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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.23 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
ARTIGOS
O Tempo Vivido no Centro de Terapia Intensiva: a percepção da passagem do tempo na internação
Time lived in the Intensive Care Unit: the perception of the passage of time in hospitalization
Paula Sampaio ParreirasI; Vanessa Rosa PereiraII; Daniela Soares MadureiraIII; Luciana Filgueiras HouriIV
IPsicóloga do Grupo Oncoclínicas - Belo Horizonte/MG. - E-mail: paulatpo@hotmail.com
IIPsicóloga do Grupo Oncoclínicas - Belo Horizonte/MG. - E-mail: vanessa_rosapereira@yahoo.com.br
IIIPsicóloga do Grupo Oncoclínicas - Belo Horizonte/MG. - E-mail: danielasmadureira@yahoo.com.br
IVSanta Casa de Belo Horizonte - Belo Horizonte/MG. - E-mail: luhouri@yahoo.com.br
RESUMO
A presente pesquisa se propôs a investigar a percepção e a vivência da passagem do tempo em pacientes internados no CTI (Centro de Terapia Intensiva) Clínico de um hospital filantrópico de grande porte. Os dados foram coletados através de entrevista semiestruturada e analisados através da metodologia qualitativa de Análise de Conteúdo. Constatou-se que 45% dos participantes julgou incorretamente o número de dias de internação. Foram listados os marcadores temporais utilizados pelos pacientes e as unidades de sentido que surgiram nas entrevistas foram categorizadas em 4 temas. Conclui-se que a experiência temporal se mostra para os pacientes como estruturante da experiência de internação e permeia os sentidos atribuídos à mesma.
Palavras-chave: centro de terapia intensiva; tempo; fenomenologia.
ABSTRACT
This study's objective was to analyze the time flow perception and experience in hospitalized patients in the Clinical ICU (Intensive Care Unit) of a large philanthropic hospital. The data was collected through semi structured interview and analyzed through the qualitative method of Content Analysis. It was found that 45% judged incorrectly the number of days of hospitalization. The time markers used by patients were listed and the meaning units that arose from the interviews were categorized in 4 themes. It is concluded that the time experience takes place for the patients as something that gives structure to the hospitalization experience and permeate its attributed meanings.
Keywords: intensive care unit; time; phenomenology.
Os Centros de Terapia Intensiva (CTI) representam o emprego da tecnologia da saúde em prol da preservação da vida de pessoas gravemente doentes e em instabilidade clínica. O maior refinamento das tecnologias torna cada vez mais necessária a reflexão sobre a humanização dentro dos ambientes hospitalares. O CTI, local de tratamentos invasivos e amedrontadores para pacientes e seus familiares, merece lugar de destaque na busca pelo cuidado humanizado (Farias, Vidal, Farias & Jesus, 2013).
A hospitalização causa uma interrupção no curso da vida do paciente internado, especialmente levando-se em consideração a ainda dificultada presença de familiares durante o processo de hospitalização. Com isso, o paciente internado em CTI pode sofrer estresse de forma intensificada, uma vez que frequentemente é restrito ao leito, privado do contato com notícias e objetos pessoais, privado do convívio com familiares, em ambiente fechado, exposto a invasões de espaço pessoal e do próprio corpo, a poluição auditiva, além da limitação da autonomia e capacidade de decisão sobre o decorrer do tratamento e até rotinas simples como escolher o horário de comer e tomar banho. Soma-se esse contexto ao estigma associado ao conceito de CTI, visto por pacientes e familiares como o lugar onde se morre (Comassetto & Enders, 2009).
Diante dessas implicações psicológicas e emocionais, compreende-se que a vivência da passagem do tempo e a sensação de duração da internação apontam para uma via importante de acesso à subjetividade do paciente e os sentidos implicados no seu processo de saúde. A experiência da passagem do tempo, em si, é uma experiência subjetiva, podendo o mesmo tempo cronológico eliciar vivências diferentes, além de carregar sentidos diversos de acordo com o contexto e forma de ser de cada indivíduo (Ades, 1990).
Com isso, destaca-se a importância da compreensão da vivência temporal, especialmente levando-se em consideração o risco elevado de ocorrência de estados de confusão mental ou delirium nesse contexto, quadro predominantemente associado à alteração da percepção e vivência da dimensão temporal, dentre outros sintomas (Pessoa & Nácul, 2006). Segundo tais autores, cerca de 80% dos pacientes críticos internados em CTI apresentam em algum momento episódios de delirium. Tal quadro tem sido associado a maiores períodos de permanência no hospital, assim como maior incidência de mortalidade. Dentre os fatores de risco para o desenvolvimento de delirium, aponta-se o "estresse induzido pelo desconhecimento do ambiente, ruído de alarme, mudança constante dos profissionais que prestam assistência e cuidados ou procedimentos mal explicados aos pacientes." (Pessoa & Nácul, 2006, p. 191). Compreende-se, assim, que a perda de referenciais no CTI pode representar um aumento no risco desses pacientes, mesmo que orientados, apresentarem períodos de confusão mental.
Diante do exposto, a presente pesquisa parte da hipótese de que a percepção temporal dos pacientes internados em CTI apresenta distorções e que, no contexto de privação dos marcadores temporais usuais à realidade do sujeito, a rotina pré-estabelecida do setor pode oferecer marcadores da passagem do tempo que contribuam para a orientação temporal do paciente. Acredita-se que os achados da pesquisa vão ao encontro da ideia de Ades (1990), para o qual a existência de marcadores da vivência do tempo possui relevância estruturante, tanto no sentido de organizar a experiência do paciente durante a sua internação, quanto no sentido de oferecer a ele suporte para enfrentar a situação de estresse emocional e psicológico desse contexto.
