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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza jun. 2012
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Enfim Sós: Um estudo psicanalítico do divórcio
Finally apart: A psychoanalytic study of divorce
Enfin solos: Un estudio psicoanalítico de divorcio
Enfin seuls: Un étude psychanalytique de la divorce
Viviana Carola Velasco MartínezI; Aline Spaciari MatioliII
IProfessora doutora do curso de graduação e mestrado em Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Civilização. End.: Professor Ney Marques, 21, Jardim Universitário. Maringá-PR. CEP: 87020-300. E-mail: vcvmartinez@hotmail.com
IIPsicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. End.: Tietê, 438, ap.103. Jardim Universitário, Maringá-PR. CEP: 87020-210. E-mail: aline_matioli@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo lançar um olhar psicanalítico sobre o processo de divórcio. Como qualquer separação, o divórcio é um evento traumático para a família, pois, além de ser capaz de reeditar situações traumáticas vividas em tempos precoces, expõe o ex-casal a um sem-número de perdas significativas e geradoras de intenso movimento pulsional. Uma delas interessa a este estudo em particular. Trata-se da perda das ligações estabelecidas em torno da sexualidade infantil do casal, isto é, dos acordos, da cumplicidade, da intimidade que organiza essa sexualidade e a satisfaz. Analisou-se o transbordamento dessa sexualidade polimórfico-perversa quando da ruptura do laço conjugal, que, transformada em excesso, se traduz em sofrimento psíquico na forma de sintomas e atuações, inclusive para os filhos. É quando o divórcio pode se tornar interminável e a antiga relação afetuosa do casal passa a ser substituída, por exemplo, por uma relação sádico-erótica, cujo objetivo principal é manter a união a qualquer custo, nem que, para isso, se adotem as vias menos elaboradas, como chantagens emocionais, brigas na justiça, ciúmes etc. Nessas circunstâncias, não somente o ex-casal, mas também os filhos são convocados a dar conta desse excesso pulsional, que se apresenta como um enigma que demanda um desvendamento e uma nova organização do sexual. Para essa discussão, recorreu-se à teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche.
Palavras-chave: Divórcio, psicanálise, teoria da sedução generalizada, sexualidade infantil, situação antropológica fundamental.
ABSTRACT
This article aims to launch a psychoanalytic viewpoint about the divorce process. As any separation, divorce is a traumatic event for the family, because not only can lead to revive traumatic situations experienced at an early stage, but exposes the former couple to a number of significant losses and generates an intense movement of pulsional energy. One of them is of especial interest for this study in particular. It is the loss of the links established around the infantile sexuality, i.e. the agreements of complicity, of intimacy, that organize this sexuality and satisfies it. The overflow of this polymorphic-perverse sexuality, when the marriage bond breaks, is analyzed, once, when it turns into excess, it can lead to psychological distress in the form of symptoms and actings, including towards the children. Is when the divorce can last forever and when the previous love relationship of the former couple is supplanted, for example, by a sadistic-erotic relationship, whose main objective is to keep the union at any cost, even if, for that, they adopt the most regressive models, as emotional blackmail, big fights in justice, jealousy etc. In these circumstances, not only the ex-partner, but also the children are invoked to deal with this excess of pulsional energy, which is presented as an enigma that requires a decoding and a new organization the sexual space. For this discussion, the theory of generalized seduction by Jean Laplanche is used.
Keywords: Divorce, psychoanalysis, generalized theory of seduction (TSG), infantile sexuality, fundamental anthropological situation.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es discutir el proceso de divorcio desde el punto de vista psicoanalítico. Como cualquier separación el divorcio es un acontecimiento traumático para toda la familia, pues no sólo puede llevar a la reedición de situaciones traumáticas de los tiempos precoces, sino también obligar a la ex pareja a enfrentar muchas pérdidas significativas y provocadoras de movimiento pulsional intenso. Una de ellas nos interesa en particular y es la pérdida de los enlaces que se hicieron alrededor de la sexualidad infantil de la pareja, es decir, de los acuerdos, la complicidad, la intimidad que organiza esta sexualidad y también la satisface. Analizamos las formas como esta sexualidad polimorfa-perversa desborda cuando se rompe el lazo conyugal, y al convertirse en exceso resulta un sufrimiento psíquico en forma de síntomas y actuaciones, incluso para los hijos. Es cuando el divorcio puede ser interminable y la anterior relación amorosa de la ex pareja es suplantada, por ejemplo, por una relación sádico - erótica, cuyo objetivo principal es mantener la unión aunque lo haga por los caminos más regresivos, o sea, a través de chantajes emocionales, grandes peleas en la justicia, celos, etc. En estas circunstancias, no solo la ex pareja, sino los niños también son obligados a dar cuenta de este exceso pulsional que, como un enigma, exige un desciframiento y nueva organización de lo sexual. Para esta discusión, se recurre a la teoría de la seducción generalizada de J. Laplanche.
Palabras-clave: Divorcio, psicoanálisis, teoría de la seducción generalizada (TSG), sexualidad infantil, situación antropológica fundamental.
RÉSUMÉ
Cet article vise à jeter un regard psychanalytique sur le processus de divorce. Comme toute séparation, le divorce est un événement traumatisant pour la famille, car il est capable de rééditer des situations traumatisantes vécues dans des temps précoces. En outre, l'ancien couple est confronté à une grande quantité de pertes importantes et générant intense mouvement pulsionnel. L'une d'elles nous intéresse en particulier. Il s'agit de la perte des liens effectués autour de la sexualité enfantile du couple, c'est-à-dire, les accords, la complicité, l'intimité qui organise cette sexualité et qui la satisfait. Nous analysons les débordements de la sexualité polymorphe-perverse, lors de la rupture du lien conjugal qui, transformé en excédent, se traduit en souffrance psychique - sous la forme de symptômes et de mises en actes - y compris pour les enfants. C'est alors que le divorce peut devenir interminable et l'ancienne relation amoureuse du couple est remplacée, par exemple, par une relation sadique-érotique, dont l'objectif principal est de garder l'union à tout prix, même s'il est nécessaire adopter les moyens les moins élaborés, tels que la manipulation afective, les batailles juridiques, la jalousie, etc. Dans ces circonstances, tantôt l'ancien couple, tantôt les enfants sont appelés à rendre compte de cet excès pulsionnel qui se présente comme une énigme qui exige une élucidation et une nouvelle organisation des rapports sexuels. Pour cette discussion, nous utilisons la théorie de la séduction généralisée de J. Laplanche.
Mots-clés: Divorce, psychanalyse, théorie de la séduction généralisée (TSG), la sexualité infantile, la situation anthropologique fondamental.
Introdução
Não se precisa dizer que o divórcio - ou mesmo a separação - é um processo de grande turbulência para a família, à medida que enfrenta um sem-número de perdas significativas, não apenas de caráter externo, como as sociais e econômicas, mas também as perdas internas, estas mais difíceis de elaborar.
Neste artigo, tem-se como objetivo analisar estas últimas, mais precisamente a perda das ligações construídas em torno da sexualidade infantil do casal, isto é, dos acordos, da cumplicidade, da intimidade que organiza essa sexualidade e a satisfaz. Analisou-se o transbordamento dessa sexualidade polimórfico-perversa quando da ruptura do laço conjugal, que, transformada em excesso, se traduz em sofrimento psíquico na forma de sintomas e atuações, inclusive para os filhos.
Pode-se pensar que o divórcio envolve dois tempos: o primeiro, em que o vínculo é desfeito pela separação, provocando o desligamento da sexualidade até então organizada pela cumplicidade do casal, como apontado. Nessas circunstâncias, não somente o ex-casal, mas os filhos são convocados a dar conta desse excesso pulsional que se apresenta como um enigma e demanda um desvendamento e uma nova organização do sexual. Supõe-se, então, que diante da impossibilidade imediata de dar uma resposta mais organizada a esse excesso, ambos, ex-marido e ex-mulher, seriam lançados a algo que se assemelha à situação antropológica fundamental, isto é, à situação de passividade e extrema dependência em que se encontra a criança frente ao adulto que, ao cuidar dela, também lhe transmite inconscientemente a sua sexualidade. Laplanche (2005) observa que, nessa situação assimétrica, a criança deve iniciar um trabalho de deciframento do enigmático que lhe é transmitido inaugurando o seu psiquismo, isto é, a sua sexualidade e o recalcado. Como a sexualidade do outro sempre permanecerá enigmática para a criança, o trabalho de tradução será constante, dando lugar a novas organizações. Desse ponto de vista, no caso do ex-casal, a separação reinstalaria o enigma para cada um, a sexualidade (desligada) demandaria do par um trabalho de tradução, cujos resultados iniciais seriam marcados pela precariedade e a parcialidade na organização, precipitando a ambos, o ex-casal, para uma relação sádico-erótica. Este seria o segundo tempo do divórcio, que Losso (2003) chama de interminável, cuja função seria precisamente a de acalmar a angústia.
