INTRODUÇÃO
Um dos principais pilares da proposta de tratamento penal aplicada como modelo de atuação no sistema prisional do estado do Rio Grande do Sul é o Trabalho Prisional. Além de atuar de maneira integrativa às outras ações de acesso e garantia de direitos tais como saúde, educação, assistência religiosa e manutenção dos vínculos afetivos, o trabalho dentro desse sistema desempenha um papel importante na reconstrução subjetiva e na saúde física e psicológica dos apenados, além de garantir a remição de pena e a possibilidade de renda. Diante disso, tal proposta representa uma ferramenta de suma importância para execução de pena e para o destencionamento do ambiente prisional, com base na Resolução n. 14/1994, de 11 de novembro de 1994 e no Modelo de Gestão para a Política Prisional (Departamento Penitenciário Nacional & Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2016).
As atuais propostas laborais dentro do sistema prisional estão calcadas em processos de capacitações profissionais que tencionam uma visão empreendedora e atuações mais autônomas. Esse direcionamento baseia-se nas mudanças no cenário atual do mercado de trabalho, na ausência de vagas de trabalho, nas baixas escolarizações das pessoas egressas do sistema prisional, e não menos importante, nos estigmas sociais sofridos pelos egressos no processo de reinserção profissional (Departamento Penitenciário Nacional & Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2016; Ferreira, 2011).
Neste contexto, cabe salientar que o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento lançaram, em 2016, um Modelo de Gestão para a Política Prisional, que se dedica a problematizar e sistematizar as orientações e as proposições de trabalho dentro do sistema. Esse documento estimaaLei de Execuções Penais (LEP) - Lei n. 7.210/1984, de julho de 1984, as normativas institucionais e as regulamentações como mecanismos de proteção para as pessoas privadas de liberdade frente aos riscos de exploração exacerbada da força de trabalho, considerando a vulnerabilidade imposta pelas instituições totais.
A instauração do trabalho prisional data do século XVIII em consonância com a reforma do sistema penal. Vale mencionar que o trabalho, nessa época, tinha objetivos punitivos, algo que predominou no Brasil até 1937, quando se passou a discutir uma lei especial para a execução penal (Lemos, Mazzilli, & Klering, 1998). A regulamentação do trabalho prisional e o seu uso não mais de controle e punição, pode ser encontrada no Capítulo III, nos artigos 28 a 37 da LEP, os quais referem que as atividades laborais dos indivíduos privados de liberdade devem ter função social e finalidade educativa e produtiva. No entanto, desde o seu surgimento, o trabalho prisional é alvo de questionamentos e críticas.
Uma das principais críticas se refere à utilidade de tal atividade laboral. Para Michel Foucault (1975/2004), o trabalho penal nunca visou a formação de uma habilidade útil para os apenados, mas sim sempre refletiu uma relação de poder entre indivíduo e instituição, sendo aquele estimulado a se ajustar ao modo de produção que visa requalificar “o ladrão em operário dócil” (p. 204), confirmando o objetivo da prisão em produzir indivíduos mecanizados. Participar de atividades de trabalho seria, nesse contexto, estabelecer uma relação de troca com a instituição. Neste sentido, os indivíduos que trabalham demonstram para a equipe carcerária que aceitam as normas institucionais e que possuem o desejo de “reabilitação social” (Goffman, 1996), ganhando em troca alguns privilégios como remição de pena, liberdade de maior circulação pelo espaço prisional ou ainda a alocação em celas mais organizadas e limpas.
O fato é que com a extinção dos suplícios públicos e a substituição da punição pela pena de prisão, o trabalho prisional passou a exercer um papel predominante na execução penal, dentro das sociedades capitalistas. É possível encontrar na literatura diversas relações do trabalho e da utilização de mão de obra prisional. Na obra Histórias das Prisões no Brasil, por exemplo, há referências à utilização de mão de obra prisional desde as primeiras ocorrências das casas de detenção. Atividades não remuneradas financeiramente como lavagem de roupas, cozinha e limpeza eram direcionadas a pessoas em situação de detenção, fiscalizadas por pessoas contratadas para esse fim. Com o passar do tempo, mais se investiu para que as atividades de manutenção dos espaços prisionais fossem realizadas por mão de obra prisional, reduzindo os custos do Estado com a contratação de empresas e instituições terceirizadas (Maia, Sá, Costa, & Bretas, 2017).
A utilização da mão de obra prisional em atividades de manutenção da própria instituição, como descrito acima, ainda ocorre em diversos estabelecimentos prisionais, propondo uma redução nos custos do Estado com contratação de empresas e funcionários. Contudo, essas ações podem reforçar a ideia de que o trabalho no cárcere possui mais um significado de troca do que de reabilitação. Isto porque a troca da atividade desempenhada pela pessoa privada de liberdade, neste formato descrito, se dá geralmente pela remição de pena, sem o retorno e/ou investimento financeiro. Além disso, os trabalhos ofertados -além de serem em números de vagas insuficientes para a massa carcerária brasileira que ultrapassa os 800 mil presos (Conselho Nacional de Justiça, 2022) - frequentemente, não se pautam em atribuições que contribuam para o desenvolvimento pessoal dos indivíduos privados de liberdade. Assim, não raramente, o vínculo estabelecido dos apenados com o sistema de trabalho tem como objetivo prioritário a remição de pena, sem um profundo envolvimento com o processo produtivo (Lemos et al., 1998).