O tempo não é compreendido aqui, portanto, como uma dimensão fria ou vazia de significação, mas sim permeada de desejos que se projetam ao futuro e afetos que se estruturam no decorrer da vida e da aquisição de memórias. A duração pode carregar sentidos como de expectativa ou de tédio. Sendo assim, o observador do tempo não se caracteriza como receptáculo da informação temporal, mas impõe ativamente uma estrutura à sua vida através de marcadores que ele mesmo pode gerar (Ades, 1990).
O presente trabalho busca sua fundamentação teórica na Fenomenologia, cujo preceito básico consiste no abandono da concepção da realidade como pré-estabelecida e com definição universal, buscando assim a compreensão dos fenômenos através do contato com a experiência vivida e as significações atribuídas pela intencionalidade (Moreira & Bloc, 2012).
Na compreensão fenomenológica, a percepção e a vivência do tempo estão intrinsecamente ligadas ao ato da consciência intencional, ou seja: as propriedades do tempo residem na subjetividade e não em características do mesmo como objeto externo ao sujeito. Isso significa que o tempo surge como fenômeno para a pessoa por meio de sua intencionalidade, seu olhar direcionado e dotado de um fundo de significações que já estão presentes e integradas à pessoa (Pereira Junior, 1990). Martins (1998, p.8) descreve o ser humano como um ser temporal em sua existencialidade, afirmando que o tempo é o sentido da vida como em um curso d'água. Ao buscar compreender a pessoa, a compreensão deve abranger o seu sentido temporal. Sendo assim, afirma que "o homem não está no tempo, é o tempo que está no homem".
Método
Trata-se de pesquisa de campo qualitativa, exploratória e transversal. Primeiramente foi realizada revisão da literatura que buscou abranger a produção brasileira e internacional no tema, através de pesquisa nas bases de dados BVSPsi, PubMed e CAPES, nas línguas portuguesa e inglesa. Os descritores utilizados na busca foram "unidade de terapia intensiva", "vivência" e "Tempo Vivido", e seus correspondentes na língua inglesa. A busca inicial se restringiu a publicações realizadas no período de 2007 a 2020. No entanto, ao constatar a escassez de publicações destas temáticas, foram incluídos estudos realizados na década de 1990 e início dos anos 2000. Foram incluídos também às referências textos clássicos da fenomenologia.
A pesquisa foi realizada na Santa Casa de Belo Horizonte, um hospital filantrópico de grande porte, referência para tratamentos de alta complexidade no estado. A instituição dispõe de 1080 leitos exclusivos para usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e conta com três Centros de Terapia Intensiva (CTI), sendo eles: Pós-operatório que dispõe de 40 leitos; Coronariano com 40 leitos; e o Clínico que dispõe de 20 leitos para patologias agudas e 15 para crônicas. O CTI clínico foi selecionado por apresentar uma média de tempo de internação elevada em relação aos outros.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição, sob o número CAAE: 72093417.6.0000.5138. As entrevistas foram gravadas e registradas em caráter confidencial, e os participantes numerados para a apresentação dos dados.
A coleta de dados foi realizada no período de agosto a outubro de 2017, tendo sido abordados todos os pacientes internados no CTI selecionado de forma não aleatória, por conveniência e que atendiam aos critérios de inclusão estabelecidos: pacientes de ambos os sexos, com idade mínima de 18 anos, internados na unidade, com Escala de Coma de Glasgow 15 há pelo menos três dias consecutivos e que apresentassem linguagem e cognição preservadas. Foi verificado o Glasgow dos pacientes diariamente durante corridas de leito realizadas pela equipe multiprofissional do setor ou em discussão com equipe médica e de enfermagem. Foram excluídos da amostra os pacientes traqueostomizados.
Durante o período da coleta, estiveram internados um total de 374 pacientes. Destes, 321 não puderam participar por estarem em ventilação mecânica, traqueostomizados ou por terem ido a óbito. Este número se justifica pelo perfil do setor que recebe pacientes de alta complexidade, em estados de gravidade avançados e que, devido a períodos longos de intubação, precisam ser traqueostomizados para realização de reabilitação respiratória. Dessa forma, 53 pacientes foram avaliados para participação do estudo. Destes, 6 pacientes recusaram participar e 27 foram excluídos por não responderem aos critérios de inclusão pré-estabelecidos. Por fim, 20 pacientes participaram do estudo. A característica do CTI escolhido trouxe uma limitação à pesquisa no que tange o tamanho amostral: o perfil das patologias e internações apresentou uma realidade de poucos pacientes conscientes, responsivos e disponíveis para a participação.
A coleta de dados foi realizada em duas etapas, ambas veiculadas com cada paciente no mesmo dia, a saber: aplicação de questionário sócio demográfico e aplicação de questionário semiestruturado desenvolvido para esta pesquisa, sustentado na revisão bibliográfica. O questionário semiestruturado consistiu de perguntas abertas que avaliaram a percepção do tempo percorrido na internação no CTI, a correspondência da percepção da duração ao tempo cronológico e que buscaram a descrição de quais marcadores de tempo os participantes utilizam para se orientar temporalmente. Houveram perguntas subsequentes que não constavam na entrevista original, tais como "o que significa isso para você?" e "explique melhor o que você quer dizer com (...)", realizadas com intuito de desenvolver o tema abordado (Santos, Neves & Carnevale, 2016).
