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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.23 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
ARTIGOS
O sujeito no contemporâneo e as manifestações psíquicas
The subject in the contemporary and psychic manifestations
Juliana Medeiros SilvaI; Gustavo Henrique DionisioII
IHospital da Luz - São Paulo/SP. - E-mail: medeiros.psi@hotmail.com
IIUniversidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Assis/SP. - E-mail: gustavo.h.dionisio@unesp.br
RESUMO
No momento presente, em que observamos uma nova concepção das subjetividades, na qual o corpo assume um lugar privilegiado e se torna palco principal das mais diversas manifestações, pensar sobre o sujeito e o adoecimento certamente exige muito mais do que pensar sobre o corpo físico (orgânico): implica reconhecer a sua importância, considerando o corpo também a partir da ótica psíquica e enquanto detentor de uma construção e função no social. Neste sentido, implica olhar para o sujeito, que muitas vezes se utiliza do corpo como meio de expressão/comunicação e/ou de se fazer vivo, visto, escutado. Entretanto, haveria algo na atualidade que contribuiria com o adoecimento do sujeito? O que significam "doenças contemporâneas" que parecem dominar os consultórios dos psicólogos e psiquiatras? Essas foram as questões que nortearam a realização deste estudo de cunho teórico.
Palavras-chave: psicanálise; corpo humano; manifestações psicológicas de doenças
ABSTRACT
At the present moment, in which we observe a new conception of subjectivity, in which the body takes on a privileged place and becomes main stage of the most diverse manifestations, thinking about the subject and the illness certainly requires more than just thinking about the physical body (organic): implies recognizing its importance, considering the body also from a psychological perspective as the holder of a construction and social function. In this sense, it involves looking at the subject, which often makes use of the body as a medium of expression/communication and/or as means to be alive, be seen, be heard. However, would there be something in the contemporary that would contribute to the illness of the subject? What do those "contemporary diseases", that seem to dominate the psi's offices, mean? Those were the questions that guided this theoretical study.
Keywords: psychoanalysis; human body; psychological manifestations of diseases.
O homem contemporâneo cultiva uma certa ideia de si próprio que se situa num nível meio ingênuo, meio elaborado. A crença de que ele tem de ser constituído assim e assado participa de um certo medium de noções difusas, culturalmente admitidas. Ele pode imaginar que ela é oriunda de uma propensão natural, quando, no entanto, no atual estado da civilização ela lhe é ensinada, de fato, por todos os lados (Lacan, 1945/2010, p. 12).
Se pensar a contemporaneidade e as características emblemáticas do cenário em que vivemos se torna a cada dia tema de maior relevância diante de um mundo onde a condição atual parece delatar, sem melindres, as consequências (em parte caóticas) das transformações que ocorreram entre a modernidade e a pós-modernidade, pensar o sujeito nesse contexto se torna ainda mais urgente e tem provocado, da perspectiva psicanalítica, uma discussão clínico-conceitual da maior pertinência, principalmente se considerarmos que o real impõe ao sujeito respostas simbólicas e imaginárias que se apresentam como sintomas submetidos à conjuntura de cada época.
A passagem da modernidade para pós-modernidade (que também pode ser compreendida como hipermodernidade) implica uma série de transformações políticas, sociais, econômicas, intelectuais e individuais. A modernidade, resultado do projeto iluminista, visou à emancipação da humanidade através de um conjunto de valores baseados no racionalismo, na liberdade, no universalismo, na igualdade e no individualismo, donde a razão e a ciência substituíram a religião e o coletivo tornou-se menosprezado. Junto a esse processo, a revolução industrial, o capitalismo e a globalização marcaram as mudanças que ocorriam na sociedade e a conduziam à pós-modernidade. As consequências desse processo deixam suas marcas mais explícitas na pós-modernidade, que é reconhecida como era de consumo exacerbado, da imagem, da sociedade do espetáculo, do vazio, da apatia, do declínio das autoridades e do individualismo narcísico (Lipovetsky, 1983/1994; Harvey, 1992; Baudrillard, 1995; Lyotard, 2008). Birman (2012), por exemplo, refere como uma das consequências desse processo o desamparo e o consumismo, que permeiam as relações interpessoais. Entretanto, essas repercussões podem ser observadas em uma série de patologias que marcam sua presença na contemporaneidade.
A cultura, responsável por um importante avanço no processo de evolução do ser-humano, permitiu ao homem a vida em sociedade de forma civilizada, mas trouxe, também, consequências conflitantes para o mesmo, produzindo, inevitavelmente, ao deslocar o homem do registro da natureza para o registro da cultura, um mal-estar no psiquismo. Em O Mal-Estar na Civilização (1930/2010b), Freud nos alertava para a importância da cultura e das estruturas sociais como originárias de mal-estar e sofrimento, assim como reguladoras da subjetividade humana e do desenvolvimento psíquico. Na cultura, o sujeito encontra elementos que legitimam suas formas de expressão e que se engendram com o biológico e com as exigências pulsionais; assim, o homem se depara com o conflito de viver em civilização e administrar suas pulsões, o que culmina com a renúncia da satisfação de parte de seus desejos (Freud, 1930/2010b).
Freud (1915/2010a) refere que a pulsão é uma força constante que surge no próprio organismo, ou seja, uma força endógena que objetiva sempre a satisfação. Essa satisfação somente pode ser alcançada pela supressão do estado de estimulação, o que levaria à descarga da pulsão. Trata-se de uma força presente em todo organismo vivo e da qual o indivíduo invariavelmente não pode escapar, porém pode administrar, e, inclusive, renunciar, por meio dos mecanismos instaurados com a cultura. É diante dessa renúncia pulsional, do sofrimento que acomete o sujeito em sua existência e da própria condição conflitante de formação do psiquismo (onde, de um lado, há as demandas reguladoras impostas pela civilização, e, de outro, as demandas próprias do sujeito, guiadas por suas pulsões) que surge o mal-estar que assola o homem civilizado.
