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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.16 no.37 São Paulo set./dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Humilhação social e contextos rurais: discussões a partir de pesquisas em três comunidades rurais

 

Social humiliation and rural environments: discussions based on research in three rural communities

 

Humillación social y contextos rurales: discusiones a partir de investigaciones en tres comunidades rurales

 

Humiliation social et contextes ruraux : discussions basées sur la recherche dans trois communautés rurales

 

 

Saulo Luders FernandesI; Denise ZakabiII; Marcelo Gustavo Aguilar CalegareIII

IPsicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Tutor do Programa de Educação Tutorial (PET) Núcleo de Estudos do Semiárido Alagoano (NESAL). Professor do Programa de Pós- Graduação de Psicologia nível mestrado da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Al, Brasil. saupsico@gmail.com
IIPsicóloga pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). Mestra em Ciências pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Doutoranda pelo Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade (PSA) do IPUSP, São Paulo, SP, Brasil. tutorazakabi@gmail.com
IIIPsicólogo, mestre e doutor pelo IPUSP. Atualmente Professor Adjunto I da Faculdade de Psicologia / Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e coordenador do programa de Pós- Graduação em Psicologia - UFAM, Manaus, AM, Brasil. mgacalegare@ufam.edu.br

 

 


RESUMO

Neste trabalho temos por objetivo refletir sobre questões psicossociais relacionadas à humilhação social em diferentes contextos rurais, por meio da discussão comum a três experiências de pesquisa distintas em diferentes comunidades rurais. O primeiro trabalho apresenta relatos de humilhação social vividos pelos moradores de um quilombo no agreste de Alagoas nos atendimentos de saúde. O segundo relato traz experiências de humilhação social por jovens em um assentamento agrário no litoral do Ceará. O terceiro relato aborda a humilhação social de moradores de comunidades ribeirinhas do Amazonas ao ir à cidade em busca de serviços urbanos. As discussões dos elementos comuns a estas pesquisas contribuem para compreender como a humilhação social, enquanto fenômeno psicopolítico, manifesta-se em diferentes contextos rurais. Como conclusão, aponta-se a necessidade de romper com o fatalismo, fortalecer as lutas por direitos e refletir sobre os modos de enfrentamento político dessas comunidades frente ao sofrimento vivido.

Palavras-chave: Humilhação, Psicologia Política, Processos Sociais, Ambientes Rurais, Discriminação Social.


ABSTRACT

In this paper we aim to reflect on psychosocial issues related to social humiliation in different rural contexts, through a common discussion of three different research experiences in different rural communities. The first work presents reports of social humiliation experienced by the inhabitants of a quilombo in the rough of Alagoas during attendances in health services. The second report brings experiences of social humiliation by young people in an agrarian settlement off the coast of Ceará. The third report addresses the social humiliation of residents of Amazonas' riverine communities when they go to the city in search of urban services. The discussions of the common elements to these researches contribute to understand how social humiliation, as a psycho-political phenomenon, manifests itself in different rural contexts. In conclusion, we point the necessity to break with fatalism, to strengthen the struggles for rights and to reflect on the political of these communities in face of suffering.

Keywords: Humiliation, Political Psychology, Social Processes, Rural Environments, Social Discrimination.


RESUMEN

En este artículo tenemos por objetivo reflexionar sobre cuestiones psicosociales relacionadas a la humillación social en diferentes contextos rurales, por medio de la discusión común a tres experiencias de investigación distintas en diferentes comunidades rurales. El primer trabajo presenta relatos de humillación social vividos por los habitantes de una comunidad remanente de esclavos africanos (Quilombo) en la zona árida de Alagoas en los tratamientos de salud. El según relato trae la experiencia de humillación social con jóvenes de un asentamiento agrario en el litoral de Ceará. El tercer relato aborda la humillación social de los habitantes de comunidades ribereñas del Amazonas al ir a la ciudad buscar servicios urbanos. La discusión de los elementos comunes a esas investigaciones contribuyen para comprender como la humillación social, como un fenómeno psicopolítico, se expresa en diferentes contextos rurales. Como conclusión, señalamos la necesidad de romper con el fatalismo, fortalecer las luchas por derechos y reflexionar sobre los modos de enfrentamiento político de esas comunidades delante el sufrimiento vivido.

Palabras clave: Humillación, Psicología Política, Procesos Sociales, Ambientes Rurales, Discriminación Social.


RÉSUMÉ

Dans cet article nous visons à réfléchir sur les problèmes psychosociaux liées à l'humiliation sociale dans des différents contextes ruraux, à travers une discussion commune de trois expériences de recherche différentes dans différentes communautés rurales. Le premier travail présente des rapports d'humiliation sociale vécus par les habitants d'un quilombo dans l'agreste d'Alagoas dans les soins de santé. Le deuxième rapport apporte des expériences d'humiliation sociale par les jeunes dans un établissement agraire au large des côtes de Ceará. Le troisième rapport aborde l'humiliation sociale des résidents des communautés riveraines de l'Amazonas lorsqu'ils se rendent dans la ville à la recherche de services urbains. Les discussions sur les éléments communs à ces recherches contribuent à comprendre comment l'humiliation sociale, en tant que phénomène psycho-politique, se manifeste dans différents contextes ruraux. En conclusion, nous soulignons la nécessité de rompre avec le fatalisme, de renforcer les luttes pour les droits et de réfléchir sur la confrontation politique de ces communautés face à la souffrance..

Mots clés: Humiliation, Psychologie Politique, Processus Sociaux, Milieux Ruraux, Discrimination Sociale.


 

 

Introdução

Historicamente o que é associado ao rural tem sido desvalorizado, tanto os modos de vida como as formas de trabalho e produção, por ser considerado atraso frente ao projeto civilizatório moderno que desqualifica os saberes e desautoriza essas formas de viver. Essa desvalorização é vivenciada como um sentimento de subalternidade, tratando-se de um problema psicológico, coletivo e político.

