e b) apresentar o trabalho desenvolvido, discutindo suas estratégias técnicas, metodológicas e teóricas. Utilizamos o diário metapsicológico e a análise de discurso de orientação lacaniana como método de registro e análise das vinhetas clínicas apresentadas. Observamos, através de nosso trabalho, não apenas uma minimização do sofrimento dos residentes médicos, mas também efeitos em sua formação, naquilo que diz respeito ao lugar dado a subjetividade e à transferência na clínica médica.

Palavras-chave: psicanálise; medicina; transferência; formação médica.


ABSTRACT

In our work in an oncology unit we often face the suffering of physicians who belong to the hospital's residence program in clinical cancerology. Difficulties with transference/countertransference management, precipitated in the doctor-patient relationship, the fall of the ideals concerning knowledge, as well as the feeling of impotence due to the curative impossibility of the oncological treatment, usually appears as an issue during the liaison, or, indirectly, through symptomatic productions and acting-outs. Thus, the creation of a group, as a place for elaborating such issues, was the strategy proposed to the coordination of the residency program. Therefore, we have two objectives with this article: a) to delineate and discuss the themes that were often discussed in group work; b) present the work we do, discussing its technical, methodological and theoretical strategies. We used the metapsychological diary and lacanian orientation discourse analysis as a method of recording and analyzing the clinical situations presented. We observe through our work, not only a minimization of the suffering of medical residents, but also effects in their formation, in what concerns the place given to subjectivity and transference in the medical clinic.

Keywords: psychoanalysis; medicine; transference; medical training.


 

 

Introdução

Ao longo de nossa atuação em uma unidade de internação oncológica, não raro nos deparamos com o sofrimento dos médicos, que fazem parte do programa de residência em cancerologia clínica do Hospital Israelita Albert Einstein. Afinal, apesar dos avanços técnico-científicos e, consequentemente, a despeito da descoberta de novas drogas que possibilitam a cura ou o aumento da expectativa/qualidade de vida dos pacientes, o câncer já se configura, no estado de São Paulo, como a maior causa de mortalidade, superando, inclusive, as doenças cardio-vasculares. Assim, conviver dia a após dia com pacientes, familiares e cuidadores, que são atravessados pela violência e agressividade de uma doença oncológica não é sem efeitos.

Dessa forma, dificuldades com o manejo da transferencia e da contratransferência, que se preciptam na relação médico-paciente, a queda dos ideais com relação ao saber, bem como a frustração e a impotência diante da impossibilidade curativa de um tratamento oncológico, recorrentemente apareciam durante as discussões de caso com o psicólogo referência da unidade de internação ou, de maneira menos evidente, por meio de sintomas ou acting-outs.

Faltas sem explicações plausiveis, dificuldade de atender determinado paciente ou de estabelecer contato com um familiar específico, sono e cansaço em excesso, desejo manifesto de interromper a residencia, cefaléias, diarréias, esquecimentos "inexplicáveis" com relação a algumas atividades da residência, eram alguns sinais de sofrimento percebidos. Dessa forma, a criação de um grupo que pudesse se configurar como uma espaço de elaboração para tais questões foi a estratégia de intervenção ofertada pelo serviço de psicologia à coordenação do programa de residência.

 

Especificidades, objetivos e método

O grupo com os médicos residentes em cancerologia clínica acontece há quatro anos, uma vez por semana, com duração de uma hora por encontro, sob a coordenação de um psicólogo, cujo referencial teórico é a psicanálise de orientação lacaniana. Participam do grupo médicos dos três anos de residencia, nove ao todo, que, a cada encontro, trazem casos que suscitam algum tipo de dificuldade ou desconforto.

Cabe ressaltar que os médicos que participam do grupo fizeram residência em Clínica Médica em serviços públicos de saúde. Além disso, a residência se inicia nas enfermarias, local onde entram em contato direto com pacientes fora de uma perspectiva curativa de tratamento, estando em Cuidados Paliativos ou, até mesmo, em Cuidados de Fim de Vida. Ou seja, de saída, precisam lidar não só com um ambiente institucional completamente diferente, mas também se defrontam com a morte e, por vezes, com um grande sentimento de impotência. Com isso, de início um paradoxo se instaura: apesar do médico residente se encontrar em um contexto com recursos técnico científicos de última geração, a morte não deixa de se impor como um limite ao saber médico.

Assim, se na residência de clínica médica a morte era atribuída à falta de recursos técnicos e econômicos, agora não há um terceiro que possibilite a simbolização da castração. Ou seja, antes a morte encontrava na falta de recursos socioeconômicos sua justificativa, mas agora, em um serviço particular, sua face de inevitabilidade fica desvelada. Com isso, quando se tem muitas possibilidades de intervenção, o limite se encontra colado à morte, no Real. O sofrimento nesses casos pode ser grande. "Aqui no hospital descobri que as pessoas morrem mesmo..." – diz uma residente em tom confessional.