Ainda sobre essa questão, se pode dizer que faltam processos de trabalho que oportunizem o desenvolvimento do sujeito, sendo o trabalho prisional tratado, por vezes, como uma ocupação obrigatória, o que lhe confere um caráter punitivo. Porém, as atuações e regimentos legais acerca do trabalho e da mão de obra prisional, em estados como Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por exemplo, vêm buscando ampliar a oferta e a legalização do trabalho de empresas dentro do sistema penitenciário, mediante pactuações chamadas de Termo de Cooperação. Essas iniciativas propõem a contratação, pagamento e qualificação de mão de obra pelas empresas conveniadas (Instrução normativa CAGE n. 06, de 27 de dezembro de 2016). Sabe-se, contudo, que a proposição de mudança de uma cultura é um processo complexo, vagaroso e dispendioso. Ao mesmo tempo, a superlotação prisional, o aumento dos índices de violência, o crescimento nos números de desempregados (as) e as condições educacionais no cenário pandêmico são fatores que atravessaram as construções sociais acerca do trabalho para toda a sociedade.
Frente a esse contexto, é indispensável problematizar as relações, as condições e o sentido do fazer laboral no contexto prisional, especialmente no que se refere aos riscos da precarização do trabalho. Parte-se do entendimento de que o trabalho é de fundamental importância na vida psíquica do sujeito, na medida em que proporciona uma rede de trocas e interações sociais que irão mediar o desenvolvimento e a complementação da identidade individual. É no trabalho que o sujeito irá se deparar com as contradições entre o objetivo das organizações e os seus próprios objetivos, os quais são permeados por angústias, medos e desejos. Sendo assim, o trabalho poderá promover tanto a saúde e o desenvolvimento psicossocial do trabalhador, quanto o sofrimento e o adoecimento físico e psíquico (Lancman & Ghirardi, 2002). O trabalho também pode assumir um caráter de precarização da vida e das relações sociais, especialmente quando não oferece condições dignas ou não garante os direitos fundamentais. A precarização do trabalho atua diretamente na deterioração das condições de vida dos trabalhadores, levando a um processo perverso de desfiliação, de despertencimento e de vulnerabilidade (Castel, 1998; Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010).
Uma das características do trabalho precário é a ausência de vínculo trabalhista, o que está diretamente relacionado às perdas de direitos trabalhistas e de benefícios indiretos já conquistados, como por exemplo, descanso remunerado, férias anuais remuneradas, referenciais de jornada de trabalho normal e de horas extras, transporte e alimentação. Outros importantes aspectos negligenciados no contexto do trabalho precário são a organização e as condições de trabalho, que se apresentam através de metas inalcançáveis, ritmo intenso de trabalho, pressão de tempo, intensificação do controle e gestão pelo medo. É nesse cenário que se encontra outro elemento marcante: a precarização da saúde dos trabalhadores, caracterizada pela fragilização física, mental e subjetiva dos trabalhadores. Observa-se também a fragilização do reconhecimento social, que é um aspecto fundamental para a saúde mental e que deixa de compor o universo do trabalho, atuando diretamente na alienação dos trabalhadores. Por fim, como efeito desses fenômenos, percebe-se a ausência do coletivo de trabalho, responsável pela intensa fragilização dos profissionais, que acabam respondendo sozinhos pelo seu próprio sofrimento e adoecimento (Franco et al., 2010).
Tendo em vista as questões apresentadas, o foco do presente artigo foi compreender os significados atribuídos ao trabalho por indivíduos privados de liberdade em uma instituição prisional masculina localizada no estado do Rio Grande do Sul e as interfaces com a precarização do trabalho.
MÉTODO
DELINEAMENTO
Trata-se de uma pesquisa exploratória-descritiva, de cunho qualitativo (Minayo, 2012), realizada em uma instituição prisional masculina gaúcha que, em setembro de 2022, continha um contingente de 1.737 homens. Destes, cerca de 60% são presos provisórios e 40% são presos com alguma definição de regime de pena (com processo julgado e condenação definida).
PARTICIPANTES
Participaram desta pesquisa 27 homens privados de liberdade integrantes de um projeto desenvolvido pela casa prisional em que estavam detidos. Tal projeto consiste no desenvolvimento de trabalhos de costura a partir de retalhos doados por malharias da região. Através do projeto, os integrantes produzem peças de artesanato, bolsas, tapetes, objetos para casa e roupas que são vendidas para a população ou doadas para os presos que não recebem visitas de modo a garantir sua assistência. Atualmente, 20 indivíduos privados de liberdade integram esse projeto de trabalho considerado artesanal, com a concessão de remição de pena. A iniciativa se desenvolve sem a atuação de empresas formalizadas, sem salário fixo aos trabalhadores e com a organização de rotina, produção e divisão da renda realizada pelos próprios homens privados de liberdade.
