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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.24 no.2 São Paulo jul./dez. 2021
Protocolo de rastreio cognitivo na avaliação psicológica pré-transplante renal
Cognitive screening protocol in pre-kidney transplant psychological assessment
Rhebecca Loiola CarneiroI; Luciana Freitas FernandesII; Janine de Carvalho BonfadiniIII
IPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). - E-mail: rloiolapsi@gmail.com
IIHospital Universitário Walter Cantídio / Universidade Federal do Ceará/ Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) - Fortaleza/CE. - E-mail: lufreitasf@gmail.com
IIIHospital Universitário Walter Cantídio / Universidade Federal do Ceará / Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) - Fortaleza/CE - E-mail: janinecb@gmail.com
RESUMO
A avaliação psicológica pré-transplante objetiva identificar variáveis modificáveis, planejar intervenções adequadas e preparar o candidato para esse tratamento. Observou-se a importância de se incluir neste protocolo a avaliação das funções cognitivas, que é considerada um domínio específico da avaliação e possibilita a identificação precoce de um comprometimento cognitivo. A construção do protocolo se deu nas seguintes etapas: identificação das demandas, levantamento de artigos que abordam os instrumentos de rastreio cognitivo, discussão dos resultados com especialistas, análise da aplicabilidade do instrumento e estabelecimento da rotina e de procedimentos do protocolo. Para realizar a avaliação dos aspectos cognitivos foi eleita a inclusão do teste de rastreio Montreal Cognitive Assessment - Basic (MoCA-B) no protocolo de avaliação psicológica pré-transplante renal já existente. Esse teste é de rápida aplicação e avalia percepção visual, funções executivas, linguagem, atenção, memória e orientação e pode ser aplicado em pacientes com baixa escolaridade. Entende-se que este protocolo tem função essencial no processo de pré-transplante, pois fornece subsídios para o planejamento de intervenções necessárias à otimização do procedimento. O objetivo deste trabalho foi sistematizar um protocolo piloto de rastreio cognitivo para utilização em adultos a partir de 50 anos ou mais em contexto de avaliação psicológica pré-transplante renal.
Palavras-chave: avaliação psicológica pré-transplante; rastreio cognitivo; doença renal crônica.
ABSTRACT
The pre-transplant psychological assessment aims to identify modifiable variables, plan appropriate interventions and prepare the candidate for this treatment. It was noted the importance of including in this protocol the assessment of cognitive functions, which is considered a specific domain of assessment and enables the early identification of cognitive impairment. The construction of the protocol took place in the following stages: identification of demands, survey of articles that address cognitive screening instruments, discussion of results with experts, analysis of the instrument's applicability, and establishment of the protocol's routine and procedures. We included the Montreal Cognitive Assessment - Basic (MoCA-B) screening test to assess cognitive aspects in the existing pre-kidney transplant psychological assessment protocol. This test assesses visual perception, executive functions, language, attention, memory, and orientation, and it can be applied to patients with low education levels. This protocol plays an essential role in the pre-transplantation process, as it provides support for the planning of interventions necessary to optimize the procedure. The objective of this study was to systematize a cognitive screening protocol for use in adults aged 50 years and over in the context of pre-kidney transplant psychological assessment.
Keywords: pre-transplant psychological assessment; cognitive screening; chronic kidney disease.
Introdução
A partir dos anos 1960, evidencia-se no Brasil mudanças significativas no perfil de saúde-doença decorrentes de uma transição epidemiológica e demográfica da sociedade (Souza, Malta, Franca, & Barreto, 2018). À medida que a diminuição da mortalidade por doenças infecciosas incide sobre grupos mais jovens da população, que passam então a conviver com fatores de risco para doenças crônico-degenerativas, há também uma elevação na expectativa de vida e, consequentemente, no número de idosos na população geral, tornando as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) mais frequentes (Schramm et al., 2004). Esse processo contribui para o aumento na prevalência de Doença Renal Crônica (DRC), sobretudo na população idosa, que se encontra mais susceptível diante das mudanças fisiológicas que impactam o funcionamento do rim (Magalhães & Goulart, 2015).