As entrevistas ocorreram à beira leito devido à limitação de mobilidade característica das internações no CTI selecionado. Durante a aplicação das entrevistas, por vezes foi identificada pela aplicadora a necessidade de realizar acolhimento, escuta empática e intervenções psicológicas diante da fala de angústia e sofrimento que alguns dos pacientes abordaram. Jones e Lyons (2003) refletem sobre as possíveis implicações metodológicas de intervenções clínicas aplicadas no momento da entrevista por, de certa forma, poderem direcionar a fala do paciente ou influenciar o sentido do que é dito. Reflete-se que, diante de pacientes em situação vulnerável como os internados em CTI, o papel de cuidador é sempre presente pelo profissional, no caso o psicólogo, mesmo simultaneamente ao seu papel de investigador. Por isso, se mostra também como uma implicação ética a postura cuidadora e terapêutica diante de temas abordados durante as entrevistas.
Os dados coletados foram agrupados e analisados através da Análise de Conteúdo, calcada na proposta de Gomes (2002) e Bardin (1977). O processo consistiu de quatro etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação. Com intuito preservar a integridade biopsicossocial do paciente, quando necessário, foi garantido o acompanhamento psicológico durante a internação e o encaminhamento após a alta.
Resultados
A amostra consistiu em 10 participantes do sexo feminino (50%) e 10 do sexo masculino (50%), com idades entre 21 e 88 anos. A escolaridade dos participantes se apresentou predominantemente entre ensino fundamental incompleto (45%) e ensino médio incompleto (40%), sendo que 11 (55%) encontravam-se ativos e empregados. Também se constatou que 19 (95%) participantes relataram receber visitas de familiares e amigos frequentemente durante a internação no CTI.
Em relação ao tempo de internação no setor, 17 participantes (85%) encontravam-se internados entre 3 e 7 dias e 3 participantes (15%) entre 8 e 15 dias. Quando questionados sobre o número de dias de internação, 11 (55%) responderam corretamente. Dentre os pacientes que não responderam corretamente, a maioria (44%) julgou estarem internados dois dias a mais do que de fato estavam. Destaca-se nos resultados o fato de que 45% dos participantes, quase a metade, apesar de conscientes, lúcidos e orientados em espaço e tempo, apresentaram distorções na percepção temporal e na contagem dos dias.
A Tabela 1 demonstra a frequência de todos os marcadores de tempo citados pelos participantes. Dentre os marcadores mais utilizados, destacam-se a presença de relógio no box (65%), o hábito de perguntar às enfermeiras (20%), a percepção das trocas de plantões das equipes (20%) e a presença de televisão no box (20%). Mostram-se como fatores importantes na orientação temporal a relação estabelecida com a equipe assistencial e a presença de aparelhos tecnológicos.
Através da análise de conteúdo dos relatos dos participantes, elencou-se quatro temas principais: a duração do tempo, fatores de ajuda, fatores que dificultam e a postura resignada. A Tabela 2 apresenta a distribuição dos quatros temas e as categorias de ideias centrais em relação à frequência em que surgiram nos relatos dos pacientes.
Em "duração do tempo" percebe-se uma importante prevalência da experiência de tempo lentificado durante a internação no CTI, sendo que 75% dos participantes afirmaram perceber o tempo lento ou até parado, em suspensão. Muitos relacionaram essa percepção à necessidade de espera pela alta ou pela cura, a falta de atividades que ocupassem o tempo e a ausência de companhia. Dois (10%) não diferenciam a duração do tempo no CTI daquela em suas vidas cotidianas e apenas um (5%) apresenta a experiência de tempo acelerado. Dois pacientes (10%) não tiveram resposta clara ou não se posicionaram em relação à vivência da passagem do tempo.
A percepção do tempo lentificado se evidencia em falas como: "Parece que eu não vou sair daqui nunca. Tem poucos dias que eu tô aqui, mas parece que tem uns 15 dias". (Paciente 03), assim como na fala: "Um dia aqui vale por... como se fosse dez dias de prisão (risos). Acho que exagerei, né? Mas a gente sente assim." (Paciente 20). Houve ainda uma experiência de tempo acelerado em contraste com os outros participantes: "O tempo tá passando depressa, tá voando. Por causa dessa dificuldade que eu tenho de ficar aqui. Tô perdendo muito tempo. Perde o tempo da saúde." (Paciente 16)
Grande parte dos entrevistados exaltaram fatores positivos que oferecem a eles suporte diante da internação no CTI. Tais fatores, conforme evidenciado na Tabela 2, foram: a relação positiva com a equipe (55%); esperança (50%); tempo para refletir e ressignificar a experiência (35%); distrair-se, ocupar-se e evitar pensamentos ruins (35%); espiritualidade (25%); presença de familiares e amigos (20%); ter referência de alguém que já passou pela mesma experiência (5%).
A relação positiva com a equipe aparece nos discursos tanto relacionada à experiência de se sentir bem cuidado, quanto no estabelecimento de vínculos pessoais com membros da equipe:
"Eles (equipe de enfermagem) é muito cuidadoso, eles tem uma paciência com a gente. A gente pergunta eles as coisas e eles são bonzinho pra responder. A gente pede eles pra abaixar a cama, eles abaixa, pra virar a gente, eles vira. Eles olham a gente, troca a gente direitinho, dá banho direitinho" (Paciente 08).