Assim, outra relação se estabelece e o ex-casal1 se organiza dentro de um verdadeiro campo de batalha, onde os vínculos orais e anais tomam feições polimórfico-perversas. Acusações, tapas, xingamentos, ameaças e dor compõem o cenário dessa nova relação que, não raro, termina como caso de polícia e brigas na justiça, embora alguns casais mantenham simultaneamente e durante algum tempo relações sexuais. Os filhos também participam dessa tumultuada experiência, fazendo o papel de intermediários do excesso que se precipita dos pais, incluindo aí também o seu próprio sofrimento. Tem-se, então, uma organização possível, de cunho edípico, seja da parte do pai, que dá um tratamento igual aos filhos e à namorada (que muitas vezes tem uma idade próxima a dos filhos), por exemplo, comprando coisas semelhantes para ambos, ou do mesmo valor; ou, no caso das mães, levando a criança para o leito nupcial2. Nesse sentido, uma nova configuração é dada ao complexo de Édipo, e a ameaça de castração parece ficar atenuada. Estas seriam, para Laplanche (2007a), organizações do sexual, nas quais o Édipo e a ameaça de castração estariam do lado do recalcamento.
Na continuidade, pretende-se entender melhor as ideias de Laplanche.
A Teoria da Sedução Generalizada
Laplanche (2005) define a situação antropológica fundamental (SAF) como o primeiro momento de encontro entre um adulto e uma criança que ainda não fala (petit non-parlant). Esse primeiro encontro, que ele denomina de situação originária, é marcado por uma diferença fundamental, uma assimetria de condições em que o adulto se relaciona a partir de seu inconsciente, enquanto a criança ainda constrói o seu. Diferentemente do que ocorre no complexo de Édipo, referência freudiana para a constituição do aparato psíquico infantil, Laplanche considera essencial à formação do psiquismo o encontro adulto-criança, situação fundamental de que nenhum ser humano pode escapar e que, por ser de caráter universal, está presente em todas as culturas, fundando, desse modo, o humano.
Ramos (2008) define a situação originária como o primeiro momento de encontro (ou seria um desencontro?) do adulto com a criança, seres em desigual condição simbólica que estabelecem uma relação assimétrica, na qual um deles se encontra em posição desfavorecida de acordo com sua constituição. Nessa situação originária, pautada pela ausência de reciprocidade entre o mundo adulto e o mundo infantil, as mensagens que o "adulto-outro" (de acordo com Figueiredo, 1994), envia ao infante são mensagens enigmáticas, pois são, ao mesmo tempo, inconscientes e sexuais. São enigmáticas, continua Ramos (2008), não somente para a criança, mas também para o adulto, pois partem de seu inconsciente. Assim, nem receptor nem emissor estão a par do significado delas, assumindo para ambos um caráter de excesso.
É dessa maneira que o enigmático toma forma de uma sedução parental3, que ocorre porque a criança pequena se encontra em uma posição passiva perante o universo adulto, posição evidente devido ao fato de o psiquismo dos pais ser "mais rico" que o do universo infantil, como observa Laplanche (1997b):
A sedução deve ser definida como a relação passividade-atividade, tomada esta última em seu sentido cartesiano: o ativo é aquilo que comporta mais saber, de experiência, etc., que o passivo. Além disso, nesta dissimetria, a psicanálise introduz o complemento essencial, que este 'mais' é um a mais-de-saber-inconsciente no sedutor e no seduzido (p. 332).
No tocante à passividade infantil, continua Laplanche (1987), relaciona-se ao plano sexual, não ao plano autoconservativo. Segundo o autor, o lactente, desde o início de sua jornada fora do ventre materno, depara com tarefas que exigem um alto grau de maturidade psicofisiológica que ele é incapaz de atingir. Contudo, ele é bastante ativo, pois, motivado por excitações internas excessivas, é capaz de solicitar ajuda externa por meio de gritos, choro ou agitação motora que, percebidos pelo adulto, serão atendidos (com maior ou menor êxito). Dessa forma, a relação que se estabelece é interativa, porquanto se evidencia uma tentativa de comunicação que parte da criança em direção ao adulto.
Porém, para Laplanche (2007a), é por pouco tempo que a comunicação adulto-criança se dará num nível de amor e de apego, pois rapidamente esse registro é tomado por elementos da sexualidade adulta não dominados pelo infans. E dentro do domínio sexual o lactente é passivo, porque é confrontado com elementos diante dos quais não apresenta uma reação adequada. A interação, nesse caso, não funciona, pois, como expõe Laplanche (1987, p. 111), "há um sedutor e um seduzido, um desviador e um desviado, que leva para fora das vias naturais: 'a Traviata', 'a desviada', 'a desencaminhada', 'a seduzida'".
A passividade, retomando-se Ramos (2008, p. 254), "tem a ver com desigualdade de condições. A situação originária seria caracterizada, então, por essa desigualdade de condições simbólicas, linguageiras, entre o adulto e a criança."
Para Laplanche (1987), os pais, movidos por seus fantasmas, agem como sedutores diante da passividade da criança, sedução inegável, instituinte e necessária à constituição do sujeito. Tal sedução ocorre por meio das mensagens enigmáticas vindas do outro, mensagens parasitadas pela sexualidade infantil recalcada do adulto, que funcionam como enigma, convocando a criança a decifrá-las. Contudo, devido ao despreparo essencial da criança, o fato de não ter recursos suficientes para traduzir e metabolizar essas mensagens enigmáticas fundaria seu inconsciente.
Laplanche (1997a) explica que essas mensagens são transmitidas à criança por meio de dois processos distintos: implantação e intromissão. Enquanto a implantação permite certo grau de atividade, por meio da tradução e do recalque4 dos enigmas vindos do outro, a intromissão, com sua variante violenta e intrusiva, coloca no interior do sujeito um elemento rebelde a qualquer metabolização, um verdadeiro corpo estranho. São mensagens, expõe Laplanche (1994), "cujo significado está impregnado na mensagem mesma, não há enigma e, por isso, não demanda da criança um trabalho tradutivo; de tão compactas, são apenas intromissão" (p. 86). São essas mensagens que introduzem no psiquismo em constituição a confusão e provocam o sofrimento psíquico, por excederem a capacidade tradutiva das crianças.
Há em todo sujeito psíquico, ressalta Laplanche (2007b), criança e também adulto, um "estoque de mensagens intraduzidas", algumas em estado de espera provisória de tradução (implantações), outras, impedidas temporal ou definitivamente de serem traduzidas (intromissões). Quando essa tradução é possível, a criança utiliza não somente seus códigos autoconservativos, mas novos códigos, com os quais desde muito cedo entra em contato, graças ao ambiente cultural circundante. Tais códigos foram denominados por Martens (2009) de "assistentes de tradução", e seriam constituídos pelo conjunto de mensagens emitidas pelo ambiente social em geral, pelo cultural, que oferece ao infante, além dos códigos clássicos, novos códigos, narrativas e esquemas que funcionam em contraponto ao processo de sedução. Segundo Ramos (2008), os protofantasmas do complexo de Édipo, do complexo de castração e da cena primitiva, por exemplo, servem precisamente para o sujeito infantil organizar sua vida pulsional. O complexo de Édipo, diz o autor, "estaria, então, do lado do recalcamento [e não do recalcado], na medida em que é uma representação ou conjunto de representações que a cultura, através de mitos, de cinema etc., oferece ao sujeito como, digamos, uma tina, um continente para essa pulsão" (Ramos, 2008, p. 263).
Na separação, e motivados pelos excessos em torno da sua sexualidade exacerbada, os ex-cônjuges passam a enviar um ao outro mensagens que, pelo enigmático, causam intenso sofrimento psíquico; daí a possibilidade de reativação da situação antropológica fundamental vivida pelos ex-parceiros em tempos precoces. Como resposta ao enigmático da sexualidade do outro, instala-se uma nova relação, ou o divórcio interminável.
Separação, Excesso e Enigma
Em "A tina: a transcendência da transferência", Laplanche (1993c) se refere à tina como uma figura metafórica para falar da situação analítica. Toma-se essa figura para se falar da relação conjugal que, semelhante a uma tina, funcionaria como um continente para as pulsões do casal, cujo rompimento levaria ao derramamento de tudo o que ali estava contido, a exemplo de elementos da sexualidade infantil negados ou reprimidos na relação do par. Frente à quebra dessa tina conjugal, tais elementos assumiriam novas feições, favorecidas pelas circunstâncias da separação, e se materializariam nos desejos de vingança, de retaliação, de morte etc. Esses desejos, segundo Losso (2003), comporiam as peculiaridades do divórcio interminável, com a finalidade principal de diminuir a angústia de separação do casal. A relação sádico-erótica que marca a vida do casal que se separa, como já visto, seria uma tentativa do par de restabelecer ou preservar, polimórfico perversamente, algo da antiga tina, algo que, desprendido do objeto, seria ameaçador e desorganizador para o sujeito. Isso porque, muito além de perder o outro como objeto de amor e, por conseguinte, o amor do objeto, outras importantes perdas são desencadeadas com o fim da união. Destaca-se, por exemplo, a perda do outro como suporte fantasmático, posto que a presença real do amado funciona como alicerce para a construção de grande soma de fantasias, tais como: a imagem ideal de família, de relacionamento, de fidelidade e cumplicidade, de cuidado e educação dos filhos ao lado do parceiro. Nessas circunstâncias, a ausência física do amado não é o fato mais importante, mas, sim, a falta de sua função. O ex-cônjuge não está morto, mas tem decretada a morte do seu papel, de suas funções familiares e sociais. Suas atribuições e atributos permanecem, mas de forma excessiva, pois estão sem objeto. Daí, talvez, a dor do luto estaria relacionada não à ausência do outro, mas ao seu excesso traumático.