A faixa etária dos homens participantes foi de 20 a 51 anos, sendo 16 deles solteiros, 10 casados ou em união estável e um viúvo. Dos 27 participantes, apenas cinco eram presos provisórios, sendo os demais presos com condenação. A maioria se autodeclarou branco e possuía ensino fundamental incompleto. Demais observações sobre os participantes podem ser visualizados na tabela a seguir:
Grupo Focal A | Grupo Focal B | ||||
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Nomes | Idade | Escolaridade | Nomes | Idade | Escolaridade |
Alan | 50 | Ensino Médio completo | Adriano | 23 | Ensino Médio completo |
André | 27 | Ensino fundamental incompleto | Arthur | 22 | Ensino fundamental incompleto |
Bruno | 20 | Ensino fundamental incompleto | Celso | 31 | Ensino Médio completo |
Charles | 36 | Ensino fundamental incompleto | Caio | 26 | Ensino Médio completo |
Cristiano | 47 | Ensino Médio Incompleto | Danilo | 24 | Ensino fundamental completo |
Esteván | 38 | Ensino Médio completo | Diogo | 29 | Ensino fundamental incompleto |
João | 27 | Ensino Médio completo | Fernando | 36 | Ensino fundamental incompleto |
Luís | 40 | Ensino fundamental incompleto | Gabriel | 34 | Ensino Médio incompleto |
Paulo | 38 | Ensino fundamental incompleto | Gilberto | 36 | Ensino fundamental incompleto |
Renan | 27 | Ensino fundamental incompleto | Giovane | 31 | Ensino Médio completo |
Rodolfo | 21 | Ensino fundamental incompleto | Maicon | 31 | Ensino Médio completo |
Ronaldo | 51 | Ensino fundamental incompleto | Manoel | 41 | Ensino fundamental completo |
Rui | 32 | Ensino fundamental incompleto | Marcus | 30 | Ensino fundamental incompleto |
Pedro | 32 | Ensino fundamental completo |
Nota: elaborada pelas autoras
INSTRUMENTOS
Como instrumento principal para a coleta de dados foi utilizada a técnica de grupo focal autorreferente. Conforme Morgan (1997), essa técnica é utilizada para explorar um novo campo ou um novo tema proposto pelo pesquisador, podendo também servir como dispositivo para aprofundar, responder ou discutir uma pergunta de pesquisa ou o desenvolvimento de um projeto social. Romero (2000) conceitua o grupo focal como uma metodologia qualitativa, realizada através de um grupo de interação focalizada que possibilita uma discussão profunda e consistente sobre o tema em foco. A utilização de um roteiro pré-elaborado, não rígido, tem como objetivo possibilitar ao grupo sentir-se à vontade para expressar suas opiniões, obtendo, assim, dados abertos que incluam a observação do pesquisador. Neste estudo, o roteiro dos grupos focais versou sobre o impacto do encarceramento e os significados atribuídos ao trabalho por presos em regime fechado.
PROCEDIMENTOS DE COLETA
Quanto à coleta de dados, os participantes foram divididos em dois grupos, compostos por 10 encarcerados em cada um. Em função do número de integrantes do projeto de costura variar (há desistências, desligamentos, novas entradas), o número de participantes dos grupos também sofreu variações. Assim sendo, o número total de atendidos com esse estudo foi de 27. Os encontros aconteceram quinzenalmente no período de março a dezembro de 2019, com duração média de uma hora e meia, sendo que um grupo focal teve cinco encontros e o outro quatro encontros. Cabe destacar que um dos grupos teve um encontro a menos em função de um surto de sarampo na instituição que demandou o encerramento antecipado das atividades de pesquisa.
ANÁLISE DOS DADOS
Todos os grupos foram gravados em áudio e vídeo, e posteriormente, todos os encontros foram transcritos de modo a facilitar a análise das informações, a qual foi realizada por meio da análise de conteúdo de Laurence Bardin (2011). Inicialmente, foi realizada a fase da pré análise, que se destina a organizar os documentos de acordo com os objetivos da pesquisa. Para tanto, realizou-se a leitura de cada transcrição. Esse procedimento foi realizado de forma individual pelas autoras, que após a primeira leitura detalhada compartilharam suas impressões. A etapa seguinte, de exploração do material, consistiu na análise em conjunto das transcrições, momento em que foram identificados temas comuns nas falas dos participantes. Realizou-se, então, o agrupamento desses temas em tópicos, que foram posteriormente elencados em categorias de análise. Por fim, deu-se início à última fase da análise que consiste no tratamento dos resultados e sua interpretação. A partir das categorias de análise surgidas a posteriori neste estudo, foi possível relacionar as falas dos participantes com outros estudos que tratavam sobre o assunto em tela, bem como com a literatura correspondente.
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Todos os participantes assentiram com sua participação na pesquisa por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para fins de apresentação, foram nomeadas, ficticiamente, as pessoas envolvidas no estudo para garantir o anonimato de suas identidades. Ressalta-se, também, que as transcrições buscaram se aproximar tanto quanto possível da forma de fala dos participantes de modo a garantir a fidedignidade de seus discursos.