Para refletir sobre questões psicossociais relacionadas à humilhação social, considerou-se interessante analisar situações em locais e instituições diferentes, com populações distintas, que tivessem em comum o modo de vida rural. Assim, neste artigo serão apresentadas e comparadas três pesquisas, realizadas em diferentes contextos rurais: comunidade quilombola do agreste alagoano; assentamento de reforma agrária do litoral cearense; comunidades ribeirinhas amazônicas do alto Solimões. Cada uma dessas pesquisas teve focos diferentes, relacionados aos locais de pesquisa, a relação com as sedes do município, as áreas urbanas, instituição escolar e de saúde. Para integrar as discussões de cada uma dessas experiências, serão comparados seus aspectos comuns e particulares, assim como suas diferenças, para responder as seguintes perguntas: nesses diferentes contextos há narrativas e afetos que remetem à humilhação social? Caso essa resposta seja positiva, há uma produção de um comum subalternizado? No que diferem? Como as comunidades lidam com essas experiências de humilhação social?

Nas seções que seguem, primeiramente serão apresentadas considerações teóricas relacionadas à humilhação social. A seguir, apresentaremos um breve detalhamento das pesquisas realizadas com as respectivas discussões, para, por fim, será aprofundar o debate à luz da categoria analítica eleita como central no presente texto.

 

Humilhação Social: considerações teóricas

Para compreender estas vivências de desigualdade e os sentimentos de subalternidade experienciados pelas comunidades rurais tratadas neste artigo cabe discutir e adentrar ao fenômeno da humilhação social, definido por Gonçalves Filho (1998a) enquanto um problema psicossocial disparado pela desigualdade de classes, étnico-raciais, de gênero, que podem ser vivenciadas como o sentimento de angústia e, acrescentaríamos, como estigma e discriminação. A humilhação social apresenta-se como um fenômeno relacional, na qual o sujeito subjugado à experiência de humilhação não existe nela sozinho, o rebaixamento vivido necessita do mando do soberbo para se consolidar. De acordo com Gonçalves Filho (2007), a humilhação social é vivida de modo imediato, quando a vida do outro dito diferente é subjugada a um modo de ser e existir hegemônico, que o objetifica e o reifica enquanto uma vida a ser comandada, manipulada, consumida e mercantilizada.

Assim, para Gonçalves Filho (2009), podem-se elencar ao menos três elementos para conceituação do adjetivo social à experiência da humilhação, para a compreensão deste fenômeno dentro de um campo relacional e político:

1º - A humilhação social é fenômeno intersubjetivo, produzido ao menos sobre dois campos: o político-econômico e as produções psicossociais. Fixar-se em um dos campos é restringir à análise do fenômeno da humilhação, ora aos processos políticoeconômicos, como impedimentos objetivos que proíbem o acesso a direitos e bens a um determinado grupo, os quais serão envolvidos em uma situação de rebaixamento e servilidade; e ora a um psicologismo, que pode individualizar este sofrimento que é político e circunscrevê-lo a uma psicodinâmica intrassubjetiva. A humilhação social caracteriza-se por um fenômeno político e psicológico, experienciado pelos sujeitos na vida social e metabolizado em suas experiências pessoais e coletivas frente ao rebaixamento vivido.

2º - A humilhação social é um fenômeno histórico, no qual o sujeito carrega e compartilha consigo o sofrimento do grupo ao qual pertence. São vivências de impedimentos que causam um sofrimento, que não é apenas sofrimento individual, mas coletivo, sentido como inferiorização, que percorre de forma transgeracional a vida de grupos, raças, etnias, gêneros, classes e povos.

3º - A humilhação social é expressa como um fenômeno político regido pelo enigma da dominação, na qual um grupo subjuga outro a seus mandos e exige deles uma servilidade que retira os traços de humanidade de ambos os envolvidos. A humilhação social exige a presença dos humilhados e dos soberbos, da dominação para se consolidar. Ambos vivem o enigma da dominação que impede o diálogo, a conversa e o encontro. Enigma que dispara uma angústia que deve ser analisada sobre seus aspectos políticos, consolidada coletivamente e implicada sobre as subjetividades de quem a vive e a sustenta.

Assim, a humilhação social é caracterizada com componentes relacionais que se expressam no campo objetivo e subjetivo, respectivamente enquanto fato e como sentimento. Enquanto fato a humilhação social pode ser caracterizada pelas experiências de impedimentos, de privações que impossibilitam aos humilhados concretizarem suas necessidades humanas, não apenas utilitárias e de consumo, mas para além delas: o desejo pela beleza, a capacidade da conversa, e a sua capacidade política de ação sobre a realidade. Esses impedimentos são frutos dos processos de reificação que roubam do rebaixado seus traços de humanidade e o constituí como objeto a ser manipulado à produção da riqueza dos dominadores. Os sujeitos humilhados tornam-se meios para atingir fins econômicos, bens de consumo e utilitários que os descaracterizam e buscam os destituir de suas capacidades políticas (Gonçalves Filho, 2007).

Já enquanto sentimento, a humilhação social pode ser caracterizada por uma angústia política, como um afeto que é gerado por outros que remete ao subjugado algo que não é decifrado de imediato, consolida-se neste momento um enigma. Enigma que mobiliza afetos que chegam ao humilhado antes mesmo que este tome consciência da experiência de rebaixamento vivida. A pergunta do que se sente, ou por que foi tratado de forma desigual, vem posteriormente, sem uma resposta exata. Apresenta-se como a passagem de um sofrimento politico que não atingiu o sujeito apenas no presente, mas que o arrebata em tempos idos, congregam seus pais, seus pares, seu grupo e classe. De acordo com Gonçalves Filho (2007), deste enigma da dominação podem decorrer cinco sentimentos: (1) dos ambientes citadinos como expulsivos; (2) de amargura frente aos bens públicos; (3) de invisibilidade; (4) de não possuir direitos; e (5) de vigilância sobre os comportamentos e formas de expressão.