Apesar de não haver cura para a DRC, existem alternativas de tratamento por meio de terapias de substituição da função renal, tais como: a hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante. Entre essas, o transplante renal é considerado o padrão ouro de recomendação, devido à possibilidade de incremento na qualidade de vida (Joshee, Wood, Wood & Grunfeld, 2018). Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO, 2010), é necessário, para tanto, que o candidato passe por uma criteriosa avaliação clínica e laboratorial, a partir de uma abordagem multiprofissional.
Segundo Morana (2009), a identificação prévia de riscos psicológicos e psiquiátricos é necessária para reduzir ou eliminar o surgimento de problemas após o transplante. Sabe-se que os processos de saúde-doença são multideterminados e sofrem influências de variados aspectos, dentre eles os cognitivos, afetivos e comportamentais. Nesse sentido, a avaliação psicológica desempenha um papel fundamental como ferramenta de auxílio na compreensão e na tomada de decisões sobre diagnóstico, tratamento e prognóstico (Capitão, Scortegagna & Baptista, 2005). Para tanto, este procedimento deve ser apoiado em um corpo de conhecimento sólido, acumulado por meio do binômio prática/pesquisa, o que evidencia a importância do contínuo desenvolvimento de pesquisas para criação de protocolos de avaliação psicológica em saúde que considerem as especificidades de cada contexto de atuação (Capitão et al., 2005).
Diante do exposto, considera-se que a utilização de protocolos no contexto hospitalar representa uma ferramenta essencial, à medida que possibilita um método de levantamento de informações de forma sistemática acerca do funcionamento de um determinado aspecto de interesse, bem como do planejamento de intervenções (Ramos & Peres, 2013). Conforme destaca Capitão et al. (2005), os protocolos em saúde auxiliam na elucidação de hipóteses, a partir da obtenção de dados de forma objetiva, sem que haja a necessidade de se recorrer essencialmente a avaliação subjetiva.
Quando aplicados ao contexto de avaliação psicológica pré-transplante, entende-se que o uso do protocolo adquire uma função importante para o planejamento de intervenções mais eficientes, sendo considerados como guias de avaliação para aspectos específicos de acordo com as características do serviço (Capitão et al., 2005).
O processo de avaliação psicológica pré-transplante possibilita a identificação de variáveis psicológicas modificáveis, viabiliza o planejamento de intervenções efetivas e permite que seja trabalhada a tomada de decisão com autonomia por parte do paciente, a fim de se obter um melhor desfecho para o procedimento (Grings, Anton, & Viana, 2019). Nesse contexto, a avaliação das funções cognitivas se constitui como um domínio específico e de grande relevância durante o processo de avaliação pré-transplante (Kumnig & Jowsey-Gregoire, 2015).
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), os Transtornos Neurocognitivos compreendem os seguintes domínios de funções cerebrais: atenção complexa, função executiva, aprendizagem e memória, linguagem, perceptomotor e cognição social (APA, 2013). O comprometimento cognitivo pode ser compreendido, nesse sentido, como um déficit em uma ou mais funções cerebrais essenciais, podendo variar de leve a grave e repercutir nas atividades diárias e independência (Drew, Weiner, & Sarnak, 2019).
Pacientes portadores de DRC, quando comparados com a média geral da população, possuem risco significativamente maior de desenvolverem comprometimento cognitivo, alcançando a prevalência de 10% a 40%, a depender do método de avaliação cognitiva e do estágio da DRC (Drew et al., 2019). Alterações vasculares e metabólicas, microinflamações cerebrais e complicações da hemodiálise são alguns dos mecanismos que podem explicar esse comprometimento. Esses aspectos estão associados à ocorrência de déficit cognitivo e demência (Joshee et al., 2018).