O projeto de pesquisa que culminou neste trabalho foi realizado conforme as recomendações da Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, a qual trata das especificidades éticas das pesquisas nas ciências humanas e sociais. O desenvolvimento da pesquisa apenas aconteceu após a aprovação do Comitê de Ética da Superintendência dos Serviços Penitenciários (órgão responsável pelas instituições prisionais no estado do Rio Grande do Sul) e a posterior aprovação pelo comitê de ética da instituição à qual as autoras estão vinculadas, tendo sido o projeto aprovado sob o n. 01390918.0.0000.5348.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise dos dados, os resultados da pesquisa foram organizados em duas categorias principais, as quais foram nomeadas como: (a) “Aqui dentro, a expectativa é trabalhar pra sair antes daqui”: o sentido do trabalho dentro e fora da prisão; (b) “Eles olham como se nós fôssemos o lixo da sociedade”: principais dificuldades para reinserção no mercado de trabalho.
“AQUI DENTRO, A EXPECTATIVA É TRABALHAR PRA SAIR ANTES DAQUI”: O SENTIDO DO TRABALHO DENTRO E FORA DA PRISÃO
O trabalho pode ser visto como um agente transformador de si mesmo e das interações com o mundo e com o outro, mediando as relações sociais em que as pessoas estão inseridas e atuando diretamente na construção da identidade (Barbalho & Barros, 2010). No entanto, torna-se importante ressaltar que, ao ser privado de liberdade, o sujeito vivencia uma significativa mudança em relação a sua rotina e a sua identidade. A possibilidade de trabalhar durante o cumprimento da pena pode contribuir para as interações e constituição de novas identidades, mas também pode ser utilizado como instrumento de punição e exploração (Lemos et al., 1998).
Neste estudo, os participantes relataram diversos sentidos para o trabalho, relembrando as inserções laborais fora da prisão e no contexto de privação de liberdade. De modo geral, os significados do trabalho estiveram associados à sobrevivência e à remição da pena. Outros elementos citados foram: a satisfação, o sustento e a estabilidade financeira.
No que se refere à sobrevivência, a fala de Cristiano (comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 5o encontro) representa um dos vários relatos sobre esse tema: “Primeiramente, tem que trabalhar pra sobreviver”. Além disso, na fala de Diogo apresentada a seguir é possível perceber que o trabalho é visto como uma possibilidade de sustento da família:
Porque, tipo... A minha vida desde pequeno foi difícil, sabe? Eu não convivi com o meu pai, minha mãe tinha vários filhos. Então eu trabalho desde pequeno. Eu sempre tive a preocupação de quando crescer ter algo melhor para os meus filhos, pra eles nunca passarem por isso. Então o serviço sempre foi a base da minha vida. Eu sempre trabalhei desde pequeno, sempre batalhei pra ser alguém melhor, pra conquistar minhas coisas, pros meus filhos não passar pelo que passei. (Diogo, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 2o encontro)
Observou-se, em vários relatos, que os participantes deste estudo precisaram trabalhar desde a infância para sustentar a família. Com histórias de vida marcadas pela violação de direitos e pela falta de acesso às políticas públicas, em especial à educação, os entrevistados inseriram-se em trabalhos precários e que ofereciam poucas condições de ascensão pessoal e profissional. É inegável que a vulnerabilidade social, ainda que não seja o único elemento, contribui sobremaneira para a entrada no crime, assim como para a reincidência (Toledo, Kemp, & Machado, 2014). Conforme Barbalho e Barros (2010), o trabalho está atrelado à subjetividade humana, sendo assim, o sentido do trabalho é muito individual e abrange as vivências sociais, as experiências, as condições objetivas de vida de cada sujeito, influenciando o modo como ele irá perceber o trabalho. É de se supor, portanto, que a situação social e financeira precária vivenciada por esses indivíduos desde a infância, pode estar associada ao significado dado ao trabalho enquanto uma necessidade de sustento e sobrevivência mais do que uma forma de satisfação pessoal.
O trabalho, incluindo os delitos, também foi mencionado como uma possibilidade de conquistar objetivos, sejam eles pessoais, financeiros ou profissionais, tal como a fala a seguir indica:
Conquista pelo motivo de... Quando a gente trabalha, apesar da expectativa a gente quer conquista, né? Por um objetivo, né? Muitas vezes a gente tá até no crime por ir atrás de alguma conquista. Como eu, eu já tive negócio também, trabalhei bastante, sempre em busca da conquista dos meus objetivos. (Rui, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 1º encontro)
Ressalta-se que, em diversos relatos, foi possível perceber que em função da precarização vivenciada nas atividades de trabalho exercidas fora da prisão, marcadas especialmente pelos baixos salários e condições de trabalho, o crime aparece como uma alternativa mais concreta para a melhoria das condições de vida. Neste sentido, Ferreira (2011) aponta que, considerando o sistema capitalista e a sociedade de consumo em que vivemos, é fato que além das necessidades de alimentação, vestimenta, entre outros, a necessidade de consumir produtos considerados supérfluos encontra-se muito presente, numa lógica em que para ser é preciso ter. Assim sendo, não é de estranhar que sujeitos menos favorecidos financeira e socialmente também desejem consumir, de modo a garantir mais do que a sobrevivência material, mas a sobrevivência social. Assim, segundo a autora, o crime pode ser visto como uma possibilidade para enriquecer e ostentar, favorecendo também a constituição da identidade do sujeito, que percebe como atrativo participar de roubos, adquirir poder, podendo ascender na hierarquia do crime e, assim, ser visto socialmente de alguma forma.