A experiência de dominação impede os processos de reconhecimento e promoção dos princípios de humanidade de ambos os envolvidos: dos dominadores e dos que experienciam a dominação. Neste processo prevalece a mudez de ambos os participantes, a fala do patrão apresenta-se como mando e a resposta do empregado se faz mecânica e sem vida. O encontro necessário para a experiência da alteridade encontra-se impedida. A diferença que possibilitaria o deslocamento de olhares sobre a realidade, neste enredo, é vivida como subalternidade, desigualdade e controle (Gonçalves Filho, 1998a).

Na experiência da humilhação social, a vida é reificada, torna-se objeto servil a ser manipulada e organizada para fruição das riquezas a um determinado grupo. Neste regime servil, a dominação se expressa em desigualdade, em disparidades econômicas que empobrecem a vida dos proletários e dos camponeses, que são impossibilitados ao acesso pleno dos bens utilitários, de consumo e na consolidação de seus direitos. A experiência da dominação é impedimento de ação, é a reificação da vida a favor das riquezas, estas não compartilhadas, mas consagradas entre tiranos, que fazem do público lugar privado (Gonçalves Filho, 1998a).

Desvelar as formas de desigualdades, como afirma Gonçalves Filho (2007), é propor um aprofundamento reflexivo que vai além do olhar à opressão, é adentrar nas relações de poder que permeiam os condicionantes sociais da dominação: "precisamos apontar e discutir o que a desigualdade social torna manifesto: a dominação. Dominação esta que compõe o núcleo determinante da coisa. Desigualdade social é o nome superficial e tardio para o fenômeno consumado" (p. 208). A desigualdade é a explicitação dos impedimentos vividos enquanto experiências de dominação que, como dimensão política, ampliam as assimetrias de poder entre os grupos sociais em disputa.

Alternativa ao sofrimento enigmático vivido pela humilhação social é a possibilidade de elaboração desta dor política junto aos iguais, que frente a ela buscam fiar no coletivo a dignidade humana que foi destituída. A ação política se consolida pelo exercício da palavra, da comunicação entre os sujeitos que inscrevem a experiência vivida, na inserção do depoimento no campo do coletivo, no espaço público e na arena de debates, na qual variados pontos de vista se encontram em negociação, confronto, acordo e dissonância. Frente à dominação, a ação comunicativa se apresenta como princípio à produção humana, disparador da vida política, a qual só pode ser erigida em condições de igual dignidade entre seus agentes (Gonçalves Filho, 1998b).

Ainda de acordo com Gonçalves Filho (2009), a igualdade não é a produção da mesmidade, do idêntico, mas se apresenta como a possibilidade de ação e diálogo entre as diferenças, sendo a condição primeva para este exercício a supressão da dominação. Para objetivar o exercício da igualdade, deve-se propor a distribuição de recursos materiais e imateriais, na tentativa de tornar plena a condição política de todos, para que no diálogo e nos campos de disputa estabelecidos na vida social, os variados grupos possam debater e autenticar seus modos de vida, estabelecendo o caráter de ação aos processos políticos.

Segundo Martín-Baró (1998), a perpetuação da condição de fatalismo das situações de dominação, como destino vivenciado como inevitável e imutável, está em função de um sistema social (regido por interesses políticos, econômicos, etc.). Este gera a interiorização das relações de dominação, por meio de comportamentos, pensamentos e sentimentos, que torna os indivíduos conformados e passivos. Isso impede mudanças sociais das camadas da população humilhadas (luta por transformações sociais), mantendo-as como pobres, preguiçosos e indolentes, num círculo vicioso a favor das camadas dominantes. A ruptura do fatalismo seria possível pela transformação tanto pessoal (psicossocial) quanto social (estruturas políticas e econômicas), por meio da recuperação da memória histórica, da organização popular e da prática de classe (interesses de cada grupo).

 

Narrativas da Humilhação Social no Campo

Comunidade quilombola do agreste de Alagoas

Esta pesquisa foi realizada em uma comunidade quilombola localizada no agreste de Alagoas, no Município de Arapiraca, chamada Pau D`Arco. A investigação se caracterizou como um estudo de caso, realizado em 2015, que analisou por meio dos itinerários terapêuticos como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra atua no cotidiano e nos modos de vida dessa comunidade. Norteou-se o estudo pelos itinerários terapêuticos, que aliam a noção de saúde e direitos humanos pela análise das trajetórias dos sujeitos no acesso à saúde, bem como as concepções de mundo, crenças e valores que acompanham a interpretação de seus agravos e/ou doenças. Como etapas da pesquisa, inicialmente se procedeu levantamento bibliográfico e de dados secundários da comunidade, o que incluiu trabalhos de conclusão de curso de dois moradores. A etapa de pesquisa in loco envolveu encontros com lideranças, profissionais da comunidade e gestora da Unidade Básica de Saúde com moradores, todos registrados em diário de campo. Os itinerários foram mapeados por meio das narrativas dos trajetos realizados pelos moradores na busca de cuidado, com entrevista semiestruturada com cinco pessoas, analisadas por análise de conteúdo (Bardin, 1977). Por fim, foi feita devolutiva com os resultados, juntamente com projeto de intervenção possível de ser desenvolvido na comunidade.

Dessa feita, neste texto apresentamos relatos de humilhação social vividos pelos moradores do quilombo tanto em seu cotidiano, nas relações com as comunidades circunvizinhas que agem de forma discriminatória devido ao seu pertencimento étnico racial, bem como narrativas de humilhação social experienciada nos atendimentos e no acesso aos equipamentos de saúde presentes no território. Os relatos apontam as experiências de desigualdade vivida pelos moradores do quilombo pelo seu pertencimento étnico-racial e de classe, no que se refere ao reconhecimento de suas diferenças e na garantia do direito ao acesso à saúde. As narrativas de humilhação social cotidianas emergiam no começo do processo de entrevista, no momento em que iniciava a conversa com o entrevistado, discursos variados surgem diante destas experiências, mas que apresentam um campo de ligação em comum: a construção de um duplo vínculo com o território negro e com a identidade negra rural.

