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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.38 São Paulo jan./abr. 2017

 

ARTIGOS

 

Hormônios atuando controvérsias: produção e proteção de riscos

 

Hormones acting controversies: production and risk protection

 

Hormonas actúan diferencias: producción y protección de riesgo

 

Hormones opérant controverses: production et protection contre les risques

 

 

Juliana Vieira SampaioI; Benedito MedradoII

IProfessora substituta da Universidade Estadual do Ceará (UECE) do curso de graduação em Psicologia (2015 - 2017). Colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (GEMA-UFPE). Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Drogas da Universidade Federal do Ceará (NUCED). julianavsampaio@hotmail.com
IIDocente dos cursos de graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UFPE; coordenador do Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades - GEMA/UFPE (cadastrado no CNPq, desde 1998); integra a equipe da coordenação editorial da Revista Psicologia & Sociedade. beneditomedrado@gmail.com

 

 


RESUMO

Os hormônios, compreendidos como produtos e como parte de processos que produzem dinâmicas humanas, têm agenciado inúmeras práticas na nossa sociedade, inclusive práticas de risco. Apresentamos neste artigo análises sobre como essas substâncias aparecem no discurso biomédico seja como protetoras de risco, seja como potencializadoras ou produtoras de risco. O corpus empírico desta pesquisa se configurou a partir de 34 vídeos veiculados pela industria farmacêutica Bayer, disponíveis em seu canal do YouTube. Para o desenvolvimento dessas análises, realizamos um exercício inspirado na cartografia de controvérsias, proposto por Bruno Latour. Concluímos que a administração dos hormônios se configura como tentativa de controle do futuro, mas também como tecnologia de controle e gestão dos corpos, engendrando uma série de práticas que institucionalizam determinados modos de subjetivação.

Palavras-chave: Hormônios; Risco; Modos de Subjetivação; Controvérsias; Atuantes.


ABSTRACT

Hormones, understood as products and as part of processes that produce human dynamics, have acted innumerable practices in our society, including risky practices. We present in this article part of the results of a doctoral thesis in psychology, focusing on the analysis of how these substances appear in biomedical discourse either as risk protectors, as potentialisers or producers of risk. The empirical corpus of this research was configured from 34 videos transmitted by the pharmaceutical industry Bayer, available in its Youtube channel. For the development of these analyzes, we carried out an exercise inspired by cartography of controversies, proposed by Bruno Latour. It was concluded that the administration of hormones is an attempt to control the future, but also as a technology for the control and management of bodies, engendering a series of practices that institutionalize certain modes of subjectivation.

Keywords: Hormones; Risk; Modes of Subjectivation; Controversies, Actants


RESUMEN

Las hormonas, entendidas como producto y como parte de los procesos que producen las dinámicas humanas, han promocionado numerosas prácticas en nuestra sociedad, incluidas prácticas de riesgo a la salud. Presentamos aquí parte de resultados de la tesis de doctorado en psicología, que se centra en el análisis de la forma en que aparecen estas sustancias en el discurso biomédico - que es tan protectora de riesgo, ya sea como potenciadores o productores de riesgo. El corpus empírico de esta investigación se establece a partir de 34 videos servidos por la industria farmacéutica Bayer disponible en su canal de YouTube. Para el desarrollo de este análisis, se realizó un ejercicio inspirado en la cartografía de controversias, propuesto por Bruno Latour. Llegamos a la conclusión de que la administración de hormonas se configuran como un intento de controlar el futuro, sino también como tecnología de control y los órganos de gestión, generando una serie de prácticas que institucionalizan ciertos modos de subjetividad.

Palabras clave: Hormonas; Riesgo; Modos de Subjetividad; Controversias, Actantes


RÉSUMÉ

Les hormones, comprises comme des produits et faisant partie de processus produisant une dynami-que humaine, ont eu d'innombrables pratiques dans notre société, y compris des pratiques à risque. Nous présentons dans cet article une partie des résultats d'une thèse de doctorat en psychologie, centrée sur l'analyse de la façon dont ces substances apparaissent dans le discours biomédical en tant que protecteurs de risques, potentiels ou producteurs de risques. Le corpus empirique de cette recherche a été configuré à partir de 34 vidéos transmises par l'industrie pharmaceutique Bayer, disponibles sur sa chaîne Youtube. Pour le développement de ces analyses, nous avons réalisé un exercice inspiré de la cartographie des controverses, proposé par Bruno Latour. Il a été conclu que l'administration des hormones est une tentative de contrôler l'avenir, mais aussi une technologie de contrôle et de gestion des corps, engendrant une série de pratiques qui institutionnalisent certains modes de subjectivation.

Mots-clés: Hormones; Risque; Modes de subjectivation; Controverses, Actants


 

 

Introdução

Os hormônios, compreendidos como produtos e como parte de processos que produzem dinâmicas humanas, têm agenciado inúmeras práticas na nossa sociedade, inclusive práticas de risco. Neste artigo, apresentamos análises sobre os processos a partir dos quais essas substâncias aparecem no discurso biomédico seja como protetoras de risco, seja como potencializadoras ou produtoras de risco.

Os hormônios configuram-se, assim, como atuantes ou nas palavras de Bruno Latour, como "mediadores que transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado dos elementos que se supõe que devem carregar, ou seja, não se posicionam de maneira estanque como meros intermediadores" (Latour, 2012,p.65). E, como atuantes, os hormônios têm assumido importância nas formas de relação consigo, produzindo novas conformações de eus.

Assim, essas substâncias podem se configurar também como uma estratégia contínua de poder, na medida em que o corpo se constitui em ferramenta de governo que se exacerba com a administração de hormônios, na medida em que essas estratégias de controle pelo/sobre o corpo (compreendido aqui como superfície de inscrição da verdade e foco de intervenção política) se confundem e se misturam (Hüning, 2008; Preciado, 2008).

Os hormônios não estão envolvidos apenas na trama relativa aos processos de saúde e adoecimento, mas no imperativo de felicidade e que se articula ao controle dos riscos. Os hormônios atuam como dispositivo de governo de si, atrelado às mudanças que são imprevisíveis, tendo efeitos variados de acordo com a rede em que se estabelece (Galindo, Vilela & Moura, 2012).

Para composição do corpus de análise, focalizamos o conteúdo midiático, disponibilizado pela industria farmacêutica Bayer (uma das maiores instrústrias farmacêuticas do mundo que comercializam hormônios, em larga escala), acessíveis em seus canais do YouTube da Bayer: Expressão Feminina e Bayer Brasil. Foram selecionados 34 vídeos, que abordavam, direta ou transversalmente, o uso de hormônios.