Consoante a isso, Ferreira (2011) refere que a sociedade valoriza o que os indivíduos têm, o poder de adquirir o que o mercado oferece, eliminando assim, aqueles que não conseguem fazer parte desse sistema de consumo. Neste contexto, há um discurso social que exclui os indivíduos privados de liberdade, impondo-lhes um estigma de falta de caráter e moral, de que não são confiáveis e de que não precisam ser respeitados. Percebe-se assim que fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e históricos influenciam tanto o envolvimento, quanto a permanência dos indivíduos em práticas ilícitas e que acarretam a privação da liberdade.
Outro sentido do trabalho citado pelos participantes foi a possibilidade de obter estabilidade nas diversas áreas da vida. Mais uma vez, as atividades ilícitas apareceram como uma alternativa mais viável, como visto na fala a seguir:
É... Estabilidade. E é uma palavra, uma coisa que todos nós buscamos né, estabilidade, né? Na vida profissional, na vida emocional, né? Na vida financeira também... Se não tiver estável a vida financeira, a gente acaba procurando outros meios, né? As vezes não tão certos, né? Como o do crime, por exemplo. E na emocional também... Se não tiver estabilizado emocionalmente, pode entrar nas drogas, né? E ali poder entrar na vida do crime também por conta disso, né? Tem os dois lados. (Renan, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 1o encontro)
Em alguns momentos os participantes citaram a satisfação e o prazer que o trabalho pode proporcionar, mas os relatos não estavam associados às atividades realizadas por eles e sim a uma ideia geral daquilo que o trabalho supostamente deveria proporcionar. Charles exemplifica este aspecto:
Eu acho que se a pessoa acha um serviço que é prazeroso de fazer, que é satisfatório, que é... eu acho que é bem mais fácil da gente acordar todo dia com o objetivo de... de ir até lá, de ter o compromisso de ir. De repente um prazer é um salário que tu... que tu almejas, né? [...] Um salário que tu pensa assim ‘ah, eu gostaria de ganhar tanto’, chegar numa meta de ganhar tanto por mês... (Charles, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 1o encontro)
Ainda nesse sentido, de acordo com os relatos dos homens privados de liberdade, identificou-se que o fato de trabalhar no contexto da prisão estava diretamente associado ao interesse de sair mais rápido desse local. Observa-se na fala apresentada a seguir que o trabalho é visto como uma possibilidade de adquirir algo, tanto na rua quanto na prisão:
No trabalho, tu tem uma expectativa de conquistar algo, tá entendendo? Trabalhar na rua, tu quer adquirir alguma coisa. Na expectativa de pegar aquele dinheiro, fazer alguma coisa. E aqui dentro, a expectativa é trabalhar pra sair antes daqui, passar as horas, e no caso, ganhar tua remição, sair, ver tua família e voltar uma vida de novo normalizada ou tentar normalizar ao menos, fazer o máximo pra normalizar ela e passar logo. (Manoel, comunicação pessoal, 2019, grupo 2, 1o encontro)
Assim como no estudo de Lemos et a1. (1998), os participantes desta pesquisa enfatizaram que, mais do que qualquer outra razão, a sua veiculação em postos de trabalho dentro do sistema se dá pela possibilidade de remição da pena e não necessariamente por um entendimento de que o trabalho desempenhado é produtor de uma nova subjetividade social que será importante para a vida em liberdade. No estudo realizado por Fernandes e Ribeiro (2018), identificou-se que as atividades laborais realizadas dentro da prisão não contribuíam para que os apenados conseguissem emprego fora dali. Sendo assim “os detentos trabalham para diminuir o seu tempo de pena, deixando explícita a exploração e a alienação de sua mão de obra, a qual é utilizada para “comprar” a liberdade e (re) começar suas vidas” (p. 358).
Além de promover condições necessárias para a ressocialização, o trabalho no sistema prisional deveria proporcionar crescimento individual, com desafios, prazer e satisfação ao realizar as tarefas. Isso porque identifica-se que quando estão motivados há maiores de chances de ressocialização, uma vez que ações concretas se mostram extremamente favoráveis para o desenvolvimento pessoal, afastando-se de discursos ideológicos que não contribuem para isso. Salienta-se que ao incentivar a capacidade de percepção, as habilidades para resolução de conflitos, a criatividade e a inovação, o desenvolvimento pessoal dos homens privados de liberdade será aprimorado (Lemos et al., 1998).