Já para outra paciente, a presença da equipe aparece como positiva em contraste com a solidão sentida em casa, onde vive sozinha: "Aqui eu ainda me sinto assim, num ambiente melhor do que se eu tivesse na minha casa. (...) aqui entra uma enfermeira, entra um médico, entra um psicólogo, sabe? Assim… as pessoas que vem até mim" (Paciente 10).
Importante notar que, mesmo a descrição da paciente sendo de uma experiência positiva, sua sensação da duração também é lentificada e ela também aborda durante seu relato o desejo de ir para casa diante da infamiliaridade do ambiente hospitalar e do contexto de redução da autonomia. Já para outro paciente, o vínculo de amizade com a equipe de enfermagem oferece um fator de ajuda na experiência da passagem do tempo: "Você pega amizade com os enfermeiros, enfermeiras... vai brincando com um, vai brincando com outro. Aí o tempo passa." (Paciente 11).
Outro fator de destaque na presente pesquisa, a esperança, foi considerada pelos participantes como importante facilitador (50%) no enfrentamento de vivências adversas no CTI: "Por mim a passagem aqui é de esperança, né? Porque assim... o tratamento tem só aqui no CTI. É a única esperança que eu tenho pro meu transplante funcionar, é isso." (Paciente 05).
Referente à possibilidade de distração e ocupação do tempo, muitos pacientes associam à evitação de pensamentos negativos. Alguns pacientes apontaram o dormir como fator de ajuda para passar o tempo ocioso. Já o Paciente 20 fala sobre a ocupação do tempo como fator que acalma os pensamentos:
"Quando você tem uma ocupação mais manual, sua cabeça fica mais tranquila. Um movimento que você faz, você distrai, igual quando você trabalha, né? Conversar também ocupa o tempo, igual eu converso com um ou outro. Você tenta ocupar o tempo, né, porque ficar parado é pior."
Na fala do Paciente 03 evidencia-se a busca de distração de pensamentos negativos: "O bom de ter uma televisão é que você pega, corre o olho, fica vendo, não fica pensando em bobeira. Não fica com coisas negativas na cabeça.".
Foi possível perceber com grande frequência na fala dos participantes fatores que dificultam a experiência da internação no CTI (Tabela 2). Foram eles: as limitações, enclausuramento e perda de autonomia (65%); conflitos em relação à doença (55%); desejo de ir para casa (50%); ausência de familiares ou amigos (35%); sensação de desorientação (30%); medo do desfecho da doença (15%); arrependimento (5%).
Notavelmente, a experiência negativa mais marcante relaciona-se às limitações características do ambiente isolado do CTI, a sensação de assujeitamento, redução da autonomia de decisão e da liberdade para fazer como se deseja. Um paciente exemplifica ao dizer: "Porque o CTI também é angustiante, né? Você não pode sair, e aí fica trancado aqui o dia todo. Só tem a parede olhando pra um lado, parede olhando pro outro, aí você fica sozinho, que é pior ainda, que não tem ninguém pra conversar" (Paciente 05).
Outra experiência que foi evidenciada é a de dependência do outro para o próprio cuidado. Muitos apontam a falta da autonomia e a frustração diante do próprio desejo que ora não pode ser efetuado, ora é acondicionado à ação, ritmo e desejos de outra pessoa:
"Uma pessoa que em quatro meses não sai do quarto, não tem como tomar iniciativas pra conseguir o aparelho, tudo depende dos outros. Dependo dos meus filhos, mas não é gratificante. Filho não nasceu pra cuidar dos pais não. Eu que pus eles no mundo, eu que tenho que cuidar deles." (Paciente 18).
É importante ressaltar que dentre os fatores dificultadores apontados pelos pacientes, surge a experiência da sensação de desorientação vivida no CTI (30% dos participantes). Mesmo com o estado de consciência preservado, muitos experienciaram em algum momento a sensação de não saberem onde estavam, perderam referencial de tempo e relataram por vezes não compreender as informações que eram passadas, mesmo quando percebiam o compromisso dos profissionais da equipe em informá-los sobre o processo do tratamento e prognósticos:
"Aqui é muito confuso. Você fica sem noção do tempo! Tem hora que eu não entendo a hora do relógio. Eu fico sem saber que horas são... e tem hora que fica tudo confuso, assim. Eu não sei onde eu tô. Não entendo direito as notícias do médico. Teve uma noite que eu passei muito mal e não dormi (...) dormi assim confusa. Eu dormia e acordava, sonhava uns sonhos doidos, parecia uns pesadelos." (Paciente 08)
O número de pacientes que apresentaram alguma experiência de resignação diante da internação no CTI foi 7 (35%), a exemplo do Paciente 11 que diz: "A expectativa é de ficar o tempo que for necessário ficar. Vinte dias, um mês... tem que acompanhar para, às vezes, ter uma segurança de sair do CTI. Aqui você tem o aparato todo.".