Para o desenvolvimento de nossas análises, realizamos um exercício inspirado na "cartografia de controvérsias", proposto por Bruno Latour (2007) e aplicado por Mariana Moreira (2014) em sua tese de doutorado. Como bem destaca Moreira (2014), esse exercício compreende as estratégias metodológicas que, propositalmente, afastam-se do "apaziguamento e do silenciamento dos ruídos, embates e dissonâncias [...] em busca de ferramentas que façam reverberar sons, multiplicar vozes" (p. 36).

Assim, segundo a autora, ao propormos traçar uma cartografia de controvérsias, reconhecemos a produção de conhecimento como um processo-intervenção que reconhece seu caráter processual, situando sua parcialidade, incompletude e provisoriedade.

Do ponto de vista prático, a análise consistiu no exercício de navegar pelos websites identificados, na transcrição de todos os vídeos selecionados e na construção posterior de linhas de análise, orientadas pelas leituras produzidas a partir da revisão da literatura, buscando-se traçar planos comuns de análise (Kastrup, 2013).

No curso deste texto, discutiremos inicialmente o desenvolvimento da sociedade de risco, para então, explorar a gestão do risco pelo saber biomédico, em relação aos hormônios. Com isso, debateremos também sobre a noção de prevenção de risco e como tais práticas têm produzido, potencializado ou deslocado modos de subjetivação em nossa sociedade.

São Problemas Sérios, mas o Risco que isso Aconteça é Extremamente Baixo

Segundo Mary Jane Spink (2012), existem diversos modos de compreender os sentidos de risco, porém, uma das formas mais comuns é o que o associa a um acontecimento desfavorável, principalmente, quando está conectado com o controle dos corpos e da população. A partir disso, tal conceito emerge em oposição à concepção de que o futuro é incerto e caótico, que estaria submetido às forças que não temos controle, antagonizando com a ideia de fatalidade, de acaso e não controle.

Contudo, Spink (2012) classifica o risco a partir de três tradições diferentes ao longo da história desse conceito: 1) risco-perigo, que antecede a emergência da palavra risco e faz referência aos problemas sob os quais não se tinha controle; 2) risco-probabilidade, ligado a ideia de governamentalidade e a necessidade de controlar a população, tendo a epidemiologia como uma das suas principais áreas de referência; 3) risco-aventura, que incorpora a noção de correr risco, sendo o risco algo desejado e buscado, esta noção envolve práticas mais recentes, especialmente, no campo do esporte e economia. Nessa leitura, os sentidos de risco ultrapassam a usualmente negativa e fatalística de risco.

Em adição, Vera Menegon (2003) sugere outro modo de classificar o risco: 1) risco externo, que inclui problemas ambientais e exclusão social; 2) risco corporificado, advindo da constituição genética e física do sujeito; 3) risco associado ao estilo de vida, que seria teoricamente o mais fácil de controlar, pois dependeria somente da educação e vontade do sujeito.

Nesse exercício, a autora ainda apresenta as diferentes origens da palavra risco em diversas culturas e momentos históricos:

As versões sobre as origens da palavra risco são conflitantes. Conforme pesquisa realizada por Spink (1997; 2000c), o primeiro registro da palavra data do século XIV, riesgo em castelhano. Nessa época, porém, não apresentava conotação clara de um perigo que se corre, o que vai acontecer apenas no século XVI. A hipótese etimológica mais aceita - a espanhola - é que tenha derivado de resecare (cortar), utilizada para "descrever penhascos submersos que cortavam os navios. Surge daí seu uso moderno de risco como possibilidade - mas não como evidência imediata (Spink, 2000c:161). A autora cita ainda duas o utras hipóteses etimológicas - risco como derivativo do grego clássico raiz; e do árabe rizq. Na língua inglesa encontra-se registro da palavra risk a partir de meados do século XVII (Menegon, 2003, p. 62, grifo da autora).

Em linhas gerais, o risco parece se estruturar em uma possibilidade de domesticação do futuro. O modo de compreender e se relacionar com o tempo irá mudar com a proposta de gestão de risco, pois este está baseado no controle e na previsibilidade do futuro, tendo como fundamento os cálculos e dados probabilísticos.

Em nossa pesquisa, percebemos que o risco é tema recorrente (central ou secundário) de inúmeros vídeos produzidos pela Bayer. Geralmente, a abordagem é a apresentação dos hormônios como substâncias que trazem importantes benefícios para a qualidade de vida de quem o administra e que são fármacos bastante seguros, apresentando uma baixa taxa de risco para a saúde. Mesmo quando o risco se apresenta ele é sempre considerado irrisório e controlado pelo saber biomédico, que se baseia na visão biologicista e mecanicista do corpo, tendo como foco a exploração da sua capacidade de produção (Foucault, 2009).

Na cena a seguir, por exemplo, uma jovem relata seu medo em relação aos riscos que envolvem o uso de anticoncepcionais, enquanto a médica a tranquiliza informando que tais substâncias apresentam pouco perigo à saúde.

Amy: Há efeitos colaterais ou risco de saúde com a pílula?

Dra. Paula: Há um número mínimo de efeitos colaterais associados a pílula como: mudanças de peso, náuseas, sensibilidade mamária, e dores de cabeças são bastante comuns e esses sintomas costumam a diminuir geralmente nos primeiros meses. Há alguns potenciais efeitos colaterais que são graves e significativos, mas afetam um número baixíssimo de mulheres como o TVP (trombose venosa profunda) - um coágulo sanguíneo na perna que caso se alastra até o pulmão pode ser fatal e também coágulos no coração que podem também levar a um ataque cardíaco ou um derrame. São problemas sérios, mas o risco que isso aconteça é extremamente baixo e nós como médicos aconselhamos e enfatizamos esses riscos às mulheres, é uma das razões pelas quais checamos a pressão do sangue, histórico de fumante, se há um histórico familiar de coagulação no sangue, são coisas que nos pode alertar sobre o fato de haver um problema mais sério (Bayer, 2016a).

Nesse diálogo, a médica descreve tanto os efeitos colaterais das pílulas anticoncepcionais, que são apontados como riscos insignificantes e passageiros, apesar de mais prevalente, e o risco de tromboembolismo que seria um risco grave, mas de baixa incidência. Independente do risco ser pequeno ou grave ele é descrito como previsível e sempre controlado pelo médico.