Diante disso, temos dois objetivos com esse artigo:

1) Delinear e discutir os temas que se precipitam e se repetem no trabalho em grupo, a saber: a diferença entre corpo e organismo e os efeitos transferenciais e contra-transferenciais na condução do tratamento médico. Ao nosso ver, essas são questões pilares que nos permitem abordar outras que são colaterais, mas não menos importantes: o confronto com a realidade da morte e a queda dos ideais com relação ao saber;

2) Apresentar uma proposta de trabalho desenvolvida como forma de intervenção junto a uma equipe de saúde, discutindo suas estratégias técnicas, metodológicas e teóricas.

Para fins de coleta, registro e análise dos dados aqui presentes na forma de vinhetas clínicas, utilizamos diários metapsicológicos propostos por Iribarry (2003), como estratégia metodológica. Os registros feitos nos diários, após cada encontro, contêm falas dos residentes médicos, bem como intervenções realizadas pelo analista ou por outro membro do grupo.

Atos falhos, chistes e sensações como sono, estranhamento e desconforto, que irrompem na clínica com pacientes oncológicos, foram incluídos nos registros, uma vez que presentificam em ato o inconsciente enquanto um saber. Em nossa experiência, apostamos que, ao dar lugar as formações do inconsciente, possibilitamos com que a subjetividade (do paciente e do médico), bem como a transferência/contratransferência, sejam elevados à categoria de dados clínicos, tão importantes quanto o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico médico.

Com relação à análise dos dados, essa foi feita utilizando os conceitos fundamentais da psicanálise e, principalmente, a teoria lacaniana dos quatro discursos, para realizar uma análise psicanalítica de discurso de orientação lacaniana, como sugerem Dunker, Paulon e Milán-Ramos (2016). Entretanto, para que isso fosse possível, foi importante que, durante os encontros, o analista coordenador mantivesse sua atenção flutuante, bem como estimulasse que os membros do grupo associassem livremente sobre as situações vividas durante a residência. Afinal, a psicanálise "enquanto um método de investigação, segue princípios análogos aos da prática da psicanálise – tais como a abertura para a associação livre, a escuta equiflutuante, a interpretação de formações do inconsciente, a consideração da transferência." (Dunker, Paulon, & Mílan-Ramos, p.12, 2016).

Assim, o relato de uma situação clínica e seu posterior registro, por exemplo, poderia ser entremeado por questionamentos, lembranças e sentimentos. Além disso, as intervenções do analista ou de outro membro do grupo, quando um chiste, um ato falho ou uma palavra em entonação diferente surpreendiam aquele que falava, também foram registrados.

Naquilo que se refere ao referencial teórico que nos norteia, é importante marcar que nossa proposta de trabalho é embasada na obra de Sigmund Freud e no ensino de Jacques Lacan o que, por sua vez, estabelece coordenadas éticas para nossa atuação. Ou seja, não pretendemos com esse trabalho estabelecer um ideal de conduta naquilo que diz respeito à formação médica. Freud (1933/1996b) nos adverte que a psicanálise, da maneira como ele a propôs, não deveria ser considerada uma Weltanschauung (visão de mundo), ou seja, uma construção intelectual, que almeja apresentar soluções prontas para os problemas de nossa existência, de maneira uniforme e sem deixar lacunas.

Com isso, desde o início, foi importante manter uma posição ética diante do programa de residência: o grupo não objetiva eliminar por completo a angústia provocada pela clínica ou tornar os residentes médicos "prontos" ou "completos". Diante do padecimento do corpo, tristeza, frustração e sensação de impotência, são sentimentos, muitas vezes, inevitáveis. Vejamos como isso ocorre.

 

O corpo: entre medicina e psicanálise

Sigmund Freud, neurologista do início do século XX, e seus colegas médicos da época, intrigavam-se com algo que marcava presença em sua prática clínica: corpos que não obedeciam à lógica proposta pelos manuais de anatomia e fisiologia e apresentavam quadros sintomáticos, para os quais não se encontravam uma etiologia orgânica (Jorge, 2017).

A partir disso, passando da ausculta para a escuta do corpo, Freud delimitará os fundamentos daquilo que mais tarde nomeou de psicanálise e chegará a duas importantes conclusões que, na verdade, complementam-se: 1) O organismo é uma dimensão do corpo, mas não se equivale a ele, uma vez que; 2) o funcionamento do corpo, bem como suas vias de sofrimento e de satisfação extrapolam a qualquer regra pré-estabelecida pela anatomo-fisiologia (Jorge, 2017).

Para discutir as conclusões supracitadas não abandonaremos o pai da psicanálise, mas vamos pedir auxílio também a Jacques Lacan, que tomou a obra freudiana ao pé da letra para conferir maior formalização à teoria e à prática psicanalítica. Ao longo de seu ensino, Lacan enfatiza o quanto não somos, mas temos um corpo. Ou seja, no início, há um organismo. O corpo é a posteriori. Essa afirmação de Lacan não é sem Freud que, já em seu artigo O eu e o isso, alerta-nos para o fato de que o eu "é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/1996, p.40) e que é necessária uma ação psíquica para sua formação (Freud, 1914/1974). Ora, se o eu é corpóreo e uma ação psíquica é necessária para sua formação, podemos concluir que o corpo não é dado desde o nascimento, mas é formado paralelamente ao psiquismo que também não se resume ao cérebro.

