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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.27 São Paulo ago. 2013

 

História de vida judicial: reflexões a partir da vivência de penas alternativas

 

Judiciary life history: reflections from the experience of alternative sentences

 

Historia de vida judicial: reflecciones a partir de la vivencia de penas alternativas

 

Histoire de la vie judiciaire: réflexions à partir de l'expérience des peines alternatives

 

 

Marina Wanderley Vilar de CarvalhoI; Teresa Cristina Othenio Cordeiro CarreteiroII

IPsicóloga graduada pela Universidade Federal de Pernambuco, especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Mestre em Estudos da Subjetividade pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente trabalha na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. mawvilar@yahoo.com.br
IIGraduada em Psicologia Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mestrado Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Paris 7. Atualmente é pesquisadora do CNPq e Professora Titular da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil, e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma Instituição. tecar2@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este texto explora as relações com a justiça estabelecidas por pessoas que estiveram ou estão cumprindo "penas alternativas". Discute-se, inicialmente, o que representa esta modalidade penal e, posteriormente, parte-se para a análise baseada em pesquisa cuja metodologia se apoiou na historia de vida judiciária. A análise das narrativas serve de base para questionarmos as "modulações" que a justiça assume na vida daqueles capturados pelo sistema judicial: as práticas do Poder Judiciário moldam-se a cada situação de encontro entre um cidadão e a instituição justiça; este encontro entre um primeiro que decide sobre a vida do segundo parece tomar a forma de mecanismos modulatórios da existência. O texto termina com uma discussão psicanalítica sobre justiça e sobre a importância de construirmos outras formas de resolução de conflito, a partir de uma perspectiva ética.

Palavras-chave: Penas alternativas, História de vida, Judicialização, Produção de subjetividade, Psicologia Política.


ABSTRACT

This text explores the relations established with the justice by the ones who had served or have been serving "alternative sentences". It discusses, initially, what this penal modality represents and, thereafter, it goes to an analysis based on a research whose methodology focused on each individual's judiciary life history. The analysis of the narratives works as the basis for us to question the "modulations" the justice assumes in the life of those captured by the judiciary system: the practices of the Judiciary Power are modelled on each encounter situation between a citizen and the justice institution; such encounter being between a first one who decides about a second one's life seems to take the form of a modulatory mechanisms of existence. The text ends with a psychoanalytical discussion about justice and the importance of building other forms of conflict resolution, from an ethical perspective.

Keywords: Alternative sentences, Life history, Judicialization, Subjectivity production, Political Psychology.


RESUMEN

Este texto explora las relaciones establecidas con la justicia por las personas que estaban o están cumpliendo "penas alternativas". Inicialmente será presentado lo que representa esta modalidad penal y luego será hecho un análisis cuya metodología se apoyó en una investigación fundada en la historia de la vida judicial. El análisis de las narraciones sirvió como base para el cuestionamiento de las "modulaciones" que la justicia asume en la vida de estas personas capturadas por el sistema judicial. Las prácticas del Poder Judicial se adaptan a cada situación encontrada entre un ciudadano y la institución judiciaria. Este primer encuentro entre una primera persona que decide sobre la vida de una segunda parece tomar la forma de mecanismos modulatorios de existencia. El texto termina con una discusión psicoanalítica sobre la justicia y la importancia de crear otras formas de resolución de conflictos a partir de una perspectiva ética.

Palabras clave: Penas alternativas, Historia de vida, Judicialización, Producción de subjetividad, Psicología Política.


RÉSUMÉ

Cet article explore les relations établies avec la justice pour les personnes qui sont ou ont été au service des « peines de substitution ». Il est soutenu, d'abord, quel est ce mode pénale et ensuite nous allons à l'analyse basée sur la recherche dont la méthodologie a été basée sur l'histoire de la vie judiciaire L'analyse des récits est la base pour remettre en cause les « modulations » que la justice prend dans la vie de ceux qui sont pris dans le système judiciaire: les pratiques de la forme de la magistrature à chaque situation de la rencontre entre un citoyen et l'institution de la justice ; Cette rencontre entre un premier décide de la durée de vie de la seconde semble prendre la forme de mécanismes modulateurs de l'existence. Le texte se termine par un débat psychanalytique sur la justice et l'importance de la construction d'autres formes de résolution des conflits, dans une perspective éthique.