Nos discursos dos participantes, este duplo vínculo é identificado quando eles ao mesmo tempo em que afirmam ser o território negro o lugar de expressão de suas diferenças, de seu modo de viver, da vida compartilhada com os outros; também é identificado como o lugar que os lança às experiências de desigualdade e humilhação social, frente ao olhar alheio que não os reconhece como iguais, e os definem racialmente de forma pejorativa, na reprodução de experiências de preconceito e discriminação. Como segue na narrativa de Débora1, 20 anos, quando questionada por que gostava de viver na comunidade: "Porque é um lugar sossegado. Tem minha família, e também porque nos ajuda, um lugar que tem recursos pra eu e a minha família. Mas ainda existe muito preconceito. Principalmente da parte das pessoas que vieram de fora pra cá".

De modo similar acontece com a identidade quilombola, a qual possibilita a eles: a produção de seus saberes, o aprendizado de uma vida igualitária, a luta por reconhecimento e a garantia de seus direitos enquanto quilombolas. Mas ao mesmo tempo carrega consigo, diante das estratégias do opressor e do sistema organizado pela lógica da supremacia branca, modos de desqualificar seus valores, desautorizar seus saberes, violar seus direitos, legitimar maus-tratos em ameaças a seu corpo e ofensa a sua pessoa. O que pode ser exemplificado pelas narrativas abaixo:

Aí no começo eu não queria ser negro quilombola. Agora, se eu tô dizendo que eu não queria ser negra, eu tô dizendo o quê? Eu tô botando a minha qualidade pra trás, né? [remete ao agente local] É difícil. É difícil sabe por quê? Porque eu vejo aqui na televisão o que é que o povo faz com o negro. Tem um lugar que até matar, mata os negros. Tá vendo? E tem muito - como é que diz? - que as pessoas dizem, fazer pouco de negro... Preconceito. (Maria, 75 anos)

As vivências dos moradores apresentam-se cerceadas por esta duplicidade de vidas, que ora retomam o seu pertencimento étnico-racial e territorial como possibilidade de reconhecimento junto aos seus iguais, como lugar de recursos que possibilita a reprodução da vida e a invenção de seus modos de ser e existir, e ao mesmo tempo, este mesmo pertencimento, quando interpelado por relações de dominação/opressão, lançam-nos em experiências de desigualdade que estão marcadas em suas memórias.

Essa realidade dúbia, presente nas narrativas dos participantes, vem ao encontro das compreensões de Izquierdo e Rivera (2011) sobre a formação do território dos povos latinoamericanos, os quais são frutos do encontro do projeto civilizatório ocidental e da multiplicidade de epistemologias e projetos de sociedade das variadas etnias e raças que se consolidaram na América Latina. Este encontro forja práticas cotidianas das variadas comunidades e grupos étnico-raciais, que mesmo não estando em conformidade com a produção branco ocidental, a elas são incorporadas por meio do processo de dominação à qual são e foram submetidos.

Essas vivências de humilhação social quando tentam ser elaboradas de forma solitária, sem a companhia de outros iguais que compartilham deste sofrimento, levam a soluções precárias como a narcotização, a medicalização, a culpabilização pelo desconforto de humilhação vivida. Como afirma Gonçalves Filho (2007), esta humilhação é política, traz em suas entrelinhas processos históricos de impedimentos de humanidade do grupo, classe, gênero, raça e etnia de pertencimento do humilhado.

Essas situações de sofrimentos psicopolíticos devem ser elaboradas entre pares, de modo a compartilhar destes sofrimentos. Esta retomada exige uma leitura política dos processos de dominação imersos nas relações de violência sofrida. Assim, a conquista dos direitos às comunidades quilombolas, que se legitimaram de forma jurídica e política no Art.68 da constituição de 1988 e nos desdobramentos do Decreto nº 4.887/2003, possibilitaram emergências de identidades políticas que reinterpretaram os territórios negros rurais, na interpelação da identidade étnico-racial desta população.

Em Pau D'arco, as conquistas dos direitos às comunidades quilombolas abriram possibilidades de reinterpretação do território e da identidade negra rural como segue na narrativa de Débora, 20 anos: "Eu me sinto privilegiada. Somos assim, o povo negro e eu sinto muito orgulho de ser e de participar da comunidade quilombola. Eu gosto muito daqui, gosto muito das pessoas".

Esse processo de fortalecimento identitário e comunitário se expressa nas diferenças presentes entre as narrativas da idosa e da jovem entrevistadas. A idosa em sua narrativa apresenta dificuldade em afirmar o termo quilombo e de pertencer à comunidade, talvez pelo que este termo desperta em seu imaginário e em suas experiências, carregadas de histórias de humilhação social, preconceito e discriminação sofrida. Já o discurso da jovem procura valorizar o território, na afirmação de seus modos de vida e de sua ancestralidade negra.

Já as narrativas de atendimento na Unidade Básica de Saúde fizeram emergir e possibilitaram identificar os modos de opressão vividos pelos moradores da comunidade quilombola no que concerne ao seu pertencimento racial, étnico e territorial, enquanto negros e negras rurais. Elas mostram as assimetrias de poder presentes no cotidiano dos moradores nas experiências de atendimento no serviço de saúde.

Nas narrativas dos participantes emergiram dois blocos recorrentes:

1. narrativas de humilhação social devido ao preconceito e à discriminação racial no momento do atendimento;

2. narrativas que apontam a dificuldade de estabelecer uma prática institucional que promova a saúde da população negra.