Segundo Gupta et al. (2019) o comprometimento cognitivo afeta, de forma negativa, aspectos como atividades diárias e qualidade de vida, aderência à medicação e custos com os cuidados em saúde, além de influenciar na morbidade e mortalidade. Conforme destacam os autores, considerando que a rotina pós transplante é complexa e envolve consultas clínicas, uso de medicações, exames laboratoriais e mudanças nos hábitos alimentares, o déficit cognitivo pode afetar significativamente a capacidade dos pacientes de completarem a preparação para o procedimento, bem como de compreender e cumprir os cuidados requeridos.
De acordo com Kumnig e Jowsey-Gregoire (2015), a avaliação das habilidades cognitivas deve ser incorporada aos protocolos de avaliação psicológica pré-transplante devido à sua importância para o levantamento de informações a respeito da compreensão do paciente sobre todo o procedimento, os riscos associados e as exigências do tratamento, com o intuito de favorecer a adesão no pós-transplante. Quando se trata de um candidato idoso, esta avaliação assume uma relevância ainda maior, pois o próprio processo de envelhecimento cursa com prejuízo das funções cognitivas, como na capacidade de processamento de informações, o que gera alterações na memória de trabalho e nas funções executivas (Condé et al., 2010). Estudos sugerem que a idade avançada é o fator de risco mais estatisticamente significativo relacionado ao declínio cognitivo de pacientes que fazem hemodiálise (Drew et al., 2017, 2019). Com efeito, a avaliação de pacientes idosos neste contexto deve ser priorizada.
A identificação precoce do comprometimento cognitivo pode beneficiar os pacientes que precisam de intervenções adicionais ou informações mais detalhadas, facilitando o acesso e otimizando o desfecho do transplante (Gupta et al., 2019). Contudo, mesmo contando publicações relevantes sobre a importância da avaliação cognitiva, poucos são os achados que demonstram como essa avaliação deve ser operacionalizada.
Na prática cotidiana de avaliação psicológica pré-transplante em um Hospital Universitário, um número crescente de pacientes idosos tem procurado o procedimento. Na entrevista, observa-se que parte desses pacientes apresentam indícios de prejuízos cognitivos. A identificação precoce dos déficits cognitivos pode orientar ações ligadas às necessidades de cada paciente e auxiliar na tomada de decisão da equipe. Desta forma, se faz necessária a integração de uma avaliação cognitiva no já existente protocolo de avaliação pré-transplante. Esses aspectos justificam a realização do presente trabalho, cujo objetivo principal é sistematizar um protocolo piloto de rastreio cognitivo para utilização com idosos em contexto de avaliação psicológica pré-transplante renal.
Contexto
No Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), a preparação para o transplante se inicia quando o paciente portador de DRC é referenciado para o ambulatório de transplante renal. Inicialmente, o paciente agenda consultas com a enfermagem e com a medicina. A partir dessa consulta com o nefrologista, o paciente é encaminhado para realização de exames e para avaliação clínica em algumas especialidades médicas (dermatologia, ginecologia, cardiologia, anestesiologia e urologia). O parecer de outras especialidades médicas como, por exemplo, a hematologia, a endocrinologia e a psiquiatria, pode ser solicitado a depender do quadro clínico do paciente. Nesse momento inicial, o paciente também é encaminhado para avaliação de outras especialidades da equipe multidisciplinar, no caso a psicologia, o serviço social e a odontologia.
O protocolo de atenção psicológica ao paciente renal crônico do HUWC engloba as fases pré, peri e pós transplante. Desenvolvido por Fernandes (2007), pauta-se na visão do transplante como um processo no qual, em cada fase, o paciente apresenta uma dinâmica e necessidades específicas que vão orientar as ações da psicologia.
No que compete à atuação da psicologia na fase pré-transplante, são realizadas entrevistas de avaliação psicológica, as quais se propõem a levantar dados sobre história e enfrentamento da doença, tratamento atual, estilo de vida, produtividade, estrutura familiar, rede de apoio social, estado mental e afetividade, expectativas, motivação e compreensão com relação ao transplante.