Mots clés: Peines de substitution, L'histoire de la vie, Judiciarisation, Production de subjectivité, Psychologie politique.


 

 

Introdução

As penas alternativas à prisão foram introduzidas no Código Penal Brasileiro em 1984, recebendo alguns acréscimos até a promulgação da Lei nº 9.714, de 1998, atualmente em vigor. Estas penas abrangem a pena de multa e as penas restritivas de direito, quais sejam: prestação pecuniária (pagamento de cestas básicas, por exemplo); perda de bens e valores; prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana. Elas são uma substituição às penas privativas de liberdade e só podem ser aplicadas em situações nas quais a pena correspondente é de até quatro anos e se o crime não tiver sido cometido com violência ou grave ameaça.

A ideia apresentada sobre as penas alternativas à prisão é oferecer uma resposta diferenciada para cidadãos que cometeram crimes considerados de leve e médio porte e que por isso não oferecem risco à sociedade; não sendo, portanto, excluídos do convívio social e familiar. Estas penas configuram-se, então, como uma medida punitiva, porém de caráter dito "socioeducativo", sem recorrer à privação de liberdade.

Seu aparecimento é justificado, no discurso jurídico, como uma substituição à prisão, visando, além de uma humanização da pena, a redução do encarceramento e da população carcerária. Contudo, o que se constata é que as penas alternativas não se configuram como um real substitutivo da prisão: a implementação da aplicação deste tipo de pena não é acompanhada de uma redução da população presa; muito pelo contrário, esta população cresce vertiginosamente, especialmente nas últimas décadas do século XX, tanto nos Estados Unidos da América, assim como na Europa e também no Brasil (ILANUD/Brasil, 2006; Wacquant, 2001).

Em junho de 2008, pela primeira vez no Brasil, o número de pessoas cumprindo penas alternativas superou o número de presos. Os números mais atualizados disponibilizados pelo Ministério da Justiça são de dezembro de 2009 e apontam uma continuação desse crescimento e dessa diferença (671.078 pessoas cumprindo penas e medidas alternativas, contra 473.626 pessoas presas), chegando à soma de mais de um milhão de pessoas cumprindo pena junto à Justiça no país.

Alguns estudiosos do tema (Karam, 2004; Larrauri, 2000; Passetti, 2004) apontam que as penas alternativas encontram-se imersas no mesmo discurso jurídico-penal que fez da privação de liberdade o principal tipo de sanção penal. "A lógica que preside as ideias de crimes e de penas e as teorias que as fundamentam e legitimam é a lógica perversa da violência, da submissão e da exclusão, presente, ainda que mitigados, o sofrimento e a dor maiores representados pela privação de liberdade." (Karam, 2004:88).

Este pensamento é uma maneira de ampliar a ação do Estado, punindo pequenas infrações e permitindo um maior controle do indivíduo. Para os críticos, portanto, as penas alternativas não se configuram como uma alternativa ao cidadão que, capturado pelo sistema penal, passa a ser controlado de maneira minuciosa, propiciando, assim, a execução de uma forte disciplina social, aos moldes de uma judicialização do cotidiano (Passetti, 2004).

Neste texto, discutiremos a vivência de algumas pessoas que cumpriram pena alternativa, enfocando sua relação com a justiça. A análise das narrativas nos permite a construção de categorias analíticas que se situam nas diferentes "modulações da justiça", o que remete às formas como as pessoas são capturadas pelo sistema judicial e como essas constroem um entendimento sobre este último.

Utilizaremos a noção de produção de subjetividade, entendendo esta como uma produção atravessada por instâncias individuais, coletivas e institucionais. Pretendemos olhar não para o sujeito como dado, mas para a subjetivação: seu contexto, suas implicações e seus efeitos.