É recorrente na narrativa dos entrevistados a queixa do atendimento pelos profissionais, que não se encontram mais na comunidade que: realizavam os exames sem tocar nos pacientes, impediam os mesmos de se sentarem frente a frente com ele e realizavam falas que desqualificavam alguns moradores quanto a sua higiene pessoal. Como segue: "Ele não tocava no corpo não, só ficava na conversa e passava o exame. Nunca tocava" (Débora, 20 anos). E "Na consulta ele nunca tocava no corpo. O corpo? Não, não. Nunca, nunca" (Maria, 75 anos).

A realização de um exame sem tocar no corpo do usuário leva a muitos prejuízos quanto ao diagnóstico e à qualidade do atendimento. Não tocar no corpo é impedir por meio desta prática um diagnóstico adequado, é restringir à população negra o acesso pleno a um direito que deveser garantido a todos. É violar os princípios que regem o SUS quanto ao acesso universal independentemente de cor, raça, credo religioso, sexualidade, gênero, entre outras.

As experiências de discriminação e preconceito vividas pela população negra passam pelo seu corpo. Um corpo que transpõe a esfera biológica e o inscreve em relações de dominação que se convertem em experiências de desigualdade. A categoria racial está alicerçada sobre identificações fenotípicas, cor da pele, forma do rosto, tipo de cabelo, as quais adquirem sentidos pejorativos ao se inserirem em relações sociais hierarquizadas racialmente. Como afirmam Silva e col. (2015:24) sobre as desigualdades marcadas no corpo negro: "as desigualdades sociais vivenciadas por essa população são expressas em seus corpos e na qualidade de serviços sociais públicos a que têm acesso".

Esta atuação profissional que produz assimetrias e violação de direitos sobre a população negra quando não fiscalizada ou instruída a aprendizados racialmente igualitários pela instituição de pertencimento dos profissionais, reproduzem práticas que impedem e dificultam a garantia do direito à saúde, promovendo em seu fazer o racismo institucional. A narrativa de Jorge (71 anos) reforça a forma de atendimento que desqualifica e humilha o usuário, no impedimento do morador da comunidade quilombola de se sentar frente a frente com o médico: "Homem, olhe... Tô contando a história. A mesa é aqui, né. Aí ele ficava daquele lado, a gente ficava desse. Agora, nem pense que a gente ficava frente com frente a ele. Tinha que ficar lá do outro lado, fora dele. Pois era".

Como afirmam Silva e col. (2015:24): "vivenciar situações de discriminação pode ser, por si, um elemento desencadeador de doenças. Tal fato é ainda mais grave quando a experiência se passa no contexto de um serviço destinado à atenção em saúde". As humilhações sofridas pela população negra no atendimento em saúde apresentam-se como uma grave violação de direitos e violência, que instaura um tratamento diferenciado a um determinado grupo devido sua raça e etnia, situações que devem ser combatidas para que o princípio da equidade possa ser efetivado nos equipamentos de saúde.

Os maus tratos quando vividos no próprio serviço de saúde produzem um sofrimento contraditório, a busca de um serviço que deveria cuidar, torna-se o lugar da agressão e do rebaixamento, local de produção do preconceito, da discriminação e do adoecimento. A luta contra o racismo institucional nos serviços de saúde, como afirmam Silva e col. (2015), tornase um norte político necessário para que o acesso à saúde da população negra seja um direito garantido. O racismo institucional fragiliza os vínculos dos usuários aos serviços, bem como aumentam a vulnerabilidade programática nos equipamentos de saúde, com apresentação de dificuldades de respostas adequadas às demandas e vivências da população negra rural, que passam a ser invisibilizadas pelos próprios programas de saúde.

As práticas de humilhação social vivenciadas por grupos institucionalmente, apresenta-se como algo que perdura devido à dificuldade de estabelecer uma política institucional que direcione as práticas dos profissionais ao olhar das relações étnico-raciais e dos modos de vida rurais nestes territórios. Assim, o princípio da equidade deve ser uma prática que percorre todos os serviços, ações e atendimentos em saúde que estejam instalados nos territórios negros rurais. Para que as comunidades quilombolas possam acessar os serviços de saúde e usufruir o direito ao cuidado a sua vida, e não ser o espaço da produção de medos e ansiedades.

Assentamento Maceió, litoral do Ceará

Esta segunda pesquisa apresentada neste artigo foi realizada em um assentamento no litoral do Ceará, denominado assentamento Maceió. Teve como objetivo conhecer a história de vida dos jovens assentados e foi conduzida por meio de relato etnográfico e entrevistas, no período entre 2014 e 2016, com idas semanais ao assentamento e registro em diário de campo. Foi realizada observação participante principalmente na escola de ensino médio do campo no assentamento. Foram também realizadas oito entrevistas com jovens entre 15 e 19 anos, sendo quatro rapazes e quatro moças. Essas entrevistas foram gravadas, transcritas e devolvidas aos jovens, que fizeram considerações sobre as mesmas. Para análise, inspirou-se nas discussões etnográficas contemporâneas realizadas por autores da Antropologia, como Silva (2006), ao se considerar que a observação decorre de uma relação entre colaboradores da pesquisa e pesquisadores, e no conceito de humilhação social, apresentado na introdução deste artigo.

O assentamento Maceió é o primeiro assentamento de reforma agrária na Zona Costeira do Estado do Ceará (Lima, Cajado & Esmeraldo, 2010), conquistado pela união de seus moradores, mobilizados pelas CEBs - Comunidades Eclesiais de Base, movimento relacionado à igreja católica. Em 1985, o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - desapropriou uma área de 5.844 hectares para formar o assentamento. Localiza-se a cerca de 140 quilômetros de Fortaleza e 50 quilômetros do centro de Itapipoca. Sua população é estimada em mil famílias (Soares, [s.d.]). As principais atividades econômicas da comunidade são: pequenos comércios, agricultura, pecuária, pesca e confecção de artesanato, todos de base familiar.