A civilização, ao restringir o princípio do prazer, impõe o princípio de realidade, de forma que a satisfação pulsional se torna sempre parcial, impossibilitando a felicidade plena. Nesse sentido, podemos dizer que o mal-estar resulta de um desacordo entre a exigência pulsional ilimitada e a satisfação possível (amparada na cultura), e antecede o sintoma - substituto do desejo recalcado, e que funcionará, justamente, como saída desse mal-estar.
Freud (1930/2010b) toma como fontes de nosso sofrer a "prepotência da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade" (p. 44), sendo a maior fonte de mal-estar a relação com nosso semelhante, com o Estado e a sociedade, ou seja, a própria condição de civilização seria o traumático; daí o paradoxo de que tudo o que nos protege da ameaça de sofrer, ao mesmo tempo, nos gera um mal-estar.
Para lidar com seus conflitos, cada sociedade busca sua própria saída, produzindo formas peculiares de submissão (ou não) às exigências sociais. Por fim, o que se espera é que o homem, condenado a abdicar de sua vontade própria, ou seja, condenado a domesticar parte de suas pulsões em prol de atender às exigências da vida em sociedade e do bem coletivo, encontre um meio de se livrar do sofrimento psíquico (este causado, inclusive, pela própria condição de civilizado, inserido no campo da linguagem, e pelo sentimento de culpa embutido no sujeito desde o Complexo de Édipo), ao mesmo tempo em que trava sua luta em busca da felicidade (Freud, 1930/2010b). Como disse Freud, "Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais" (1930/2010b, p. 58).
É diante desse embate que Freud questiona - ou, melhor dizendo, praticamente nega - a capacidade do homem de atingir a tão almejada felicidade constante, desfrutando apenas de uma satisfação repentina e passageira - pressuposto esse ao qual Lacan, a partir da leitura, interpretação e avanços frente aos textos de Freud, se mostra contrário.
Em Televisão (1974/2003), Lacan refere que "O sujeito é feliz" (p. 525) e que a felicidade está em todo lugar, dependendo apenas da posição subjetiva desse para encontrá-la. Nesse sentido, podemos dizer que a felicidade é interna e está relacionada ao próprio circuito pulsional do sujeito, ou seja, apesar dos problemas, mal-estares e sofrimentos que o sujeito possa ter, ele conta com o circuito pulsional que por si se satisfaz. Essa proposição está relacionada ao fato de que, para o autor, o sujeito goza de todas as formas, inclusive com o sofrimento e a dor (Lacan, 1966/2001).
Lacan, diferentemente de Freud, não situa o mal-estar como resultado da influência da civilização sobre a pulsão, mas como o efeito da linguagem sobre a estrutura, de forma que o mal-estar se apresentaria como resultado do encontro do homem com o significante. Nesse sentido, a linguagem seria o ponto traumático, o que divide o sujeito; "está ligada a alguma coisa que no real faz furo [...] É por essa função de furo que a linguagem opera seu domínio sobre o real. [...] Aliás, a linguagem come o real" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 31). O trauma, que, para Freud, antecederia o sujeito, para Lacan passa a ser posterior e recebe outra significação, surgindo como efeito do furo produzido pela incidência de um significante fundante, como causa da própria linguagem. Assim, a incidência da linguagem no corpo configura, por meio de um furo no real (de um limite ao gozo), uma borda imaginária e simbólica, donde o "sinthoma" aparece (Lacan, 1975-76/2007). Nesse sentido, o "sinthoma" passaria a ser o próprio mal-estar, e não a solução para o mal-estar, como sugeriu Freud.
Apesar da visão distinta acerca da possibilidade de felicidade e da origem do mal-estar, em uma coisa os autores estão de acordo: ambos consideram o sintoma como saída frente ao mal-estar produzido pela incidência do Outro, sendo a maneira como essa saída se estrutura o que difere do pensamento de um autor para o outro. Outro ponto se mostra consoante: o sujeito indiscriminadamente se produz a partir da cultura, logo, da cultura predominante em cada contexto histórico, de forma que é a partir da incidência da cultura na formação da subjetividade e de suas manifestações que podemos pensar o homem na atualidade.
Lacan nos aponta que há várias maneiras do sujeito inscrever seu gozo e seu corpo em relação ao significante fálico. Diante das vicissitudes da cultura e em face dos sintomas que por sua elasticidade se renovam, na medida em que o Outro da cultura se transforma, a clínica psicanalítica tem nos obrigado a inovar, renovar e construir novas formulações para compreender aquilo com o que nos defrontamos nos consultórios psi's.
Regida pela lógica da globalização e permeada pelo capitalismo desenfreado/extremo, pelo crescimento da indústria, pelos inúmeros avanços técnico-científicos e por todas as mudanças políticas, socioeconômicas e culturais decorrentes desse processo, a sociedade contemporânea lida com uma série de transformações que envolvem desde a forma como ela se mantém em funcionamento até questões que afetam diretamente a condição estruturante do sujeito e de seu mal-estar em meio a esse processo.
Podemos dizer que as mudanças que demarcam a passagem da modernidade para a pós-modernidade culminaram em uma espécie de desorientação e horizontalização dos laços sociais, uma espécie de afrouxamento das referências simbólicas, sendo marcada pela progressiva destituição do Outro, pelo enfraquecimento dos laços sociais e simbólicos e pelo empuxo ao gozo. Se na modernidade a sociedade era orientada por uma figura maior - um pai -, na pós-modernidade, com a globalização, esses ideais se horizontalizaram e perderam a referência, impactando diretamente no sujeito. Essas mudanças levaram a sociedade atual a se tornar, assim, palco de novas formas de subjetivação e, por conseguinte, de "novas" manifestações psíquicas - novas formas de sintoma -, pelas quais o sujeito parece buscar um meio para se adequar às exigências de nosso tempo ou até mesmo o seu inverso, um meio para denunciá-las e fazer resistência, construindo novas formas de lidar com a angústia e o sofrimento psíquico.