Além disso, o trabalho apareceu como penoso para os participantes da pesquisa, especialmente porque a recompensa pela realização das atividades está colocada no futuro (na remição da pena) e não no momento presente, como remuneração, aprendizado ou retribuição do empenho diário. Danilo contribui com esta análise:
Eu acho que... Força tem... A palavra força tem muito a ver com o trabalho porque, acima de tudo, tem que ter muita força de vontade tanto aqui dentro quanto lá fora... Para se trabalhar, para ti querer ser alguém, para ti mudar de vida... Tem que ter força de vontade, tem que querer aprender. Aqui dentro tem que querer levantar cedo para trabalhar, não pode querer ficar numa cela. Tem que querer, às vezes tu... Tu deixa de ir num pátio, deixa de ficar na cela para, sei lá, para trabalhar. E assim, eu acho que a palavra força tem bastante a ver com o trabalhar. (Danilo, comunicação pessoal, 2019, grupo 2, 1o encontro)
André Gorz (1998) define a precarização como a desconexão entre o trabalho e o direito do trabalhador, resultando na ausência de direito à renda suficiente, à cidadania plena, ao desenvolvimento e à identidade profissional. Deste modo, nem a ocupação nem o emprego podem garantir o direito a ter direito. Nesse sentido, Arne Kalleberg (2009) considera que a condição pautada num cenário de incertezas e imprevisibilidades, delega os riscos empregatícios majoritariamente aos trabalhadores e não aos empregadores ou ao Estado, que deveriam garantir os direitos trabalhistas fundamentais.
Frente às contribuições dos/as autores/as mencionados/as e aos relatos e análises apresentadas, observa-se que o trabalho exercido pelos participantes se apresenta esvaziado de sentido e com poucas possibilidades de construção identitária, fortalecimento das relações e do reconhecimento social. Marcado pela ausência de direitos trabalhistas, o trabalho no sistema prisional apresentou-se como precarizado e pautado principalmente na possibilidade futura de liberdade através da remição de pena.
“ELES OLHAM COMO SE NÓS FOSSE O LIXO DA SOCIEDADE”: PRINCIPAIS DIFICULDADES PARA REINSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO
Ao serem privados de liberdade, os indivíduos vivenciam um processo de despersonalização, a fim de manter a ordem e a disciplina da instituição (Goffman, 1996; Lemos et al., 1998). Dessa forma, o trabalho pode ser visto como uma alternativa para mantê-los ocupados e submissos à organização. Além disso, a perda de papéis que eram exercidos no mundo exterior ao da prisão e as diversas mudanças vivenciadas ao entrar no sistema prisional, impactam fortemente na saúde mental.
No estudo realizado por Lemos et al. (1998, p. 140), identificou-se que “os apenados acreditam que, pelo trabalho prisional, podem adquirir uma nova postura em face ao mundo e, dessa forma, podem ser mais bem aceitos pela sociedade”. No entanto, o trabalho prisional por si só não é garantia de mudança ou reinserção social, o indivíduo precisa dar sentido ao trabalho, e para isso, torna-se fundamental estabelecer vínculo com as tarefas desenvolvidas. Neste estudo, diversas dificuldades foram relatadas diante da tentativa de reinserção pelo trabalho. Dentre elas, pode-se destacar o preconceito, a desqualificação e a precarização das condições de trabalho, aspectos que na perspectiva dos entrevistados, podem contribuir para que retornem às atividades ilícitas.
Em relação ao preconceito que os homens privados de liberdade vivenciam, torna-se importante ressaltar que a sociedade exerce um papel crucial na reinserção desses indivíduos, ao aceitá-los e lhes oportunizar uma nova chance para se adequar aos valores sociais (Lemos et al., 1998). Porém, não é esta a realidade encontrada ao saírem da prisão, conforme a fala a seguir:
Daí a comunidade em si na rua, eles olham o preso diferenciado. Eles olham como se nós fosse o lixo da sociedade, eles olham para nós como se nós somos incapaz de qualquer coisa, só sabemos fazer, é roubar, matar e traficar. Mas não, todo cara que tiver aqui dentro, toda pessoa que tiver aqui dentro tem uma grande capacidade, grandes condições de fazer as coisas certas na rua. (Alan, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 1o encontro)
Deste modo, observa-se que além de terem sidos reclusos da sociedade durante o cumprimento da pena, muitas vezes esses sujeitos já vivenciam um processo de exclusão durante toda a vida. A partir disso, a dificuldade em conseguir um emprego contribui para que retornem para as atividades ilícitas. Estudos anteriores mostraram que o ambiente prisional não transforma e tampouco prepara os indivíduos para a vida fora da prisão (Barbalho & Barros, 2010; Toledo et al., 2014). Essas dificuldades são evidenciadas no relato descrito a seguir:
Acho que a maior dificuldade saindo daqui de dentro é o trabalho, é a oportunidade mesmo. Porque poucas pessoas querem dar oportunidade pra pessoa que já puxou cadeia, pra um cara que já roubou, pra um cara que já traficou. É pouquíssima gente que aposta em ti, a não ser que tu tenha um conhecimento, um cara que te conhece, que te conheceu desde criança, viu tu crescer, aí ele vai te dar uma oportunidade. Mas geralmente a gente não tem oportunidade, a gente sai pra rua sem oportunidade, tu chega lá e não tem um serviço, tem gente que vai pro semiaberto e não tem uma carta de emprego, não tem um meio de “ah, vou lá pra trabalhar e vou mudar de vida “. Mesmo tu querendo, mas às vezes tu não tem essa oportunidade. Às vezes tu sai pra rua e é muito discriminado, muito rejeitado. Geralmente tem gente que sai com uma tornozeleira na perna, quem vai dar serviço pra um cara que tem uma tornozeleira na perna? (Danilo, comunicação pessoal, 2019, grupo 2, 1o encontro)
Os achados desta pesquisa corroboram com os dados apresentados por Barbalho e Barros (2010). no que diz respeito aos antecedentes criminais representarem a principal dificuldade encontrada para conseguir emprego. Os estigmas vivenciados por egressos, a discriminação, a falta de apoio geram frustração e podem ser mais um fator contribuinte para o retorno ao crime. Além dos desafios profissionais, encontram-se os desafios familiares, uma vez que muitas relações ficam estremecidas durante o período da privação de liberdade. Dessa forma, o apoio e o suporte da família podem servistes como fundamental para que os egressos persistam e não desanimem diante das dificuldades de reinserção (Toledo et al., 2014).