Atualmente, há ameaças ao modo de vida da comunidade e ao livre acesso às terras que abrangem o assentamento, ocasionadas por grandes empreendedores do turismo, pela implantação de energia eólica e de produção de pescados em escala industrial. Como forma de resistência, há parcerias com movimentos sociais, ONGs como a Terramar e organizações religiosas, como a Congregação de Notre-Dame, que realizam ações de conscientização sobre esses problemas com as comunidades. Há também apoio do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST, o qual contribuiu com a criação de um acampamento na praia e para reivindicar a construção de uma escola estadual de ensino médio do campo, para a qual oferece apoio pedagógico.

No presente artigo, destacamos a observação sobre a vergonha de um jovem ao informar à diretora da escola que faltaria à aula por participar de uma farinhada, o que compreendemos como uma situação de humilhação social, consequência da discriminação sofrida pelo grupo o qual pertence, pelo modo de vida rural. A farinhada é o processo de feitura da goma de tapioca e farinha, a partir da mandioca, a qual segue costumes ancestrais dos povos indígenas brasileiros. Esse é um importante momento para a comunidade, onde se reúnem grupos de mulheres e homens que se intercalam entre atividades e se conversa sobre a vida diária do assentamento. Ainda sobre a farinhada, foram narrados pelos jovens entrevistados mudanças nesse processo, o entrelaçamento do trabalho pela ajuda mútua entre as famílias, na chamada "troca de dia", com interesses capitalistas, o trabalho pelo pagamento em dinheiro. Essa mudança é ainda mais visível nas comunidades que têm o vínculo mais fragilizado, o que afeta sua atuação política para se mobilizar contra as ameaças citadas.

Contraposta a esta observação, nas entrevistas e durante a observação participante, jovens falavam que desejam continuar a morar no assentamento, mesmo com dificuldades de oportunidades de emprego. Quando, motivados pelo ensino na escola, desejam exercer profissões para as quais precisam realizar faculdade e se mudar de cidade para estudar, pensam em voltar para a comunidade para contribuir com melhorias. Alguns jovens, a partir de relacionamentos familiares, hospedam-se nos centros urbanos para estudar e voltam para suas casas quando podem. Outros jovens, após terminado o ensino médio, acabam migrando para os centros urbanos, as mulheres, para cuidarem de "casas de família" e os rapazes para terem empregos com baixa qualificação e salário.

Outra observação foi a desvalorização da confecção de renda por pessoas da própria comunidade, pelo pouco valor financeiro agregado. Porém, quando a confecção da renda é associada à venda fora da comunidade, há uma mudança de aspectos valorizados da cultura, a partir da convivência com pessoas de fora da comunidade e de outros movimentos sociais. Como segue relato de Beatriz (19 anos):

Sempre quando eu chego do colégio, aí eu só chego, almoço, tomo banho, descanso umpedaço e faço renda de novo. Às vezes dá preguiça, mas é muito bom, porque a cultura da gente é muito desvalorizada em casa. E quando eu chego pra fora, o pessoal começa a valorizar, mas é muito bom, porque foi desde as antigas que minha mãe, é tipo que vem de geração em geração, né? Um aprendizado. É desvalorizada em casa, porque o valor que a gente recebe é muito pouco da renda, né? E quando leva pra fora, eles valorizam mais, dando mais quantia pro sustento.

Observou-se que a cor da pele escura, queimada pelo sol, característica de quem vive no litoral do Nordeste é desvalorizada dentro da comunidade, sendo mais valorizadas pessoas "alvas", um reflexo do racismo embutido na sociedade brasileira. Ouviu-se justificativas de uma moradora da comunidade, como: "Nasceu alvinho, mas aí brincando no sol ficou com esta cor [de pele negra]". Porém, foi relatada identificação com a cor de pele negra por parte dos jovens, a partir de convivência com o movimento negro.

Chamou a atenção o grau de enraizamento e de coletividade que esses jovens vivenciam, por sua ligação à terra, às pessoas com quem convivem e seu desejo de voltar para casa para poder contribuir com a comunidade, sentimentos que superam as vivências de humilhação social.

 

Comunidades Ribeirinhas Amazônicas e os Cabocos

Esta seção apresenta meta-análise de vivências e pesquisas qualitativas, pesquisa-ações e levantamentos socioambientais, realizados entre 2006 e 2014, em comunidades do alto Solimões, no estado do Amazonas. Assim, foram tomadas duas fontes de dados: (a) as vivências do pesquisador nas comunidades ribeirinhas amazônicas, em contato direto com os moradores dessas localidades; (b) meta-análise de diários de campo, publicações e relatórios de pesquisa realizados nessas comunidades, procurando subtrair as experiências de humilhação social vividas pelos cabocos. A partir disso, buscou-se amparo na literatura para demonstrar como a segregação social, que está na base da humilhação social, vem ocorrendo há anos, desde o processo de colonização da Amazônia. Portanto, uma questão psicossocial que gera sofrimento, camuflada pelo forjamento de um tipo ideal amazônico.

Dessa feita, ressaltamos o sentimento de humilhação social dos moradores de comunidades ribeirinhas amazônicas, ao dirigirem-se à cidade em busca de serviços urbanos. A caracterização estereotipada no meio urbano como caboco (termo usado no Amazonas, no lugar de "caboclo"), ou mesmo "cabocão", indica características negativas das pessoas vindas do interior. Mas quem é o caboco? E por que o termo é usado com conotação pejorativa para designar as pessoas da zona rural amazônica?

De acordo com Ribeiro (1995), os caboclos amazônicos surgiram a partir da ocupação da Amazônia pelos portugueses, com a criação dos aldeamentos e pela miscigenação entre os colonizadores e as índias. Essa primeira onda de miscigenação resultou na aparição de uma "sociedade nova de mestiços que constituiriam uma variante cultural diferenciada da sociedade brasileira: a dos caboclos amazônicos" (Ribeiro, 1995 p. 316). Esta nova cultura dos mestiços se caracterizava por um modo de vida com elementos indígenas, ao mesmo tempo em que descaracterizava a vida tribal pelo cotidiano imposto pela colonização. Portanto, os caboclos seriam herdeiros da cultura tribal, no que ela tinha de fórmula adaptativa à floresta tropical, mas já não eram mais os nativos.