Segundo autores como Ulrich Beck (1999) e Antony Giddens (1991), as recentes mudanças pelas quais passa a sociedade contemporânea envolvem, entre outras coisas, uma mudança de perspectiva em que o problema da falta passa a conviver com as consequências do excesso. Hoje, não nos preocupamos somente com a fome e a miséria, mas com a obesidade crônica. Não nos preocupamos apenas em dar, cada vez mais, acesso gratuito aos transportes e a construir veículos cada vez mais velozes, mas também tomamos iniciativa para reduzir os engarrafamentos e nos preocupamos com efeitos nocivos da queima de combustível para a camada de ozônio.

Emerge, portanto, uma nova mentalidade: a percepção crescente de que os riscos são sistêmicos, acompanhada da consciência da imponderabilidade dos riscos e da necessidade de mecanismos igualmente complexos de gestão da vida. Há, assim, uma tendência à desnormalização, sendo a norma substituída pelo imperativo da opção.

Assim, nos dias de hoje, é possível perceber uma coexistência de dispositivos disciplinares1 múltiplos, desenvolvidos a partir do século XVII, que incorporam desde estratégias centradas no corpo-máquina, que deve ser formado e corrigido para adquirir obediência e utilidade; como também tecnologias desenvolvidas em meados do século XVIII centradas no corpo-espécie, suporte dos processos biológicos (nascimento, saúde, mortalidade etc.), englobando as técnicas de governo das populações, baseadas em estratégias de biopoderes, sendo este, o poder sobre a vida e a morte (Spink, 2001; Foucault, 2009).

Nesse processo, o saber biomédico emerge como protetor dos pacientes das situações de risco, na medida em que este traça o futuro dos sujeitos a partir do seu histórico familiar, exames e hábitos. Foi no contexto da saúde e também da economia que a linguagem de risco se consolidou, porém, ela tem uma história prévia (Spink, Medrado & Méllo, 2002). Essa noção de risco, apresentada no vídeo, que é ligada ao controle do futuro se delineia no século XVII com os jogos de azar, quando se passou a calcular a probabilidade de perdas e ganhos nestas atividades, já no século XVIII foi o campo das negociações de seguros marítimos que adotou a linguagem de risco, enquanto que no século XIX, com o crescimento dos estudos econômicos, se tornou comum a avaliação dos riscos em determinada negociação (Spink, 2001).

Mary Jane Spink (2001) afirma que há uma mudança na sociedade a partir da noção de risco, que é o deslocamento do foco na gestão da vida, característico da sociedade disciplinar, para a gestão do risco. Essas novas modalidades de biopoder,que surgem com o risco, não excluem o poder disciplinar, que atua no corpo e é baseado na normatização, mas inauguram diferentes técnicas de investigação e controle, mais refinadas e sutis, dos indivíduos e da população.

Tais técnicas de regulação, associadas ao risco, tornam-se cada vez mais centrais, principalmente, a partir do século XX, como reação a intensificação dos movimentos de contestação à normatização (Spink, 2001). Dessa forma, os mecanismos de controle tornaram-se cada vez mais eficientes e engenhosos, já que, somente a instituição da norma não era mais suficiente para desempenhar esta função de governo dos indivíduos.

Autores como Beck (1999), Giddens (1991), Spink (2001), Spink, Brigagão, Nascimento, Cordeiro (2014) irão propor que a sociedade na qual vivemos, a partir do século XX, pode ser concebida como sociedade de risco, pois esta noção passa a organizar diversos tipos de relação e modos de subjetivação.

Conforme Spink (2001), na modernidade tardia houve uma ruptura das certezas, racionalidade e controle característico da modernidade, para a multiplicação das incertezas e a imprevisibilidade dos eventos, com isto, a relação com tempo e espaço se modifica e a noção de risco passa a ser utilizada como estratégia de governamentalidade, que são técnicas de dominação exercidas sobre os outros articuladas a técnicas de si.

A partir disto, destacam dois movimentos contrastantes em relação à noção de risco: por um lado, alia-se ao esforço de pôr ordem em uma sociedade crescentemente mais complexa, em uma perspectiva de culpabilização e responsabilização na qual o risco deve ser gerenciado, própria de uma estratégia de governamentalidade; por outro, o risco emerge como contraposição às tentativas de ordenação dos espaços sociais, tensionando o gerenciamento de riscos (Hillesheim; da Cruz, 2008, p.193).

O foco na gestão de risco promove mudanças tanto na concepção do que é risco, como nas estratégias de governo da população e dos indivíduos, pois, neste contexto, a ideia de risco passou a se relacionar com a noção de incerteza, perigo. O risco é percebido como algo sistêmico e imponderável, devido à complexidade da nossa sociedade. Desse modo, são necessários, então, mecanismos igualmente complexos que garantam o controle do futuro a partir de modificações no presente. É no período da Segunda Guerra Mundial que se intensificam tais técnicas de controle do risco e com isso se populariza o campo de estudo da análise dos riscos.

São os estudos probabilísticos que irão embasar a linguagem de risco e é a partir desses jogos com os significados dos números que os médicos irão defender o uso dos hormônios e minimizar os possíveis danos à saúde do paciente. O cálculo do risco não é determinístico, mas incerto, tanto para médicos como para os pacientes reais ou potenciais (Rose, 2013).

No trecho que segue, o médico do vídeo, Dr. César, apresenta as estatísticas de câncer de mama entre mulheres que fazem reposição hormonal, utilizando tanto os números absolutos, como porcentagens para afirmar que a mídia tem sido tendenciosa quando apresenta os estudos sobre o aumento de risco de câncer entre pacientes que fazem uso de hormônio.

Regina Bittar: Estamos de volta com o quarto bloco do programa expressão feminina da Bayer, nós vamos continuar falando sobre os riscos da terapia de reposição hormonal. Doutor César, por favor continue. Os riscos da terapia hormonal e o maior medo das mulheres é o risco do câncer de mama, então, por favor, continue.