Lidamos hoje com um tempo em que tudo é hiperpotencializado, desde o próprio indivíduo até as relações de consumo (Lipovetsky, 2004); uma era onde a lógica da mercadoria se mostra, para além do mercado, reguladora dos processos de trabalho; da cultura; das relações humanas; da alimentação; das pulsões individuais e da própria sexualidade (Baudrillard, 1991; Viana, 2002). Testemunhamos o homem contemporâneo, envolto de seu mal-estar, embarcar em uma tentativa incessante de suprir sua falta e impedir o sofrimento psíquico, principalmente pela via do consumo de objetos ofertados pelo capitalismo extremo, os quais, imaginariamente, o sujeito acha serem capazes de satisfazer seu desejo.
Lacan sinalizou, ao longo de suas obras, o modo como o mal-estar é vivenciado, desde a modernidade, enquanto um dos produtos da ciência e do imperativo do capitalismo e do discurso capitalista, em que prepondera a proliferação de objetos de gozo e a lógica do consumo, inclusive apontando a necessidade de nos atentarmos para outras formas de subjetivação que não somente a função paterna (Lacan, 1969-70/1992). A partir do deslocamento de uma teoria centrada no Simbólico para uma teoria centrada no Real, marcada pela nodalidade entre os três registros (real, simbólico e imaginário), Lacan passou a sinalizar uma espécie de foraclusão dos nomes-do-pai na sociedade, produzindo sintomas estabelecidos a partir de referências simbólicas fracas, relacionadas justamente a essa nova configuração da sociedade (vale observar, contudo, que os operadores do Nome-do-Pai e o Falo continuam vigorando enquanto orientadores clínicos).
Retomando o conceito de Marx sobre mais-valia, Lacan apresenta o discurso capitalista (fruto da incidência do capitalismo na sociedade) enquanto determinante para o modo de estruturação das subjetividades na atualidade, donde esse discurso seria regido pela lógica do mercado, do consumo e dos objetos de consumo enquanto condicionantes da subjetivação (Lacan, 1974/2003; 1969-70/1992). Nesse sentido, e considerando os quadrípodes lacanianos, os objetos de consumo, objetos mais-de-gozar, surgem no lugar da produção, deixando o sujeito à mercê dos objetos. O gozo passa a ser o polo de orientação do sujeito.
O discurso capitalista institui um modo de pensamento e de ação que, inconscientemente, influencia a todos, sem diferir classe socioeconômica (Lima, 2002). Visa sobrepor o mercado à sociedade, produzindo objetos de gozo que prometem ao sujeito encontrar sua satisfação em um produto e, dessa forma, promove a saturação do sujeito, tamponando sua falta e, consequentemente, anulando sua questão com o desejo (Quinet, 2002). Nesse sentido, produz um sujeito animado não pelo encontro com seu próprio desejo - sendo que se encontra alienado deste -, mas sim pelo desejo capitalista, uma vez que a função deste "é produzir desde coisas, valores e crenças que se situam no lugar da causa do desejo humano" (Lima, 2002, p. 41), levando o sujeito à condição de "consumidor feliz" (se é que assim podemos chamá-lo).
Para Lacan (1971/2009; 1974/2003), trata-se de um discurso sem lei, que foraclui a castração, na medida em que não põe um limite ao gozo. Assim, o discurso capitalista, somado às contingências do nosso tempo, traz uma série de repercussões para o sujeito - o que trataremos melhor adiante.
Diante desse turbilhão de mudanças oriundas da estruturação das sociedades capitalistas, a pós-modernidade, que aqui trataremos também por contemporaneidade, pode ser entendida como o momento do instantâneo, do contraditório, do passageiro e do caótico, em que as referências que nos orientavam no mundo parecem inexistir ou estarem sempre em questão, sendo deslocadas de suas posições e lugares simbólicos (Lipovetsky, 1989/1994; Harvey, 1992; Lipovetsky, 2004; Birman, 2012). Assistimos a uma sociedade marcada por inúmeras contradições e fragmentações, assim como pela ausência de limites, que influenciam tanto o meio social quanto o psiquismo humano. A contradição do obeso desnutrido, por exemplo, ilustra o predomínio da ambiguidade vivenciada no contemporâneo, em que os extremos (obesidade e desnutrição) parecem estar unidos pela força do capital e pela estrutura consumista pós-moderna. Nesse cenário, encontramos o sujeito à mercê das variáveis de seu tempo, atravessado pela descontinuidade, pela aparência e pelo discurso capitalista, que se configuram como preponderantes em sua existência, trazendo uma série de ressonâncias, nos mais diversos âmbitos. As mudanças vivenciadas na sociedade pós-moderna parecem incitar um novo estilo de vida e, para além, influenciar nas marcas que o sujeito carrega consigo, desde a constituição de sua subjetividade e de seu encontro com o desejo até os modos de gozo e a forma como lida com o seu mal-estar. Como resultado desse cenário, a sociedade contemporânea se configura pela pluralidade de identidades sociais, marcadas pelas diversas referências paradoxais.
Ao se olhar para a sociedade atual, o que se vê é que a dubiedade quanto à felicidade parece não existir. À revelia das contribuições de Freud, o homem contemporâneo, inserido em um contexto demarcado pelo imperativo do capitalismo, capturado pelo discurso capitalista e imbuído em uma busca incessante ao gozo, parece insistir, incansavelmente e sem medir esforços, em alcançar a felicidade plena e buscar pela máxima satisfação - o que vemos repercutir diretamente na sua posição frente ao mundo, e, inclusive, em seu próprio corpo.
