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Cadernos de Psicopedagogia

versão impressa ISSN 1676-1049

Cad. psicopedag. vol.8 no.14 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Espaços de criação e a ética do cuidado na alfabetização: pesquisa- ação na cidade de São Paulo a favor da Lei 10.639 de 2003

 

Creative spaces and the ethics of care in literacy: action research in São Paulo in favor of 10,639/ 2003 Law

 

 

Nilce da Silva1

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto trata da implantação de ';espaços de criação' na cidade de São Paulo durante o ano de 2008. Nestes ';espaços', com características terapêuticas e educacionais, crianças tiveram contato com as culturas africanas e afrobrasileiras tal qual temos na Lei 10.639 de 2003. Verificou-se que o a ética do cuidado era fundamental para o sucesso no aprendizado das primeiras letras. Este processo, além de apresentar desafios, faz-nos afirmar que ';alfabetizar com sucesso' é um processo inserido na ética do ';ato de cuidar'. Sem este a priori existencial, a alfabetização não ocorre.

Palavras-chave: Alfabetização; formação de professores; aprendizagem.


ABSTRACT

This text deals with the establishment of two 'creative spaces' in São Paulo in 2008. In these 'spaces', with therapeutic and educational features, children had contact with the Afro-Brazilian and African cultures as we have in Law 10,639 of 2003. It was found that the ethics of care was important to success in the first letters learning. This process, besides presenting challenges, makes us say that 'successful literacy is a process inserted into the ethics of' taking care'. Without this, as a priori existential, literacy does not occur.

Keywords: Literacy; teacher-training; learning.


 

 

A fábula-mito do Cuidado

"Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro.
Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma.
Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele.O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado,
Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra.
Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro,
material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro.
Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:
';Você, Júpiter, deu-lhe o espírito;
receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.
Você, Terra, deu-lhe o corpo;
receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.
Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura,
ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu:
esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil'".

Higino

 

 

Falar da alfabetização, apenas de um ponto de vista, é um profundo erro, pois ';alfabetizar' ou ';ser alfabetizado' envolve diferentes áreas do humano: a cognição, o físico, a afetividade, o social. Daí, que diferentes ciências têm se debruçado sobre o assunto e produzido, cada um delas, saberes de grande importância para a compreensão deste fenômeno. Ou seja, alfabetizar ou alfabetizar-se faz parte do universo da linguagem humana, sistema simbólico complexo que o Homem criou.

Longe de ser uma temática apenas da Linguística, a linguagem, e, portanto, a alfabetização, para ser compreendida, pede para ser objeto de conhecimento de várias ciências. Dentre elas, salientamos: a Psicanálise, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, e ainda, as chamadas áreas hibridas tais como: a Psicopedagogia, a Psicolinguística, a Sociolinguística, dentre outras, representam um grande avanço nos estudos da alfabetização, pois se propõem ao diálogo.

Deste modo, o mito com o qual começamos este artigo tem pelo menos quatro funções: de nos proporcionar prazer; pelo fato de ser belo texto; de nos fazer pensar na imagem do ser humano como aquele que se faz Homem depois de ser nomeado; de nos fazer compreender a disputa entre as ciências, por reivindicar o Homem como ';seu', como objeto de estudo, de preocupação, em última instância, de cuidado e, finalmente, de nos mostrar a possibilidade de metáfora entre o mito e a necessidade do cuidado na alfabetização. A partir da implantação de ';espaços de criação' (Winnicott, 1990; Biarnès, 1998) no âmbito da disciplina ';Metodologia e fundamentos da alfabetização em países de língua oficial portuguesa: uma introdução' ministrada como optativa no curso de graduação de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Nestes ';espaços', com características terapêuticas e educacionais, crianças de educação infantil e dos primeiros anos da escolarização tiveram a possibilidade de realizar atividades de alfabetização com conteúdo das culturas africanas e afrobrasileiras contempladas pela Lei 10.639 de 2003.