Para Lacan, a ação psíquica a qual Freud se referia diz do reconhecimento que a criança tem de seu próprio corpo por meio da identificação a uma imagem (Lacan, 1954/1996). Essa teoria chamada de "Estádio do espelho", propõe que, por volta dos 18 meses de vida, a criança já consegue se reconhecer na imagem no espelho que até então era vista como um outro(Lacan, 1954/1996). Assim, frente ao espelho, a criança não apenas reconhece a imagem como sua, mas essa imagem é também nomeada pelo outro. "Este é você." – diz aquele que segura a criança ou está atrás dela. É através do estádio do espelho, portanto, que a criança identifica-se de forma antecipada com a imagem de um corpo ilusoriamente unificado. Esse protótipo de identificação, por sua vez, leva a criança à estruturação de seu "eu" (Almeida, 1997).

Todavia, a unidade imaginária com a qual o eu se identifica é frágil e sofre abalos constantes, necessitando de novas apropriações e reformulações ao longo da existência de um sujeito (Ferreira & Castro-Arantes, 2014). Não sem razão, na oncologia testemunhamos pacientes que dizem não saber mais quem são ao se depararem com seus corpos enfraquecidos, debilitados e, por vezes, mutilados.

Por outro lado, não é apenas o abalo na ilusão de unidade imaginária do corpo que gera sofrimento. Freud (1920/1996d), a partir do fenômeno clínico da compulsão à repetição, atestará que o corpo não é regulado apenas pelo princípio do prazer, mas é também atravessado por um outro tipo de satisfação que não é sem sofrimento e que Lacan, em seu retorno a Freud, dará o nome de gozo. Assim, o movimento pela manutenção da vida ocorre paralelamente a um empuxo para a morte: "Onde é que isso habita, o gozo? Do que ele precisa? De um corpo. Para gozar é preciso um corpo. (...) Por quê? Porque a dimensão do gozo, para o corpo, é a dimensão da descida para a morte" (Lacan, 2001, p.34).

Não raro, no hospital, os médicos residentes, bem como toda a equipe de saúde, se deparam com pacientes oncológicos que, por mais que digam querer a cura, faltam às consultas, não aderem ao tratamento ou a dieta ideal, colocando-se repetidamente em risco. Ou seja, há algo do corpo e no corpo que escapa a completa simbolização que, muitas vezes, o diagnóstico médico e a conduta estabelecida almejam produzir (Netto, 2014).

Assim, o Simbólico não dá conta do corpo, uma vez que este não é equivalente ao organismo, sendo também pulsional, substância gozante e, portanto, atravessado pelo Real da pulsão. Para além disso, no texto Mal-estar na civilização, Freud delimita o corpo, juntamente à relação com o outro e as forças da natureza, como as três grandes fontes de mal-estar para a humanidade. Com relação ao corpo diz que esse está fadado ao fracasso. Ora, o corpo acometido por uma doença oncológica pode vir a fracassar, por mais recursos que se tenha para tentar preservá-lo, pois é nele que a mais natural das forças age impiedosamente – a morte.

"Não adianta! Aqui no hospital faz tudo direitinho! É só chegar em casa que pára de tomar a medicação pra dor. Parece que gosta de sofrer e vir pro hospital!"

"Tanta gente ruim. Essa paciente é tão querida! Fizemos de tudo, mas ela morreu. É muito injusto, né?"

Essas são apenas duas de muitas outras falas que se apresentam no grupo com residentes e denunciam o quanto o corpo do paciente oncológico pode abalar o ideal médico de um tratamento que extirpe todo o sofrimento, promovendo, nas palavras de Platão (1999, p.92): "o nascimento da amizade entre os maiores inimigos recíprocos existentes no corpo do homem". Assim, morte e gozo se impõem ao corpo, impossibilitando seu controle ou equilíbrio total por meio do saber médico.

Entretanto, não podemos nos esquecer que Freud também aponta a relação com o outro como uma grande fonte de sofrimento para o homem. No grupo, isso dá notícias por meio de queixas concernentes à relação do médico residente com pacientes, familiares e, por vezes, com outros membros da equipe. É aqui que temos a chance de sensibilizar os residentes para a potência da transferência, enquanto motor do tratamento médico.

 

A transferência na relação médico-paciente

Em seu artigo Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades, Freud (1918/1987) se questiona a respeito da pertinência da psicanálise nos currículos das faculdades de medicina, propondo que esse saber teria muito a contribuir para a formação médica, uma vez que o estudante de medicina teria a aprender algo sobre e a partir da psicanálise. Afinal, ao aprender sobre a psicanálise, o futuro médico estaria avisado sobre o determinismo inconsciente e do quanto o adoecimento físico de seu paciente pode ter relações com seu estado mental.

Todavia, ao afirmar que o estudante de medicina teria muito a aprender sobre e a partir da psicanálise, isso significa também que, além de adquirir uma maior compreensão a respeito do funcionamento psíquico de seus pacientes, existiria algo que transcende o âmbito do ensino de conceitos e que, para Freud, parece tocar na relação médico-paciente: "Essa falha (na formação) (...) o tornará inábil no tratamento dos pacientes, de modo que até mesmo charlatões e curandeiros terão mais efeito sobre esses pacientes do que eles" (Freud, 1918/1987, p.378-379).