Segundo Lazzaretti (2006), embora haja divergências no peso dado aos critérios psicossociais, em função do centro transplantador e o órgão em questão, há um consenso de que esta avaliação deve ser incorporada a fim de se investigar as áreas de preocupação que podem ser trabalhadas por meio de informação adicional ou encaminhamentos. Ainda segundo a autora, a avaliação deve visar não apenas a exclusão de candidatos, mas também a elaboração de intervenções que possam melhorar a qualidade de vida antes e depois do transplante.
O processo de avaliação psicológica pré-transplante do HUWC ocorre, em geral, por meio de duas entrevistas semi-estruturadas, salvo nos casos em que se identificam aspectos que devem ser aprofundados. Nesses casos, tanto a aplicação de instrumentos auxiliares, quanto entrevistas com membros da família podem ser incluídas. O protocolo de avaliação psicológica pré-transplante já existente tem como objetivo a análise de fatores psicológicos e motivacionais dos candidatos, bem como a identificação de fatores de risco e de enfrentamento para a continuidade do tratamento. A partir disso, busca-se formular uma visão sistêmica do paciente, de forma a proporcionar informações relevantes para a equipe de saúde e orientar as intervenções da psicologia (Fernandes, 2007).
A atuação na prática do serviço tem despertado atenção para a necessidade de uma avaliação mais estruturada das funções cognitivas, sobretudo em idosos, os quais são mais suscetíveis a apresentarem disfunções. Observa-se, no cotidiano do serviço, que o número de idosos em preparação para o transplante tem aumentado nos últimos anos. Considerando que essa população possui necessidades específicas diante da avaliação cognitiva, propõe-se a incorporação do protocolo de rastreio cognitivo dentro do processo de avaliação psicológica já existente no serviço de pré-transplante.
Método
O protocolo de rastreio cognitivo foi desenvolvido metodologicamente nas seguintes etapas: 1) Identificação de demandas relacionadas à avaliação de funções cognitivas, durante o processo de avaliação psicológica pré-transplante. 2) Levantamento, em bases de dados nacionais e internacionais, de artigos que abordam os instrumentos de rastreio cognitivo utilizados em contexto de avaliação psicológica pré-transplante. 3) Discussão dos resultados do levantamento com especialista em Neuropsicologia do HUWC. 4) Análise da aplicabilidade do instrumento, considerando o fluxo de preparação e o público atendido no ambulatório de pré-transplante renal. 5) Estabelecimento da rotina e procedimentos do protocolo cognitivo.
Na primeira etapa - levantamento de demandas - buscou-se articular com as demais psicólogas do serviço quais eram as lacunas da avaliação psicológica no que diz respeito às funções cognitivas. Diante disso, observou-se que a análise destas funções se limitava à observação do desempenho dos pacientes durante as entrevistas de pré-transplante, bem como da consideração das queixas dos acompanhantes. Paralelo a isso, percebeu-se que, quando questionados sobre a percepção do funcionamento cognitivo, os pacientes tendiam a declarar disfunções que não condizem com a observação clínica, o que suscita a necessidade de uma avaliação mais sistematizada dessas funções.
Na segunda fase, foi realizado um levantamento da literatura científica, em bases de dados nacionais e internacionais, acerca de estudos que abordem os instrumentos de rastreio cognitivo utilizados em contexto de avaliação psicológica pré-transplante. A pesquisa abrangeu publicações entre os anos de 2010 a 2020, nas seguintes bases de dados: "BVS", "PUBMED" E "SCIELO". Utilizou-se os seguintes descritores indexados no Medical Subject Headings (MeSH): "Mental Status and Dementia Test" OR "Neuropsychological Tests" AND "kidney Transplantation". O material levantado foi organizado com o propósito de avaliar os principais aspectos de interesse. Cada artigo foi lido e revisado de forma a obter subsídios para a decisão do melhor instrumento a ser aplicado no contexto em questão.