O que o cenário nos mostra é que o sujeito parece se sentir livre e, de alguma forma, autorizado pela cultura e pela sociedade a alcançar a felicidade plena, de modo que a castração e os limites impostos pelo recalcamento parecem não mais exercer sua função de limitar o gozo. Podemos dizer que passamos de uma cultura alicerçada no recalque do desejo para uma cultura que privilegia o gozo sem limites, a satisfação pela satisfação em si mesma, a primazia da pulsão, onde não há espaço para o sujeito da falta e do desejo.
Melman (1992; 2003; 2003b) trata desta temática sob a perspectiva de algumas patologias da atualidade. Nesse sentido, o autor fala da importância de se atentar para a economia psíquica na configuração do sujeito moderno para que se possa entender o mal-estar vivenciado nesse contexto. Segundo o autor, há uma importante mudança na base da constituição subjetiva, na medida em que a castração, fundamental para impor limite ao gozo, parece não mais atuar sobre o sujeito. Assim, este se vê a mercê do gozo "sem limites", um "gozo Outro" (Melman, 1992, p. 24), infinito. Nesse sentido, estaríamos diante de "uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver em família, a pátria, os ideais, de viver-se" (Melman, 2003), ou seja, estaríamos diante uma nova economia psíquica, que se comunica com o social por meio do sintoma, sendo estes observados em grande escala enquanto corporais.
Zucchi (2002) considera que a pluralização dos Nomes-do-Pai pode ter como um de seus desdobramentos a fragmentação do corpo, de forma que, na ausência de uma referência significante que se preste às trocas sociais do sujeito, este venha a usar o corpo real (e não enquanto metáfora) como suporte dessas trocas. Segundo a autora,
não se trata exatamente de um mal-estar com a sexuação, mas de um mal-estar na própria corporeidade. A unidade imagética do corpo não é alcançada pela via dos significantes paternos. A constituição do corpo como unidade investido pelo Outro fica prejudicada já que o Outro não tem consistência. Assim, a variabilidade do nome pode desestabilizar a imagem corporal votando o sujeito a uma incessante busca de unificação pela via das alterações corporais produzidas através dos objetos. Se o que faz laço social é o discurso, como afirma Lacan no Seminário 17, e o corpo é o suporte do discurso, dificuldades, entraves, na separação do organismo/corpo ou gozo/palavra afetarão necessariamente os laços sociais (Zucchi, 2002, p. 17).
Nesse sentido, a autora levanta a hipótese de que a busca pela posição sexual seja feita através do real dos corpos e não através dos signos. Apontando um caráter cruel presente nessa relação, demarca o uso extenso de cirurgias estéticas como resultante dessa relação com o real do corpo. Assim, "se antes havia palavras escondidas nos corpos, as quais revelavam a posição sexual do sujeito, hoje encontramos um erotismo que revela indivíduos buscando, com seus corpos, uma razão de ser" (Zucchi, 2002, p. 18).
Birman (2001) refere que, para assimilar o que se passa nas subjetividades, é preciso pensar, irremediavelmente, nos destinos do desejo na atualidade. Somente por meio dessa compreensão é possível uma aproximação com o que há de sofrente nas novas formas de subjetivação da atualidade, e que, portanto, circunscrevem o campo do mal-estar contemporâneo.
Segundo o autor (Birman, 2012), a passagem do sujeito da modernidade (ou seja, o sujeito desamparado) para o sujeito contemporâneo traz como uma de suas marcas "os impasses e até mesmo a impossibilidade tanto na circulação quanto na realização do desejo" (p.48), cabendo a esse sujeito uma existência pautada no desalento, na melancolia e no vazio. Assim, estaríamos diante de um sujeito que, constituído em meio a essa sociedade/cultura contemporânea/capitalista e por ela alienado, não consegue se encontrar com o seu desejo, deparando-se a todo tempo com a falta e com a angústia, sem conseguir dar um destino a elas. É diante desse confronto que o sujeito passa a buscar incessantemente meios para preencher a falta e aplacar sua angústia.
Zucchi (2002) entende que essas mudanças na sociedade impactaram na forma como o sujeito lida com a pulsão. Nesse sentido, a autora refere que, "se na contemporaneidade há uma produção excessiva de objetos, tal produção visaria ocultar - através da satisfação compulsiva - o caráter excessivo da pulsão" (p. 21). Desse modo, se num certo sentido a pulsão sempre se satisfaz, através de seu percurso, noutro, não se satisfaz nunca, "reatualizando sempre um certo impossível, que, na atualidade, não é recoberto pela ação significante, mas é saturado através dos objetos" (p. 21).
É nessa era da prontidão, da ausência de limites, da ambivalência, do inesperado, da falta de referência interna e externa e, incluindo o pensamento de Lacan, da lógica do consumo, que o sujeito é convocado a experimentar um vazio existencial, o que se reflete em práticas sociais como o consumo desenfreado - seja ele de qual ordem for (Birman, 2012). O conflitante é que, em meio a essa oferta extasiante de objetos, o que o sujeito encontra não é a satisfação e o apaziguamento de suas questões, mas sim o confronto com esse vazio: o vazio das relações, o vazio do próprio sujeito diante do encontro com o nada do objeto, o vazio que demarca a angústia diante da falta, causando o mal-estar.
Lacan entenderá o vazio a partir da angústia, relacionado à falta, mais especificamente, à falta da falta. Partindo da constatação da falta enquanto constituinte para o sujeito e para o nascimento do desejo (ou seja, é a falta que o faz desejar), Lacan aponta o surgimento do vazio a partir de um tamponamento dessa falta (da possibilidade de que a falta pudesse vir a faltar), donde emerge a angústia. Esse vazio, portanto, seria a própria inexistência do objeto, aquilo que mantém vivo o desejo (Lacan, 1962-63/2005) e que faz com o sujeito continue almejando o gozo.