Escolhemos o tema da Justiça por entender, com Foucault (2005), que as práticas judiciárias, ou melhor, as formas como, ao longo da história, foram construídas maneiras de julgar e punir a partir de "erros" cometidos propiciam a produção de novos modos de subjetividade, domínios de saber e relações com a verdade. Conforme enfatiza Spadoni, "o direito deve ser objeto privilegiado de estudo da psicologia política, pois ele impõe aos indivíduos padrões de interações sociais marcadas pelas relações de poder." (Spadoni, 2009:215).

Assim, no contexto deste artigo, busca-se reflexões sobre os modos de subjetivação produzidos a partir da relação com a Justiça. A pesquisa que nos embasa teve como metodologia a historia de vida judiciária de indivíduos que cumpriam ou estavam cumprindo penas alternativas.

Foram entrevistados seis homens e duas mulheres que tinham processos nos Fóruns das cidades do Rio de Janeiro e Niterói. As entrevistas foram abertas, individuais e gravadas com autorização de cada pessoa. A pesquisa obedeceu aos critérios éticos e foi aprovada em comitê.

O contato com os entrevistados se deu a partir de pessoas da equipe técnica da Central de Penas e Medidas Alternativas de Niterói e da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro (local de cumprimento de pena de prestação de serviço). Tais profissionais fizeram um primeiro levantamento e depois o convite a pessoas que estavam cumprindo ou haviam cumprido a pena de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) para participarem da pesquisa. Foi explicitado pelos profissionais que a participação era voluntária. Em caso de aceite, a pesquisadora realizava o contato para agendar uma entrevista de acordo com horário e local que melhor conviesse ao entrevistado. A única limitação colocada pela pesquisadora foi a seleção de pessoas que tivessem sido condenadas e suas penas substituídas pela PSC, pois, este tipo de pena é, de acordo com pesquisa do ILANUD/Brasil, "a espécie mais adequada às finalidades pretendidas pelas alternativas penais, sobretudo pelo aspecto da aproximação e participação da comunidade no processo reintegrador do indivíduo apenado." (2006:19).

A metodologia de história de vida considera os entrevistados como atores sociais e trabalha a partir de seus pontos de vista, enfatizando a possibilidade de reflexão e de construção de sentidos por parte desses atores. (Pineau, 2006) A construção de sentido é dada por cada ator social, no entrelaçamento dos múltiplos aspectos que fizeram (e fazem) parte da história de cada narrador, mas é também um empreendimento coletivo "por meio do qual as pessoas constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e os fenômenos a sua volta" (Spink & Menandro, 2004, citado por Tavares & Menandro, 2008:134).

Entende-se a história de vida como atravessada por determinações múltiplas, correlacionando aspectos psíquicos, familiares, sociais e políticos. A investigação de uma história de vida, portanto, visa compreender as relações entre esses aspectos e as formas de apropriação adotadas pelos sujeitos ao longo de suas vidas (Carreteiro, 2003).

Inspiramo-nos nos micro-historiadores1, para os quais trabalhar a partir da história de um personagem é reduzir a escala não para explicar o "grande" através do "pequeno", mas para, através do "pequeno", tentar potencializar as formas de relações. Assim, é no cruzamento de várias histórias, na análise "intensiva", a partir de questões particulares, que se problematizam outras questões, se produz outro tipo de história, se tenta construir uma política da vida cotidiana, uma "anatomia política do detalhe" (Foucault, 1977, citado por Bruni, 1989:204).

A fala de todos os entrevistados é atravessada por suas experiências vividas na Justiça, em seus diversos setores. As relações de saber/poder que se estabelecem entre o indivíduo e a instituição Justiça engendram formas de subjetividade perpassadas por sentimentos de arbitrariedade, de dívida, de vulnerabilidade e de injustiça. As práticas do poder judicial se moldam a cada situação de encontro entre um cidadão e a instituição, representada por um de seus operadores, sofrendo variações diversas, em especial tomando por base certas características pessoais e sociais daquele cidadão (geralmente estigmatizado) e a depender de características subjetivas do operador. Este encontro entre um primeiro que decide sobre a vida do segundo parece tomar a forma de mecanismos de "modulações da existência", que geram marcas naquele indivíduo: o poder "incide diretamente sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de pensar, até mesmo de criar" (Pelbart, 2006:s/p.).