Nasio (1997) se refere à presença física do amado como base para a criação e manutenção do universo fantasmático dos sujeitos, o que permite tecer algumas considerações. A verdadeira dor sentida pelos cônjuges após o fim da relação, diz o autor, não se deve à perda do objeto, da pessoa do amado, mas é derivada da desarticulação interna das fantasias criadas em torno do amado, do excesso sem objeto, da incitação sem excitante. Nessas circunstâncias, o sujeito fica privado do objeto de sua pulsão que, agora livre, transforma-se em angústia: "a dor provém da desordem pulsional que reina no Isso, consecutiva à ruptura da barreira que era fantasia" (Nasio, 1997, p. 52). Não se pode deixar de fazer menção a Freud (1917/2006), quando considera a melancolia como uma reação à separação do objeto amado, o que não implica necessariamente a sua morte física. Nesse caso, o sujeito ignora o valor intrínseco do objeto, pois, apesar de saber quem ele perdeu, não sabe o que perdeu junto com ele.
Na visão de Ramos (2008), a perda por morte real do objeto, abandono ou separação será sempre uma maneira de o sujeito se defrontar com o excesso, mais do que com a falta. Em suas palavras:
É mais contra o excesso do objeto - contra sua presença obsidente - do que contra sua falta que o sujeito está às voltas. Trata-se do excesso pulsional que se desprende do objeto e que a ele já não pode se ligar. É o excesso do impossível, porque a perda é do registro do impossível, do Real. É excesso também porque é enigma, como mensagem intraduzida. Desse ponto de vista, o próprio objeto perdido é, talvez, o lado intraduzido, o lado não metabolizado do objeto. É sem dúvida, o seu lado não, e a negativa é impossível de ser compreendida e, assim, funciona como um excesso (p. 271).
Há um excesso pelo que transborda das recordações, pela presença obsedante na semelhança com os filhos ou por meio dos objetos do mundo externo que lhe representam, também nos projetos desfeitos etc.
O sofrimento psíquico do ex-casal, segundo Losso (2003), também decorre dos comuns sentimentos de falha, de culpa e de perda da sensação de integridade de si após o fim do relacionamento, o que é favorecido pela perda do suporte interno e externo oferecido pela situação do casamento, fato que acarreta, ainda, a desesperança e o desamparo. Spira (1981), por sua vez, relata sensações de desamparo e de uma autoestima agredida ou atacada, própria dos quadros melancólicos, como resposta masoquista após a separação. Há também a perda da imagem ideal de si, pois, abandonado, o sujeito depara com a frustração e perda da onipotência. Em outros casos, continua Losso (2003), podem emergir sensações de despersonalização transitória e desordens orgânicas, às vezes severas - à medida que o corpo passa a expressar o impensável concernente aos aspectos negados e repudiados das alianças inconscientes. O aparecimento de um apego regressivo a um dos filhos ou a membros de gerações anteriores e a busca por novos relacionamentos imediatamente após o término do vínculo conjugal, principalmente na esperança de preencher o vazio deixado pelo outro, estão entre as possíveis respostas frente ao excesso.
Nesse sentido, o divórcio interminável se assemelha a uma representação possível para o enigma da separação, uma forma de o sujeito organizar os sentimentos de abandono, de desamparo, de exclusão e o ódio que isso mobiliza. Trata-se, assim, de uma nova solução de compromisso, que permite a concomitância do recalcamento e do recalcado, da defesa e do desejo, sugerindo que, ao mesmo tempo em que o antigo objeto é atacado ou agredido, ele é preservado, é seduzido, o que mantém aberta a possibilidade da mensagem, fato menos assustador e desorganizador do que o vazio, do que a ausência da mensagem.
Contudo, trata-se de uma resposta precária, pois o divórcio interminável está aquém de uma resposta organizadora, na medida em que expressa também o não ligado, a pulsão sexual de morte. Essa dificuldade em responder ao enigma do outro parece relacionada à carência de recursos frente às novas mensagens de grande carga libidinal, como as de abandono e traição, por exemplo, capazes de provocar grave ferida narcísica, o que explicaria a baixa autoestima, as reações depressivas e os pensamentos suicidas e homicidas de alguns cônjuges após a separação. Para que essas atitudes destrutivas tenham um fim, sustenta Losso (2003), cada um dos membros do ex-casal deve realizar a retirada dos investimentos feitos no outro, no casamento e na estrutura familiar, e reinvesti-los de forma mais saudável em novas esperanças, expectativas ou relações afetivas. Esse intenso movimento interno demanda o início de um trabalho de luto pela perda do ex-parceiro como objeto ou, mesmo, indica a impossibilidade de iniciá-lo, assumindo feições melancólicas.
O Luto
Em síntese, o processo de luto poderia ser descrito como o trabalho desenvolvido pelo psiquismo de retirada dos investimentos feitos em um objeto significativo e sua reintrojeção no eu para futuro reinvestimento em novos objetos.
Todavia, realizar o desinvestimento no objeto não é tarefa fácil para o eu, na medida em que os sujeitos tendem a manter suas ligações e investimentos libidinais nos objetos antigos, mesmo que surja outro em seu lugar. Como observa Freud (1917/2006, p. 104), "de modo geral o ser humano - mesmo quando um substituto já se delineia no horizonte - nunca abandona de bom grado uma posição libidinal antes ocupada." Caruso (1989) cita um exemplo a respeito dos sentimentos de um paciente sobre sua ex-parceira, após um ano de separação:
Em resumo, estou tentando matá-la. É um espetáculo curioso como esse animal atacado de morte ainda se debate convulsivamente. Não estou chamando Olga de animal; ou quem sabe esteja sim? Quem sabe, Olga e eu? Mas na verdade quero me referir à memória, mais exatamente à consciência que temos um do outro (p. 53).
O mesmo pode se dizer de uma paciente, com sintomas acentuados de depressão, que depois de quinze anos de separação, ainda chamava o ex de "marido" e se referia à segunda esposa dele como "a esposa do meu marido". Sentia muita falta dele e esperava tê-lo de volta. É porque a lembrança é mantida viva durante muito tempo. Assim, percebe-se que o processo de elaboração não somente da perda por morte, mas igualmente da perda por separação é lento e gradual. Essa viscosidade da pulsão investida nos objetos auxilia na compreensão das constantes saídas e voltas para casa antes da separação definitiva; nas investidas sexuais, por exemplo, feitas no ex-cônjuge apesar de já haver iniciado nova relação afetiva; ou nas tentativas de reatar o laço conjugal depois de meses da separação efetiva dos corpos, muitas vezes com efeitos catastróficos. Não é incomum que muitos reencontros, inclusive com a intenção de uma reconciliação, terminem como caso de policia.
Durante o trabalho de luto, o desolado encontra-se, via de regra, dominado por um conjunto de sentimentos que não lhe possibilita qualquer manifestação de interesse para outros fatos do mundo, a não ser pela lembrança do objeto (Freud 1917/2006), o que justificaria, muitas vezes, o descuido com os filhos, pois é preciso se recolher nos conflitos internos que absorvem o ex-casal.
Outra dificuldade em se elaborar o luto nos casos de separação amorosa ocorre porque a presença do ex-cônjuge estimula fantasias de re-união, relacionadas a desejos possessivos sobre o outro ou, "este (a) não é mais meu (minha), mas não tolero que pertença a outro (a)" (Losso, 2003, p. 5). Esse sentimento ou desejo de posse estaria relacionado à recusa em abandonar o antigo objeto, recusa e/ou dificuldade em fazer o luto do objeto perdido, o que, em alguns casos, se converte em desejo de destruição, na medida em que o domínio sobre o ex-parceiro não é mais possível. Tratar-se-ia de um subproduto da pulsão de dominação que, segundo Freud (1905/1996a), é uma das vertentes assumidas pela sexualidade infantil - eis aí algo mais da sexualidade intensificada, que objetiva dar continuidade à relação, sob outras bases.
A expressão "amor, mas também ódio", de Losso (2003), caracteriza bem o vínculo dos ex-cônjuges, marcado pela dificuldade de desinvestimento no antigo objeto de amor, de elaboração do luto pelo fim da relação. Isso leva à concepção de Ramos (2008), mais precisamente no que diz respeito a um segundo momento do trabalho de luto5. Para o autor, esse seria um momento de transferência tumultuada, pois as defesas maníacas não seriam suficientes para negar a perda, que, admitida, ocasiona muito ódio, mas também anseio em relação ao objeto. O ódio, os desejos de retaliação e a vingança podem servir ao eu do cônjuge abandonado como auxiliares no processo de elaboração do luto pela perda do outro, pois, ao denegrir, desvalorizar e rebaixar o objeto, o eu enternece a ligação com este, e tal processo de ataque inconsciente pode chegar ao fim, pois como afirma Freud (1917/2006), quando a raiva se esgotar ou quando o objeto perder por completo seu valor, surge o sentimento de triunfo sobre o objeto.