Dr. César: Muito bem lembrado, eu acho que não adianta você listar os inúmeros benefícios da terapêutica hormonal e querer contrapor esse benefício com o risco mais temido das mulheres de um modo em geral e que de certa forma se vinculou a terapêutica hormonal. Eu acho que é importante a gente dar números para isso para que as pessoas nos entendam com clareza, a medicina e os trabalhos científicos têm hoje um bom conhecimento desses números e colecionam esses números através dos chamados estudos controlados em que você pega um lote de mulheres e faz reposição hormonal e você pega outro lote de mulheres e não faz reposição hormonal e dar um remédio que chama placebo - um remédio de mentirinha. Então você consegue ao longo do tempo nesse contingente enorme de mulheres colecionar casos de câncer de mama de um lado e do outro. Anualmente esse risco é atualizado por dez mil mulheres. O que significa? Pegamos um lote de dez mil mulheres, em 2010 caminhamos com elas de janeiro de 2010 a janeiro de 2011 e aí vamos ver quantos casos de câncer tem no grupo de terapêuticas hormonal e quantos casos tem no de não usuárias, de placebo. O que se sabe hoje é que num lote de dez mil mulheres ao longo de um ano no grupo de não usuárias você acumula 30 casos num lote de dez mil mulheres entre os 50 e 70 anos de idade, nos grupos de terapêuticas hormonal os números de casos é exatamente o mesmo de 30 casos entre dez mil mulheres, então nos primeiros 5 anos não há aumento de risco, depois dos 5 anos não aumenta o risco, então é tempo dependente, se a mulher passar dos 5 anos aumenta o risco. E eu queria dizer o quanto é esse risco. Regina Bittar: Mas passados os 5 anos da utilização da reposição hormonal, então quer dizer que tem um tempo determinado para a reposição hormonal?

Dr. César: Se as mulheres usam a terapêutica hormonal por mais de cinco anos, ou seja, seis anos, sete anos aí o risco aumenta. Aumenta quanto? Ao invés de 30 casos a cada dez mil mulheres, passa a ser de 38 casos em cada dez mil mulheres, ou seja, você adiciona 8 casos sob aqueles 30. E eu costumo dizer que num lote de dez mil mulheres que usaram a terapêutica hormonal por mais de cinco anos, 8 delas num lo te de dez mil vai ter risco aumentado por conta da intervenção que está sendo feita, por conta da terapêutica hormonal.

Regina Bittar: Mas durante esse período de 5 anos o risco não aumenta?

Dr: César: O risco não aumenta.

Regina Bittar: Vocês sabiam disso? (Se dirigindo às mulheres da plateia)

Dr. César: Agora eu queria complementar, desculpe a minha insistência, porque isso é fundamental. Então, 8 em 10 mil significa que nove mil novecentas noventa e duas mulheres num lote de dez mil não vão correr risco e eu não posso penalizar nove mil novecentas e noventa e duas mulheres porque oito nesse contingente de dez mil vão ter câncer de mama. Frequentemente nós passamos de maneira equivocada para mídia esses números, nós médicos cometemos esse pecado porque a mídia nos pede para falar em percentuais. Quanto a mais de aumento? Então oito sobre trinta dá 26,66%, então nós sabemos que o risco aumenta em 26,66%. E a paciente que nos ouve 26,66% é um risco inaceitável, ela imagina que uma entre 4 mulheres para arredondar os números.

Regina Bittar: Porque ela está vendo do todo.

Dr. César: Porque a pessoa olha os 26% é um quarto de 100%, então ela acha que 1 entre 4 mulheres vai ter câncer de mama. E não, a incidência é muito baixa e mais do que isso, o diagnóstico da mulher que teve o câncer de mama no mesmo estágio da doença, comparada com uma mulher que estava em terapêutica hormonal e outra que está sem terapêutica hormonal, a que está em terapêutica hormonal tem muito mais sobrevida, o câncer é muito menos agressivo do que na mulher que tem a terapêutica hormonal.

Regina Bittar: Ah! Tem isso, tem a diferença?

Dr. César: Normalmente tem um ganho imunológico que esse hospedeiro tem quando tem a terapêutica hormonal frente ao risco (Bayer, 2016b, grifo nosso).

Vale ressaltar que as pesquisas quantitativas são, geralmente, percebidas como neutras, pois os números conseguiriam representar a realidade de modo objetivo, porém, o diálogo entre o médico e a apresentadora mostra o uso político e estratégico dos números (Spink e cols 2002). Quando o médico apresenta o aumento do número de casos de câncer entre mulheres que fazem reposição hormonal com o uso de números absolutos, faz parecer que se trata de uma quantidade mínima e aceitável. Por outro lado, quando esses mesmos dados são descritos a partir do percentual de aumento de casos de câncer, tal quantidade parece ser inadmissível e muito arriscado.

Como adverte Vera Menegon (2003), mesmo elencando todos os benefícios da reposição hormonal, inclusive como elemento que torna o câncer de mama menos agressivo, hoje, faz parte do protocolo médico comunicar e negociar com os usuários também, quais são riscos de cada intervenção, desta forma, a responsabilidade passa a ser dividida entre médico e paciente.

O profissional da saúde não pode garantir se a mulher irá fazer parte do grupo de 9962 sujeitos que não apresentarão câncer de mama ou do grupo de 38 mulheres que irão desenvolver a doença. É o contraste entre os dados numéricos que irá incentivar ou inibir a procura por hormônios, deste modo, os usos dos números são sempre estratégicos.

Os sujeitos tomam suas decisões baseados nas informações fornecidas pelos médicos, porém, mesmo que o saber biomédico seja considerado científico, e com isso adquira status de verdade, não é possível ele prever e controlar o futuro dos pacientes, apenas indicar probabilisticamente, a partir de pesquisas e casos anteriores, o risco de se submeter a terapia hormonal.

A mudança no modo como nos relacionamos com o tempo é um dos fatores marcantes na gestão de risco como do mecanismo de poder, pois este deixa de ser contínuo e passa a operar sobre o futuro (Hillesheim, Da Cruz, 2008). Justifica-se assim, realizar intervenções no presente baseadas em projeções futuras obtidas por especialistas por meio do cruzamento de dados estatísticos.

O risco trabalha a noção cronológica a partir da lógica causa e efeito, pois as alterações no presente garantiriam o controle do futuro. A tradição racionalista perpassa a gestão do risco, na medida em que se supõe que com conhecimento sobre o presente é possível predizer o que acontecerá futuramente e com isso dominar o que está por vir. O futuro é gerido no presente.

E Quando Você Tem uma Carga Genética?: Prevenção como Instrumento de Regulação

Com o advento da modernidade tardia, as estratégias médicas pretendem ser principalmente preventivas. A prevenção, atualmente, acontece, muitas vezes, pelo rastreamento dos riscos dos sujeitos. Nesse sentido, o sujeito, a partir de cálculos, torna-se objeto de invenções sanatórios, apesar de não apresentar qualquer queixa em relação a própria saúde. Cada um passa a ser percebido como um doente que ainda não apresentou sintomas.

Em nossa pesquisa, os hormônios aparecem nos vídeos da Bayer não só como substâncias que aumentam o risco de desenvolver doenças, mas também, como algo capaz de trazer benefícios para a vida dos sujeitos tanto no presente, como no futuro. No caso abaixo, o médico apresenta uma série de ganhos em relação à saúde das mulheres que são adeptas da reposição hormonal.