Discussão
Diante da constatação de alguma distorção da percepção temporal, mesmo em pacientes em estado de consciência preservado, Maldonato (2008) pode contribuir para a compreensão deste fenômeno quando afirma que no campo neurobiológico, compreende-se que a consciência se move de maneira linear na sequência temporal de acontecimentos, porém no campo vivencial da intencionalidade ela é desvinculada do tempo objetivo. A consciência do tempo subjetivo é de um fluxo com ritmo constantemente mutável. Sendo assim, tempos cronologicamente iguais são vividos desigualmente. Para os pacientes internados, o tempo de permanência dentro do setor pode ser exatamente igual, no entanto, suas experiências do Tempo Vivido podem compreender fatores diferentes, tornando cada vivência única.
Em relação à investigação de quais marcadores temporais são relevantes para a orientação dos pacientes, percebeu-se a busca por pistas do ambiente para referenciação da experiência subjetiva. De acordo com Strauss (2000), na ocupação cotidiana do sujeito, ele se apoia nas percepções dos sentidos de repetição cíclica do mundo. Por isso, nos apoiamos em conceitos de horas, dias e anos e outros delimitadores de períodos no processo de construção da estrutura da vida. Isso expressa a situação do sujeito que vive no tempo e na mundaneidade e busca estabelecer sua posição no horizonte temporal do passado, presente e futuro. Dessa forma, segundo o autor, os marcadores temporais têm uma função vital para a estruturação social e organização mental.
Assim como nos resultados aqui apresentados, os estudos de Rompaey, Hoof, Bogaert, Timmermans e Dilles (2016) e de Umberger e Thomas (2019) mostram a relevância dos marcadores temporais para pacientes internados em CTI. Os estudos apontam dificuldades percebidas pelos pacientes de situarem o ciclo dia-noite, contribuindo assim para sensação de confusão em relação ao tempo durante a internação. Isso ressalta a importância do refinamento da atenção das equipes em CTIs para os marcadores de rotina e quais recursos se pode oferecer para o paciente se orientar temporalmente. No CTI estudado, os Box onde os pacientes ficam internados possuem uma janela coberta com cortina e, na maioria deles, há um relógio afixado à parede à frente dos leitos. Isso demonstra que existe instaurada uma preocupação em relação à presença de alguma pista ambiental de tempo.
Os resultados indicam também a importância do contato positivo do paciente com as pessoas que oferecem cuidados como fonte de marcadores temporais. Não apenas nos remete ao fato de que somos seres de relação e dela precisamos para estabelecer e elaborar as experiências vividas em todos os contextos, mas que também nos pautamos nessas relações para nos orientarmos em relação ao ambiente e à passagem do tempo (Martins, 1998).
Os dados encontrados em relação à vivência da duração assemelham-se aos achados de Nicolás, Aizpitarte, Iruarrizaga, Vásquez, Margall e Asiain (2008), onde houve predominantemente a sensação de tempo lentificado. Tal congruência pode indicar uma prevalência dessa experiência em pacientes internados em CTIs. A filosofia fenomenológica chama a atenção para a vivência espontânea do tempo como um todo, ou seja, como uma Gestalt (Müller, 2013). Assim, podemos compreender como a duração de uma internação se dispõe para o sujeito como parte indissociável do todo de sua vida.
Define-se a duração, em Heidegger (2005), como interpretação que o ser temporal tem de si. Sendo assim, a duração é compreendida em cada ocupação como um lapso de tempo que se mostra à percepção como "extensão". Toda datação no tempo presente, passado ou futuro apresenta a característica de ter uma dimensão, uma duração percebida pelo ser. Acrescenta-se aqui, então, a característica da consciência intencional de atribuir à duração um sentido que engloba o seu ser total.
Percebe-se sentidos particulares atribuídos à duração que apontam para a vivência do tempo envolta de angústia, como na experiência do Paciente 16 (citado acima), onde o tempo desejado é o tempo da saúde e que se sentir doente - experiência que se entrelaça com a proximidade da morte - significa perder o tempo da vida. Martins (1998) afirma que o tempo na experiência humana possui um caráter paradoxal: ele é real à medida que passa, que desaparece, ou que é "perdido". No relato deste paciente, percebe-se a angústia sentida na percepção lúcida de que a limitação vivida no CTI significa limites à sua possibilidade de ser-no-mundo. A maneira autêntica ou inautêntica de ser de cada indivíduo vai influenciar na maneira de interpretar a duração do tempo, a sua disponibilidade e a angústia diante do tempo que se passa (Heidegger, 2005).
Os relatos sobre experiências positivas devido a vinculação positiva com equipe assistencial condizem com os resultados dos estudos de Umberger e Thomas (2019), Hofhuis, Stronk, Stel, Schrijvers, Rommes e Bakker (2008), Haraldsson, Christensson, Conlon e Henricsson (2015), Rompaey et al (2016), Laitinen (1996) e Russel (1999) que evidenciam a importância do estabelecimento de relação de confiança com membros da equipe como fator que proporciona segurança diante do contexto desconhecido e diminui a incidência de confusão mental. Apontam também a importância para o paciente da postura calma e acolhedora da equipe de enfermagem e a sensação de ser considerado o personagem central de seu processo de tratamento.
Já ao abordar a esperança, percebe-se a atribuição de sentido positivo à internação em contraste com o contexto de experiências desagradáveis. Alguns pacientes valorizam a internação no CTI por atribuir a ela a esperança de sobrevivência. O Paciente 05, ao falar sobre esperança ligada aos recursos existentes no CTI, como mencionado acima, se coloca num lugar de responsabilização diante de sua doença, compreendendo a internação como parte de sua escolha autônoma por desejar o tratamento.