Constatou-se que a provisão ambiental (escuta atenta, intervenção interessada, dialogo com compromisso; materiais pedagógicos, sala de aula, livros, dentre outros) oferecida pela pesquisadora aos professores-alunos, e aos alunos especiais - professores da rede pública e particular da cidade de São Paulo, participantes da pesquisa; e a destes, aos alfabetizandos e o cuidado do ambiente do ponto de vista filosófico, como aquele que facilita a emergência dos alfabetizandos no mundo e da continuidade do seu existir como pessoas (Loparic, 2010) eram condições necessárias para o aprendizado do alfabetizador e do alfabetizado em língua portuguesa tendo como pano de fundo as culturas dos países com língua oficial portuguesa.

 

Alguns aspectos da ética do cuidado

A palavra cuidar é de origem latina e se origina do vocábulo co-agitare, significando agitação de pensamento, revolver no espírito ou tornar a pensar em alguma coisa (Montenegro, 1999). De acordo com Silva (1949), temos ainda que o termo cuidado deriva do latim cogitatus e ainda afirma que ';cuidado' pode referir-se tanto à atividade de pensamento como ao campo das emoções, significando desvelo, solicitude, diligência, vigilância, precaução. Deste modo, podemos considerar que ';tomar cuidado de' significa dois trabalhos: um no campo do pensar e outro no agir; ou seja, no cognitivo e no afetivo.

Ao recorrermos mais uma vez, ao mito do Cuidado, de acordo com a sabedoria de Saturno, ou seguindo os ensinamentos do correr do tempo, a Cuidado, caberia ';cuidar' do ser humano enquanto ele vivesse. Do nosso ponto de vista, este ';cuidar', para o ser humano, é algo necessário cotidianamente. Ou seja, é todo o dia o dia todo que precisamos de algo, já que nossas necessidades são diárias, constantes e contínuas como, por exemplo: o comer, o beber, o se abrigar, o dormir, dentre outras. Quando nós mesmos não conseguimos satisfazer estas necessidades, para a sobrevivência do corpo, precisamos do cuidado de outras pessoas. Este é o caso das crianças, dos idosos e dos doentes. E, não por isto, mesmo tendo satisfeito este básico, Cuidado deve continuar a trabalhar. Temos ainda todas as formas de fome simbólica. Necessitamos da escola, da arte, do lazer, da música, do esporte, dentre tantos outros quesitos que podem ser acrescidos ou embaralhados com as necessidades criadas pela mídia e pelo consumo. Em suma, o cuidar é necessário.

O ';cuidador' pode ser alguém ';unido pelo leite' àquele que é cuidado, como pode ser uma pessoa que não tenha laços familiares com esse. Neste segundo caso, encontramos uma diversidade de profissionais denominados como ';cuidadores'. Dentre estes, do nosso ponto de vista, temos os alfabetizadores. E assim, concordamos com Rosemberg (1999) quando afirma que o professor das primeiras letras - acrescentamos, quando exerce o cuidado, o desvelo, é atento aos afetos, às emoções e aos sentimentos dos seus alunos; às relações que este estabelece com os outros, com as coisas e com o ambiente. Deste modo, as atitudes do professor ligadas ao planejamento do espaço que estimule a inteligência e a imaginação da criança, que permita descobertas sobre a vida, sobre sua história e aguce sua curiosidade para querer saber mais; dentre outros atos e atitudes antes, durante e depois da aula, implicam em cuidar.

 

Cuidado e Winnicott: algumas considerações necessárias

Como dissemos acima, o conceito de ';espaço de criação' é baseado no trabalho de Winnicott (1990, 1975), Biarnès (1998), que o transportou como conceito valise para a área de Educação, e Silva (2003).