Regina Bittar: é terrível. Doutor e os riscos, quais são?

Doutor César: Então, antes de falarmos dos riscos que vão esclarecer com todos detalhes porque é importante esclarecer os riscos eu queria lembrar que existem alguns benefícios que não são muito claros, mas são relevantes, por exemplo, a paciente que inicia a terapêutica para alivio dos sintomas ela ganha alguns benefícios entre os quais os mais relevantes que seriam reduzir os riscos das osteoporoses, das fraturas osteoporóticas que é uma doença predominantemente de mulheres em que a fragilidade óssea, o comprometimento do osso tem relação direta com a queda de hormônios que começa a ser construído nesse momento, então a mulher que faz a terapia hormonal ela preserva a microarquitetura do osso, a resistência óssea e ela é menos vitimada lá pros 65, 70 anos de idade a sofrer as fraturas osteoporóticas- são fraturas dos corpos vertebrais, fraturas do colo do fêmur, que são doenças muito difíceis para quem enfrenta esse problema que seria o benefício. O outro benefício de magnitude muito grande é redução dos riscos de doenças cardiovasculares especialmente do infarto miocárdio para a mulher que inicia o seu tratamento num momento oportuno (...) uma mulher que tem sua menopausa aos 50 anos ela vai ter fratura osteoporótica por volta dos 65, 70 se não fizer reposição hormonal e se fizer vai ter uma redução desse risco. Uma mulher que tem menopausa aos 35 anos vai ter as suas fraturas osteoporóticas por volta dos 50 anos de idade, então guarda a relação com o tempo de deficiência hormonal. Para concluir, para ser rápido porque senão você fica brava comigo e me interrompe. Regina Bittar: Temos todo tempo do mundo, dez minutos.

Doutor César: Eu gostaria de acrescentar que um dos benefícios é reduzir o processo aterogênico, o das placas de ateromas que se formam na parede das artérias coronarianas e que impõe um risco maior as doenças cardiovasculares. Existem um corpo de evidências médicas muito sólido mostrando que se começar num momento oportuno essas mulheres ganham, agregam esse benefício de redução de risco de infarto do miocárdio (Bayer, 2016c, grifo nosso).

Esse diagnóstico antecipado, de um problema que talvez venha a acometer o sujeito futuramente, traça uma antecipação dos riscos e com isso uma terapia precoce, baseada na prevenção.

O médico descreve uma série de benefícios que a reposição hormonal pode trazer para o futuro, como a prevenção da osteoporose e de doenças cardiovasculares. Administrando tais substâncias os sujeitos não só tratariam os variados sintomas da menopausa, como irritabilidade e fogachos2, mas garantiriam uma velhice mais saudável por meio da prevenção de riscos futuros.

É a partir de estratégias de poder que se previne o risco, pois se torna necessário vigiar os sujeitos, antecipando acontecimentos indesejáveis entre aqueles grupos mais propensos ao risco. Tal modelo de vigilância se diferencia das técnicas disciplinares, estratégias e táticas de controle do corpo, pois a prevenção do risco não se dirige ao indivíduo e sim aos fatores de risco, "desconstruindo o sujeito concreto da intervenção e recompondo-o a partir de uma combinação sistemática de todos os agrupamentos suscetíveis de produzir risco" (Hillesheim, Da Cruz, 2008, p.195).

No caso do uso de hormônios, é traçado um perfil dos sujeitos que estão mais susceptíveis a desenvolver determinada doença, isto é, aqueles que apresentam um risco aumentado. A suscetibilidade se conecta aos esforços de identificação e tratamento, no aqui e agora, de doenças que possivelmente se desenvolverão futuramente (Rose, 2013). Somente para esse grupo de pacientes, com risco aumentado, é que a terapia hormonal se tornaria arriscada, como explica o médico para uma das convidas:

Mulher 1: E quando você tem uma carga genética?

Dr: César: A carga genética ela corre independente da terapêutica hormonal, por exemplo, se a paciente nos conta "a minha mãe teve câncer de mama, a minha tia teve câncer de mama, a minha avó teve um câncer de mama". Essa paciente teve um risco aumentado de ter o câncer de mama, esse risco familiar e isso não tem nada a ver com a terapêutica hormonal, esse risco ela já tem independente de fazer a terapêutica hormonal.

Regina Bittar: Mas nesse caso ela seria indicada para fazer a terapêutica hormonal?

Dr: César: Eu acho que nesse caso ele teria que ser mais parcimonioso, talvez encurtar o tempo dela a exposição hormonal, a depender da resposta que ela tenha com o tratamento. O que eu quero deixar consignado aqui, que eu acho importante nessa nossa conversa, é que é para o livre arbítrio do médico, compartilhando os dados com o paciente, estender esse tratamento por mais de 5, 6, 7 anos. Vai depender de cada caso, algumas mulheres quando você interrompe o tratamento alguns sintomas reincidem de forma importante e elas precisam retornar ao tratamento (Bayer, 2016b).

Segundo Nicholas Rose (2013), a discussão da genética na atualidade é uma certa continuidade de dois conceitos importantes para o saber biomédico, que são: 1) a predisposição, que se refere ao sujeito herdar traços dos seus progenitores que podem interferir na sua saúde; 2) o risco, que no campo da saúde esteve relacionado inicialmente aos estudos epidemiológicos. A associação entre os estudos sobre a genética e a tentativa de controlar o futuro, promove uma busca para determinar precisamente em qual molécula está localizada determinada doença e como ela irá se desenvolver.

Atualmente, uma série de exames clínicos e laboratoriais são realizados pelos médicos, além da investigação dos hábitos dos pacientes, do histórico de doenças familiares para que o profissional possa indicar o melhor modo do sujeito se conduzir e assim, diminuir os riscos de desenvolver problemas de saúde no futuro. É traçado, então, um perfil de risco, área de estudo que começou a se desenvolver ao longo do século XX com o objetivo de identificar aqueles que apresentam um risco maior que a média de desenvolver determinada patologia (Rose, 2013).

A construção do perfil de risco tem o propósito de intervir previamente para que o perigo eminente não se concretize. Tecnologias foram criadas para a avaliação de risco, previsão de risco e administração de risco, discriminado os sujeitos a partir de grupo classificados por idade, gênero, raça, peso, ou mesmo comportamentos, como o uso de drogas, por exemplo.

Dessa forma, as intervenções médicas atuariam revelando doenças, até então, invisíveis com o objetivo de otimizar o futuro dos sujeitos (Rose, 2013). Qualquer pessoa, a partir dessa lógica, se torna um pré-paciente, na medida em que todos estão susceptíveis ao risco de desenvolver alguma doença futuramente. O risco não é determinado pela existência de perigo, mas pela probabilidade do aparecimento de doenças ou condutas indesejáveis.