Apresentamos uma categoria de análise que denominamos modulações da Justiça, ou seja, as formas que a Justiça assume para os entrevistados: as relações entre o poder e a construção de formas de subjetividades; a formulação de ideias e de discursos em que a Justiça aparece em versões voláteis e como detentora de um saber inquestionável; os sentimentos que inundam cada um dos sujeitos, cidadãos, entrevistados. Apresentar algumas narrativas servirá de base para questionarmos a incidência da Justiça na vida daqueles capturados pelo sistema judicial.

 

"Hoje Eu Tô de Mau Humor": as várias facetas da Justiça

As práticas de poder exercidas no âmbito judicial, seja por promotores ou juízes, percorrem alguns meandros, assumem formas que são atravessadas por opiniões, posicionamentos pessoais, temperamento, humor, preconceitos, daqueles que têm o poder decisório. É assim que sentem alguns dos entrevistados, que foram inseridos na rede da justiça e vivenciaram os efeitos deste poder.

Antônio, 46 anos, havia sido convocado para ser testemunha em um caso de acusação de homicídio envolvendo ex-funcionários de seu estabelecimento comercial. Era a terceira audiência que participava e se confundiu em uma informação questionada pela juíza, respondendo, então, de forma diferente das anteriores - "o negócio tinha acontecido há cinco anos [...], ela [a juíza] não deu uma orientação ou uma segunda chance". Em seu discurso, relata sobre o sentimento de injustiça sofrida e a descrença com relação às ações da Justiça:

Não posso emitir opinião com relação ao caráter, não é nada disso... mas no meu caso, acho que naquele dia ela [a juíza] agiu errado, acho que ela foi exagerada. [...] Ela chega grávida, o maior barrigão e diz: 'ó, hoje eu tô de mau humor, quem falar mentira vai ser preso hoje!'. Pô, eu fiquei na minha [...] Eu crente que ia ser também mera formalidade, me dei mal, fiquei agarrado lá.

A juíza - que, segundo ele, é bem conceituada - teve uma reação desproporcional e agiu em função de seu estado emocional. Ela não teve uma escuta detalhada para aquele indivíduo, para além do fato, e agiu com rigor tecnicista ao aplicar direta e irrestritamente a Lei. Este tipo de atitude, segundo Antônio, demonstra que "a maioria dos juizes querem se livrar do problema, eles não querem resolver o problema".

Afinal, qual a encaminhamento que foi dado para o conflito que se instaurou? A prisão e a aplicação de uma pena restritiva de direitos dão vazão à resolução de um engano compreendido como falso testemunho? Que modulações a Justiça assume na aplicação irrestrita na letra da Lei, sem ouvir o indivíduo, sem compreender sua história e sem refletir sobre os impactos sofridos com a aplicação de um castigo?

Algumas outras narrativas de entrevistados corroboram esta linha de pensamento sobre as modulações da justiça pautadas nas questões subjetivas daqueles que detém o poder de decidir sobre a vida de quem passa pelas malhas da instituição judiciária. Como exemplo, citemos algumas falas: "a juíza é ruim, ela não queria me soltar de jeito nenhum" (Cristina, 26 anos); "às vezes o juiz acha que deu pouca pena e [se pedisse uma revisão] ficaria até pior pra mim" (Gustavo, 27 anos); "eu coloquei na minha cabeça que ele [o juiz] me deu um castigo: ou ele vai virar [bandido] de vez ou ele vai sair fora" (Hugo, 27 anos).

As narrativas expressam as vivências e as opiniões formuladas sobre a forma como atuam alguns operadores do Direito. De acordo com esses relatos, podemos refletir que, para os entrevistados, a imposição de uma pena é baseada na opinião do(a) juiz(a) e na forma como ele(a) considera mais adequado "dar uma lição" a um cidadão que cometeu uma infração da lei. Sendo assim, a pena pode assumir diversas formas e o acesso aos direitos pode depender da benevolência do(a) juiz(a), que utiliza sua prática como um dispositivo de controle, de imposição do medo.