Essas experiências se contrastam com a fala da Paciente 01 quando, diante de arrependimentos em relação à doença e a forma como cuidou da saúde durante sua vida, diz: "Eu tô esperando aqui para ver se vale a pena. É, com esperança. Tomara que tenha uma vida ainda". A paciente busca a esperança, porém o sentido negativo carregado pela doença parece influenciar mais fortemente sua fala, quando acrescenta: "Acabou, acho que não tem mais nada pra frente. Ruim pensar isso, mas é o que tem pra pensar." (Paciente 01). Este relato se mostra destoante dos demais, uma vez que mostra um posicionamento pessimista e entristecido, relacionando a tristeza evidenciada na fala não apenas à situação de internação como também a conflitos pessoais.
Alguns pacientes valorizam o tempo que passam no CTI atribuindo a ele sentido de oportunidade para autoconhecimento, para refletir sobre a internação, a doença e o tratamento. Tal reflexão proporcionou para eles a ressignificação da experiência que, apesar de difícil e estressora, pode trazer crescimento pessoal. O Paciente 09 diz: "Você aprende a dar mais valor à vida. (...) você vê a situação que as pessoas estão passando, e você aprende até a não reclamar da sua situação.". Tal relato se assemelha ao da Paciente 15 que atribui ao tempo de internação a sobrevivência: "Pelo que eu vivi, eu acho que eu ter sobrevivido ao que eu tive... porque foi muito grave, né? E agora eu tenho que ficar tranquila e agradecer a Deus, né?".
Percebe-se nos discursos o movimento descrito por Heidegger (2005) de apropriação da responsabilidade individual diante da existência essencialmente temporal. Strauss (2000, p. 123) reafirma esse pensamento: "diante da ambiguidade inerente ao Tempo Vivido, cabe ao indivíduo interpretar a sua situação como crescimento e realização, ou como destruição e decadência". Percebe-se como este pensamento de cunho filosófico se presentifica, indicando a característica estimuladora da auto atualização que a experiência da internação em CTI pode apresentar.
Chama a atenção, por outro lado, a busca pela evitação do contato direto com a sensação desagradável vivida no CTI. Discute-se essa busca diante da formulação heideggeriana sobre o existir inautêntico (Heidegger, 2005), onde no contato com a mundaneidade e com o ir e vir da vida, nos afastamos da compreensão de nossa essência existencial e da responsabilização diante da morte. Em outras palavras, nos mantemos distraídos da verdade de que a vida terá um fim.
Dichtchekenian (2010, p.4) afirma que o devir do momento futuro, do novo tempo, representa, em si, deixar-se morrer para o modo de ser habitual e abrir-se para o vazio que o ainda-não-ser anuncia. Define tempo, então, como "a imprevisível explosão de possibilidades de ser, que nós homens, para angústia e espanto nossos, somos destinados a protagonizar". Essa postura de protagonista do homem na construção do tempo subjetivo diz respeito também ao seu posicionamento diante do mundo de forma autêntica, ou seja, buscando o que possui de mais próprio e que atribui sentido à sua vida.
No entanto, ter consciência clara dessa característica própria do homem deve promover a tomada de responsabilidade consciente, autêntica, sobre a vida. Assim, a angústia relacionada à morte é para Heidegger (2005) um fator de saúde, de empoderamento do ser. Podemos compreender aqui uma dificuldade desses pacientes diante do convite à responsabilização que a doença os faz. No entanto, é importante refletir que, muitas vezes, tal reação é o que lhes é possível a partir dos recursos de que dispõem para enfrentar a situação estressora de encarar repentinamente esta verdade sobre a finitude. Cabe ao psicólogo o papel de oferecer a esses pacientes o campo de possibilidade para elaborar esse confronto e fortalecer tais recursos.
A limitação ao espaço do CTI, para alguns pacientes, trouxe à tona no discurso a questão do isolamento vivido de informações e de rotinas da vida cotidiana. Pode-se pensar nessa falta da rotina externa ao hospital como um indicador de como o paciente sente falta de recursos que tornem a experiência de internação menos díspar de sua vida cotidiana. Dessa forma, os relatos dos participantes apontam frequentemente para o desejo de ir para casa, sair do ambiente hospitalar e voltar ao contato com pessoas e rotinas, como aparece no relato: "Você pensa em casa, a vida normal de todo dia, né? Quando eu sair do hospital, eu vou fazer até mapa do meu serviço, pra eu ocupar meu tempo. Já tenho compromisso lá." (Paciente 20)
A vivência de estar trancado remete também à perda da sensação de liberdade para tomada de decisões, dentre elas a decisão de sair do hospital. Tal resultado é também observado em estudos de Carruthers et al (2018). Percebe-se que o ambiente do CTI apresenta um contrassenso em relação ao campo vivencial que inclui o mundo da pessoa como um todo. Percebe-se nos relatos a atribuição de sentido de prisão, situação que priva o paciente do contato com o mundo externo.
A busca por oferecer o maior conforto ao paciente muitas vezes leva em consideração a tentativa de aproximação do ambiente hospitalar ao campo vivencial do seu cotidiano. Busca-se no hospital onde ocorreu a pesquisa, quando possível, disponibilizar televisões ou rádios, medida que favorece a ampliação do campo do paciente para além dos limites do hospital.