Não podemos deixar de notar a curiosa relação estabelecida por Freud entre o médico, charlatões e curandeiros. Afinal, a qual efeito estaria se referindo que poderia colocar os charlatões e curandeiros a frente do médico? Do que esse efeito seria decorrente? Ora, aquilo que permeia tanto a relação do paciente com o médico e deste com curandeiros e charlatões é o uso da palavra. Palavra esta que, dependendo de quem a profere, pode ter tom de interpretação, dando um nome, uma representação para o sofrimento.

Em seu ensaio A eficácia simbólica, Claude Lévi-Strauss (1985) demonstra o poder da palavra em um ritual de encantamento indígena na tribo dos índios Cuna do Panamá, que tinha por objetivo a cura xamanística das parturientes em sofrimento. Dessa forma, chamado para auxiliar em situações nas quais as mulheres apresentam dificuldades no momento do parto, o Xamã, através de seu canto, possibilita a representação do mal-estar sentido pela parturiente, que então consegue dar à luz.

A partir disso, percebe-se que, para Freud, há algo que os estudantes de medicina podem aprender a partir da psicanálise, que possibilitaria o reconhecimento da potência simbólica de sua palavra na relação médico-paciente. Afinal, já no início de sua obra, Freud nos alerta para o fato de que, após um certo período, os pacientes começam a se comportar de maneira muito particular em relação ao analista. Assim, o paciente que "deveria não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolvia especial interesse pela pessoa do médico" (Freud, 1912/1996a, p.144).

A esse fenômeno observado em sua clínica Freud dará o nome de transferência, descrevendo-o como "um clichê estereotípico constantemente repetido [...] no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos permitam, e que decerto não é inteiramente incapaz de mudar, frente às experiências recentes" (Freud, 1912/1996a, p.111). Em outras palavras, cada indivíduo desenvolve um método próprio para se colocar na vida erótica o que, por sua vez, envolve as precondições que o sujeito estabelece para enamorar-se, as pulsões que o satisfazem e os objetos que deseja.

No entanto, apenas uma parte dos impulsos que determinam a vida erótica do sujeito está dirigida para a realidade e encontra-se à disposição da personalidade consciente, fazendo parte dela. A outra, por outro lado, é mantida afastada da personalidade consciente e da realidade, sendo impedida de expansão ulterior - exceto na fantasia -, permanecendo totalmente inconsciente (Freud, 1916/1996c).

Assim, é perfeitamente normal e inteligível que essa catexia ou um quantum de investimento libidinal em um objeto, que se encontra pronta por antecipação, dirija-se inconscientemente também para a figura do analista.

Todavia, Freud não deixa de notar que, em se tratando do tratamento analítico: "[...] um dia, nuvens aparecem, [...] surgem dificuldades no tratamento; o paciente não obedece mais as instruções que foram dadas [...] passa a comportar-se como se estivesse fora do tratamento" (Freud, 1916/1996a, p.442). Em resumo, a transferência de intensos sentimentos para o analista pode tomar a forma de uma grande resistência e, portanto, ser a causa para o entrave que se coloca após um momento de júbilo e cooperação do paciente em seu tratamento. Além disso, sempre atento aos fenômenos da vida cotidiana, Freud (1912/1996c), ressalta que a transferência também ocorre fora de uma psicanálise, pois deve ser atribuída à própria neurose.

Com isso, podemos inferir que, no hospital, a transferência não é exclusiva da relação paciente e analista, mas também se faz presente nas outras relações que se estabelecem neste local, inclusive na relação médico-paciente. Não raro, no hospital, o analista é chamado, uma vez que o paciente, apesar de dizer querer a cura, não adere ao tratamento, comportando-se como se não tivesse a ver com o mesmo: "Esse paciente é do bem, mas às vezes, tenho a sensação de que entro no quarto para fazer social. E esse é um paciente que nunca faz aquilo que pedimos. Aliás, faz justamente o contrário. Aí fico me sentindo um inútil!"

A fala angustiada da residente frente a um paciente que, apesar de não aderir ao tratamento, continua indo às consultas e pedindo aos médicos que entrem em seu quarto durante a internação mais de duas vezes por dia, denota o quanto a transferência na relação médico-paciente também pode se colocar como resistência, mesmo que permeada por sentimentos positivos. Ou seja, o "bom vínculo" - como geralmente os médicos se referem a uma relação amistosa - nem sempre garante a cooperação do paciente com seu tratamento.

Outra situação frequente e que constantemente se apresenta durante as reuniões do grupo é a dificuldade dos residentes para lidar com os sentimentos hostis ou interpretados como hostis: "Não sei o que acontece! Entro no quarto e ele (o esposo) me olha daquele jeito estranho. Tenho certeza que ele pensa: quem essa fedelha acha que é para vir aqui falar da minha mulher".

Essa é a interpretação dada pela residente médica ao olhar do familiar que, ao longo dos encontros, revelou-se dizer mais da sua dificuldade em se ver como médica, do que com uma percepção real do familiar a seu respeito. Ou seja, aqui percebemos o quanto os fenômenos contra-transferenciais também atravessam significativamente a relação médico-paciente que, no caso acima, encontra-se ameaçada.