Retomemos Foucault (2002) ao se referir à Sociedade de Soberania, onde há um poder concentrado nas mãos de um "soberano" e a ele cabe a gestão da vida: "fazer morrer e deixar viver". A associação entre o poder do juiz e o do soberano ressalta a concentração naturalizada do poder decisório nas mãos de uma pessoa. O juiz, na sociedade atual, diferentemente do poder arbitrário do soberano, deve reger-se por leis. No caso das penas alternativas, ao juiz cabe a gestão de "fazer prender e deixar não preso" e a forma de aplicação apresenta conotações subjetivas: a linha é tênue e é atribuído mérito ao indivíduo por conquistar esse "benefício"2 do juiz.

Há, assim, uma naturalização deste "poder de soberania" associado aos juízes: a revolta dos entrevistados passa por um questionamento do que se entende ser uma postura pessoal, ou seja, para além das leis e do lugar ocupado. Há um processo de docilização dos indivíduos a fim de não haver contestação desses lugares e dessas práticas e, portanto, possibilitar a permanência de um modelo instituído (Flores, 2005).

É preciso questionar que produções dessa mesma sociedade são já injustas; que mecanismos legitimados na sociedade capitalista produzem, alimentam e disseminam práticas injustas, mas são imunes à crítica que pede justiça porque são vistos como uma natureza. (Flores, 2005:74)

 

"É Tudo Farinha do Mesmo Saco": arbitrariedade da polícia

Antes de haver qualquer julgamento, o contato primeiro e direto do cidadão é com os policiais. Estes, para os entrevistados, assumem um lugar de poder arbitrário e seus comportamentos são considerados como travestidos de abuso de autoridade, diferentemente do lugar incontestável dos juízes, mas mais próximo de como o "poder soberano" se exerce: "fazer morrer e deixar viver".

Augusto (38 anos), que foi traficante, viveu mais de uma vez a experiência de ser extorquido por policiais, mesmo após ter saído do tráfico, tendo que mudar seu local de residência, pois: "se eu ficasse lá [na localidade onde residia], eles [os policiais] me pegam de novo, me levam pra delegacia com um saquinho de drogas dizendo que era meu. Eu já tinha uma passagem por tráfico, outra por falsidade ideológica, a justiça ia acreditar em mim? Com certeza não ia acreditar em mim! [...] Eu ia ficar mais a vida inteira preso! E dessa vez injustamente!".

O poder que os policiais assumem é concretizado, como se vê pelo relato acima, em violência verbal e/ou física e na manipulação de dados a fim de ameaçar o cidadão. A palavra do policial não é contestada no processo: é a verdade policial contra a verdade do acusado.

Há sempre um receio com relação à atitude dos policiais por parte daquele que é abordado e há sempre uma suspeição do policial com relação àquele que aborda: "são corpos raptados por uma ação policial viciada por critérios 'técnicos' bem fixados, que marcam a escolha dos pontos onde efetuar as batidas e a quem se destina tal ação de captura." (Monteiro, Coimbra e Mendonça, 2006:8). Os efeitos das relações estabelecidas entre esses indivíduos são modulações de desconfiança de ambos os lados. Como nos lembra Rauter (2003:97-98):

[...] pune-se e julga-se muito mais um indivíduo em função de sua classe social do que em função de seu crime. Segundo tal concepção, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, analfabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmente.

Wacquant (2001) denominou esta lógica de criminalização da pobreza. "Por isso, mais apropriado que falar da criminalidade (e do criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado) e esta é uma das várias maneiras de construir a realidade social" (Andrade, 1995:s/p.).

Todos os entrevistados homens, jovens e de classe social mais baixa3 descreveram situações de abordagem policial em que se encontravam mais vulneráveis, mais ainda por possuírem "ficha suja": "o beneficiário tem uma situação tão delicada, que qualquer tipo de confusão que você se envolver, você dança" (Ricardo, 30 anos). Gustavo (27 anos) descreve uma situação em que foi vítima de um assalto e chegou a ir a uma delegacia para prestar queixa. Contudo, após o policial pedir seu documento de identidade, ele desistiu: "eles podiam ver lá que eu era ex-presidiário e aí 'ah, é tudo farinha do mesmo saco! Encarcera os dois!'".