Atravessado pelas contingências do discurso capitalista e das possibilidades apresentadas pela sociedade de consumo, o sujeito, sedento pela máxima do bem-estar constante e envolvo de incertezas e insatisfações, parece buscar sua satisfação nos modos de gozo "consumistas", ou seja, por meio de objetos de consumo, se reduzindo a objeto de gozo do Outro do mercado. O impasse se dá na medida em que a sociedade, na mesma proporção em que sugere objetos que tornam a vida mais prática e agradável, impõe, por meio do discurso capitalista, algo da ordem do consumo ao desejo do sujeito, logo, produzindo sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo - daí nos deparamos com o consumo transformado em uma verdadeira compulsão, aliás, compulsão esta que coloca o sujeito em uma condição fadada ao fracasso. Dessa forma, tomado pela busca de gozo e pelas ofertas do mercado, o sujeito se vê na obrigação de trabalhar cada vez mais para obter o bem desejado, conservando-o em um círculo vicioso (quanto mais se consome, mais se deseja consumir), o que mantém o mercado em ascensão e o sujeito enredado na lógica do capital. O que assistimos é a passagem do sujeito autônomo e consumidor para o sujeito objeto de consumo, ou "consumidores-objetos" (Lima, 2002, p. 41) (Baudrillard, 1991; Baudrillard, 1995; Lima, 2002; Quinet, 2002; Birman, 2001).
Dessa forma, como coloca Birman (2012) o gozo seria direcionado pelo fetichismo das mercadorias. "Isso porque o ter, para preencher o vazio corporal e psíquico, é um signo que confere segurança para o indivíduo, pois o faz acreditar ser detentor de algum poder pelo status que pode existir" (p. 94).
Marca da efemeridade, o consumo passa a ocupar o papel de ordenação da vida, uma espécie de garantia de felicidade que visa a tamponar a angústia trazida pela própria efemeridade, baseando-se na sensação de liberdade - sensação ilusória de que quanto mais se consome, mais livre se é - e não na necessidade efetiva do objeto a ser consumido. Antagonicamente, essa oferta de produtos, na mesma proporção que tenta satisfazer as demandas do sujeito, denuncia sua condição de ser-faltante, finito e carente. Assim, a sociedade de consumo, regida pelo discurso capitalista e sustentada pela fabricação de falta de gozo, oferta diferentes mercadorias em forma de promessas de felicidade - muitas vezes não cumpridas -, que contribuem para o desenvolvimento de patologias (Quinet, 2002; Birman, 2001; Dunker, 2015). Como sugere Calligaris (1992), "cada época organiza seus gozos e tem as "patologias" que merece" (p. 10).
Zucchi (2002) toma essas mudanças na configuração da sociedade como as responsáveis pelos novos sintomas da clínica psicanalítica, onde encontramos depressões, compulsões, adições, transtornos alimentares, incremento de toxicomanias, hiperatividade, pânicos, entre outros, totalmente submetidos à presença maciça do corpo e distanciadas de sua função a partir do corpo enquanto metáfora, expressões para o mal-estar da civilização na cultura contemporânea.
Bauman (1998) aponta que cada época produz suas impurezas e, sendo assim, nesse contexto de intensas transformações socioculturais, testemunhamos o surgimento de patologias características do nosso tempo e decorrentes do mal-estar vivenciado na nossa cultura. O mundo atual demanda que o aparelho psíquico processe uma quantidade excessiva de informações e sensações. O homem, engolido pela globalização e pela urgência da mídia, diante da falta de tempo para processar tais mudanças em seu psiquismo e da busca incessante da felicidade, vive um desamparo que busca ser sanado pelo ter, ou seja, pelo consumo, contribuindo para o aparecimento das ditas patologias do vazio (Birman, 2012), como é o caso da depressão, considerada pela OMS a segunda enfermidade mental mais comum e incapacitante na atualidade.
Tomado pelo discurso capitalista, que promove a cultura (ou podemos dizer: ditadura?) do belo e do "normal", oferecendo, inclusive, subsídios para que o sujeito se adeque ao padrão imposto, o sujeito busca também na beleza, principalmente na beleza física - pautada na aparência e visibilidade frente ao outro - um meio de satisfação e encontro com a felicidade. E, mais do que isso, como pontua Zucchi (2002), o sujeito busca, por meio da estética e do real do corpo, uma posição sexual.
Freud, em O mal-estar na civilização, já observava essa marca, ainda que o foco da beleza não estivesse estritamente ligado ao físico.
Aqui podemos transitar para o caso interessante em que a felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza, onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso julgamento, a beleza das formas e dos gestos humanos, de objetos naturais e de paisagens, de criações artísticas e mesmo científicas. Essa atitude estética para com o objetivo da vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer, mas compensa muitas coisas. A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar, suavemente inebriante. Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no entanto, a civilização não poderia dispensá-la (Freud, 1930/2010b, p. 39 e 40).
E, mais adiante, acrescenta:
exigimos que o homem civilizado venere a beleza, onde quer que ela lhe surja na natureza, e que a produza em objetos, na medida em que for capaz de fazê-lo. Isso está longe de esgotar o que reivindicamos na civilização. Requeremos ainda ver sinais de limpeza e ordem. (...) A sujeira de qualquer tipo nos parece irreconciliável com a civilização; estendemos para o corpo humano a exigência de limpeza (..) (Freud, 1930/2010b, p. 53).