Winnicott (1990, 1975) afirma que a primeira relação estabelecida pelo bebê é com sua mãe durante o aleitamento. Durante as primeiras semanas de vida, o bebê pensa que ele é o seio de sua mãe e o seio é a satisfação total como se o bebê ainda estivesse no útero. Pouco a pouco, com a distância que o bebê vai tomando da sua mãe, ele começa a tomar consciência de que ele não é a sua mãe. A distância entre a mãe (a realidade exterior) e o bebê (a realidade interior) foi definida por Winnicott como ';espaço de criação'.

Na medida em que o bebê percebe a distância, física e temporal, entre ele e sua mãe, ele começa a fazer numerosas tentativas para preencher este vazio e para reduzir a ansiedade criada pela ausência. Para completar esta lacuna, o bebê precisa inventar e criar. Enquanto inventa se distrai e cria substitutos para sua mãe. Estes substitutos são chamados, por Winnicott, de ';objetos transicionais'. Deste modo, podemos observar como os bebês, na ausência da mãe, aceitam uma mamadeira, uma chupeta e mesmo sugam seus dedos. Afirmamos assim que tais objetos minimizam o stress sofrido pelo bebê.

Para que esta criatividade seja despertada, segundo o mesmo psicanalista inglês, um fenômeno transicional precisa ser produzido, ou seja, um objeto transicional precisa ser criado. A mãe participa deste processo mesmo estando ausente, na medida em que ela é o adulto da relação, aquela que controla o tempo e pode se deslocar no espaço. Segundo Winnicott, a mãe que proporciona o ambiente ideal para o desenvolvimento da criatividade é a ';mãe suficientemente boa' que significa a mãe que está entre aquela que sufoca àquela que é displicente. De modo pratico, é aquela mãe que não deixa o bebê quase se asfixiar com o seu próprio choro na hora em que tem fome; como é aquela mãe que não vem imediatamente após o primeiro resmungo do bebê para lhe oferecer o peito ou a mamadeira. Ou seja, é aquela que ';deixa tempo' para que o seu filho possa criar, possa ';resolver' a situação, ainda que provisoriamente, antes do que ela mesma solucione o problema ou o bebê desista de tentar resolvê-lo. Assim, a mãe suficientemente boa faz o bebê confiar em si mesmo e no meio ambiente que o cerca.

E, quando fazemos a transposição destes conceitos para a área da Educação, tal qual nos ensinou Biarnès (1998), precisamos assumir a posição de alfabetizadores suficientemente bons, o que quer dizer: ter a ética do cuidado. Mais uma vez, é o professor que pode disponibilizar meios culturais para que esta ansiedade existencial seja diminuída e, dentre estes, os alunos escolherão aqueles que lhe permitem sentirem-se em vida.

A escrita, as letras, as frases, os livros, a poesia são aspectos essenciais da cultura. No caso deste artigo, referimo-nos ao mundo letrado lusófono, aquele que é composto por Portugal e por suas ex-colônias.

Deste modo, oferecemos elementos que compreendem os sistemas culturais e de escrita da língua portuguesa no mundo (Portugal, Angola, Timor-Leste, Cabo Verde, Guiné- Bissau, Moçambique, Brasil) para que nossos alunos do curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo, e, por conseqüência, alunos de educação infantil e dos primeiros anos da escolarização, pudessem criar objetos transicionais do ponto de vista aqui explicitado.

Cada um dos alunos envolvido neste trabalho escreveu um depoimento acerca da experiência vivida. Neste texto, relataram de modo eficiente como apresentaram aos alfabetizandos com os quais realizam seu estágio diferentes aspectos das culturas africanas e afro-brasileiras por meio de contos, mitos, cantos, dramatização, estórias, dentre outras ferramentas pedagógicas. Todo este material foi considerado como dados de pesquisa e tem sido foi analisado em diferentes aspectos. Ou seja, as observações de nossos alunos de graduação em prática de estágio foram levadas em consideração, assim como quando estavam conosco em momentos de formação na FEUSP em que preparávamos sua prática de estágio ou discutíamos suas experiências.