Trata-se, enfim, de formas desesperadas de se negar o fim da relação, iniciando-se outra, baseada nas constantes brigas e desentendimentos, o que funcionaria como uma forma de manter os ex-cônjuges unidos e adiar o trabalho de luto. Talvez isso se deva também ao fato de que, na separação conjugal, o objeto perdido se comporte como um morto-vivo, morto dentro do cônjuge como par amoroso, e vivo no mundo real. Essa atitude, além de dificultar o desligamento do objeto pela expectativa de uma re-união, provoca no eu do abandonado um número infindável de enigmas a serem respondidos: "por que ele (ela) me deixou?"; "o que eu fiz de errado?", "será que ela (ele) não sente mais nada por mim?"; "o que quer de mim?"; dentre outros questionamentos.
Laplanche (1997c), em "Le temps et l' autre", discorre sobre a problemática do luto. Para o autor é necessário introduzir a categoria da mensagem para sua compreensão, porquanto a diferença entre o vivente e o morto se relativiza diante dela. Quando da morte, os significantes deixados pelo morto assumem novo status, ganham em alteridade, pois o emissor não mais existe para sustentá-los ou traduzi-los. Nesse sentido, para o sobrevivente enlutado a mensagem deixada pelo morto nunca será suficientemente compreendida ou entendida, pois, segundo o autor, "não existe muito luto sem a questão: o que ele diria? o que ele teria dito? sem a falta ou remorso de não ter suficientemente podido dialogar, escutar o que o outro tinha a dizer (p. 379)".
No caso da separação, apesar de o emissor da mensagem ainda existir, mesmo distante do eu - diferentemente do que acontece no luto por morte -, o tempo de sua resposta ou tradução ao enigma implantado é um tempo passado, perdido, ficando assim algo inacabado, incompreendido e impossível de ser recuperado. Frases genéricas como: "e se eu tivesse agido diferente?", "se ela (a outra) não tivesse aparecido? o que teria acontecido? ainda estaríamos juntos?", são alguns enigmas possíveis de serem implantados pelo ex-parceiro cujo tempo de tradução é irrecuperável e, por isso, traumático, pois o objeto já está perdido e, talvez, nunca se saiba a resposta.
Laplanche (1993a) explica que o luto causado pela morte de um ente querido poderia ser pensado ainda como uma mensagem "para sempre interrompida, irremediavelmente interrompida" (p. 757). De forma equivalente, pode-se dizer que, nos casos de luto pela separação do objeto, essa mensagem talvez pudesse ser apreendida como uma mensagem interrompida por outra - em torno da separação - cuja tradução foi temporariamente suspensa.
É que um "não te amo mais" ou "devemos nos separar" pode ser algo impossível de ser metabolizado, pois encerra o enigmático que vem do outro. Nesse sentido, sem recursos para traduzir as excessivas mensagens do ex-parceiro, o sujeito interrompe o processo de luto, fato capaz de despertar angústia semelhante à vivida em tempos precoces, quando o sujeito depositou no fundo do inconsciente aquilo que da situação antropológica fundamental não foi capaz de metabolizar.
Entende-se, assim, que há uma espécie de melancolização no processo de separação, pela impossibilidade de se fazer o luto, precisamente pela reedição ou nova proposição do enigmático que vem do outro perdido. No entanto, como explicitado, embora de maneira precária, o ex-casal empreende um trabalho de tradução, que permite realizar, retomar, ou mesmo burlar o processo de luto, recorrendo ao que se pode considerar assistentes de tradução oferecidos pelo universo cultural e outros elementos organizadores.
As Vicissitudes da Pulsão Desligada: Alguns Organizadores
Diante das mensagens do outro, a criança terá como opções, como afirma Laplanche (1993b), a tradução e o recalque. A primeira falha no processo tradutivo é denominada recalcamento originário, condição sine qua non para o nascimento do eu e da estratificação do aparelho psíquico. Em consequência, os resíduos não traduzidos da mensagem do outro, denominados pelo autor de "objetos-fonte da pulsão", serão depositados no inconsciente e permanecerão intraduzíveis, levando ao surgimento de uma pulsão, a pulsão de tradução, um constante e infindável a-traduzir (Laplanche, 1999).
Porém, ao mesmo tempo em que a ação dos objetos-fonte é estimulante ao eu - pois visa um constante a-traduzir que levaria a uma maior organização interna - ela é perigosa, tendo em vista que também forma a base da pulsão sexual de morte. Isso se deve ao fato de que a pulsão sexual não é composta somente por Eros, o lado "ligado, investido, calmo, quiescente" (Laplanche, 1988, p. 102), mas traz ainda o aspecto demoníaco, anárquico, agressivo e desligado, representado pela pulsão sexual de morte.
As pulsões sexuais de vida funcionam segundo o princípio da energia ligada (princípio de constância); seu fim é a síntese, a manutenção ou a constituição de unidades e de vínculos; são conformes ao Ego; seu objeto-fonte é um objeto "total", regulador. As pulsões sexuais de morte funcionam segundo o princípio da energia livre (princípio do zero); seu fim é a descarga pulsional total, mesmo que isto custe o aniquilamento do objeto; são hostis ao Ego, o qual tentam desestabilizar; seu objeto-fonte é um aspecto clivado, unilateral, um indício do objeto (Laplanche, 1988, p. 105).
Interessa particularmente a este estudo essa corrente organizadora da pulsão sexual de vida, que entraria em cena nas separações por intermédio dos assistentes de tradução oferecidos pelo meio social em geral. Desse modo, após a separação, talvez na tentativa de manter certo equilíbrio em torno do que se desmorona, o ex-casal recorre a alguns organizadores dramáticos.
A procura pela justiça é um exemplo. São as batalhas jurídicas referentes à partilha de bens, regras de visita, pensão e guarda dos filhos que, como palco de vingança e ataque ao ex-cônjuge, também funcionam como recurso urgente de elaboração frente ao excesso. Porém, apesar de procurarem legítima intervenção da justiça, os acordos estabelecidos diante do juiz são continuamente quebrados, e cada audiência pode transformar-se em uma reedição das cenas da vida familiar, nas quais os jogos conspiratórios, os ressentimentos e as tentativas de reaproximação transparecem.
A busca pela justiça é uma tentativa do ex-casal de dominar, organizar ou pôr limites aos excessos pulsionais gerados com a nova relação sádico-erótica estabelecida. Contudo, pelas próprias características dessa modalidade de vínculo, as consecutivas quebras dos acordos são prazerosas para os ex-cônjuges, porquanto constituiriam uma forma camuflada ou mais elaborada de manifestação do sadismo e da agressividade em relação ao ex-parceiro.
Segundo Dias e Souza (1999), outro elemento que favorece o colapso dos acordos firmados com o auxílio da justiça é o fato de grande parcela dos casais em litígio, inconscientemente, procurarem os responsáveis pelo Direito de Família, com vistas à realização da fantasia de dissolução dos conflitos e re-união do casal, baseada no arquétipo de relação afetiva considerada ideal por eles. Pensa-se que, talvez, esse mesmo desejo esteja presente quando o ex-casal procura a psicoterapia para os filhos. Isso transparece, por exemplo, na suposição dos cônjuges de que os sintomas do filho se resolveriam com a reunião do casal, suposição que leva muitas vezes a uma tentativa de sedução do terapeuta para que possa mediar a relação com o outro genitor "pelo bem" da criança (Matioli & Martínez, 2011).
É digno de nota que o papel estruturador e ordenador pode ser exercido por qualquer terceiro - não somente pelos juízes, advogados ou psicólogos -, incluindo-se aqui os adultos cotidianos que circulam no universo do ex-casal, como os amigos, os parentes próximos, os familiares do ex-cônjuge e, até mesmo Deus, terceiro transcendente, dotado de poderes e capacidades sobre-humanas que, na fantasia, poderia ser capaz de oferecer grande auxílio ao cônjuge que se sente abandonado.
A fim de se exemplificar esse papel organizador que os amigos podem desempenhar cita-se, por exemplo, os casos em que, após o término da relação, novos parceiros entram em cena, principalmente uma namorada. Nessa situação, as amigas da mulher "abandonada" partilham das mesmas fantasias em relação à "outra", que passa a ser nomeada com expressões tais como "a puta", "a vagabunda". Mas além de partilharem de tais fantasias - em uma espécie de solidariedade por identificação - as amigas oferecem novas fantasias, tais como: "ela é interesseira", "eles não vão ficar muito tempo juntos", "logo ele a trai", "ele ainda vai se arrepender", "você é muito melhor/mais bonita/mais atraente/do que ela" etc. Reais ou não, tais falas são reconfortantes para os cônjuges que se sentem abandonados, traídos ou feridos em seu narcisismo, pois seu conteúdo é capaz de fornecer suporte e organização, ao menos temporário, para as suas angústias. Esses discursos e construções hipotéticas feitas pelos amigos ou parentes próximos servem para o ex-casal como uma assistência de tradução menos traumática do que as suas próprias traduções, estas, frequentemente prejudicadas pelas atitudes autodepreciativas - o que remete novamente a algo da ordem da melancolia - comuns após uma separação.