Para esses homens, mais uma vez, o acesso a direitos de cidadão (de reclamar por um assalto sofrido ou mesmo de estar nas ruas), que a atitude policial poderia fazer valer, se transforma em medo e receio do lugar da autoridade policial, comumente arbitrário, que passa a ter o poder de decidir sobre sua vida; também se reveste de uma suspeição a priori, que captura seletivamente aquele que será abordado pelos policiais e tutelado pela Justiça.

 

"Passado Condena": pagamento contínuo da pena

Augusto (38 anos) foi preso durante dois anos, respondendo por tráfico de drogas. Anos depois de ter cumprido a totalidade de sua pena, ele foi detido com documento falso (falsidade ideológica), preso e condenado a cumprir pena alternativa. Na explicação de seu advogado: "pode ser que o juiz não dê [pena alternativa], deixe você dois anos preso por causa do seu passado".

O julgamento de um segundo delito, mesmo que este apresente todos os requisitos para ser cumprido sob a forma de pena alternativa à prisão4, pode ser atravessado pelo fato de o acusado não ser mais réu primário: "por exemplo, agora nessa vez que eu fui preso, poderia muito bem ter respondido em liberdade, mas fiquei 6 meses preso. Só que o meu passado condena... Dizem que não: 'ah, você ta quite com a justiça', mas não, você nunca é visto mais com bons olhos! Por ninguém, nem pela sociedade!" (Augusto, 38 anos).

O pagamento do primeiro delito é reatualizado diante de um novo julgamento e o acusado será duplamente penalizado: pelo segundo delito e pela sombra do primeiro. Nas palavras de Rubens Casara (2008), o cidadão é "punido pelo fracasso do Estado de não 'regeneração'", objetivo exposto no discurso explícito da aplicação de penas. É uma lógica individualizante, que mantém sob vigilância permanente determinadas pessoas, responsabilizando-as exclusivamente sobre suas condutas, as quais não são vistas como contextualizadas sóciohistoricamente (Rauter, 2003).

Também não se considera os efeitos da prisionalização na vida de um cidadão. Enquanto o discurso oficial fala em ressocialização e se questiona o porquê do fracasso da prisão, podemos, com Foucault (1977), pensar na utilidade desse fracasso, ligado a uma de suas funções políticas: a "produção de delinquência". Neste sentido, a prisão cumpre exatamente ao que se destina: (re)produzir um sistema em que corrobora e perpetua uma estigmatização e uma constante suspeição sobre determinada parcela da população, associada à pobreza. E, no momento em que aquele cidadão volta a cometer um delito e retorna às malhas da justiça, o Estado não assume responsabilidade nessa rede e culpabiliza mais uma vez o indivíduo, aplicando uma pena mais severa.

 

"Por uma Questão de Segurança" ou "Foi Tudo Conforme a Lei"

Ricardo, 30 anos, furtou uma quantia em dinheiro da casa de sua patroa e devolveu tudo o que havia furtado. Foi demitido do emprego e a patroa fez a ocorrência policial. Este conflito teve dois encaminhamentos distintos: um acordo tácito entre as duas partes envolvidas, com o ressarcimento daquela que foi furtada; uma ação judicial que afastou a pessoa furtada do processo, transformando-a em "testemunha de acusação de um crime cometido contra a sociedade" (Passetti, 2004:21) e penalizou o culpado, sem qualquer ressarcimento.

É possível questionar por que a soma desses dois tipos de encaminhamentos e, mais ainda, quais os efeitos de cada um deles, em especial para a vida das pessoas envolvidas.

O acordo tácito não tira o atingido de cena, e sim o coloca como protagonista de uma "resposta-percurso", nos dizeres do abolicionismo penal: parte-se da conciliação como resposta a uma "situação problema" configurando-se uma "atitude inventiva e libertária capaz de evitar o trajeto para o violento sistema penal (da polícia ou tribunal)" (Passetti, 2004:20).