Apesar de obstáculos, constatou-se que a provisão ambiental oferecida pela pesquisadora aos futuros alfabetizadores e professores da rede pública, em formação conosco, (escuta atenta, intervenção interessada, dialogo com compromisso; materiais pedagógicos feitos com atenção e zelo, cronograma de trabalho respeitado, sala de aula limpa e organizada, livros bons e diversificados, dentre outras atitudes medidas) em sala de aula que se constituiu em dois ';espaços de criação' na FEUSP, nos períodos verspertino e noturno, e o cuidado do ambiente do ponto de vista filosófico, como aquele que facilita a emergência do gosto pelo alfabetizar em diferentes alunos da graduação de modo que esta tarefa possa ser vista como uma das possíveis maneiras de se continuar a existir no mundo, tal como representou para a pesquisadora envolvida neste trabalho que agora escreve este artigo.

 

Lusofonia em ';espaços de criação': da universidade às escolas de educação infantil e dos primeiros anos de escolarização na cidade de São Paulo

No ano de 2005, fruto dos convênios de pesquisa apoiados pelo CNPq no âmbito do edital ProAfrica, em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique, apresentou-se a disciplina ';Metodologia e Fundamentos da Alfabetização em Países de Língua Oficial Portuguesa: uma introdução' ao departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada, ministrada, para fins deste trabalho, no primeiro semestre de 2008.

A mesma, que continua sendo oferecida, vale quatro créditos- aula (30 horas) e oferecia 30 horas de estágio em que foram realizados ';espaços de criação'.

Durante a regência deste curso em que ensinávamos sobre a lusofonia, formamos dois ';espaços de criação' na Faculdade de Educação da USP. Tais ';espaços' funcionaram durante o primeiro semestre de 2008 pelo período de 30 horas cada um. Nestes locais, professores da rede pública e particular da cidade de São Paulo e alunos da Faculdade de Educação da USP estudaram as principais características do mundo lusófono e, depois deste estudo, por meio de transposição didática, eles ensinaram o que aprenderam conosco a alunos da Educação Infantil e dos primeiros anos de escolarização em escolas públicas e privadas da cidade de São Paulo, também pela constituição de ';espaços de criação'.

Tais ';espaços' ofereceram subsídios práticos e teóricos para a viabilidade de Lei 10639/03 que altera Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabelece obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica e o Parecer Nº 1/04 do CNE que estabelece as Diretrizes Curriculares das Relações Étnico-Raciais.

Os dois ';espaços de criação' formados, aqui designados como A e B, eram formados por alunos e professores da rede pública (especiais e regulares) da FEUSP, em março de 2008, da seguinte maneira:

ESPAÇO A (período vespertino)

32 mulheres e dois homens

28 pessoas abaixo de 30 anos; seis pessoas acima de 30 anos.

Oito pessoas com renda média familiar abaixo de cinco salários mínimos, e os demais, acima desta faixa.

ESPAÇO B (período noturno)

22 mulheres e três homens

19 pessoas abaixo de 30 anos; seis pessoas acima desta idade.

Cinco pessoas com renda familiar mensal até cinco salários mínimos, e os demais, acima desta faixa.

Por meio de questionário aplicado junto aos nossos colaboradores da FEUSP obtivemos que nossas ações na Universidade atingiram, em torno de 800 crianças que passaram a conhecer aspectos do mundo lusófono. Destas 800 crianças, 99% se mostraram satisfeitas durante o ensino de aspectos das culturas afro-brasileira e africanas dos PALOPs e 80% das crianças atendidas eram alunos de escolas públicas da cidade de São Paulo.

Das quase 800 crianças, 85% delas mostraram não conhecer o assunto tratado em sala de aula por nossos colaboradores; e uma pequena porcentagem, em torno de 5%, das escolas convidadas para participarem desta pesquisa-ação não permitiu que assuntos referentes ao continente africano fossem abordados em suas instituições. Todas eram escolas particulares cuja clientela era de classe média- alta.