A angústia vivida em relação à própria doença enfrentada aparece também como fator dificultador importante. O Paciente 20 fala sobre a sua experiência com a doença crônica que, mesmo após um transplante, continua exigindo cuidados constantes e internações frequentes:
"É que quando você tem problema de saúde, vai viver só de internações também, né? Outro dia, outra coisa, outro dia, outra coisa. E o transplante tem diferença, né? Não pode qualquer médico, qualquer hospital. Se o cara te dá uma injeção sem saber ele te mata lá no meio do caminho. Mas o problema é que as coisas demora, né? Às vezes um exame tem que esperar internado".
Percebe-se com essa fala que, por mais que a pessoa esteja habituada à realidade de múltiplas internações, a experiência da duração dentro do hospital permanece como um ponto crítico, como algo que ainda lhe provoca um incômodo.
Referente à sensação de desorientação abordada por alguns pacientes, estudos de Nicolás et al (2008), Bäckman, Orwelius, Sjörber, Fredrikson e Walther (2010) e Haraldsson et al (2015), Carruthers, Gomersall e Astin (2018) e Umberger e Thomas (2019) mostram resultados similares em relação à vivência de pacientes de períodos de confusão mental dentro do CTI. Apontam que grande parte tem memória dos episódios angustiantes de confusão, podendo comprometer tanto a recuperação em curto prazo quanto a integridade psicológica em longo prazo. Diante disso, Nicolás et al (2008) propõem medidas em função de fatores associados a períodos de confusão no sentido de auxiliar na melhoria da qualidade do sono, diminuição de ruídos e controle da dor.
Conceitos como o tempo e o espaço são concebidos, segundo Augras (2012), comumente como entidades externas ao homem, quando na realidade são intrínsecos à experiência em essência e sua formação como pessoa. Dessa forma, a vivência da desorientação em relação a esses construtos diz respeito a um modo total de ser que é pautado nos referenciais (ou na falta deles). Compreende-se então que a desorientação vivida em uma internação apresenta uma experiência do ser total naquele momento e que se integra à sua pessoa de alguma forma. O evento de confusão mental ou perda do referencial temporal não representa ao paciente a perda de seu eu, a sua desestruturação como pessoa, mas se configura como uma parte da experiência total no contexto vivido, integrada à pessoa. Faz-se importante com isso refletir sobre o papel das equipes no sentido de se criar uma compreensão total dessa experiência e um ambiente de proteção da pessoa diante do risco de estados confusionais de fato profundos e duradouros.
Apesar do número de pacientes que apresentaram resignação na fala em relação às outras unidades de sentido ser menos expressivo, consideramos relevante discutir as duas formas diferentes de postura resignada que surgiram nas entrevistas: a aceitação e a desresponsabilização, por se tratarem de significações comumente encontradas em hospitais.
Observa-se na fala do Paciente 11, como descrito acima, a percepção da necessidade de estar internado, uma vez que o CTI oferece os recursos necessários para o tratamento de sua doença. Sendo assim, por mais que ele aborde com apreensão a espera por resultados de exames e pela alta em outros momentos da entrevista, ele demonstra lidar com a internação também como a escolha que ele faz de permanecer no setor na busca pela cura de sua doença.
A fala que compreendemos como aceitação indica um movimento do paciente para a reflexão sobre a necessidade e importância de estar onde está, recebendo o tratamento avançado que o CTI pode oferecer. Em contrapartida, os Pacientes 08 e 13, em suas falas, demonstram não se apropriarem do processo, atribuindo a responsabilidade sobre o tempo de internação e o próprio tratamento unicamente à equipe.
Percebe-se o movimento de apoiar-se na espiritualidade como força para enfrentar a experiência de internação na fala:
"Ah que seja da vontade de Deus, né? Se for da vontade de Deus eu sair rapidinho eu saio, se não for, que seja feita a vontade de Deus. Não pode ser a minha, tem que ser a Dele. E a Dele que é a certa. Então tá nas mãos de Deus, eu já entreguei nas mãos de Deus mesmo". (Paciente 08).
No entanto, nesta fala percebe-se que a paciente não se implica e não demonstra o seu próprio desejo, se desresponsabilizando diante de sua realidade. O Paciente 13 demonstra fazer o mesmo movimento com relação à equipe médica:
"Porque os médicos sabem realmente o que precisa ser feito. Eu não. Aí é a forma que tem que ser, entendeu? Eu tenho que adequar ao sistema, né? Eu tenho que me adequar de qualquer forma, porque não depende de mim achar que o tempo passou da hora. Eles é que mandam, como se diz, né? E se eu quiser uma melhora, e tudo, vai depender deles, não adianta". (Paciente 13).
Estes resultados condizem com o estudo de Russel (1999), onde pacientes mostraram transferir a decisão sobre seus cuidados de saúde para médicos e membros da equipe, a partir de uma compreensão implícita de que os profissionais fariam o que fosse melhor para os pacientes.
No entanto, a postura resignada de alguns traz a reflexão sobre a responsabilização do sujeito diante de seu processo de saúde e doença, uma vez que é comum a realidade de pacientes assujeitados no CTI, surge a preocupação sobre a autonomia e a capacidade de fazer escolhas diante da internação, considerada um fator de saúde.