Porro (1995) pondera que as tribos originais haviam praticamente desaparecido das várzeas em fins do século XVIII e que os novos povoamentos, com a nova população de caboclos, apesar de ter assimilado uma série de elementos culturais que permitiam a adaptação à várzea, não constituíram um sistema integrado, igual ao indígena, que otimizasse o aproveitamento dos recursos naturais. Esses mestiços, nem indígena nem europeus, são os que foram categorizados como caboclos dentro dessa sociedade colonial estratificada e altamente hierarquizada que se constituiu nesse período.

Nessa linha, Harris (2006) argumenta que a configuração da cultura cabocla não se deu apenas pelo marco da assimilação planejada de índios e mestiços na sociedade colonial, via incorporação destes na economia regional. Deve-se levar em conta outros elementos: os fluxos migratórios, o dinamismo inerente a qualquer cultura, lutas políticas, contexto econômico, etc. De qualquer modo, por meio de uma complexidade de fatores, essa população viria formar o caboclo, entendido como uma categorização de pessoas que partilham de padrões culturais parecidos e que vivem à beira dos rios, igarapés e lagos amazônicos.

A origem mais aceita do termo caboclo, segundo Lima (1999), é a do termo caá-boc, que significa 'aquele que vem do mato' e era usado inicialmente por tribos do litoral para se referirem aos povos do interior. Inicialmente, era usado como sinônimo de tapuio (do tupi: hostil, inimigo, escravo), um termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam para se referirem a indivíduos de outros grupos. Os colonizadores também designavam os índios genéricos assentados dessa maneira, com a mesma conotação de desprezo. Na adoção do termo caboclo, os colonizadores se referiam inicialmente aos índios aldeados e, posteriormente, à população miscigenada, associada a características pejorativas, como indolência e preguiça - imagens presentes nos relatos dos missionários, exploradores, naturalistas e literatos. Segundo Medeiros (2004), caboclo era aplicado também aos portugueses degradados (bandidos, mercenários, sem-terra e pobres), discriminados em Portugal pelo status social que ocupavam.

Atualmente a designação de caboclo é controversa, havendo confusão entre seu uso coloquial e a natureza conceitual a que se refere. Em relação a seu uso coloquial, caboclo está ligada a uma forma de categorização social complexa, que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe (Lima, 1999):

1) Geográfica, pois refere-se a um tipo geral característico da população rural da Amazônia. Esse homem típico evoca a figura de um homem (essencialmente rural e ribeirinho) associado ao ambiente amazônico (rios e floresta). O estereótipo que marca essa imagem liga-se às suas atividades econômicas de subsistência: caça, pesca e extrativismo, que trazem maior apelo e associação à natureza do que a agricultura - por isso não se associa à imagem do mero agricultor. Por outro lado, a imagem da mulher cabocla é menos exótica e associada mais à agricultura e atividades domésticas, e "é apresentada, entretanto, em outro contexto: como a 'caboclinha', simbolizando uma sensualidade mansa" (Lima, 1999:13).

2) Racial, uma vez que nomeia o filho do branco com índio. Esse tipo racial caracteriza mais especificamente a mistura entre o português e a índia, pois a história de colonização amazônica foi marcada preponderantemente pela migração desses europeus, que utilizavam a mão-de-obra escrava indígena e tinham incentivos da Coroa para miscigenação. Migrantes de outros países, bem como a maioria dos negros, foram mais expressivos em outras regiões do país.

3) De classe, por ser usada na construção de uma representação da classe superior amazônica como branca e a classe baixa rural como cabocla - o que, pelo uso da palavra, corrobora para a manutenção da estratificação social que vem desde a colonização e continua mantendo um abismo entre esses segmentos. Caboclo não apenas descreve, mas cria uma estrutura social.

Como se nota, essa categorização social não considera que os nativos amazônicos, de modo geral, possuem uma expressão cultural oriunda da vida calma do interior, em estreita relação com a natureza, que os torna mais silenciosos e um tanto desconfiados. Mais do que isso, identifica pessoas em posições diferentes: o superior, ligado a qualidades urbanas, branca e civilizada. O inferior, que inclui as qualidades rurais, descendência indígena e não civilizada (analfabeta e rústica).

Em algumas comunidades rurais amazônicas se rejeita o uso do termo, por considerar que o caboco é um outro nome para o índio de grupos isolados, imaginados como arredios e incivilizados. Apesar disso, em muitas outras comunidades do interior do Amazonas os moradores se autodefinem como cabocos (ou caboco amazonense), por acharem que o termo designa a vida de quem mora nas comunidades rurais. É como se fosse a nomeação de um tipo regional, característico do Amazonas, e que os representa. No entanto, jovens de Manaus se sentem ofendidos ao serem chamados de caboco, por ser uma estigmatização negativa (Medeiros, 2004). E também se sentem ofendidas pelo mesmo motivo muitas pessoas das cidades da Amazônia, que consideram o caboco como as pessoas do meio rural - atribuindolhes características de preguiça, lerdeza, burrice, etc.

Por isso é que quando moradores das comunidades rurais vão à cidade, muitos deles sofrem preconceito e discriminação por serem oriundos do interior. Sentem a humilhação social por terem um modo de vida diferente daquele associado ao mundo urbano. Foram diversos os relatos que tivemos a oportunidade de ouvir, contando o descaso dos citadinos, especialmente dos representantes do poder público, que atribuem a situação de pobreza do interiorano à mera falta de vontade de ter uma vida melhor - isto é, vida que seria alcançada na cidade. São relatos de desprezo às pessoas vindas do interior e ao morar e viver em comunidades rurais. Por isso muitas delas preferem as agruras, misturada com tranquilidade, da vida no interior.