Além disto, 85% dos nossos colaboradores entendiam que as ';transposições didáticas' realizadas – que duravam, em média, de duas a três horas em sala de aulapoderiam se transformar em um curso, com mais tempo de estudo, acerca das culturas afrobrasileiras e africanas para as crianças atendidas.

Finalmente, do conteúdo estudado nos ';espaços de criação', as seguintes palavraschave foram utilizadas tanto nos planejamentos de aula como nas transposições didáticas em si, sendo que as apresentamos abaixo das usadas mais frequentemente, para as menos usadas: África- Brasil- Portugal - Colonização, escravo, língua portuguesa, lusofonianegro- pobreza - cultura, identidade, etnia, grupos linguísticos - preconceito, racismoalfabetização, literatura - Moçambique, multiculturalismo, policulturalismo-preto, pardo, mulato, selvagem-língua materna- Angola- Guiné-Bissau-Timor-Leste-Cabo Verde-Macau, Goa, São Tomé e Príncipe-latino, cucaracha-diversidade, respeito, igualdade-criolo, negão, neguinha, cor de pele, pele cor-de-rosa, região Norte e Nordeste do Brasil, animais, divisões políticas-analfabetismo, guerra civil, moreno, branquela, macaco (gente), outras.

 

Desafios da proposta: a promoção do diálogo

Encerramos este artigo com uma reflexão acerca dos desafios que esta proposta, tendo em vista sua natureza, apresenta. Abordaremos dois deles no âmbito da teoria de Winnicott (1975, 1990), seguido por Jean Biarnès (1998): o conteúdo a ser trabalhado em sala de aula de alfabetização e a forma que propusemos para a realização deste contato com outro baseado na ética do cuidado.

Conforme dissemos acima, uma pequena porcentagem, em torno de 5%, das escolas convidadas para participarem desta pesquisa-ação não permitiu que assuntos referentes ao continente africano fossem abordados em suas instituições. Todas eram escolas particulares cuja clientela era de classe média- alta.

Este dado, apesar de representar uma minoria, pode se apresentar como um desafio a concretização de propostas da natureza desta pesquisa e de seus objetivos, última análise, a formação de alfabetizadores à luz das culturas africanas e afrobrasileiras.

Segundo Biarnès (1999), o ser humano passa por três nascimentos: o nascimento do seu corpo pela mãe, o nascimento à cultura pelo pai e o nascimento da sua alteridade em contato com o outro.

No caso dos 5% aos quais nos referimos acima, o contato com as culturas amparadas pela Lei 10.639 de 2003 poderia ser considerado como um terceiro nascimento na medida em que o contato com o ';outro'- excluído socialmente, o da África, o ex- escravo- é proporcionado. Ou seja, promover-se-ia, por meio da aplicação desta lei, uma desinserção do envelope materno para que jovens crianças pudessem se inserirocorre a inserção em outros envelopes na direção apontada por Biarnès (1999) de que aprender a ler e a escrever é, portanto, sair do mundo materno e entrar no paterno, na medida em que o pai existe somente a partir da palavra da mãe. Ele é, portanto, um pai simbólico. É o nome do pai, é a lei simbólica. Ser adulto significa romper com a mãe e se afiliar a outros grupos, ou seja, significa ser capaz de criar afiliações simbólicas. Para tanto, a aceitar a interculturalidade é fundamental. E, na medida em que o pai- para muitas culturas colonizadas- pode ser representada pelo homem branco e colonizador (Biarnès, 1999), é possível que, neste caso, encontremos a explicação pela resistência à proposta apresentada junto a algumas escolas de classe média- alta. Além desta impossibilidade, e na mesma direção teórica aqui apresentada, a proposta de alfabetização baseada no cuidado também revelou outra questão: podemos apostar numa proposta do desvelo- que valoriza atributos éticos, ditos femininos, ou melhor, maternos, à crueldade do sistema político e econômico do capitalismo?