Apesar de não amplamente abordada em sua obra, Freud não deixou de considerar a contra-transferência, ou seja, os sentimentos produzidos no analista ao escutar aquele que sofre. Afinal, "ninguém que evoca os mais malignos demônios que habitam o peito humano e procura combatê-los pode esperar sair incólume dessa luta" (Freud, 105/1996d, p.105) Para Lacan, "a contra-transferência (...) é feita de sentimentos experimentados pelo analista na análise, e que são determinados a cada instante por suas relações com o analisando" (Lacan, 1960-61/1992b, p.245). Todavia, Lacan equivale esse fenômeno a uma resistência do analista em calar seus princípios, seus preconceitos, seus julgamentos morais e passa a se posicionar no dispositivo psicanalítico como se esse configurasse uma relação intersubjetiva, ou seja, entre dois sujeitos, inviabilizando a escuta. Esse apontamento lacaniano nos interessa uma vez que percebemos o quanto o tratamento é dificultado, ou até mesmo impossibilitado, quando se deixa capturar pelos sentimentos contra-transferenciais, sejam eles positivos ou negativos.

De qualquer forma, é importante considerarmos, então, que não só sentimentos afetuosos permeiam a relação médico-paciente. Sentimentos hostis também entram em jogo, e, como nos alerta Freud, não é devido a sua tonalidade agressiva que deixam de se configurar como uma forma de manifestação da transferência: "[...] os sentimentos hostis para com o médico merecem ser chamados de transferência, pois a situação, no tratamento, com muita razão não proporciona qualquer fundamento para sua origem." (Freud, 1916/1996c, p.444).

A advertência freudiana nos é valiosa, uma vez que dialetiza a ideia de que um "bom vínculo", ou seja, a relação permeada por sentimentos amorosos, possibilitaria a condução de um tratamento sem entraves, enquanto que uma relação difícil, atravessada por sentimentos de agressividade, por exemplo, equivaler-se-ia a uma impossibilidade de se tratar.

Não sem razão, em sua obra A transferência, Denise Maurano enfatizará que Lacan problematizará os conceitos de transferência positiva, transferência negativa e ambivalência trabalhados por Freud (Maurano, 2006). Ou seja, para o autor, a transferência - manifestando-se de forma positiva, negativa ou ambivalente – estará sempre vinculada a uma suposição de saber. Evidentemente, ao fazer essa afirmação, Lacan está se referindo a relação de um paciente com um psicanalista. Todavia, isso não nos impede de fazer uma aproximação com aquilo que ocorre na relação médico-paciente. Expliquemo-nos.

Quando alguém procura um analista ou um médico, é porque subentende que este detém um saber sobre o que lhe causa sofrimento. Assim, ao se intrigar com um pensamento, sentimento, comportamento ou sintoma que foge à razão, procura-se um analista. Por outro lado, ao se deparar com um mal-estar físico, é no saber médico que o paciente procurará uma resposta. Ou seja, diante do sofrimento e da impossibilidade de nomeá-lo, credita-se um saber a alguém, que passa a ocupar um lugar de importância no psiquismo daquele que sofre. A essa operação, Lacan deu o nome de suposição de saber e a vinculou ao estabelecimento da transferência (Moretto, 2005).

Evidentemente, apesar da operação que concerne ao estabelecimento da transferência ser a mesma, analista e médico devem se posicionar diante dela de maneira diversa. Enquanto o analista deve fazer semblant de grande Outro, sem responder desse lugar, o médico, por sua vez, não opera se não encarnar e responder desse lugar.

Aqui, no entanto, temos que lidar com uma especificidade do hospital onde atuamos e que não é sem efeitos na prática clínica do médico residente. O programa de residência aqui em questão ocorre em um hospital particular, onde os pacientes escolhem seus médicos. Assim, geralmente, os pacientes já têm uma transferência estabelecida com seus médicos e, quando chegam ao hospital, deparam-se com os residentes, tendo dificuldade de creditá-los algum saber: "O médico do paciente é o chefe. Eu sou só o R1. Tem paciente que entra no consultório e já dispara: não vim aqui ser atendido por você. Vim ver o Dr. .... Ele é que sabe do meu caso."

Por outro lado, como vimos, antes de ingressarem na residência em cancerologia clínica, os residentes já cursaram a residência em clínica geral. Dito isso, observa-se, nessas situações que há um saber que, muitas vezes, fica velado ou subtraído de seu valor diante do não saber concernente à oncologia.

Com isso, percebemos que um dos efeitos do grupo é possibilitar uma reapropriação do saber relativo à clínica. Afinal, se ainda não há um saber sobre oncologia, há um saber sobre a clínica. A aposta é que algum saber possa ser suposto, não necessariamente ao estudante, futuro oncologista, mas ao médico, ao clínico geral que se encontra frente a frente com pacientes e familiares.