Compreende-se que na maneira inautêntica de se empenhar nas ocupações mundanas, o homem se esquece de si por não se empenhar em si mesmo. Em outras palavras, no ir-vivendo da presença inautêntica, o homem acaba não se dando conta de que sua existência reside na sequência de "agoras" que a ele se apresentam como aberturas de possibilidades de ser autêntico. Dessa forma, a maneira como o tempo se dá para cada indivíduo está relacionada com seu existir próprio ou impróprio e à sua ciência do caráter intrínseco da temporalidade, ou seja, de que o tempo é uma sucessão de "agoras" que apontam em direção à morte (Heidegger, 2005).
Em contrapartida, para Strauss (2000), a inautenticidade é um modo de ser-no-mundo e não uma psicopatologia. Significa dizer que o modo de ser inautêntico faz parte da essência do homem assim como o faz a possibilidade de escolha pelo existir autêntico. A partir disso, é importante pensar a postura resignada desses pacientes, não como adoecida ou apologizada, mas como uma forma possível para eles, naquele momento, de se posicionarem diante das angústias ocasionadas pela internação.
Conclusão
Por meio dos resultados atingidos com a presente pesquisa e reflexões realizadas com base na perspectiva fenomenológica, compreende-se que a experiência temporal dos pacientes abarca, para muito além da sensação de duração da internação, fatores e emoções complexos entrelaçados na situação de estar doente e em um ambiente como o do CTI. Foram abordadas pelos pacientes angústias vividas no presente, angústias passadas que ressurgem diante da internação e até experiências positivas encontradas em meio ao contexto de adversidade.
Alguns temas abordados chamam a atenção para a importância da reflexão contínua das equipes de CTIs sobre a experiência subjetiva dos pacientes, uma vez que se mostra comum a automatização de processos e cuidados no ambiente hospitalar como um todo. É evidenciado nas falas que o cuidado recebido por um paciente não se limita aos cuidados do corpo. Uma pessoa que se encontra vulnerável em um hospital necessita e demanda ser cuidada em sua existência.
Percebe-se o papel central que as relações humanas estabelecidas com membros da equipe de enfermagem e demais funcionários desempenha na experiência do paciente em CTI. Por isso considera-se importante a atenção desses profissionais para a experiência do paciente, seus direitos dentro da unidade e suas necessidades fisiológicas, psicológicas, sociais e espirituais.
Conclui-se a partir dos resultados que as pistas que o paciente encontra no ambiente contribuem para a sua orientação no tempo. A partir dos relatos, compreende-se que essa orientação temporal é capaz de atribuir estruturação e sentido à experiência de internação. É importante destacar aqui a busca por medidas que promovam e mantenham a facilitação da orientação temporal dos pacientes, tais como a alocação de relógios no box ou a informação clara sobre a passagem do tempo aos pacientes. Propõe-se a promoção da conscientização das equipes sobre essas experiências do ponto de vista de quem necessita dos cuidados. A elaboração de treinamentos e educação continuada acerca do tema se apresenta como um recurso viável e frutífero dentro do ambiente hospitalar.
Com relação às experiências de angústia diante da duração do tempo e da internação em CTI como um todo, considera-se importante a reflexão sobre a busca da aproximação dessa experiência à realidade de cada pessoa dentro do possível para o setor. Os resultados aqui apresentados são significativos diante da realidade hospitalar atual onde processos de cuidado são pautados fortemente em protocolos científicos e na busca constante pela excelência da qualidade e proteção dos pacientes em relação a riscos hospitalares. Tais processos são aqui considerados de crucial importância para o cuidado dos pacientes, não obstante, igualmente relevante é a compreensão empática da experiência do paciente como sujeito de seu processo. Esforços em direção a essa experiência subjetiva vêm com intuito de contrabalancear o distanciamento científico classicamente presente em ambientes hospitalares.
Ademais, conclui-se que o presente trabalho apresenta relevância científica diante da escassez de estudos que se debrucem sobre a experiência do Tempo Vivido com pacientes conscientes e lúcidos. Isso indica produção científica ainda incipiente, uma vez que o tema é abordado em maior frequência com pacientes que tenham apresentado períodos de delirium. Considera-se aqui crucial a busca pela compreensão da experiência do paciente consciente, uma vez que pode muitas vezes ser considerado "tranquilo" em um setor onde grande parte demanda atenção constante devido às complicações orgânicas ou alterações do estado de consciência. No entanto, evidencia-se aqui que o paciente "tranquilo" apresenta também sofrimento intenso e deve receber o cuidado humano. Extremamente relevante, portanto, é o acompanhamento psicológico desses pacientes que se deparam com a complexidade emocional e psicológica relacionada à internação, à doença e a sua gravidade.
Sendo assim, sugere-se a realização de estudos subsequentes que aprofundem o conhecimento sobre o tema a fim de oferecer aos pacientes gravemente enfermos um cuidado integrado e o lugar de sujeito diante do seu ser-no-mundo adoecido.
Referências
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Paula Sampaio Parreiras - Especialista em Psicoterapia Existencial-Fenomenológica e Gestáltica pela FEAD. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo programa de residência multiprofissional da Santa Casa de Belo Horizonte e pelo programa de residência multiprofissional do Hospital das Clínicas da UFMG.
Vanessa Rosa Pereira - Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Especialista em Saúde Mental na Prática Contemporânea pela PUC MG
Daniela Soares Madureira - Especialista em Psicologia Hospitalar pelo programa de residência multiprofissional da Santa Casa de Belo Horizonte. Especialista em Psicologia Médica pela UFMG.
Luciana Filgueiras Houri - Psicóloga, Mestre em Psicologia pela PUC MG, Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CFP e em Teoria Psicanalítica pela UFMG.