A partir de Maquiavel (1992), sabemos que para a conquista do poder, os fins justificam os meios. As ações das pessoas, deste forma, no espaço público, é voltada para a a conquista do poder. Neste contexto, destaca o pensador italiano, há uma tensão constante na cena política que é fragilidade intrínseca do bem quando confrontado ao mal. E, desta forma, o cuidado, tal como apresentamos aqui, que implica em ter boas intenções e no firma propósito de agir no caminho do bem, não se constitui em ferramenta de luta frente aos meios, inclusive ilícitos, utilizados pelos poderosos na sociedade.

Ou seja, não é que o modelo de cuidado inspirado na relação mãe- filho, como nos apresentou Winnicott quando falou da ';mãe suficientemente boa', é impróprio para o trabalho em escolas, entretanto, ele é, no mínimo, difícil de ser praticado.

Isto porque não se pode ignorar ou ser ingênuo e pensar que apenas o ';querer' vai fazer com que nos libertemos da escravidão por meio da aplicação em atraso da tardia Lei 10.639 de 2003. Dito de outro modo, não se pode querer ser a mãe das crianças em fase de alfabetização nas escolas. Não é isto!

O ensino das culturas africanas e afro-brasileiras é difícil de ser realizado pelo fato do desconhecimento com relação às culturas africanas e afrobrasilieras (Silva & Ferreira, contato com o outro. 2008). Há muitos desafios: como preparar atividades didáticas sobre o desconhecido? Como pensar em procedimentos didáticos sobre o que nos foi negado durante anos? Como elaborar estratégias de ensino sobre o que não é bem contado? E, finalmente, como avaliar o que não foi ensinado e sobre o qual não se pôde conhecer? Ou seja, se não há o aspecto cultural no jogo, como poderemos falar em criar, no sentido de Winnicott, a partir do vazio? Este é o terreno fértil para a instalação e ou manutenção de preconceitos.

Deste modo, frente a todas as multiplicidades existentes- entre os indivíduos, diferenças sexuais, físicas, intelectuais, religiosas, e, neste caso, étnicas e raciais- a correlação entre opressores e oprimidos fica muito desigual e este combate social termina por impregnar toda a educação (Freire, 1987).

Mesmo assim, ou melhor, por isso, há que se manter uma atitude crítica para que haja a possibilidade constante de se recuperar a humanidade do oprimido e manter a esperança, imperativo existencial e histórico (Freire, 2006) ou ainda é favorecer o ';sem precedente viável'.

Estamos de acordo com Maturana e Rezepka (2000), quando estes afirmam a necessidade de se recuperar o amor e a proximidade porque sem isto desaparecemos como seres humanos, já que a saúde psíquica e a fisiológica dependem do amor e do CUIDADO, no sentido aqui apresentado, tem relação com o amor que precisa estar presente no ato da alfabetização. Amor pela língua portuguesa; pelo ser humano.

Em suma, temos que reiterar a posição pela vida e pelo AMOR à vida, conforme o mito apresentado no começo deste artigo.

Apesar das dificuldades, disputas e discordâncias no âmbito da alfabetização em língua portuguesa não há como negar que o Homem se faz humano pela palavra, tal como no mito apresentado em que a criatura passa a existir quando é nomeada por Saturno. Deste modo, reiteramos a necessidade de diferentes ciências partilharem a responsabilidade por compreender o fenômeno da linguagem e, consequentemente, da alfabetização. E, finalmente, a necessidade do cuidado para o sucesso na alfabetização seja daquele que ensina como daquele que aprende.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Antonieta Leitão, 209. Ap. 12
Freguesia do Ó
São Paulo. SP. CEP: 02925 160
e-mail: nilce@usp.br

Recebido em: 05/2010
Aceito em: 10/2010

 

 

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo

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