A judicialização opera sobre outros tipos de respostas: toma para si a situação problema e aplica um castigo para aquele cidadão em nome de uma segurança coletiva. "Por menor que seja um delito, por mais ínfima a infração, o que se quer é que a lei não deixe de ser cumprida, como se isso fosse garantir uma sociedade mais justa" (Flores, 2008:95). Passar pelo crivo da justiça e impor um castigo é visto como a única forma de se encaminhar um conflito a fim de não cair na impunidade e não permitir que outros conflitos aconteçam; o mito de poder criar uma sociedade purificada, sem conflitos, encontra no discurso de judicialização e penalização uma forma de legitimar as ações coercitivas do Estado.

Para a pessoa atingida, somente com a conciliação é que foi possível reaver a quantia que fora roubada; para o infrator, conforme sua narrativa e seu comportamento de devolução do dinheiro, o ressarcimento se tornou uma "questão de honra", de demonstrar o seu arrependimento, de lhe tirar, na medida do possível, o peso da culpa pela perda da confiança. Mas há dois pagamentos: o primeiro para o atingido e o segundo para a sociedade. Para esta última, questionemos: o que se ganha em fazer um cidadão passar pela tutela da Justiça? A justiça deve ser sempre a que age com castigo? É a imposição de um castigo público a única forma de encaminhar a solução de um conflito?

Na forma judicializante, muitas vezes, a voz do acusado não reverbera. Muitas vozes são silenciadas. A que serve esse silenciamento? Segundo Foucault (1977, citado por Minella, 2000:28), "a prisão faz desaparecer do convívio social não somente o delinqüente, mas o discurso do delinqüente [...] e, ao condenar ao silêncio, termina exercendo com êxito uma função essencialmente política que contrasta com o seu fracasso no sentido de reintegração social" e que corrobora com a função de "produção de delinquência".

Os operadores do Direito apropriam-se do discurso do acusado a fim de submetê-lo a uma codificação dada, a partir de padrões estabelecidos a priori, para construir uma hipótese sobre o sujeito e sobre toda uma cultura da qual ele faz parte; para enquadrá-lo em parâmetros préconcebidos de formas de existência, de processamento de condutas. Assim, não há a escuta de uma pessoa. Há a tomada de um indivíduo como objeto de um saber, de uma forma de conhecimento que se propõe como verdade: "tentam apagar sua diferença, sua singularidade, sua estranheza, tentam torná-lo compreensível e, portanto, domar a sua rebeldia" (Albuquerque Jr., 1991:50).

 

Pensando o Conceito de Justiça

Retomando as narrativas dos entrevistados sobre a pena alternativa, pode-se pensar que a noção de justiça está constantemente sendo interpelada. Freud, em "O mal estar da civilização" (1996a), concebe a justiça como uma instância terceira que servirá de referência balizadora para as condutas humanas. A justiça não é uma noção que deve ser naturalizada, atemporal; ela vai se modificando ao longo dos momentos sócio-históricos. Ela deveria funcionar buscando evitar a violência. A psicanálise tem nos mostrado que quando deixa de existir a referência a um terceiro, o que existe é uma relação corpo a corpo, onde a dominaçãode um sobre o outro tende a operar. É este modelo de regulação psicossocial que se mostrava atuante na análise empreendida por Freud em "Totem e Tabu" (1996b) quando se refere à onipotência do pai da Horda: este tinha direito de vida e de morte sobre os filhos e a prole; ele se aproxima do poder soberano discutido por Foucault, em que o aspecto arbitrário é muito evidenciado. O pai da Horda se deixa conduzir por seus desejos.

Mais tarde, em 1933, na correspondência com Einstein, Freud (1974) lembra que as sociedades têm somente um verniz civilizatório, pois elas fundando o Direito não fazem desaparecer a violência, mas ao contrário a controlam, ou melhor, a gerenciam.

O que vimos a partir das análises aqui apresentadas não foi uma ausência de justiça, mas um sistema judicial que mostra uma grande desregulação. Um sistema que ignora a subjetividade na sua mais ampla complexidade e reduz o sujeito a autores de delito. No entanto, é também uma certa parcela da sociedade que é visada, aquela que é pobre, pouco escolarizada, e em sua maioria negra e do sexo masculino. Este é um ponto no qual pode se pensar na violência impetrada pela justiça. Ela deixa de ser, como pensava Freud, a possibilidade de construção de uma regulação entre os sujeitos e passa a ser uma violência exercida principalmente contra alguns sujeitos.