Na fase de discussão dos resultados com especialista na área de neuropsicologia, debateu-se as vantagens e limitações de alguns instrumentos quando aplicados à população brasileira, como, por exemplo, questões ligadas à validação e aplicação dos instrumentos. Essa etapa está interligada com a seguinte, que corresponde ao exame da aplicabilidade da proposta, considerando o fluxo e as características do público atendido no hospital. Entende-se, portanto, que o instrumento utilizado para rastreio cognitivo deve ter afinidade com o nível de escolaridade desse público e deve requerer uma duração breve de aplicação, com o intuito de não prolongar demasiadamente a fase de avaliação e preparação.
Por fim, estruturou-se a rotina e os procedimentos a fim de incorporar o protocolo cognitivo na avaliação psicológica pré-transplante. Para tanto, foi definido os critérios de inclusão e exclusão de pacientes, as condutas de aplicação, os parâmetros de análise de resultados e os desfechos dessa avaliação. O delineamento do protocolo será apresentado detalhadamente na seção de resultados.
Instrumentos de Rastreio Cognitivo
Por meio do levantamento da literatura, identificou-se que o Mini Exame do Estado Mental (MEEM) é o instrumento mais utilizado para o rastreio cognitivo de idosos brasileiros nos últimos anos (Martins, Caldas, Cabral, Lins, & Coriolano, 2019). Este instrumento tem rápida aplicação e avalia domínios como orientação espacial e temporal, memória, atenção, linguagem oral - nomeação e compreensão - e escrita (Guerreiro, 2010).
Além do instrumento citado, os achados da pesquisa também sugerem o Montreal Cognitive Assessment (MoCA) como recurso de rastreio cognitivo de rápida aplicação. Segundo Gupta et al. (2019), é possível, por meio deste instrumento, avaliar aspectos como capacidade visuoespacial, funções executivas, nomeação, memória, atenção, linguagem, abstração e orientação.
Conforme destaca Gupta et al. (2019), o MoCA apresenta maior sensibilidade para detectar comprometimento cognitivo leve em comparação com o MEEM em pacientes renais crônicos, por ser capaz de avaliar demência de origem vascular. Além disso, o MoCA apresenta vantagem com relação a praticidade de sua aplicação e adequação à clínica de transplante, pois as restrições de tempo de avaliação dificultam a realização de uma avaliação neuropsicológica mais detalhada (Gupta et al., 2019).
O MoCA tem sido considerado um instrumento com qualidades superiores ao MEEM, sobretudo diante de patologias que envolvem danos em estruturas subcorticais, como na DRC (Amatneeks & Hamdan, 2019). Tal limitação decorre de o MEEM não avaliar déficits nas funções executivas - comumente associadas às lesões vasculares - o que pode comprometer a sensibilidade para identificação de comprometimento cognitivo na referida população (Kurella & Yaffe, 2011).
Assim sendo, o MoCA demonstra ser um instrumento adequado para avaliação cognitiva de pacientes que possuem comprometimentos característicos com o perfil da DRC (Amatneeks & Hamdan, 2019). Os resultados da pesquisa realizada por Tiffin-Richards et al. (2014) corroboram com essa afirmativa ao indicar que o MoCA representa uma ferramenta de triagem cognitiva adequada para pacientes em hemodiálise, cobrindo funções executivas e possuindo bons níveis de sensibilidade e especificidade.
Sabe-se que o nível de escolaridade afeta o desempenho em testes neuropsicológicos, diante dessa limitação, o estudo de apresentação e aplicabilidade da versão brasileira do MoCA incluiu apenas a população com nível de escolaridade igual ou superior a quatro anos (Sarmento, 2009). Posto isto, a aplicação do MoCA é validada, em contexto brasileiro, apenas para pessoas com esse nível de escolaridade.
Essa característica do instrumento representa um entrave para a inclusão na avaliação psicológica pré-transplante do hospital em questão, visto que parte do público atendido possui escolaridade inferior ao estabelecido como critério de aplicação. Sugerimos, dessa forma, a utilização do Montreal Cognitive Assessment - Basic (MoCA-B), uma nova versão do MoCA validada na Tailândia e adaptado à população brasileira por Apolinário (2015), disponível no site: mocatest.org.