Como se pode notar, caboco não é um termo fixo a um grupo específico. Trata-se de uma forma de categorização que identifica grupos e também pode ser usado para autodefinição e para lutas políticas, tal como o termo indígena vem sendo usado atualmente por diversos grupos étnicos. Caboco ganha significado concreto por meio de características e estereótipos associados a ele. Das características, há o modo de vida amazônica que torna o caboco singular: habitação, meios de transporte, instrumentos de trabalho, conhecimentos e manejo dos recursos florestais, hábitos alimentares, religiosidade, mitos, sistema de parentesco e outras particularidades sociais. Já a estereotipia do caboco se associa a alguém preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. Igualmente negativos, os traços de sua cultura são associados com atraso, inferioridade e primitivo.

A vida simples do caboco, enquanto figura representativa do morador de comunidades rurais, é ligada à pobreza. Lembrando-se sempre que o ponto de referência para esse julgamento é o padrão de vida urbano opulento. E a depreciação por não alcançarem o progresso (por isso, fracassados) relaciona-se à expectativa de elevada performance (material, econômica, cultural) na Amazônia, tida como reino de riqueza e que não é explorada dada a incompetência docaboclo (Lima, 1999). É pobreza atribuída à herança étnica do ameríndio: indisposição para o trabalho (em oposição ao ideal de produtividade), visualizável pelo modesto padrão de vida.

A indolência não é exclusividade atribuída ao índio ou ao caboco. Martín-Baró (1998) mostra que esta é uma característica atribuída a muitos latino-americanos. Aborda-se a pobreza e incapacidade de alcançar o progresso devido ao fatalismo, isto é, um destino inevitável e premeditado que não pode ser mudado, especialmente por conta das características inerentes a essas pessoas.

Em suma, todas essas visões não levam em conta as reais condições de vida do habitante das comunidades rurais: ambiente de muitas adversidades, abundante só na aparência e permeado por contingências políticas e econômicas bastante desfavoráveis. Tampouco consideram o processo histórico e as lutas de resistência de certos segmentos na constituição desses estereótipos, modo de vida e identidades. E isso tudo se traduz em políticas públicas, nas comunidades estudadas, que são incongruentes com a realidade local e, por isso, estão longe de favorecer qualquer tipo de benefício ou melhoria a essas pessoas.

 

Considerações Finais

Apesar das distintas comunidades estudadas, suas populações distintas e instituições diversas, foram encontradas mais similaridades do que diferenças quanto às vivências de humilhação social. Tais vivências permitiram analisar a produção de um comum subalternizado, aqui relacionado à humilhação social, por se viver em um contexto rural, permeado por outras situações de desigualdade: a relação de humilhação social entre profissionais de saúde e pacientes no quilombo em Alagoas, as vivências de humilhação observadas e relatadas pelos jovens assentados e, por fim, a relação das pessoas do interior com as da capital, no Amazonas, estigmatizando e humilhando o caboco. Segundo Gonçalves Filho (1998a), a humilhação social, embora vivenciada como um sentimento de angústia do sujeito, comumente de forma solitária, é um problema psicossocial, disparado pela desigualdade de classes, étnico-raciais, de gênero, por isso se trata de uma questão coletiva. Dessa maneira, foram observadas questões comuns de vivências de humilhação social, nas quais havia o silenciamento e a invisibilidade na relação entre humilhados e soberbos, em diversas instituições, intermediadas entre a vivência de morar em ambiente rural e relacionadas a situações vivenciadas pelas desigualdades mencionadas.

Diante dessas questões comuns de humilhação social, foram observadas formas diferentes de lidar com esta, que remetem às reflexões de Gonçalves Filho (2007) e de Martín Baró (1998): a ação política, mobilizada pela organização popular, por políticas públicas, relação com instituições e movimentos sociais que favorecem o diálogo e a reflexão coletiva, para ressignificar e valorizar características de grupos historicamente dominados e reificados, como ser negro, ribeirinho, camponês, artesão e povo do mar.

Um dos aspectos analisados que fortalece a valorização do que é ligado ao campo é à participação em grupos, em suas comunidades, quando há encontros em que há oportunidades iguais de fala, em um exercício verdadeiramente político. Para esse fortalecimento, nota-se a importância de movimentos sociais, quando estes fortalecessem essas oportunidades. Essa oportunidade de troca pode alimentar as raízes entre as pessoas do campo e os lugares onde moram, de forma a se sentirem em casa e fortalecidas para a defenderem. Observou-se que outros modos de subjetivação que trazem identificação com a terra e com as comunidades de origem, são atribuídos à importância dos movimentos sociais para transformar o sentimento de humilhação social em orgulho sobre o que é ligado ao campo e fortalecimento das lutas locais.

Assim, diante dessas realidades, o psicólogo poderia atuar no sentido de ajudar na ressignificação do modo de viver desses sujeitos, em atuações que busquem afirmar suas necessidades e transformar sua condição, de modo a integrar as vivências dúbias de fortalecimento identitário, comunitário, na totalidade da vivência cotidiana, incluindo atuações institucionais. Caberia questionar quais recursos estão disponíveis a cada sujeito que os permitam desmistificar as experiências de desigualdade vividas e os processos de dominação a elas subjacentes, de forma a fortalecer as respostas coletivas a partir dessas reflexões. Assim, buscaria fortalecer também as lutas por direitos não só ao acesso digno às políticas públicas, mas ao reconhecimento enquanto grupos socialmente diferenciados.

Finalizando, as pesquisas aqui relatadas contribuem para compreender como a humilhação social pode estar presente em comunidades rurais em diferentes vivências, e como a Psicologia e os estudos acadêmicos podem se inserir nessas comunidades, de forma a identificar essas situações, fortalecer as lutas por direitos e refletir sobre políticas públicas voltadas para comunidades rurais.

 

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Recebido em 20/02/2017.
Revisado em 11/09/2017.
Aceito em 26/09/2017.

 

 

1 Os nomes usados são fictícios para preservar a identificação dos participantes das pesquisas.

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