O diagnóstico precoce é importante não só para detectar quem faz parte da população em risco, mas também para avaliar o grau de gravidade atribuída ao risco e determinar possíveis estratégias de controle que o próprio indivíduo pode exercer para diminuir o seu risco de desenvolver determinada doença (Menegon, 2003).

As pesquisas sobre risco na área da saúde, geralmente, têm um caráter epidemiológico que propõe avaliar a probabilidade de determinado dano indesejado ocorrer. A epidemiologia funcionou como porta de entrada para a discussão de risco na saúde, sendo inclusive um conceito central para esta área do conhecimento (Menegon, 2003).

Ao longo do século XX, (...) a epidemiologia, que buscava identificar exaustivamente os determinantes externos do adoecimento, integrando-os nas totalidades sintéticas designadas como meio externo, passou a delimitar relações causais analíticas e abstratas, na forma de associações de caráter probabilístico.

Traduzidas no conceito de risco epidemiológico, este construto torna-se elemento central para as práticas de saúde atuais (Ayres, 2011, p. 1302).

Baseada nos estudos epidemiológicos e das ciências sociais, Vera Menegon (2003) apresenta o risco tendo como referência três planos: 1) vulnerabilidade individual, que considera o conhecimento do sujeito e a forma como ele se comporta a fim de evitar adoecer; 2) vulnerabilidade programática, que leva em conta o acesso aos serviços e profissionais de saúde; 3) vulnerabilidade social, que avalia o perfil da população atingida por algum agravo de saúde. A noção de vulnerabilidade, nesse caso, remete a uma espécie de indicador de exposição do indivíduo a ocorrência de riscos (Castel, 1997).

Existem diversos métodos para analisar as chances de um fenômeno indesejado ocorrer, como por exemplo, a avaliação do risco absoluto e do rico relativo. O risco absoluto mostra quantos casos da doença aparecem no grupo em um dado período, enquanto que o risco relativo é uma relação da probabilidade do evento danoso ocorrer no grupo exposto, no caso aos hormônios, contra o grupo controle (não exposto).

No recorte abaixo, de um dos vídeos da Bayer, o médico questiona a confiabilidade da avaliação de risco por meio do risco relativo, já que apresentam dados desfavoráveis ao uso de hormônios, devido ao alto risco de tromboembolismo. O médico argumenta que a avaliação por meio do risco absoluto seria muito mais confiável, demonstrando assim, o baixo índice de tromboembolismo.

Dr. Rogério Bonassi: Todos nós sabemos que o risco relativo é a pior maneira de se analisar riscos, principalmente em doenças que são raras, como o tromboembolismo. Então nós precisamos transportar isso para o risco absoluto, depois de transportar isso para o risco absoluto ver a metodologia desses estudos e depois que soubermos de as características da metodologia desses estudos comparar com outros estudos que também estão disponíveis. Então vou começar por esse ponto. Qual seria então o impacto desse risco relativo sobre o risco absoluto da doença tromboembólica? Então, se a gente pegar o modelo que é o modelo muito simples de ver a incidência dessa doença em mulheres ao ano, então não usuárias de anticoncepcional oral combinado em cada 10 mil mulheres 4 casos de trombose ao ano, então 4 a cada dez mil mulheres ao ano, muito baixa incidência. Tomando anticoncepcional, qualquer anticoncepcional 9 casos para cada 10 mil mulheres ao ano. Se eu colocar esse 9 e fizer uma média mais ou menos dos estudos da British Medical Journal eu vou ver que vou acrescentar 5 a 6 casos a mais de tromboembolismo em 10 mil mulheres, o que é muito baixo, isso pensando na pior perspectiva, então colocaria ao invés de 9 casos, eu colocaria 15 a 16 casos em dez mil que continua sendo um risco absoluto muito baixo. Existem pelo menos quatro estudos dessa natureza, muito bem alinhados, já com resultados publicados e esses resultados não mostram aumento no risco de tromboembolismo com os anticoncepcionais que contém drospirenoma comparados aqueles que contém levonogestrel. No entanto, vale lembrar sempre das questões numéricas que envolvem esse problema, que pro médico é mais fácil de solucionar porque ele conhece a doença, ele sabe da baixa incidência do tromboembolismo, ele sabe que são poucos casos numa população e ele sabe inclusive que o tromboembolismo venoso na gravidez e no pós parto é muito maior do que durante o uso do anticoncepcional, então, tudo isso é colocado pro médico de uma maneira numérica e ele tem que transportar esses conhecimentos, traduzindo esses conhecimentos em segurança para as mulheres. Seria necessário a mudança de prescrição, a mudança do hábito em se prescrever anticoncepcionais? Nós médicos pararíamos de utilizar anticoncepcionais mais recentes por causa desses dados? Eu acredito que não, eu acredito que a maioria dos ginecologistas que tratam diretamente desse assunto não vai mudar seu hábito de prescrição envolvendo a avaliação individual das mulheres e é claro que ele vai poder colocar como sempre colocou, esse pequeno risco tromboembólico que pode ocorrer independente da formulação do anticoncepcional combinado que ele escolha para a sua paciente (Bayer, 2016d, grifo nosso).

No caso descrito, os dados epidemiológicos só seriam úteis para os médicos, que são especialistas e compreenderiam de modo correto as informações das pesquisas. Os pacientes, como supostos leigos no assunto, deveriam confiar ao médico a análise correta dos riscos.

A noção de gestão individualizada de risco ligada ao uso de hormônios é articulada a uma série de fatores que envolve desde a propensão genética até os hábitos dos sujeitos. Os médicos sempre destacam que não é o estrogênio, a progesterona ou a testosterona que provocam câncer de mama, câncer de próstata ou tromboembolismo, já que essas substâncias já fazem parte do corpo do sujeito e produzem benefícios para a saúde.

Os profissionais informam que o problema é a existência de pessoas já susceptíveis a desenvolver determinadas doenças, e o uso de hormônios funcionariam como disparadores, elevando assim os riscos de apresentar uma dada patologia. Os relatos de dois médicos diferentes, um falando sobre o rico de câncer de próstata e o outro do câncer de mama, exemplificam a lógica da suscetibilidade.

Dr. Aguinaldo Nard: é importante salientar que a reposição de hormônio no homem não causa câncer de próstata, mas ela pode muito bem acelerar o crescimento de um tumor caso o paciente tenha, por isso é importante que o homem antes de tomar o hormônio ou fazer qualquer tipo de tratamento procure o urologista (Bayer, 2016e).