O MoCA-B foi desenvolvido para testar pacientes analfabetos ou com menos de cinco anos de estudo. Considerando que há uma predominância de baixa escolaridade em pacientes renais crônicos no Brasil, esse instrumento parece ser mais apropriado para aplicação nesse contexto (Amatneeks & Hamdan, 2019). O MoCA-B avalia aspectos como: percepção visual, funções executivas, linguagem, atenção, memória e orientação.
Um estudo realizado por Amatneeks e Hamdan (2019) apresentou resultados que demonstram que o uso do MoCA-B é adequado para o rastreio de comprometimento cognitivo em pacientes de hemodiálise. Além disso, esse estudo identificou que o MoCA-B teve um tamanho de efeito menor da escolaridade do que o MEEM para a identificação de déficit cognitivo.
Protocolo de Avaliação Cognitiva Pré-Transplante
O protocolo de rastreio cognitivo aqui proposto deve ser aplicado como parte da rotina de avaliação psicológica pré-transplante. Esta avaliação ocorre, em geral, por meio de duas entrevistas semiestruturadas com o paciente e, quando necessário, com os familiares. Na primeira entrevista são levantados dados sobre os seguintes aspectos: história e enfrentamento da doença, tratamento atual, estilo de vida, produtividade, estrutura familiar, rede de apoio social, estado mental e afetividade. Já na segunda entrevista são avaliados os dados sobre expectativas, motivação e compreensão com relação ao transplante. Conforme sejam observados aspectos que demandam uma melhor avaliação e/ou intervenção durante essa fase, o número de entrevistas deve ser ampliado, de forma a corresponder às necessidades do candidato.
Sugere-se que a avaliação de aspectos cognitivos ocorra durante a primeira entrevista, o que possibilita a análise e discussão dos resultados, bem como o planejamento de intervenções e encaminhamentos, antes que o paciente compareça ao retorno do atendimento. Como critérios de inclusão para a avaliação de aspectos cognitivos delimitam-se: pacientes acompanhados no ambulatório de pré-transplante renal, com idade igual ou superior a 50 anos e em qualquer estágio da doença renal crônica. Como critérios de exclusão são definidos fatores como: baixa acuidade auditiva e visual; incapacidade de compreender português; diagnóstico prévio de demência, deficiência intelectual ou transtorno psicótico descompensado no momento da avaliação. Tais aspectos foram considerados critérios de exclusão pois prejudicam a compreensão e o desempenho do candidato na realização do teste.
Propõe-se, conforme discussão anterior, a inclusão do teste de rastreio MoCA-B como ferramenta sistematizada para levantamento de dados sobre o funcionamento cognitivo dos candidatos ao transplante. Essa proposição justifica-se pela característica do MoCA-B em apresentar maior sensibilidade e especificidade para avaliar comprometimento cognitivo, além de demonstrar menor impacto da baixa escolaridade em relação ao teste mais utilizado, o MEEM (Amatneeks & Hamdan, 2019).
O ponto de corte sugerido no estudo original do MoCA-B foi ≤ 24. Contudo, um estudo transversal realizado por Amatneeks e Hamdan (2019) com pacientes portadores de DRC em programa de hemodiálise demonstrou que o ponto de corte ≤ 21 apresenta resultados mais precisos quando aplicados a população em questão. Por isso, essa nota de corte será adotada como referência no protocolo cognitivo de pré-transplante renal.
Como desfecho da avaliação psicológica pré-transplante, deve ser realizada uma comunicação devolutiva geral do processo, devendo-se incluir os dados cognitivos relevantes coletados durante o processo. Nos casos que forem observados indícios de comprometimento cognitivo, deve-se solicitar a presença dos cuidadores nas entrevistas psicológicas, a fim de realizar uma avaliação aprofundada da qualidade e disponibilidade do suporte social. Além disso, deve-se realizar orientações com o paciente e os familiares sobre estratégias de adaptação à rotina de pós-transplante. A vida de um paciente transplantado é marcada pelas exigências do tratamento, como regime médico e adesão medicamentosa, o que torna o suporte social essencial para o melhor enfrentamento das dificuldades (Kumnig & Jowsey-Gregoire, 2015).