Atrelado a isso, não podemos nos esquecer de que a transferência é a colocação em ato da realidade inconsciente (Jacques Lacan, 2008a). Por isso, ao propor o algoritmo da transferência, Lacan nos ensina que o significante da transferência (Sq), ou seja, aquele dirigido a quem está colocado no lugar de Outro, é um significante qualquer. É, portanto, um significante fabricado pelo sujeito e não necessariamente tem a ver com aquele a quem é dirigido (Quinet, 2007). Assim, o significante que estabelece o enlace transferencial é inconsciente e permanece recalcado e, apenas em um processo analítico, pode ser desvelado. Esse obviamente não é o caso da relação médico-paciente. Entretanto, também na relação médico paciente o significante que engendra a transferência não tem a ver necessariamente com maior ou menor grau de conhecimento com relação à doença oncológica ou ao tratamento. "Não sei o que essa paciente viu em mim. Acredita que veio perguntar para mim se deveria fazer quimio? E ainda disse que a minha palavra é lei. O que eu dissesse ela faria. É muita responsabilidade para uma R1".

A surpresa na fala da médica com relação à pergunta da paciente mostra-nos o quanto o médico residente não está isento da transferência, mesmo não sendo ele o chefe, aquele que "sabe mais".

Uma vez discutidos os temas que mais se fazem presentes no grupo com residentes, abordemos agora como esse trabalho se dá.

 

Uma direção de trabalho e seus efeitos

Na formação do aluno de medicina, seja ele graduando ou residente, algo se repete: a presença maciça de um discurso que exclui o sujeito (aluno), em nome de um ideal. Esse ideal, por sua vez, tem relações com o saber, ou melhor dizendo, com o imperativo de tudo saber. Dessa forma, a dimensão de um saber total e unívoco, ganha consistência imaginária na formação médica, invadindo as relações de maneira geral. O médico residente deve saber tudo para dar provas da sua competência para o médico professor. O médico professor, por outro lado, não pode vacilar em seu saber para não cair em descrédito. E, finalmente, a relação que os residentes estabelecem com o próprio programa de residência também pode ser permeado por esse ideal de que nele se alcançará um saber absoluto, de que aquele será o programa perfeito de residência.

"Estava discutindo o caso e aí o chefe vira e diz: como você não sabe disso? Fiquei pensando: como poderia saber? Acabei de entrar na residência! – questiona-se um residente."

"Essa é uma pergunta importante. Será que não há aí um impossível em jogo? Não há um impossível de se saber neste momento? Momento de início... – intervém o analista."

"Sim, Talvez seja melhor a gente não confundir a expectativa do chefe com a nossa, né?! Tipo, não é possível saber tudo agora. – concluí outra residente."

"Mas será possível saber tudo em algum momento? – questiona o analista."

Com isso, observa-se que o não-saber que deveria movimentar o espírito científico, parece não ter lugar na formação médica. Da mesma forma, o mal-estar decorrente do não saber ou o saber não sabido do inconsciente encontram-se recalcados ou, no mínimo, desconsiderados. Entretanto, sabemos que aquilo que se encontra recalcado retorna e é na aposta no determinismo inconsciente que o grupo de residentes tem a base de seu trabalho.

Por isso, atos falhos, chistes, sintomas, sentimentos de estranheza com relação aos próprios atos, geralmente aparecem na fala dos residentes, que encontram no grupo um espaço para se intrigarem. Todavia, essa passagem do saber totalizante para o saber não sabido do inconsciente, ou melhor, esse giro discursivo, não é sem uma direção de trabalho que diz, ao mesmo tempo, de uma posição ética. É sobre isso que nos debruçaremos a seguir.

 

Ética e discurso...

No ensino de Lacan, é marcante sua preocupação com o que é feito em nome da psicanálise. Assim, além de ter proferido um seminário inteiro dedicado à ética da psicanálise, seu ensino é atravessado a todo momento por esse tema (Lacan,1959-60/2008b). Há, no entanto, duas observações de Lacan sobre a ética da psicanálise, que não se encontram em seu seminário dos anos de 1959 e 1960, mas que nos interessam.

A primeira está em "O lugar da psicanálise na medicina", no qual Lacan nos diz que "a dimensão ética é aquela que se estende em direção ao gozo" (Lacan, 1966/2001, p.12) e, a segunda, em "Televisão", quando afirma que "a ética é relativa ao discurso" (Lacan, p.73, 1974/1993, p73). Percebemos então uma articulação feita por Lacan entre ética, gozo e discurso.

Entretanto, será em seu "O seminário XVII – o avesso da psicanálise" que essa articulação ficará mais clara, quando Lacan (1969-70/1992) estabelece quatro formas principais de laços sociais reguladoras entre saber e gozo. Para isso, retoma as três tarefas ditas impossíveis por Freud (1937/1996)- educar, governar, psicanalisar – e acrescenta uma quarta, amar. Mas porque essas seriam tarefas impossíveis? Ora, há algo em comum nessas quatro modalidades de laço: a impossibilidade da totalização, do se fazer UM. Afinal, não se educa ou governa a todos! Em uma psicanálise há "o umbigo dos sonhos" para Freud, bem como o "saber fazer com o sintoma" para Lacan. No que diz respeito ao amor, não há dois que fazem um, não há relação sexual, na medida em que não há complementariedade e completude entre os sexos. A partir disso, Lacan propõe os matemas que formalizam - através de posições fixas e de letras que circulam em um quarto de giro - o discurso do mestre, o da histérica, o do analista e o universitário.