Por outro lado, os familiares do ex-cônjuge também podem se tornar aliados nas tentativas de re-união do ex-casal. Não são raros os casos em que ex-sogras mantêm contato com a "ex" do filho se manifestando abertamente, por vezes, contra a "nova parceira", principalmente nos casos em que existem filhos do casal desfeito.
Os novos parceiros também poderão funcionar como agentes organizadores. É fato comum que o ex-casal, principalmente o homem, comece novo relacionamento imediatamente após o término de uma relação - quando isso não foi ocasionado precisamente pela infidelidade -, pois esses "outros" são capazes de ajudar a organizar melhor a sexualidade infantil dos que se separam. Um novo parceiro significa a possibilidade de se propor novos pactos, novas organizações, esperanças e menos agressividade, à medida que seria possível dar um novo destino à pulsão. Aliás, a "outra" ou o "outro" podem funcionar como uma espécie de para-angústia. Contudo, esses "outros", devido ao seu papel antitético, podem funcionar como algo totalmente desorganizador e ameaçador para o ex-parceiro abandonado, o que torna ainda mais vulneráveis os frágeis vínculos estabelecidos após a separação.
Nesse sentido, a presença da "outra" na vida da ex, que foi "abandonada", a levará a várias interrogações, tais como: "ela é melhor que eu? É mais jovem? É mais bonita? Sabe satisfazer o seu/meu parceiro? Ele vai abandoná-la também? Ele é mais feliz com ela do que comigo? Ela o deixará porque é muito velho para ela? Ela gosta mesmo dos meus filhos? Meus filhos gostam dela?".
E, ainda, sua presença materializa a falência da relação, o fracasso no suprimento das demandas do ex-parceiro, o que não deu certo, o que não durou, e o não é sempre excesso, é imetabolizável. Muitas vezes a "outra", sozinha, assume a culpa pela falência da relação que há muito tempo era anunciada. Suponha-se que para o eu é menos dolorosa a ideia de que o problema, o erro ou a falha que levou ao fim da relação seja um evento externo e não uma causa interna à relação, como uma falha, uma ausência ou o não suprimento das demandas do outro, pois, assim, a culpa não seria do eu, mas da "outra". Por essas razões a "outra" é atacada, desvalorizada, constantemente punida e castigada pelo mal que infringiu ao "destruir" a família, por vezes de maneira implícita, por meio de mensagens sutis, em outras, de forma explícita e até agressiva frente aos filhos e ao ex-cônjuge. "Vagabunda" e "biscate", então, serão nomes comuns a ela atribuídos. O que é importante salientar dessas formas de tratamento é o fato de a rival não ser convocada pelo substantivo que a nomeia, pois o nome designa algo assimilado e compreendido pelo psiquismo, que é capaz de representá-lo, mas essa "outra" deixou um resíduo não metabolizado, tornando-se, assim, um fiel depositário dos fantasmas familiares.
Além dos novos parceiros, o dinheiro funciona como outro importante elemento desorganizador da sexualidade infantil do ex-casal. Sabe-se que, após a separação, certos acordos em relação ao dinheiro tornam-se necessários, como a definição do valor da pensão para os filhos ou ex-cônjuge, além da divisão de bens entre o ex-casal, estabelecidos, na maioria das vezes, na presença de um juiz. A mediação da justiça é necessária - viu-se que representa um organizador -, pois o dinheiro é uma moeda de troca entre os ex-parceiros, também para a vingança. Com a justificativa do pagamento da pensão aos filhos, embora justa e necessária da parte de ambos os pais, grandes disputas são iniciadas, muitas vezes por um período de tempo bastante duradouro: "prefiro gastar R$10.000 mil com advogados, do que pagar 1.000 reais pra ela [ex-mulher]", disse certa vez um pai, ao se referir à pensão que deve pagar para a filha.
É muito interessante o fato de que o dinheiro marca não somente as relações entre ex-marido e ex-mulher, mas também a relação entre a "outra" e os filhos. Para os filhos, de modo geral, o investimento financeiro dos pais em relação a eles é equivalente ao investimento libidinal. Dessa forma, os pais devem gastar o mesmo valor em dinheiro com os próprios filhos, que gastam com as novas parceiras, como uma espécie de garantia de que não serão preteridos como a mãe. Tem-se aí outro nível do enigmático que se formula também para os filhos, no qual o dinheiro, nesse sentido, será uma espécie de lastro, que confirma que não serão abandonados como a mãe. Aliás, a equivalência de valores gastos com os filhos e a "outra" geralmente se estende em relação ao tempo de atenção parental, por isso se diz que tempo é dinheiro!
Quer-se crer, ainda, que na tentativa de apaziguar os sentimentos de culpa que surgem em relação ao novo relacionamento os pais utilizem o dinheiro para seduzir os filhos, transformando sentimentos de culpa em presentes. No entanto, imagina-se que a satisfação proporcionada pelos presentes recebidos seja apenas temporária, e os filhos continuem na expectativa de receber dos pais aquilo que eles não podem dar - a re-união e o fim dos conflitos parentais - fantasia muito presente em filhos de pais separados, principalmente se o relacionamento do ex-casal for cordial.
Volta-se às características sádico-eróticas da relação do casal e à pulsão sexual de morte, representada pelo sexual desorganizado ou não unificado, o que, segundo Laplanche (1997d), se esconde no funcionamento mental, precisamente sob a máscara da destrutividade, pois a pulsão sexual de morte fica exacerbada, ocasionando manifestações de natureza agressiva como as perseguições, as brigas, as fantasias de retaliação. É fato que essa agressividade manifestada pelo ex-casal contém elementos sexuais, embora não explícitos, mas nas entrelinhas do discurso, atitudes e mímica do ex-casal durante as frequentes discussões, desentendimentos, brigas e até agressões físicas por eles protagonizadas - especialmente nos momentos precedentes e logo após a separação efetiva. Referidas cenas podem conter significantes sexuais invasivos, excessivos diante de sua capacidade metabólica. É o enigmático que transborda e se desdobra em relação ao ex. Como uma espécie de abuso não somente do corpo (por meio das agressões físicas) ou da imagem narcísica (mediante xingamentos, insultos), mas de sua capacidade de codificação, os ex-cônjuges lançam um ao outro um sem-número de mensagens enigmáticas capazes de gerar intensa angústia, pois os interrogam a partir de significantes enigmáticos que podem, inclusive, lançá-los novamente na situação originária, como apontado, ou em outras vivências igualmente precoces.
A dor sentida pelos ex-parceiros referente ao fim da união tem características complexas, não é decorrente apenas desse fato único, mas se mistura a fantasmas mais primitivos. Por exemplo, quando a separação é motivada pela infidelidade de um dos cônjuges, a dor sentida pelo cônjuge traído pode ser intensificada devido à capacidade de mobilização, em termos fantasmáticos, de traições experimentadas em tempos precoces, como nas vivências edípicas de exclusão, experiências que, pelo traumático, foram depositadas do inconsciente agindo como os objetos-fonte da pulsão. Daí a busca comum por castigos, retaliação e vingança expressa nos ataques, desvalorização, perseguição ao ex-parceiro traidor, este último considerado um inimigo digno de punição. E como o castigo desejado para o objeto provém do superego que, segundo Laplanche (1995, p. 330) "é tão cruel, tão sádico, como as pulsões que pretende julgar e reprimir", o castigo fantasiado geralmente assumirá caráter violento e obsceno, como a falência, as doenças, os acidentes ou as decepções com o novo objeto.
Porém, segundo Bleichmar (2005), a agressividade e os vínculos sádico-eróticos são parte indispensável dos laços neuróticos que unem alguns casais. Desse modo, não haveria uma relação direta entre a pulsão sexual de morte e a agressividade manifesta durante as brigas entre os ex-casais. Torna-se compreensível, então, porque um grito ou xingamento dirigido ao ex-parceiro - o que culturalmente é considerado uma manifestação agressiva - pode ser um recurso de ligação, um organizador que estaria do lado da pulsão sexual de vida. Trata-se, crê-se, de recursos utilizados pelos ex-parceiros como uma espécie de defesa frente ao surgimento de atos mais desorganizados, como as agressões físicas, as ameaças com facas ou armas de fogo, as explosões de ira em meio público, estas, sim, atuações de algo mais desorganizado, mais primitivo ou indiferenciado, que acarretam consequências penosas, como a prisão do ex-cônjuge agressor, processos judiciais, perda da guarda dos filhos, indenização por danos morais etc. Contudo, não se pode deixar de observar que é precisamente nessas situações mais extremas que o sexual comparece indiscutivelmente.
Talvez seja por isso que muitos ex-casais intercalam tais manifestações agressivas dirigidas ao ex-parceiro com manifestações de sentimentos afetuosos após a separação, o que relembra o sentimento de "amor, mas também (de) ódio" descrito por Losso (2003), ou, como expõe Ramos (2008), a segunda fase do processo de luto, aquela em que o ódio e o anseio em relação ao objeto se intercalam.