É indiscutível que, quanto a isso, o discurso capitalista também se ateve. Na sociedade atual, em que o corpo se tornou majoritariamente um objeto de desejo - totalmente manipulável e personalizável, suscetível, inclusive, a mudanças radicais em sua anatomia, graças aos avanços de da ciência "cosmética" -, o discurso capitalista surge ofertando subsídios para que o sujeito se adeque aos padrões de beleza impostos pela sociedade e lide melhor com o real do corpo. É possível dizer que tudo se tornou passível de mudança - leia-se, de "melhoria" -, seja das características de um corpo que não responde aos padrões de beleza pelos quais o sujeito é subjugado, seja da própria condição atual de ser humano, cujo organismo é estruturado para seguir uma ordem natural de vida pré-estabelecida: nascimento, desenvolvimento, reprodução, envelhecimento e morte.
Visando responder às demandas corporais desse sujeito, vemos o mercado, com o avanço da tecnologia, incentivar a transformação física: cirurgias reparadoras e estéticas; próteses; uso de medicação; um extenso de arsenal cosmético que promete a juventude e a beleza; uso de hormônios estimulantes ou inibidores que atenuam os impulsos do corpo e muitas outras técnicas. Assim, a medicina se tornou a principal aliada na (re)modelação dos corpos, sendo possível delineá-los da maneira que se bem entender, tudo a fim de mascarar o duro confronto do sujeito com a incompletude e com a falta (que, psicanaliticamente, também podemos chamar de castração).
É a promessa de "perfeição" diante da qual o sujeito contemporâneo, imbuído de seu narcisismo e da busca pelo gozo perdido, padece de um fascínio crônico. No entanto, apesar das promessas desse discurso e das muitas intervenções no corpo, o que ainda se vê são sujeitos insatisfeitos e em crise constante em relação à sua autoimagem, o que se deflagra nos crescentes índices de depressão, transtornos de humor, transtornos alimentares e de personalidade que continuam chegando aos consultórios psi. Logo se conclui que, se tão pouco a psicanálise dá conta disso, muito menos a medicina e suas técnicas avançadas, que desconsideram a subjetividade, são capazes de aplacar a angústia da existência e por fim às demandas e aos desejos do sujeito.
Lasch e Debord apontaram, antes de outros, para algumas mudanças que demarcavam a existência do sujeito diante da sociedade e que servem para compreensão do percurso até o sujeito que observamos no contexto contemporâneo. Podemos dizer que, nesta era onde a aparência se mostra como preponderante sobre o ser, a subjetividade contemporânea parece ser regida pela Cultura do Narcisismo (Lasch, 1983) e pela Sociedade do Espetáculo (Debord, 1994), onde, por um lado, temos um sujeito que busca preencher o vazio através de experiências externas, marcadas pelo exibicionismo e pela futilidade, e, por outro lado, encontramos um sujeito desinteressado do outro, incapaz de admirá-lo em sua diferença, e assim, totalmente autocentrado, o que reforça sua sensação de vazio.
Esses autores, pré-lacanianos, apontam para a exterioridade que se sobressai em lugar da interioridade, nutrindo a cultura da imagem, em que o sujeito passa a ser regulado por suas performances e a individualidade perde espaço, tornando-se a exterioridade a marca primordial da organização da subjetividade (Lasch, 1983; Birman, 2012; Birman, 2001). Lacan, contudo, avança nesse sentido, apresentando que a marca da subjetividade contemporânea estaria atrelada ao modo de gozo, cunhado em uma sociedade regida pelo discurso capitalista, onde parece se instaurar uma fragilidade das referências simbólicas e uma não aceitação da castração, demarcando uma busca incessante pelo gozo todo. Essa busca, entretanto, permaneceria na ordem da tentativa - uma vez que é impossível atingir esse gozo -, resultando na sensação de vazio, do vazio existencial, aquele que o sujeito, em sua ânsia de não senti-lo, passa a buscar sua solução/cura por meio do individualismo, do consumismo e da falta de limites.
Birman refere que o mal-estar na sociedade contemporânea, atrelado ao conceito de subjetividade, encontra sua expressão dominante por meio do narcisismo. "Na cultura do narcisismo triunfante, as insuficiências não podem jamais existir e ser exibidas, já que essas desqualificam a subjetividade, que deve ser, antes de tudo, autossuficiente" (2012, p. 141). Esse narcisismo, que emerge na modernidade e se acentua na contemporaneidade, é apontado por Lasch (1983) como patológico, uma vez que, ao buscar a aprovação do outro por meio da imagem que transmite, o sujeito termina por ignorá-lo e por ignorar a si próprio.
A autoexaltação da individualidade dificulta o desenvolvimento da alteridade, necessária para que o sujeito possa reconhecer o outro em sua diferença e singularidade, culminando na existência de um sujeito que vive permanentemente em um registro especular (Birman, 2012; Birman, 2001). Nesse sentido, "O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da autoimagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função abjeta" (Birman, 2001, p. 26). Daí também a fragilidade das relações.
Na medida em que o sujeito fracassa em sua participação na cultura do narcisismo, emergem quadros clínicos que delatam esse "não-enquadre", e que podemos chamar também de psicopatologias atuais. Considerando a cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo como instrumentos para leitura das novas formas de subjetivação na atualidade, Birman (2001) pontua:
é importante salientar que mediante essas concepções é possível compreender adequadamente não apenas a ênfase atual da psiquiatria nas pesquisas sobre as depressões, a síndrome do pânico e as toxicomanias, mas também por que o discurso psicopatológico assume feições decididamente biológica e psicofarmacológica. Não é apenas o desenvolvimento experimental das neurociências que explica a configuração da psicopatologia na atualidade, mas também, e principalmente, o requinte e a engenhosidade pelas quais se cultuam certas modalidades de construção subjetiva (p, 24).
Zucchi (2002) aponta que muitos dos sintomas observados na sociedade contemporânea, como as toxicomanias, as compulsões, as bulimias, as anorexias, as depressões e o pânico se situam no âmbito das patologias do narcisismo, o que está relacionado à ausência da função paterna e a um valor do Nome-do-Pai esvaziado pelas pressões do capitalismo contemporâneo.