 

 

Evidentemente, não pretendemos neste artigo fazer um estudo exaustivo sobre a teoria dos quatro discursos. O que nos interessa neste momento é o fato de Lacan enfatizar que não há em nenhum discurso a possibilidade de se equivaler a verdade, que condiciona à relação entre o agente e o Outro do discurso, ao produto desta relação. Ou seja, a verdade, independente do laço social estabelecido, é sempre não toda, atravessada pelo Real da experiência humana. É isso que a dupla barra entre a verdade e a produção indica.

 

 

Esse apontamento é importante e tem grande operacionalidade no âmbito da prática, servindo-nos de norte para nosso trabalho no grupo com residentes. Afinal, muitas vezes o que se escuta é uma significativa alienação por parte dos membros do grupo ao Discurso Universitário, no qual o saber (S2) está no lugar de agente, tendo como sua verdade a mestria S1. No campo do Outro, por sua vez, encontra-se o objeto a, em sua vertente de mais de gozar. Dessa forma, observa-se que o saber universalizante e dessubjetivado que caracteriza o discurso Universitário, é a autoridade máxima e, por isso, como produto deste discurso, temos o sujeito ($) que, abaixo da barra, é desconsiderado.

Todavia, não é porque está desconsiderado que o sujeito deixa de se manifestar enquanto um saber que não se sabe saber nos movimentos de abertura do inconsciente. Como nos ensina Lacan (1964/2008a), o inconsciente não resiste, insiste. Assim, paradoxalmente, em um hospital universitário, o discurso universitário pode abrir espaço para o discurso do analista, já que tende a colocar todos os saberes em pé de igualdade, mesmo que certa hierarquização seja esperada. Se ao médico se supõe um saber sobre o organismo, aos profissionais psis, supõe-se um saber sobre o mental e sobre as emoções.

Com isso, o discurso universitário possibilita que o discurso do analista se faça presente podendo operar um giro no discurso preponderante. Ou seja, ao mesmo tempo que a lógica universalizante exclui a subjetividade, dá também ao analista a oportunidade de fazer uso de seu saber, de maneira que seus pares compreendam sua importância. Não sem razão, a lógica inerente à teoria dos discursos prevê que, a partir de um quarto de giro, possa se sair do discurso do universitário e entrar no discurso do analista.

No entanto, cabe aqui uma ressalva: o analista não deve se deixar capturar pela lógica do discurso universitário, fazendo da psicanálise um saber que, somado ao saber médico, teria como resultado um saber total. É importante nos lembrarmos do alerta de Lacan para o fato de que o discurso psicanalítico é subversivo justamente por não se pretender revolucionário, já que toda (re)volução leva ao mesmo ponto, ou seja, a instituição de um novo mestre (Lacan, 1974/1993).

Portanto, para operar a partir da psicanálise, o analista deve se colocar no lugar de semblante de a, objeto causa de desejo, dirigindo-se ao sujeito ($) que se encontra no campo do Outro do discurso. Dessa relação espera-se que o sujeito produza um saber inédito sobre si próprio (S1), já que esse relaciona-se com a verdade (S2) que embasa o discurso, mas não se equivale a ela. Ou seja, se no lugar da verdade (S2) encontra-se a formação do psicanalista, que lhe possibilita operar eticamente, o saber precipitado pelo sujeito no dispositivo analítico não encontrará correlatos na teoria, já que esse é fruto de uma relação transferencial única.

Neste ponto o leitor mais atento pode estar se perguntando o que disso se aplica ao trabalho feito com os residentes médicos? Afinal, esse seria um tratamento psicanalítico em grupo? É importante sermos categóricos: o grupo não é um espaço de tratamento! Pelo menos não no sentido em que pensamos um tratamento em psicanálise, composto pelas entrevistas preliminares, a análise propriamente dita e o atravessamento do fantasma. Por outro lado, isso não quer dizer que não produza efeitos terapêuticos, no sentido da minimização do sofrimento causado em seus membros pelos ideais estabelecidos ou pelos efeitos transferências e contra-transferencias dos casos atendidos.

Com isso, apostamos que a condução do trabalho em grupo por meio da lógica presente na teoria dos 4 discursos proposta por Lacan, possibilita-nos o engendramento de giros discursivos o que, por sua vez, permite que os residentes médicos sejam sensibilizados para o inconsciente enquanto saber e, dessa forma, passem a incluir e considerar a subjetividade como parte integrante da clínica. Vejamos como isso se dá na prática:

"Os casos estão tranquilos!" – diz um residente.

"Mas o que seria um caso tranquilo? – questiona o analista.

"Ah é um caso que tá tudo perfeitinho. A conduta é dada, a família e o paciente compreendem e entendem o que é melhor para eles. Mas porque a pergunta? Será que não tem casos tranquilos" – responde o residente intrigado com a pergunta do analista.

"Para mim os casos nunca são tranquilos." – fala uma residente, abrindo espaço para dialetização do significante tranquilo.

"O que aconteceu naquele quarto não foi normal. Comemorar o aniversário de uma paciente que já está praticamente morta ...." – revolta-se um residente.

"Mas o que seria uma reação normal diante da morte?" – intervém o analista.

"Quando meu avô morreu eu não sofri, mas sofri quando um amigo próximo faleceu. Teoricamente isso não é "normal", mas foi assim que eu senti" – relata um residente.