Assim, o amor pode se apresentar sob a máscara do ciúme, da sedução, da saudade, do bom humor e da receptividade incomuns antes da separação, das vestimentas e dos perfumes caprichosamente escolhidos para os momentos de encontro com o ex, dos encontros "casuais" e dos assuntos urgentes para serem discutidos juntos. É interessante notar que, nesse jogo de sedução para ter o ex de volta, estão as mensagens enigmáticas ligadas à sexualidade infantil do ex-casal, referentes, por exemplo, ao desejo de posse, de triunfo sobre o objeto. E, ainda, sabendo que os orifícios do corpo, como os olhos e os ouvidos, são também zonas erógenas, outras modalidades de contato entre os ex-cônjuges ficam exaltadas, como forma de obter satisfação pulsional ainda após a separação. É muito ilustrativo o exemplo do ex-marido que, sempre que se aproximava da casa da ex, sentia fortes dores abdominais e uma vontade incontrolável de defecar, inclusive, na casa dela.
Fragilizados pelas vivências traumáticas da separação, os ex-cônjuges substituiriam o prazer genital por vias pré-genitais, o que explicaria as corriqueiras ligações anônimas utilizadas por muitos amantes a fim de apenas ouvir a voz do amado, ou o prazer voyeurista dos encontros "casuais".
Por fim, um dos destinos mais complexos da pulsão desligada é a relação com os filhos.
Os Filhos do Divórcio
Viu-se na introdução que, para a criança, o mundo adulto é um local repleto de significados que transbordam sua capacidade de controle e apreensão, justamente porque estão relacionados à sexualidade do adulto, transmitida enigmaticamente à criança (Laplanche, 1987).
A qualidade excessiva dos vínculos estabelecidos após a separação, junto à impossibilidade de o ex-casal oferecer um contorno adequado à libido exacerbada com o fim da união, pode transformar não apenas as mensagens antes dirigidas aos filhos, mas a própria relação com os filhos de modo geral. Em alguns casos, a única saída possível para os ex-cônjuges é tomar o corpo dos filhos como fonte de satisfação substituta das antigas satisfações proporcionadas pelo ex-parceiro.
Para Wallerstein e Resnikoff (1997), as novas relações estabelecidas entre pais e filhos após a separação podem remeter os filhos a diferentes posições, de cônjuge substituto, confidente, conselheiro, irmão, pai, cuidador, amante, aliado dentro das guerras matrimoniais, podendo, ainda, funcionar como uma consciência estendida ou um controlador egoico. Veja-se um exemplo dessas novas posições: "ele entende tudo o que eu digo", declarou o executivo sobre seu filho de três anos; "às vezes eu converso com ele por horas" (p. 137). Pode-se acrescentar a isso o lugar enigmático que muitas vezes se delega à criança na falta do pai: "você é agora o homenzinho da casa", disse uma mãe para seu pequeno filho. E se sabe da multiplicidade de sentidos que essa afirmação pode ter, principalmente em torno das questões edípicas.
Trata-se de exemplos do excesso e do movimento pulsional que induzem os pais a se dirigirem aos filhos com uma demanda diferente daquela que eles podem suprir, como o da criança de três anos que não tem condições de assumir uma posição de confidente, ou mesmo, de ocupar o lugar do homem da casa, nem mesmo de homenzinho! O conflito se dá porque, apesar de ser uma demanda excessiva para a criança, que ainda deve ser cuidada pelos pais, é, ao mesmo tempo, uma proposta sedutora, pois, de alguma maneira, se está convidando a criança a participar de algo que antes era exclusivo de outro adulto, por exemplo, a ocupar o lugar do parceiro ausente na cama do casal6 (Matioli & Martínez, 2011). Há nisso uma espécie de dialética. Ao traduzirem as mensagens um do outro, o resultado da tradução do ex-casal funciona para os filhos como uma nova mensagem, e, assim, o que é organizador para os pais é, por oposição, desorganizador para os filhos.
Muitos outros exemplos podem ser pensados em que pais e mães, após a separação, pela incapacidade de dar um destino mais saudável ao conteúdo pulsional gerado com o fim da união, endereçam aos filhos mensagens sedutoras e, ao mesmo tempo, assustadoras. São mensagens que arrancam o infante da antiga relação de apego e o lançam num plano sexual excessivo e sem códigos capazes de tradução.
Esse plus de sexualidade dirigido aos filhos por meio das mensagens parentais - para utilizar uma expressão de S. Bleichmar (2005) - agiria de forma traumática e obrigaria a criança a encontrar novos códigos para dar conta dessas mensagens. Contudo, como dito, nem sempre a tradução será possível, principalmente quando essas mensagens se apresentarem sob a forma de intromissões.
Nesse sentido, a criança terá que lidar não apenas com a carência de códigos capazes de traduzir tais mensagens de grande carga libidinal, mas também e, sobretudo, com as especificidades desse momento traumático. Junto à necessidade de significar essas mensagens surge, como fator complicador, o imperativo de novos processos de metabolização que vão além da tradução da nova experiência, como os processos de tradução e retradução das antigas representações da relação parental e, por que não, da reedição da situação antropológica fundamental também dos filhos.
Ante o exposto, representações como "papai e mamãe se amam e por isso estão juntos" deverão sofrer um rearranjo a fim de que a nova realidade possa ser representada, ressignificada. Porém, como passar de "papai e mamãe se amam e por isso estão juntos" para a retradução "papai e mamãe não se amam mais e por isso se separaram", sem a formação de resíduos traumáticos expressos de modo fantasmatizado em frases como: "se meus pais deixaram de se amar, eles também podem deixar de me amar?", "se meu pai abandonou minha mãe, ele também vai me abandonar?", "se ele arrumar uma namorada ele vai se esquecer da gente?". Não seria a emergência de enigmas como esses que tornaria improvável uma retradução da relação parental sem prejuízos de ordem narcísica aos filhos ou prejuízos na relação com os pais? Em resposta a essas impossibilidades, como as de preservação do eu, das identificações e representações parentais, uma das alternativas para a criança é desenvolver inúmeros sintomas e inibições, manifestações diversas de sofrimento psíquico.
A Sedução: Comentários Finais e um Pouco da Clínica
Viu-se que uma das tentativas organizadoras do sofrimento dos pais após a separação gira em torno das alternativas edípicas, precisamente para substituir o lugar vazio deixado pelo ex-parceiro. É assim que os pais procuram nos filhos refúgio, auxílio ou continência à expressão da libido antes destinada ao ex-cônjuge, convocando-os a ocupar posições de cônjuge substituto, de companheiro, do "homem da casa", dentre muitos outros lugares prováveis de serem oferecidos à criança, mas de difícil metabolização, pois, de certa maneira, ocupar o lugar do pai, por exemplo, é ocupar o lugar do amante. Nessa situação, o excesso libidinal dos pais dará um caráter fortemente erótico para a relação com a criança, que responderá, por sua vez, também edipicamente a essa sedução. Na realidade, os pais não levam o filho para sua cama, mas um objeto substituto para a sua satisfação, satisfação parcial, pré-genital, imperando prazeres secundários - semelhantes aos ditos prazeres preliminares mencionados por Freud (1905/1996a): a companhia, o toque, o calor do corpo etc.
Contudo, nessa situação, a ausência do pai, por exemplo, aproxima o fantasmático da realidade provocando novo excesso na criança, o que demanda novas elaborações. Nestas, muitas vezes, a única saída se dá pelos caminhos do sintoma, este também como um organizador possível.
Tem-se, assim, um adulto que seduz a criança e, ao fazê-lo, a submete a um excesso sem possibilidades tradutivas imediatas. É nesse momento que a clínica tem por função ajudar a criança a fazer traduções e retraduções organizadoras e a formular enigmas aí onde a mensagem parental se instalou por intromissão.
Clara7
Desde a separação dos pais, Clara, que contava então com um ano de idade, dorme na cama da mãe. Já se passaram quase seis anos e a mãe relata a sua dificuldade em deixar a filha sair de sua cama. Assim se expressa: "durmo com Clara desde que me separei. Sei que tenho que deixar Clara dormir no quarto dela, mas na hora eu não deixo ela sair, e ela gosta (risos)", e "sinto um vazio (leva a mão ao peito) quando ela não dorme comigo".
Sem dúvida que a presença da filha no leito materno pode ser muito prazerosa, pois, de certa forma, o corpo da filha pode ser tomado masturbatoriamente. É "como se a mãe - afirma Jeanneau (1985) - usando o corpo da criança para se satisfazer sexualmente, ou mais exatamente para nele instalar suas decepções masturbatórias, transportando com ela as incompletudes narcísicas compensadas, estabelecesse nesse corpo jovem um mesmo vinculo autárquico" (p. 262). Ainda de acordo com Martínez e Mello Neto (2007):
Eis, então, como se prepara na futura histérica a resposta sexual ao sentimento de abandono, e a complacência corporal e o sentimento de uma estranha solidão na presença do outro. Aí também se prepara a precocidade da decepção genitalizante, para a qual a cena primitiva será o disparador. O corpo da histérica é, então, um corpo solicitado e excitado, mas ao mesmo tempo, decepcionado precocemente. E trata-se de um corpo que em seu despertar deve pôr em ato uma cena alucinada, a sua própria e a da mãe (p. 90).