Birman (2012) ainda refere uma mudança nas categorias constitutivas do sujeito em sua passagem da modernidade para a contemporaneidade, o que teria redirecionado as linhas de força de seu mal-estar, evidenciando, como marca desse sujeito, a dor (que inicialmente deveria ser associada apenas ao contingente físico) em lugar do sofrimento. Isso significa que, nessa passagem, o sujeito abandonaria sua condição alteritária para assumir uma posição solipsista e, portanto, se fecharia para o outro (de quem em princípio desconfia e rivaliza), centrando-se em si mesmo. Desse modo,
o sujeito atado na dolorida posição solipsista não pode fazer qualquer apelo ao outro, é o desalento que se impõe como phatos, destinando-o então à paralisia. Em contrapartida, o desamparo, como correlato que é da experiência do sofrimento, possibilitaria ao sujeito um movimento desejante, que seria a condição primordial para a simbolização e a temporalidade (Birman, 2012, p. 9).
Freud (1926/2014b), em certa medida, já atentava para essa mudança ao apontar que "A passagem de dor física para dor psíquica corresponde à mudança de investimento narcísico para objetal" (p. 123). Em Inibição, Sintoma e Angústia Freud aborda a temática da dor psíquica enquanto uma "reação propriamente dita à perda do objeto" (Freud, 1926/2014b, p. 121). Explicando o mecanismo de passagem da dor física para a dor psíquica, o autor refere que, "na dor física há um forte investimento no local dolorido do corpo, investimento esse que podemos chamar narcísico, que aumenta cada vez mais e age sobre o Eu de modo, digamos, "esvaziador" (p. 122), de modo que "ao sentir dor em órgãos internos, temos noções espaciais e de outro tipo das partes do corpo envolvidas, que normalmente não são representadas na imaginação consciente" (p. 122). Freud acrescenta ainda que,
também o fato notável de que, havendo distração psíquica gerada por um interesse de outra espécie, as mais intensas dores físicas não aparecem (aqui não se pode dizer "permanecem inconscientes"), acha explicação no fato de haver concentração de investimento no representante psíquico do local dolorido para o corpo. Neste ponto parece estar a analogia que permite a transferência da sensação da dor para o âmbito psíquico. O forte investimento com anseio no objeto que faz falta (perdido), sempre crescente porque não pode se acalmado, cria as mesmas condições econômicas que o investimento no local ferido do corpo e torna possível ignorar o pré-requisito da origem periférica da dor física! (Freud, 1926/2014b, p. 122-3).
Assim, "a noção de objeto altamente investida pelas necessidades desempenha o papel do local do corpo investido pelo aumento do estímulo" (Freud, 1926/2014b, p. 123), de forma que "a natureza contínua do processo de investimento e a impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo psíquico" (p.123).
A partir das transformações na experiência do sonhar na atualidade, Birman (2012) explica como o sujeito ascende à posição de dor, perdendo seu potencial de simbolização. Para o autor, essa mudança na forma de subjetivação está relacionada, na atualidade, a experiência do sonhar (crucial para o sujeito, e, inclusive, uma das modalidades de realização do desejo (Freud, 1916/2014a), que parece minguar, de forma que a problemática do sonho, ou seja, o processo que se daria no sonho de realização de desejos reprimidos e simbolização, seria deslocada para a dor. Birman (2012), refere que, o próprio Freud já destacava uma transformação crucial que estava se processando na experiência onírica. Nesse sentido, refere que "desde o início dos anos 1920, no ensaio intitulado "Além do princípio do prazer", o discurso freudiano já destacava, na leitura dos sonhos presentes nas neuroses traumáticas, a dominância de experiências de desprazer, e não mais de prazer, como afirmava anteriormente" (p. 26), de modo que " o que emergia na experiência do sonhar era agora a dor, e não mais a realização do desejo, pela mediação e inflexão da compulsão à repetição" (p. 26 e 27). Assim,
a dor se impunha então ao psiquismo, de maneira ao mesmo tempo incontrolável e compulsiva, mas como um movimento estruturante do psiquismo, no entanto, para dominar a dor resultante de um trauma. Portanto, se pela repetição o psiquismo buscava compulsivamente realizar a simbolização de um trauma, procurando transformar a dor num símbolo, o que importa ressaltar é que neste registro tanto o símbolo se encontrava inexistente, nos sonhos da neurose traumática, quanto não ocorria a realização do desejo, nesta modalidade de sonho, cara e coroa que seriam da mesma moeda (Birman, 2012, p. 27).
Dessa forma, "constitui-se uma modalidade de subjetividade que sonha pouco, ou mesmo não sonha, em função da impossibilidade de sustentação do desejo e da simbolização daí decorrente" (Birman, 2012, p. 23). Assim, o sonho perde a sua posição privilegiada enquanto modalidade de subjetivação.
Haveria uma transformação histórica na subjetividade que se atrela à mudança psíquica no registro do sonho: o sujeito parece ter perdido sua capacidade de antecipação (fundamental para que o sujeito possa fantasmar algo que ainda é inexistente) e, consequentemente, de proteção do psiquismo. Sem conseguir realizar isso, o sujeito, que fica excessivamente autocentrado e preso em sua autossuficiência narcísica, ao ser acometido por um acontecimento inesperado, é interpelado por uma experiência traumática, "assim, a angústia do real se impõe ao psiquismo, com seu cortejo de dor e de gosto amargo de morte, lançando o sujeito na posição de desamparo" (Birman, 2012, p. 43). E, para lidar com esse desamparo, proveniente dessa experiência trágica na subjetividade, as individualidades são conduzidas ao narcisismo, à violência, à destruição e à crueldade.