"Depois que minha vó morreu, a gente continua celebrando o aniversário dela. É estranho, mas para nós faz todo o sentido". – compartilha uma outra integrante do grupo.

"O que essas duas histórias têm em comum?" – indaga o analista.

"Elas têm algo que é estranho pro outro, mas que para nós tem sentido." – responde uma residente apontando para a impossibilidade de se padronizar uma maneira de se lidar com a morte.

"A família não quer que a paciente saiba do diagnóstico. Mas eu entendo. Ela já tem 87 anos. Coitada da vozinha" ... – compadece-se uma residente.

"Voz, vozinha ..." - intervém o analista.

"Verdade! Não é porque é idosa que não tem que ter voz ou pouca voz. É porque esses idosos às vezes lembram nossos avós, né?!" – retoma a residente se dando conta dos efeitos da contratransferência.

As vinhetas acima dão notícias da possibilidade de um giro discursivo quando o discurso universitário é atravessado pelo discurso do analista, no qual a subjetividade daquele que toma a palavra tem lugar cativo. Assim, se antes há um ideal de caso, a dialetização do significante "tranquilo", faz com que esse ideal possa ser questionado. Se antes há uma crença de que há um jeito "normal" de se lidar com a morte, agora percebe-se que diante do Real da morte, resta uma invenção, sempre singular e, por vezes, "irracional" e estranha. Se antes deixa-se cegar pelos efeitos contratransferências, colocando em risco a possibilidade de uma paciente participar de seu tratamento, a equivocação com o significante "vozinha" desvela o lugar ocupado na contratransferência.

 

Concluindo, deixando a desejar...

O grupo com residentes médicos começou há quatro anos como uma invenção diante de um mal-estar. A subjetividade, seja ela do médico ou do paciente, incomodava, causava estranhamento e, por vezes, era motivo de abrir mão de atender um caso ou, até mesmo, de desistir da própria residência.

Entretanto, ao se ofertar uma Outra cena, a qual o inconsciente estruturado como linguagem faz circular e dialetizar as angustias e impasses da transferência, onde corpo e organismo possam a ter uma relação de extimidade e não de equivalência e os ideias relativos ao saber podem ser questionados, percebemos alguns efeitos interessantes de nosso trabalho:

• Relação com o inconsciente enquanto um saber:

"Essa paciente tá sofrendo. Há o sofrimento da doença, mas há um outro sofrimento. Um sofrimento que ela mesma parece causar. Não sei bem o que é, mas acho que ela deveria ser atendida (pela psicologia)". – diz um residente sobre uma paciente, cujo comportamento o intrigava.

• Na relação com o ideal concernente ao saber médico:

"A enfermagem acha que não sabemos nada porque somos residentes. Elas estão certas!" – diz um médico em tom chistoso, mas nem por isso menos angustiado.

"Não é bem assim. Você é médico! Pode não saber de oncologia direito, mas sabe muito de clínica. Talvez mais do que os chefes. Demorei para perceber isso. Mas é verdade. A gente entende tem que se apropriar do que temos e do que somos como médicos. Senão fica muito difícil!" – outro residente se posiciona.

• Na relação com o Real inerente à clínica:

"Quando falei sobre os resultados dos exames o paciente me disse chorando: Entendi, doutor, então não tem mais nada pra fazer no meu caso".

"Aí respondi: não é bem assim. Não é porque não há mais tratamento oncológico, que outras coisas não sejam possíveis..." – relata uma residente que acabara de comunicar um prognóstico reservado a sua paciente.

• Na relação com a própria subjetividade:

Tocados por questões precipitadas no grupo, alguns residentes pedem encaminhamentos para se engajarem em suas análises pessoais.

Além disso, hoje nosso trabalho tem um lugar cada vez mais demarcado no programa de residência médica em Cancerologia Clínica do HIAE. Como exemplo, podemos citar o fato de que na apresentação feita aos candidatos pelos preceptores da residência, o grupo com residentes é colocado como uma das atividades ofertadas pelo programa, com vistas à formação médica.

Evidentemente, essas consequências de nosso trabalho, bem como o texto que o leitor tem em mãos, não são definitivos. O trabalho se renova a cada encontro, a cada novo grupo de residentes no programa e, por isso, exige desejo, desejo de analista, renovando a aposta de Freud (1919/1996g) de que, em sua formação, os médicos podem aprender algo sobre e a partir da psicanálise.

 

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1 Psicanalista. Psicólogo do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein. Especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium de Buenos Aires. Especialista em Psicologia Hospitalar pela FMUSP. Mestre em Psicanálise: clínica e pesquisa pela UERJ. Doutorando pelo Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica pela USP. Contato: marcus.netto@einstein.br.
2 Coordenadora do Serviço de Psicologia e Experiência do Paciente do Hospital Israelita Albert Einstein. Bacharel e Licenciatura em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP. Formação em Psicodrama pela Escola Paulista de Psicodrama. Especialização em Psicologia da Infância pela UNIFESP. MBA em Gestão de Saúde pelo Insper. Extensão Internacional no Hospital Clinic, em Barcelona, e Jefferson University, na Filadélfia. Contato: ana.kernkraut@einstein.br.

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