Os dados levantados acerca do funcionamento cognitivo serão inseridos no relatório final da avaliação psicológica pré-transplante, anexados ao prontuário do paciente, de forma a possibilitar o acesso destas informações pela equipe de transplante. Este relatório servirá de subsídio para a tomada de decisão da equipe, possibilitando intervenções mais adequadas às necessidades dos candidatos e otimização do desfecho deste procedimento.
Para que a avaliação psicológica em saúde assuma uma perspectiva compreensiva acerca das problemáticas do paciente, é importante que não se considere apenas as variáveis que devem ser medidas ou testadas, mas também os demais fatores que podem ter relação com o resultado (Capitão et al., 2005). Salienta-se, diante disso, que a utilização dos protocolos em saúde não deve ocorrer de forma mecanicista, correndo o risco de negligenciar aspectos subjetivos do paciente e, assim, limitar a compreensão por parte do psicólogo hospitalar (Ramos & Peres, 2013).
Considerações Finais
Dentre os objetos de avaliação em contexto de saúde, destacam-se as metas cognitivas. Estas correspondem, resumidamente, a informações sobre funções psíquicas, compreensão da situação de saúde, capacidade de avaliar custo/benefício do tratamento, entre outras (Capitão et al., 2005). O protocolo proposto tem como objetivo identificar indícios de comprometimento cognitivo em adultos com 50 anos ou mais acompanhados no ambulatório de pré-transplante renal e propor intervenções adequadas. Destaca-se, assim, a necessidade de que avaliação psicológica pré-transplante inclua o rastreio cognitivo, devido ao elevado índice de comprometimento cognitivo em pacientes renais crônicos e/ou em tratamento dialítico (Drew et al., 2019).
Posto isso, propõe-se difundir o protocolo para os demais psicólogos hospitalares que atuam com pacientes em preparação para transplante renal, levando em conta que são escassas, na literatura acadêmica, informações que orientem sobre como deve ser realizada a avaliação cognitiva. Entende-se que este protocolo tem função essencial no processo de pré-transplante, pois fornece subsídios para o planejamento de intervenções necessárias à otimização do procedimento. Busca-se, assim, identificar e favorecer o enfrentamento das dificuldades ligadas à compreensão e adesão do tratamento.
As limitações deste trabalho referem-se à necessidade de revisões e adaptações futuras, de acordo com a prática no referido ambulatório e o público atendido. Recomenda-se, assim, a realização de nova análise sobre as informações acerca do funcionamento cognitivo em pacientes com DRC no futuro, levando-se em conta a inclusão de pacientes em qualquer estágio da doença. Além disso, destaca-se a necessidade de estudos que indiquem resultados mais pertinentes com relação aos pontos de corte de testes de rastreio cognitivo na população de pacientes renais crônicos.
Considera-se que a sistematização deste protocolo contribui para o contínuo desenvolvimento de pesquisas na área da saúde, de forma a favorecer a criação de um modelo de avaliação que considere as características do contexto de atuação e do perfil de pacientes atendidos. Espera-se que a aplicação deste protocolo resulte em benefício para a avaliação e planejamento de condutas dirigidas aos pacientes em preparação para o transplante renal.
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Rhebecca Loiola Carneiro - Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Centro Universitário Unichristus. Residência Multiprofissional em Atenção Hospitalar à Saúde/ Área de Concentração Transplante pelo Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC). Psicóloga residente em Neurologia e Neurocirurgia de Alta Complexidade pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE).
Luciana Freitas Fernandes - Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Psicóloga do Serviço de Transplante Renal, tutora e preceptora da Residência Integrada Multiprofissional em Atenção Hospitalar à Saúde do HUWC.
Janine de Carvalho Bonfadini - Graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Neuropsicologia pelo Centro Universitário Unichristus. Neuropsicóloga do Hospital Universitário Walter Cantídio - UFC/EBSERH. Mestranda em Ciências Médicas pela UFC.