Esse algo tão prazeroso, percebeu-se no riso da mãe, parece implicar um apelo à cumplicidade de quem escuta sua "confissão". Por outro lado, permitir que a filha deixe o leito nupcial para dormir em sua própria cama seria assumir a separação e a solidão, o que talvez reativasse enigmas relacionados ao abandono primário, por exemplo. Assim, é necessário manter uma situação de cunho edípico com a filha, para evitar o vazio anunciado na sua fala.
Por outro lado, e talvez como complemento dessa relação intensa e perturbadora com a pequena filha, a mãe a agredia verbalmente e com frequência. Dizia chamar Clara de "imprestável" e também a comparava ao pai na sua lerdeza: "é lerda igual ao pai". Talvez Clara não desse conta de satisfazê-la, como o pai...
Sem dúvida que parte dessa agressividade erótica materna está endereçada diretamente ao pai de Clara. Assim expressa seu ex-marido:
Depois da separação ainda brigamos muito. Por quatro vezes fomos parar na delegacia. Na última vez, quando chegamos à delegacia ela estava algemada, pois tentou quebrar a porta do meu local de trabalho. E, ainda: Ela me ofendeu moralmente (...) me chamou de bunda mole e covarde, aí perdi a paciência, a paralisei no chão e dei três safanões no rosto dela, e avisei que dá próxima vez ia bater de mão fechada pra quebrar seu maxilar e nem cirurgião ia resolver o problema.
É que o excesso de amor, no seu sentido bastante amplo, implica a necessidade de castigar o objeto pelo tempo de privação. Aliás, o ex-marido se refere a anos da separação efetiva dos corpos, embora se note que o ex-casal ainda permanece unido por meio de uma relação sádico-erótica. A agressividade desses novos laços é parte indissociável da sexualidade infantil do ex-casal e, graças aos insultos desvirilizantes "bunda mole e covarde", vai ser possível refazer uma verdadeira cena primária, talvez na tentativa de se introduzir violentamente no corpo do outro.
Havia também a presença da "outra" reinstalando o triângulo edípico e os sentimentos de exclusão e ódio expresso nas seguintes frases da mãe de Clara: "tenho quase certeza que ele estava com aquela retardada vagabunda antes do término do nosso casamento"; e "sentia vontade de dar um cacete nela. Não sei como consegui me controlar, minha vontade era de esganá-la e vê-la morrer".
Dentro dessa tumultuada relação é possível destacar, ainda, a analidade. "Não tinha nem bosta no cu pra cagá", diz a mãe de Clara, ao se referir à falência econômica do ex. É interessante que a potência do ex-marido aparece misturada fantasmaticamente às fezes, o que, por um lado, indica uma tentativa de organização pré-genital dos vínculos estabelecidos após a separação, e, por outro, alude a uma desvalorização do objeto. Seriam formas de retaliação, de elaboração do luto, de triunfo sobre o objeto, precisamente para dar um destino à pulsão desligada.
Porém, ao mesmo tempo em que esses atos e falas eram capazes de dar certo contorno à sexualidade infantil do ex-casal, para Clara, espectadora de tais cenas sádico-eróticas e destinatária de grande parte dessa pulsão não ligada dos pais, tal sexualidade era ainda pouco conhecida e assustadora, precisamente por sua insuficiente capacidade tradutiva, própria da constituição infantil. Desse modo, Clara traduzia as mensagens maternas de forma bastante precária ou, em outras palavras, de forma muito próxima do enigmático - daí seus resíduos intraduzíveis se converterem em sofrimento psíquico manifesto por meio de sintomas que levavam a pensar em algo obsessivo, tanto em relação aos atos repetitivos com seus rituais de toque, quanto aos "pensamentos ruins", estes ligados à morte de pessoas queridas como a mãe, a avó, a madrinha. Sobre esses sintomas resumiram-se as falas de Clara ao longo das sessões:
Ah, tenho umas manias, que tem que relar nas coisas [tocar duas vezes nos cadernos, nos brinquedos, ou qualquer outro objeto próximo a ela] e fazer gestos [movimentos de esfregar as mãos ou estalar os dedos]. Os pensamentos ruins é que minha mãe vai morrer, vejo um caixão na cama dela, mas ela fica nervosa e briga quando falo essas coisas.
E numa outra sessão:
Os pensamentos ruins continuam, eles são do diabinho (...) vieram junto com a ansiedade, a falta de ar e as manias, eles [os pensamentos] dizem que vai acontecer alguma coisa ruim, mas quando não faço as coisas que eles mandam [os toques], não acontece nada, daí só faço de vez em quando, quando eles falam muito.
Não se afirma se a gravidade dos sintomas está ligada à precocidade da separação parental, à relação tumultuada dos pais, à falência dos assistentes de tradução oferecidos pelo meio à Clara, ou ainda, ao conjunto desses fatores. Simplesmente se sabe que a pequena Clara sofre e parece estar sozinha na gravidade de seus sintomas.
Um fragmento do tratamento ajudará a ilustrar, especificamente quando entra em cena uma boneca que a oferece à psicoterapeuta (P):
C: Cheira. Viu?
P: O quê?
C: A boneca tem cheiro de cu.
P: Por quê?
C: Eu que vou saber.
P: Mas o que ela poderia ter feito para ficar com cheiro de cu?
C: Ah, vai vê ela cagou nas calças...(risos).
Parece-nos que o "cheiro de cu" representa o cheiro de fezes, não pela "cagada" feita pela boneca/Clara, mas, talvez, feita pelos pais ou por um deles em especial. Em uma das sessões realizadas com a mãe, algo semelhante ao enunciado por Clara é relatado. Ao se referir ao ex-marido, relata que, depois de falido, comprou um carro zero e, por não ter quitado as prestações, acabou perdendo-o; agora, diz ela, "está andando de gol velho, gol que era do seu pai que morreu há seis meses." A mãe de Clara imagina a dificuldade do ex, de andar de carro velho, pois ele, assim como a outra, "vivem de aparência". Hoje, diz ela, o ex-marido: "não tem nem bosta no cu pra cagá." Eis a presença marcante da analidade no discurso familiar e uma admirável equivalência com o dinheiro, as fezes e as crianças ou bonecas. Nessa frase da mãe de Clara, as fezes aparecem confundidas com a potência do ex-marido, que, atualmente falido, não tem nada.
Pensa-se que Clara, identificada com a mãe, traduz essa fala materna em "cheiro de cu", talvez, cheiro da falência do pai, não apenas financeira, como refere a mãe, mas num duplo sentido: a falência moral e como provedor. Em várias brincadeiras de faz-de-conta, ele é representado como um pai ausente (quase nunca vê a filha), que esconde dinheiro da família e que tem outra. A outra, na fantasia de Clara, está grávida.
Quanto à falência do pai enquanto provedor, diz Clara: "ele não paga mais minha natação, mas você bem que podia falar pra ele me dar um dinherinho né, assim eu podia voltar a nadar, é tão gostoso, hum", ou "essa sandália foi meu pai quem deu, mas faz tempo, tá apertada já. Agora ele quase não compra nada, porque ele tá sem dinheiro." Em uma das sessões realizadas com Clara, quando lhe foi perguntado se ela tinha visto seu pai no final de semana, ela responde em tom agressivo: "Que pai?" Talvez no lugar do pai tenha restado para ela e a mãe apenas um "cu" mal-cheiroso e cagado, como indicativo de um ódio erótico.
Forçar o pai a ver a filha, a ser mais presente, como era o desejo materno e também o de Clara, não podia ser atendido. O pai disse que não podia ver a filha, pois, segundo ele, buscá-la impunha a necessidade de mudar sua rotina, planos e metas que foram cuidadosamente estabelecidos em busca de uma retomada do crescimento profissional. Não havia espaço para Clara na vida do seu pai, ao menos naquele momento de sua vida, pois ele dizia: "tenho quase cinquenta anos e ainda não tenho nada, daqui a pouco estou velho e o que vai acontecer? Pois a vida é assim, um pai cuida de 20 filhos, mas 20 filhos não cuidam de um pai!" Os fantasmas do envelhecimento e os problemas econômicos assombravam o pai de Clara, que tentava se reorganizar. Conta que, quando se separou, entrou em depressão, não tinha vontade de nada, pois gostava muito da ex, mas chegou à conclusão de que essa relação não daria mais certo. Diz, ainda, que quando se separaram tinha uma dívida de mais de 150 mil reais, havia perdido tudo, inclusive por dívidas da ex-mulher. Nesse momento, então, não era prioridade para ele atender às expectativas da filha e da ex de ser um bom pai.
Por outro lado, supõe-se, então, que sua recusa e/ou impossibilidade de exercer seu papel paterno dificultava o corte da relação mãe-filha. Contudo, quando a mãe começou a levar seu namorado em casa, ele dormia no chão do quarto enquanto Clara permanecia na cama, junto com a mãe. A mãe de Clara não permitia que ninguém realizasse o corte nessa relação, e assim, a "castração simbolizante" - para utilizar uma expressão de Bleichmar (1993) - não podia ser efetivada.