Outro ponto que deve ser ressaltado são as dificuldades em conseguir emprego em decorrência da falta de estudo e qualificação profissional. De acordo com dados nacionais, a maioria das pessoas privadas de liberdade são jovens com idade entre 18 e 34 anos (58,61%) e possuem ensino fundamental incompleto (51,35%) (Departamento Penitenciário Nacional, 2021; Ministério da Justiça e Segurança Pública & Departamento Penitenciário Nacional, 2019). Segundo Fernandes e Ribeiro (2018), a ausência de qualificação profissional dos sujeitos durante o período em que estão privados de liberdade, associa-se ao retorno à criminalidade e assim, à reincidência. Novamente, as questões relacionadas à falta de incentivo na infância são mencionadas: “Na verdade tem que fazer diferente, né? Porque faltou incentivo pro estudo, faltou muita coisa na infância. Poderia ter sido diferente se tivesse incentivado, né? Colocar no colégio, incentivar em um curso, deixar assim por conta, não” (Renan, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 4o encontro).
O incentivo da família, da sociedade e de políticas públicas são fundamentais para que os jovens tenham a escola como referência, apoio e proteção. Ressalta-se que as exigências de experiência e de qualificação dificultam a reinserção no contexto de trabalho, e ao incluir pessoas qualificadas e experientes, outros sujeitos acabam sendo - novamente - excluídos (Barbalho & Barros, 2010). O estudo realizado por Ferreira (2011) evidenciou que o perfil dos indivíduos privados de liberdade associa-se ao perfil da pobreza do Brasil, pois trata-se, em sua grande maioria de jovens, com baixa escolaridade, sem qualificação profissional, vítimas de trabalho infantil, envolvimento com drogas e que desde muito cedo envolveram-se com o crime. Por não recebem outras oportunidades ao longo da vida, permanecem nesse contexto. No relato a seguir, foi possível identificar as expectativas e uma das principais dificuldades encontradas por esses sujeitos - a falta de políticas públicas que promovam a reinserção:
As expectativas que a gente tem são bem grandes aí, lá fora a gente também não sabe o que tá esperando pela gente. Porque a dificuldade é bem grande pra um ex-apenado, um ex-detento, né? O governo também não tem um programa, alguma coisa assim que possa reinserir a gente na sociedade com dignidade, né? Pra ti chegar algum dia com emprego na rua, se tu não tiver alguém que te conheça e que te dê uma oportunidade boa, tu vai começar lá de baixo, tu vai pegar aquele serviço que ninguém mais quer. O salário é muito pouco, é muito sujo. (Fernando, comunicação pessoal, 2019, grupo 2, 1º encontro)
É possível perceber, diante dos relatos já apresentados, que as políticas de trabalho prisional são ineficientes, pois não contribuem para a reinserção no mercado de trabalho. Por essa razão, argumenta-se sobre a necessidade de políticas públicas que efetivamente ampliem as possibilidades de reinserção social dos indivíduos que tiveram sua trajetória marcada pelo cárcere, ainda que não se ignore que a mudança no curso de vida dos sujeitos que hoje estão privados de liberdade, ainda vai muito além da criação destas possibilidades.