Para que o sujeito possa desejar, é preciso, também, que possa fantasmar (capacidade que se inscreve no registro da imaginação) - sem o que o desejo não se ordena e não se encorpa. Birman (2012) refere que é pela mediação do fantasma e do desejo que o sujeito constrói o erotismo como contraponto insistente à iminência aterrorizante da morte, que se realiza pelo trabalho da pulsão de morte. No entanto, se a morte não pode ser efetivamente mantida a distância pela ação permanente da pulsão de vida, a pulsão de morte se impõe triunfalmente sobre o psiquismo, sob a forma da dor e do trauma. Desse modo, "a figura trágica da morte, como emanação que é do real, se impõe ao psiquismo sob a forma da dor e do trauma, quando o sujeito não pode se contrapor a isso pelo desejo e pelo fantasmar" (p. 45 e 46).
Diante dessa engenhosa condição de subjetivação, notada desde a modernidade, o mal-estar, evidenciado como dor, passa a se inscrever nos registros do corpo, das intensidades e da ação, promovendo a suspensão do pensamento e, consequentemente, o empobrecimento da linguagem. Assim, o pensamento e a linguagem, que assumiam anteriormente uma posição importante na descrição do mal-estar, tendem a desaparecer como eixos ordenadores do mal-estar na atualidade (Birman, 2012).
Dunker (2015), ao discorrer sobre as patologias do social, observa que "o encurtamento ou a condensação das formas de linguagem que a pós-modernidade reserva ao sofrimento parece ter redundado também em redução da extensão e em mutação na qualidade da queixa, sob a qual opera o diagnóstico" (p. 33). Dessa forma, "temos agora novas patologias baseadas no déficit narrativo, na incapacidade de contar a história de um sofrimento, na redução do mal-estar à dor sensorial" (p. 33).
Alienado de seu desejo e de suas práticas cotidianas (trabalho, lazer, relações sociais etc.), o sujeito é tomado pelos problemas psíquicos que recebem os nomes da moda, de acordo com o saber produzido pela ciência com seus especialistas e pelo mercado consumidor. O corpo, que desde os estudos da histeria era o epicentro da convergência sintomática e o registro que denuncia o mal-estar, pelo menos desde essa época, assume na atualidade um caráter performático, do qual o sujeito está sempre faltoso. Assim, estamos em um estado de estresse permanente, que pode ser considerado como o maior mal-estar presente na contemporaneidade, produzindo diferentes sintomas (Birman, 2012). Em resposta a toda essa atual condição, nos deparamos com os crescentes sintomas de nossa época: depressões "incuráveis e sem causa", ansiedade elevada, transtornos de humor "sem tratamento", síndromes do pânico que persistem, toxicomanias, transtornos alimentares "descabidos" e outros. As queixas são, em sua maioria, corporais.
Dessa forma, para se compreender melhor as modalidades de ação que estão em jogo nas formações do mal-estar hoje, é importante observar que o psiquismo lança mão, cada vez mais, da passagem ao ato e não do acting-out (atuação). A grande diferença se dá no fato da passagem ao ato que, além de não precisar de um expectador, não apresentar qualquer sinal de simbolização, ou seja, a ação é crua e direta, donde decorre o apagamento e o silenciamento do sujeito (Lacan, 1962-1963/2005). Nesse sentido, "se abandonam os equívocos do pensamento, da fala e da linguagem pelo ato" (Miller, 2014, p.07). Essa nova configuração deixa sua marca no registro clínico, onde as diferenças são bastante claras. Birman (2012) ilustra bem essa diferença ao referir que na conversão presente na histeria existe a presença de formas de simbolização no psiquismo que delineiam as linhas de fuga da encenação na corporeidade, ao passo que no estresse, no pânico e nas perturbações psicossomáticas nos defrontamos com a ausência destas, de modo que o excesso implode no psiquismo e no organismo. Como coloca o autor "é o silêncio simbólico que se manifesta, sob o fundo do ruído, pela perturbação produzida no registro do somático" (Birman, 2012, p. 98). Por fim, o corpo humano, espelho da subjetividade, parece ser o lugar em que todas as formas de mal-estar e sofrimento terminam por serem registradas, encontrando vazão nas mais diversas manifestações.
Como fruto dessa relação entre a cultura, o mal-estar e a subjetividade, a clínica psicanalítica tem se deparado cada vez mais com casos "excêntricos", diferentes daqueles já habituais, casos que parecem não se enquadrar, decerto, nas categorias diagnósticas clássicas. A excentricidade, no entanto, não está na denominação do sintoma (depressão, obesidade, compulsão etc.), mas, sim, na forma como se apresentam. Trata-se de sintomas que parecem não preencherem nem os critérios diagnósticos da neurose nem propriamente aqueles da psicose, ou seja, sintomas que não respondem à lógica da formação substitutiva e de mensagem simbólica endereçada nem respondem propriamente aos fenômenos elementares clássicos da psicose (presença de desencadeamento, alucinações, automatismo mental, delírios), mas que parecem estar em um limite entre a neurose e a psicose clássica. Dessa forma, a incidência das manifestações no corpo na atualidade parece encaminhar à fenômenos que não são de ordem conversiva, ou seja, não são estruturados de acordo com o recalcado, como proposto por Freud a partir de seus estudos da histeria.
Essas novas formas de sintoma, excêntricas, na medida que interrogam o saber psicanalítico, nos fazem pensar em manifestações, que poderiam se inscrever de distintas formas e relacionar-se a diferentes designações psíquicas, demarcando uma pluralidade e exigindo do psicanalista uma escuta mais apurada.
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Juliana Medeiros Silva - Psicóloga no Hospital da Luz, mestre em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, FCL-Unesp Assis/SP.
Gustavo Henrique Dionisio - Professor nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia e supervisor do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPPA) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, FCL-Unesp Assis/SP.