Se as penas alternativas se propõem a ajudar na construção de diferentes caminhos, de diferentes formas de estar na sociedade, de participar de redes sociais, de minimizar os efeitos do cárcere, é preciso continuamente pensar que práticas estão sendo efetuadas por aqueles que executam as penas alternativas e que sujeitos estão sendo produzidos por essas práticas. Cabe interrogar se nossos posicionamentos não estão reproduzindo estigmas e corroborando com a permanência de um status social e de uma padronização de modos de ser; questionar se as redes sociais que se pretendem de proteção e como estratégias de liberdade não se configuram, ao contrário, como redes que aprisionam, que cerceiam as possibilidades de criação e de investiduras em diferentes modos de subjetividade. Buscar construir espaços que não se definam somente como não prisionais, mas que possam contribuir para a construção da cidadania e da produção de vida em sociedade.

 

Considerações Finais

Parece-nos necessário complexificar a instituição justiça, entendê-la não como uma essência, como algo que está dado, mas como uma multiplicidade de práticas de poder que engendram relações dominador/dominado, como práticas que se reconstroem continuamente e que, assim, assumem modulações diversas.

Mesmo que atravessados por certa utopia na construção de uma nova lógica que permita que a justiça tenha o lugar de instância mediadora, é preciso contar com profissionais envolvidos na aplicação de uma pena, desde os policiais, passando por psicólogos e assistentes sociais, até chegar aos juízes, defensores e promotores, para a construção de uma outra estruturação, de outras formas de olhar e escutar cada cidadão, de criação de outras formas de resolução de conflitos: "é a partir de outro lugar que não o da dominação e da sujeição, é a partir de um topos ocupado pela potência de afirmar as próprias diferenças constituintes dos seres ou ponto de vista da vida em processo de diferenciação, que o modo de vida ético se instala." (Fuganti, 2001:s/p). Poder experimentar a ética no sistema policial e judiciário é imprescindível.

Na "u-topia", este modo de vida é da ordem dos encontros. "Um encontro para a produção coletiva de análises e estratégias, para o enfrentamento dos tensionamentos, colocados na atualidade, via pequenas ações cotidianas, micropolíticas, microrevoluções" (Bocco, 2008:121), um encontro potente na produção de práticas em que se permita criar novos caminhos, dando lugar a novas realidades, a ações libertadoras/liberadoras.

Especialmente no que se refere à atuação da Psicologia, o modo ético pressupõe um posicionamento crítico. Requer-se uma Psicologia conhecedora da realidade social e que proponha ações transformadoras, comprometida com as pessoas por ela atendidas no sentido de promoção da autonomia e da emancipação. "A proposta é a afirmação de uma Psicologia Social Crítica aberta para novos modos de ser e agir, preocupada com os projetos de vida individuais e com a dinâmica de processos histórico-sociais." (Lima, Ciampa & Almeida, 2009:223).

Sabemos haver muitos operadores ciosos de mudança. Talvez seja nas ações e encontros entre os que apostam que mudanças possam ser construídas a partir de práticas libertadoras e não repressivas, que podem surgir novas ações, micro-políticas cotidianas permitindo apostas na produção de uma instituição mais justa e igualitária.

No entanto, tais transformações, para serem realizadas, não devem ignorar o cenário de encarceramento das subjetividades que tem sido analisado em tantas pesquisas (inclusive neste artigo) e olhares que clamam por mudanças. É a partir do conhecimento da face sombria institucional que acreditamos podemos partir para micro-mudanças.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 01/12/2012
Revisado em 24/04/2013
Aceito em 15/05/2013

 

 

1 Sobre o assunto, consultar C. Ginzburg (1986; 1989)
2 As pessoas que cumprem penas alternativas são comumente chamadas pelos operadores da justiça (e por consequência também pelos próprios cumpridores) de "beneficiários"
3 Lembremos que este é o perfil predominante da população encarcerada, assim como daqueles que cumprem penas alternativas (ILANUD/Brasil, 2006)
4 Para receber uma pena alternativa, o acusado não pode ser reincidente, ou seja, cometer o mesmo delito outra vez, mas ele pode não ser mais réu primário