Outro aspecto que foi destacado pelos participantes deste estudo refere-se às oportunidades que lhes são oferecidas após sair da prisão. Diante da pouca escolaridade, o estigma de ex-detento e as demais dificuldades mencionadas anteriormente, as possibilidades de trabalho que restam, muitas vezes, envolvem condições precárias, e com baixos salários, tal como a fala a seguir ilustra:
Então é muito difícil a pessoa, que nem nós presos, se encaixar no mercado de trabalho na rua. Então muitas pessoas vão tentar fazer outras coisas, já que tu vai ter que trabalhar, tipo... Por exemplo, num serviço frio, numa obra ou num outro negócio que é muito mais frustrante pra gente e muito mais sofrido. E muitas pessoas não aguentam esse tipo de fardo e acabam às vezes... Voltando pros mesmos erros que já cometeu, que por exemplo, eu tô aqui trabalhando, mas se eu ir lá fazer uma coisa lá, quando vê já ganho, né? Porque outras firmas que pagam um pouco melhor elas fecham essas portas. (Charles, comunicação pessoal, 2019, grupo 1, 1º encontro)
Deste modo, de acordo com Ferreira (2011), a permanência no crime parece ser uma opção que além de possibilitar mais rapidamente uma almejada conquista financeira, também não expõe os sujeitos a trabalhos com condições precarizantes que dão pouco retorno financeiro. A pouca experiência no mercado formal, aliada à baixa escolaridade e ao estigma de ex-encarcerado obstaculizam que os egressos se vinculem em trabalhos que lhes possibilitem satisfação pessoal e salários dignos. É considerando esse contexto que se entende a precarização do trabalho não somente relacionada à esfera econômica, mas também à deterioração de todo o tecido social, levando a um processo perverso de desfiliação, de despertencimento e de vulnerabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo compreender os significados atribuídos ao trabalho por indivíduos privados de liberdade em uma instituição prisional masculina localizada no estado do Rio Grande do Sul e as interfaces com a precarização do trabalho. Concluiu-se que o sentido do trabalho para os participantes da pesquisa estava diretamente associado à sobrevivência e à remição da pena. Sem acesso aos direitos trabalhistas e a remuneração digna, a precarização do trabalho perpassou a história de vida dos respondentes, contexto no qual a inserção em atividades ilícitas apresentou-se como uma possibilidade mais concreta de obtenção de melhores condições de vida. Diante disso, o trabalho prisional pareceu não oferecer suportes para a reinserção no mercado de trabalho, tendo em vista a baixa escolaridade das pessoas privadas de liberdade e o estigma vivenciado socialmente.
É possível reconhecer o trabalho como um elemento fundamental para a reintegração social, à medida que opera na construção do sujeito e, ainda, como um mediador privilegiado, senão único, entre inconsciente e campo social, e entre ordem singular e ordem coletiva. No entanto, para que atinja tal efeito é necessário que o trabalho nas prisões esteja pautado na garantia de direitos e que efetivamente ofereça condições educacionais e de cidadania. Ainda que se direcione à manutenção dos espaços prisionais à mão de obra prisional, tendo como retorno a este labor a remição de pena, são necessários investimentos direcionados às melhorias da valorização desse campo do tratamento penal.
O processo de formalização das relações de trabalho dentro das casas prisionais, por exemplo, se torna primordial para que não se reproduzam relações de trabalho escravo, puramente de utilização de mão de obra sem retorno e/ou auxílio para construção de planos para vida extramuros. Ademais, outras ações precisam ocorrer em conjunto, tais como investimentos em ações de saúde e educação, propondo ainda qualificação profissional, acompanhamento a questões de confecção de documentos e restauração da cidadania, de modo a preparar esses sujeitos a uma retomada gradual das suas atuações em sociedade. Investir em produções teóricas sobre a temática, por meio de pesquisas científicas nesta área de atuação também é fundamental para a análise sobre os processos institucionais, trazendo o foco para a discussão sobre os atravessamentos no contexto da privação de liberdade, contribuindo com a visibilidade de subjetividade s socialmente marginalizadas.
Faz-se necessário, portanto, repensar a construção das políticas de trabalho no contexto prisional, atentando-se principalmente para a garantia de direitos dos trabalhadores privados de liberdade e para o significado das atividades realizadas. Afinal, assim como mencionado por Lolis e Silva (2017), atualmente a prisão funciona como um depósito que abrange indivíduos de classes empobrecidas, mostrando-se funcional ao sistema capitalista e constituindo um estado de barbárie no sistema prisional.
Alguns aspectos podem ser mencionados como limitações deste estudo. O fato de todos os participantes serem trabalhadores, e por isso, contarem com certo “prestígio” na casa prisional pode ser considerado um viés que influenciou os dados obtidos. Considerando que não há vagas de trabalho para todos os detentos, é notório que há uma escolha por parte da instituição de homens que possuem “bom comportamento” para ocupar tais vagas. No sistema prisional, possuir um bom comportamento usualmente significa não questionar as regras e a hierarquia imposta, mantendo uma posição de subalternidade frente à administração penitenciária. Nesse sentido, diante das câmeras e das pesquisadoras, é possível que os discursos dos participantes tenham sido atravessados por essas questões, reproduzindo falas que ilustram o que é esperado que pensem, falem ou façam.
Sugere-se que novos estudos sejam realizados de modo a dar visibilidade e aprofundar as discussões que tenham o trabalho prisional como terreno de análise. Estudos que abarquem as mulheres trabalhadoras podem trazer questões pertinentes a respeito de como trabalho e gênero se intercruzam e se relacionam num ambiente marcado pelo sexismo e pela reprodução de estereótipos de gênero, como o caso da prisão. Além disso, entende-se que estudos com homens e mulheres presas não trabalhadores também possam trazer subsídios para a discussão, uma vez que o trabalho prisional - diferentemente do que prevê a LEP - ainda se configura como um benefício e não como um direito na realidade brasileira.