Doutor César: Toda intervenção médica, qualquer intervenção médica que vá se propor a um paciente é importante que se contextualize riscos e benefícios. Se você vai propor uma intervenção é porque você imagina em primeira instância que isso vai trazer benefícios aos pacientes, você não vai propor uma intervenção que você julgue que aquilo vai trazer malefícios aos pacientes. No entanto, eu pego um exemplo que é muito ilustrativo, talvez o remédio mais antigo que a gente conheça que é a aspirina, a aspirina é do século XIX e é um remédio fantástico até os dias atuais, é um remédio conhecido, seguro que nós receitamos indistintamente para as pacientes, mas se nós apresentarmos uma aspirina a depender da sensibilidade gástrica que ela tenha ela pode fazer uma hemorragia gástrica, mas isso não acontece com todas as mulheres, quando você coloca riscos e benefícios os benefícios são muito maiores. Essa mesma situação precisa ser analisada quanto à terapêutica hormonal. Quando uma mulher tem sintomas importantes (ondas de calor, suores noturnos, perturbações da noite de sono em que não de dorme bem em noites em subsequência acumula fadiga), acumula alterações de humor, tendência a irritabilidade, tendência a depressão e tudo isso compondo um cenário muito prejudicial a sua qualidade de vida (Bayer, 2016f).

A lógica é a individualização do risco, conectado ou à sua carga genética ou às escolhas pessoais ou estilo de vida do sujeito. Desse modo, cada um é responsável por controlar a si mesmo, seu futuro e com isso os riscos que possam lhe acometer. Os sujeitos passam a ser os únicos responsáveis pelo próprio destino. A orientação médica ajuda na tomada de decisões, mas se algo der errado o único culpado é o próprio sujeito, que já tinha uma tendência previa a padecer.

A individualização dos riscos é atrelada a adjetivação de determinados sujeitos como em risco, o que evidencia uma estratégia de desresponsabilização, seja dos profissionais da saúde ou do próprio sistema de saúde pública que disponibilizou determinada tecnologia biomédica para população. É traçado assim, um modo específico de controle social e exercício de poder, que também vai envolver "técnicas para incitar, orientar, informar e controlar os indivíduos a respeito das chances de ocorrência de acontecimentos indesejáveis" (Mitjavila, 2002, p. 131).

Nesse sentido, não é o poder biomédico ou o Estado que assume a função de gerir os sujeitos, mas justamente o contrário, cada um é convencido de que deve se autogovernar evitando situações e comportamentos de risco. Aquele que é classificado como em risco, deve gerir os seus riscos. Para que isso ocorra, é preciso educar e conscientizar as pessoas, dessa forma, cada um aprenderá o que é adequado ou não, e como se conduzir. Com isso, o risco funciona tanto como um dispositivo de controle dos indivíduos, produzindo modos de subjetivação, bem como um dispositivo de governo da população, com medidas coletivas e externas.

O estilo de vida é uma forma de autocontrole, no qual a pessoa tem o poder de escolha e decisão sobre sua saúde, "nessa perspectiva, a pessoa poderia, ou deveria (imprimindo a força de obrigação), ter controle e responsabilidade pela própria saúde" (Menegon, 2003, p. 21, grifo nosso). Porém, os significados de poderia e deveria são bem diferentes, nota-se que o discurso dos médicos, nos vídeos da Bayer, mostra uma maior tendência do saber biomédico imprimir a força de obrigação para os pacientes. Para os profissionais da saúde, não é uma opção não cuidar da saúde.

Na cena abaixo, o médico mostra-se pouco preocupado com as crescentes e constantes notícias sobre os riscos de tromboembolismo entre mulheres que fazem uso de anticoncepcionais e as medidas que diferentes países tem tomado para combater esse grave problema de saúde.

Entrevistador: Como você tem orientado as suas pacientes que lhe procuram devido as notícias recentemente publicadas na mídia?

Dr. Rogério Bonassi: Olha, felizmente não é o assunto que a mulher está tão preocupada, na verdade parece que as notícias da imprensa ela surte algum efeito que é o efeito transitório. No entanto, a orientação adequada e a segurança que essas mulheres têm diante da orientação médica ela é preponderante sobre qualquer notícia. Então, eu não vejo nenhum problema, eu acho que os dados têm que ser divulgados sim, mas não se pode criar um pavor do uso de qualquer substância seja ela anticoncepcional o qualquer fármaco que exista hoje para utilização médica. No caso das pílulas a mulher identifica alguns benefícios que parecem ser muito mais importantes que os riscos. Embora a gente não tenha estudos sobre esse assunto diretamente falando com as mulheres, mas a impressão que se tem é que as mulheres não dão muita importância do risco tromboembólico, umas sim e outras não (Bayer, 2016d).

A supervisão do especialista para tomada de decisões parece prevalecer, pelo menos no discurso dos médicos entrevistados pela Bayer. A livre escolha e autogestão dos sujeitos parece ser limitada, pois, as informações que os pacientes apresentam dependem, de modo geral, daquilo que o médico decide transmitir e com isso o processo de escolha é enviesado pelas preferências do próprio profissional da saúde.

No Brasil, por exemplo, classes economicamente desfavorecidas têm pouco acesso a informações que se contraponham ao saber biomédico, inclusive porque são justamente as vertentes medicalizantes que são acessíveis por meio das grandes mídias, já que, muitas vezes, estas são patrocinadas pelas indústrias farmacêuticas.

As informações sobre a saúde passam a se articular com a lógica do consumo, o sujeito está continuamente aprendendo sobre os novos produtos disponíveis no mercado. A busca por se aperfeiçoar torna-se contínua, em paralelo a isso, as pessoas passam a testar substâncias diferentes, que prometem trazer melhor qualidade de vida.

Antigamente, intervenções médicas especializadas eram utilizadas a fim de curar patologias, retificar desvios verificados no funcionamento desejável, geralmente reconhecidos, ou para promover estratégias biopolíticas através da modificação do estilo de vida. Agora, os receptores dessas intervenções são consumidores, tendo acesso a escolhas com base em desejos que podem parecer triviais, narcisísticos ou irracionais, modelados não por necessidade médica, mas pela cultura de mercado e de consumo (Rose, 2013, p. 37).

Os riscos e as informações sobre saúde, dentro da dinâmica do consumo, parecem ser ponderados, de formas diferentes. O ideal de constante aperfeiçoamento do sujeito, principalmente na perspectiva da aparência corporal parece se tornar mais importante que os riscos de sofrer alguma doença.