No começo dos atendimentos, Clara não conseguia permanecer o tempo das sessões sem interrompê-las, ao menos uma vez, para abrir a porta sob o pretexto de querer mostrar para a mãe suas produções ou contar-lhe algo supostamente importante. Havia, nessa presença da mãe, algo que parecia excessivamente invasivo: Clara lhe pertencia, seu corpo a acalmava na hora de dormir e isso, viu-se, desde a separação.
Mas, volta-se à boneca para falar da outra que, em suas brincadeiras, além de aparecer grávida, era descrita por Clara como "a biscate". Isso lembra a denominação de "vagabunda", da mãe, o que possivelmente funciona para Clara como um enigma e instala um grande conflito, pois ela desejava ter um irmão. Contudo, durante uma brincadeira de faz-de-conta, Clara finge que a boneca é seu irmão e, na sequência, o ataca violentamente, com tapas e socos, joga-o no chão, pisoteia-o e, por fim, chama-o de "irmão de merda".
Além de pensar na fantasia anal aí presente, que remete à teoria infantil da cloaca, a que Freud (1908/1996b) se refere em "Sobre as teorias sexuais das crianças", deve-se perguntar, então: que cheiro teria esse "irmão de merda", se não o "cheiro de cu" enunciado por Clara em sessões anteriores? Seria ele filho da mãe, filho do pai ou filho da puta?
Por outro lado, como filha única, Clara manifesta grande aversão quanto à possibilidade de que seu pai tenha outro filho, pois seria, diz, um "irmão de merda". Desejado, caso viesse da parte de sua mãe, mas odiado, da parte do pai, Clara dizia que esse meio-irmão, caso viesse a nascer, seria um irmão "cagado, melado, rolado na bosta", pois, segundo seu tio, "tem crianças que não nascem, mas são cagadas." É a outra, então, quem tem o cu sujo e vai cagar um "irmão de merda"? Essa fantasia parece ser o resultado de uma tentativa de tradução muito próxima do enigmático, uma tradução bastante precária ou insuficiente para dar conta de sua angústia. Isso justifica as repetições durante várias sessões, em que Clara talvez esteja tentando buscar uma melhor tradução, uma historicização que dê conta do traumático.
Clara também finge estar grávida e delega à psicoterapeuta o papel de uma mãe que não quer que ela tenha o filho. Uma mãe que deseja que ela "faça igual à moça da novela". Trata-se da personagem Fátima Lobato, da novela Passione, que não só faz um aborto, que quase a leva à morte, após ter sido rejeitada pelo pai da criança, mas descobre que sua irmã é, na realidade, sua mãe. Uma mãe que havia sido separada do pai. A "moça da novela" é, então, uma moça sem pai.
Note-se, também, que a expressão "igual à moça da novela" parece funcionar como uma assistência de tradução para Clara, pois ela a utiliza no lugar da palavra aborto, para denominar a morte de um bebê que ainda nem nasceu. E quem ainda não nasceu é precisamente um meio-irmão fantasiado, o que, por si mesmo, já é traumático para Clara. No decurso do faz-de-conta, Clara se recusa a pronunciar a palavra "aborto", nomeada pelos psicoterapeutas e, questionada a respeito, ela esconde a cabeça entre os travesseiros e diz: "mas não é feio?"
É que a palavra aborto talvez carregue a marca de um duplo desejo. Por um lado, vitimizar o irmão, tal como a mãe faria com a outra: "dar um cacete(...) esganá-la e vê-la morrer"; por outro, um filho gerado pela própria Clara, com o pai, e ambos eliminados com o aborto. Tratar-se-ia, talvez, ainda, da fantasia de engravidar da própria mãe? Não se sabe.
Durante uma das sessões Clara interrompe o faz-de-conta e pergunta: "Com que idade eu vou poder ter um filho, com 12, 15, 16? A minha vizinha tá grávida, sabia? Ela tá com uma barriga linda! E ela deve ter uns 14, 15, 16 ou 17 anos".
Esses recortes da história de Clara são capazes de exemplificar como os filhos de pais separados são levados a iniciar uma multiplicidade de traduções e retraduções daquilo que os invade como excesso, após a separação. Tentativas de tradução frente à intensidade dos conflitos parentais que podem ser empreendidas graças aos assistentes de tradução que, de alguma maneira, o meio ofereceu a Clara.
Contudo, nesse trabalho de tradução algo parece ficar claro, algo que não cheira bem, algo sujo. Talvez, ao final de contas, a criança "cagada" das fantasias de Clara seja ela mesma. Prova de amor para a mãe, para dizer que ela não é "imprestável" como o pai, que nem bosta tem!
Para finalizar, fazem-se algumas observações sobre a história e o tratamento de Clara. Nas circunstâncias do sofrimento de Clara, tentou-se atuar como suporte dessa função simbólica de tradução na análise, para proporcionar novas organizações psíquicas. Junto aos assistentes de tradução utilizados por Clara, como a boneca, o cu e o cheiro, conseguiu-se poucos avanços, porém, alguns significativos. Clara parou de interromper as sessões para falar com a mãe, passou a guardar seus brinquedos, parecia mais tolerante, pois parecia aceitar que nem tudo ocorria conforme seus desejos. Seus sintomas se reduziram, percebeu que nada de ruim acontecia quando não se sujeitava aos "pensamentos ruins". Quanto à mãe, mesmo resistente, instalou Clara, ainda no seu quarto, mas em cama separada. Apesar de o espaço físico criado entre mãe e filha ter sido pequeno, ele denotava um grande espaço simbólico, espaço que se abria para Clara com a promessa de uma nova organização mental.
De sujeito sujeitado às mensagens enigmáticas e traumatizantes provenientes do fim da relação dos pais como casal, vê-se Clara tentar se tornar sujeito agente, ativo frente ao que recebe do outro, buscando suas próprias autoteorizações, novas traduções e retraduções. No meio dos seus sintomas, é o que toda criança pode fazer.
Referências
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Recebido em 21 de setembro de 2011
Aceito em 20 de setembro de 2012
Revisado em 02 de novembro de 2012
1 Talvez não devamos nos referir a um ex-casal, porque no divórcio interminável o casal se mantém unido sob outras bases, mesmo que sejam infantis.
2 Uma sedução, diria Laplanche, do adulto em direção à criança que, ao cuidá-la, lhe transmite sua sexualidade enigmática: "agora você é o homenzinho da casa", diria uma mãe ao seu novo companheirinho de leito, convocando a criança a um trabalho de deciframento.
3 Laplanche (1992) parte da ideia que a sedução focal proposta por Freud é algo um tanto limitado, uma sedução restrita. Freud considerava a etiologia da histeria como algo exclusivamente resultante de fatores exógenos, ou seja, somente a partir da reativação de uma lembrança de sedução que se originava do trauma. Com o abandono parcial da teoria do trauma de sedução (apenas parcial porque a fantasia é seu complemento), Freud, então, passa a considerar outros aspectos, como a influência dos fatores endógenos, concernentes ao indivíduo, aspectos biológicos, as pulsões, no que se refere à sexualidade infantil, no desenvolvimento da histeria. Esse novo enfoque dado à fantasia também teve seu valor, uma vez que a ideia de pai perverso foi substituída pelos cuidados corporais direcionados à criança, que originam o prazer sexual, dando assim uma base concreta à fantasia. Contudo, considera que Freud enfatizou, na fantasia, a questão genital, esquecendo-se da erogeneidade anal e oral, isto é, de uma sexualidade mais genérica e sutil, o que indica que essa teoria da sedução poderia ter sido melhor desenvolvida. E é isto que este autor se propõe a fazer em sua teoria da sedução generalizada.
4 No artigo Da transferência: sua provocação pelo analista, Laplanche (1993b) sustenta que a criança, frente ao enigma proposto pelo adulto, visa controlá-lo ou traduzi-lo por meio de um duplo fechamento da mensagem do outro: "fechamento do lado do que dela pode ser traduzido, teorizado, isto é, ideologizado. E também fechamento por confinamento, por recalcamento do resíduo anamórfico das mensagens, isto é, daquilo que resistiu à simbolização" (p. 81).
5 O primeiro momento consiste na notícia da perda que, apesar de ser registrada, é negada pelo sujeito com auxílio das defesas maníacas que estão exacerbadas. Quanto ao terceiro, diz respeito à elaboração da perda e do desinvestimento do objeto.
6 Embora marcantemente frequente, é muito interessante apontar que não é algo exclusivo das situações de separação; muitos casais levam a criança para sua cama. Isso nos faz pensar que, dentro das possibilidades organizadoras do sexual do casal, os arranjos edípicos ocupam um lugar importante e constante
7 Clara, nome fictício, foi atendida semanalmente durante um ano na clínica. Os seus pais, que também foram atendidos concomitantemente, mas a cada dois meses, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido permitindo a utilização do material das sessões em pesquisa de mestrado (Matioli e Martínez, 2011), que contou com a aprovação do Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá, em junho de 2010.