Apesar das pesquisas e notícias na mídia indicarem um alto risco de tromboembolismo associado ao uso do anticoncepcional, segundo os médicos, as mulheres parecem pouco se importar com tal informação, entretanto, na maioria dos vídeos que tratavam do uso da pílula, era comum surgir questionamentos sobre a possibilidade de ganhar peso ou não. O trecho abaixo exemplifica tal preocupação.

Cleire: Como é que a pílula afeta o peso?

Dr. Paula: As mulheres estão muito preocupadas com o peso, talvez seja uma das coisas que mais lhe preocupam.

Joy: Isso é um grande boato, sabe. Sempre ouvimos que podemos ganhar uns 4 kg.

Amy: Eu provavelmente vou ganhar peso.

Dr. Paula: Algumas pessoas são sensíveis as pílulas que é também um estimulador de apetite, se você tem esse tipo de sensibilidade, talvez acabe comendo mais. A pílula também pode causar retenção de líquidos que dará a sensação de ganho de peso. Algumas pílulas são melhores para e retenção de líquidos do que outras, então se você teve problema com uma marca talvez seja melhor cogitar usar outra (Bayer, 2016a).

O risco é ponderado pelos sujeitos de diferentes modos, por exemplo, apesar do tromboembolismo provocar um maior dano à saúde, ele parece algo distante ou raro, porém, o ganho de peso, como pode surgir a curto prazo, parece ser motivo de maior preocupação. Os anticoncepcionais, como produto a ser consumido, passam a ser avaliados não só em relação a sua eficácia para prevenir a gravidez, mas para o controle de acne, o ganho de peso, diminuição dos pelos e uma série de possíveis benefícios cosméticos.

Pesar os riscos e os benefícios é uma tarefa difícil para o sujeito, pois as informações passadas são, muitas vezes, difusas e contraditórias. O saber biomédico tenta transmitir a imagem de objetividade e infalibilidade, porém, o que podemos analisar a partir dos vídeos é que há contradições, jogos de verdades, interesses divergentes, tentativa de controle dos riscos etc.

No caso dos hormônios, a situação parece ser mais complicada, pois eles são indicados muitas vezes não para curar doenças, mas para tratar sintomas, melhorias na aparência corporal ou ainda prevenir um risco futuro. A cena abaixo apresenta o conflito entre discursos diferentes sobre os efeitos da pílula anticoncepcional na fertilidade das mulheres.

Regina Bittar: Eu ouço falar "tomei pílula durante alguns anos, e parei de tomar a pílula e tenho problema de fertilidade".

Doutor José Bento: Isso é um absurdo, eu não sei de onde veio isso, pelo contrário, a pílula protege a fertilidade da mulher, a pílula ela cura a endometriose, eu estou cansado de tratar no consultório a endometriose. Elas acham que por não tomarem pílula estão protegendo a fertilidade delas, não, é uma besteira isso, pelo contrário, o fato delas não tomarem a chance de elas terem endometriose é muito maior e a endometriose é uma doença terrível que debilita a mulher e que muitas vezes ela diagnostica porque ela está querendo engravidar, não consegue e acaba diagnosticando a endometriose. A mulher que toma pílula ela tem mais chances de engravidar do que aquela mulher que não toma pílula. Quando para? Ela deve parar e em dois meses ela já está apta. Em dois meses ela já começa a consumir ácido fólico para proteger o bebê daquelas doenças de má formação do tubo neural e nesses dois meses ela evita ou com uma tabelinha ou com um preservativo para depois poder engravidar (Bayer, 2016g).

O médico argumenta que a pílula anticoncepcional, além de evitar a gravidez, protege a fertilidade da mulher, apesar do discurso recorrente, como pontua a entrevistadora, é de que a pílula prejudica uma futura gravidez. Mary Jane Spink (2000) explica que o discurso do risco provoca uma série de tensões: 1) tensão entre o gerenciamento coletivo e individual do risco; 2) tensão entre a perspectiva do leigo e do especialista; 3) tensão entre prevenir ou correr risco.

Os hormônios e a noção de risco se entrelaçam produzindo determinados modos de subjetivação pautados pela obrigatoriedade do cuidado permanentemente vigilante, com auxílio de informações e orientações de especialistas e com a finalidade de controlar problemas futuros.

 

À Guisa de (in)Conclusões

Neste texto, desenvolvemos a tese/argumento de que os hormônios se situam de modo ambíguo no campo de disputa sobre o risco, pois ao mesmo tempo essas substâncias agenciam prevenção, proteção e produção de risco. Para desenvolver essa tese, apresentamos alguns fragmentos de análise e revisão da literatura, a partir dos quais buscamos tencionar a noção de risco associado aos hormônios considerando, por um lado, que os hormônios se configuram como tentativa de controle do futuro, mas também como tecnologia de controle e gestão dos corpos, principalmente os femininos, engendrando uma série de práticas que institucionalizam determinados modos de subjetivação.

Na sociedade de risco o saber biomédico realiza uma série de intervenções produzindo assim determinados modos de viver. Dentro de uma perspectiva de prevenção e de controle de futuro, os sujeitos passam a vigiar e governar os próprios comportamentos e hábitos com a finalidade de se manterem saudáveis e evitarem riscos futuros. Nesse sentido, o uso de hormônios na nossa sociedade é permeado pelo dilema de proteger ou favorecer riscos em um futuro próximo ou distante.

Em perspectiva, Deleuze nos oferece linhas de fuga para pensarmos o modo como temos nos relacionado com o tempo dentro da sociedade de controle e de risco, que é a noção de porvir. O porvir é permeado pela incerteza, resiste ao controle e se abre ao que vem. Trocaríamos a probabilidade pelo talvez, rompendo com a lógica da causalidade e com o racionalismo (Hillesheim, Da Cruz, 2008). Dessa forma, passaríamos a nos relacionar com nós mesmos e com os outros por uma lógica não determinista e de controle, mas pautada no surpreender-se, estando, então, aberta a diferentes possibilidades de futuro.

 

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Recebido em: 24 de fevereiro de 2017
Aprovado em: 02 de agosto de 2017

 

 

1 Dispositivos são estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele, que englobam instituições, leis, arquiteturas, enunciados científicos e filosóficos etc., cuja função estratégica é o exercício do poder em um determinado momento histórico (FOUCAULT, 2009).
2 Os fogachos e as ondas de calor são os sintomas relatados com maior frequência entre as mulheres ocidentais. Tal fenômeno seria caracterizado por uma sensação súbita e intensa de calor na pele, muitas vezes acompanhada de sudorese. A duração pode variar de segundos a 30 minutos, sendo leves ou intensos

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