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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008
ARTIGOS
Realizando o imaginário: da concepção sartreana sobre os sonhos à uma clínica existencial do sonhar
Realizing the imaginary: from Sartres conception of dreams to an existential clinic of dreaming
Realizando el imaginario: de la concepción sartriana sobre los sueños a una clínica existencial del soñar
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos*
Faculdades Metropolitanas de Belo Horizonte
RESUMO
Existe pouca bibliografia a respeito do fenômeno dos sonhos no Brasil que se alicerça em uma perspectiva fenomenológicaexistencial. O sonho é um elemento de suma relevância para o trabalho psicoterápico e uma base teórica faz-se necessária para a compreensão desse fenômeno no contexto da existência do indivíduo como um todo. O texto tem como objetivo apresentar a concepção de Sartre a respeito dos sonhos, conforme sua obra: O imaginário, de 1940. A forma como o autor entende o fenômeno onírico como uma das manifestações imaginárias contribui para a compreensão do sonho na terapêutica existencial. Visto como um fenômeno da imaginação, o sonho pode ser entendido no mundo real quando se aproxima da intenção imaginante que compõe o seu enredo. Assim, o terapeuta busca resgatar a intenção da consciência imaginante no ato mesmo de produzir o sonho e desvelar essa intenção naquilo que ela traz de significativo para a existência do indivíduo como um todo.
Palavras-chave: Clínica existencial, Sonho, Sartre.
ABSTRACT
A limited bibliography concerning the phenomenon of dreams can be found in Brazil, based on a phenomenological-existential perspective. The dream is an element of utmost relevance to psychotherapy; so, a theoretical basis is necessary for the understanding of this phenomenon in the context of the individuals existence as a whole. This text aims to present Sartres conception of dreams, with basis on his book The Imaginary (1940). The way the author understands the oniric phenomenon as one of the imaginary manifestations contributes to the understanding of dreams in existential therapeutics. Seen as a phenomenon of imagination, the dream can be understood in the real world when it approaches the imaginative intention that composes its plot. Thus, the therapist tries to rescue the intention of imaginative consciousness in the act of producing the dream, and to unveil that intention as it brings meaningful subjects to the individuals existence as a whole.
Keywords: Existential clinic, Dreams, Sartre.
RESUMEN
Existe poca bibliografía con respecto al fenómeno de los sueños en Brasil que se apoye en una perspectiva fenomenológica-existencial. El sueño es un elemento de suma relevancia para el trabajo psicoterápico y es necesaria una base teórica para comprender ese fenómeno en el contexto de la existencia del individuo como un todo. El texto tiene como objetivo presentar la concepción de Sastre con respecto a los sueños, conforme a su obra: El imaginario, de 1940. La forma como el autor entiende el fenómeno onírico como una de las manifestaciones imaginarias contribuye para la comprensión del sueño en la terapéutica existencial. Visto como un fenómeno de la imaginación, el sueño puede ser entendido en el mundo real cuando se aproxima a la intención imaginante que compone su enredo. Así, el terapeuta trata de rescatar la intención de la consciencia imaginante en el propio acto de producir el sueño y desvelar esa intención en aquello que ella trae de significativo para la existencia del individuo como un todo.
Palabras-clave: Clínica existencial, Sueño, Sastre.
Muito se discute a respeito de uma clínica existencial baseada nos pressupostos da filosofia sartriana (ver Erthal, 1989; Schneider, 2006). Entretanto, segundo Rovaletti (2003), grande parte da obra de Sartre, em sua chamada fase psicológica (ver Perdigão, 1995), tem sido negligenciada por parcela da comunidade de terapeutas de abordagem existencial.
Outrossim, há por parte da comunidade de profissionais que trabalham em psicoterapia existencial pouca literatura a respeito dos sonhos e seu manejo do ponto de vista terapêutico. A única obra traduzida que discute o tema é a de Medard Boss (1979): Na noite passada eu sonhei, em que o autor, a partir de inúmeros relatos de sonhos vivenciados por pacientes, vai se valer da analítica existencial de Heidegger para tecer uma fenomenologia do sonhar.
Aqui, nos cabe visitar as concepções do filósofo Jean Paul Sartre no sentido de elucidar, com base em sua fenomenologia descritiva sobre o fenômeno do sonhar, de que forma esse pode ser entendido no contexto de uma clínica existencial.
Devemos ter claro que este texto não se pretende um guia prático para a aplicação de um modelo de compreensão existencialista sobre os sonhos, mas serve como uma reflexão sobre como os pontos de vistas oriundos de uma descrição fenomenológica podem embasar a prática psicoterápica cotidiana.
A fenomenologia como método
A fenomenologia surge com Husserl, em 1901, em sua primeira obra, Investigações lógicas. A principal preocupação desse matemático e filósofo estava em erigir uma ciência fundamental, uma prima philosophia, capaz de fundamentar todas as outras ciências que haviam se afastado daquilo que Husserl chamava as coisas mesmas. Segundo o autor, não é a Filosofia que deve nos levar às coisas, mas as coisas como aparecem à consciência que devem suscitar os problemas filosóficos.
Na tentativa de esclarecer a natureza das coisas mesmas, o pai da fenomenologia resgatará a idéia de fenômeno que havia ocupado uma posição marginal no pensamento ocidental até então.
De antigo uso na História da Filosofia, o conceito de fenômeno (phainomenon) remete ao verbo grego phainestai, que significa mostrar-se, clarear. Assim, esse verbo, quando se substantiva, phainomenon, traduz-se como aquilo que se mostra, aquilo que aparece. Se traduzirmos logos como estudo, ciência, ou sentido que se dá a alguma coisa, temos que Fenomenologia é o estudo daquilo que aparece tal como aparece.
Embora tenhamos em Husserl uma sistematização clara sobre essa nova Filosofia que, segundo ele, deveria ser a base para todas as outras, não foi ele quem se utilizou primeiro desse termo. A primeira vez que o termo Fenomenologia apareceu na Filosofia foi na obra Novo órganon, de Lambert (1764), sendo entendida como Ciência das Ilusões. Isso se deve à separação tradicional no Ocidente entre essência, a coisa tal como é, e aparência, o mostrarse da coisa.
Essa separação entre fenômeno e coisa em-si foi canonizada por Kant. Para esse autor, o fenômeno é aquilo que aparece como objeto de nossa experiência, em contraposição à coisa em si, incognoscível e jamais captada pela razão.
Podemos afirmar, com Dartigues (2002), que a psicanálise freudiana é herdeira dessa separação quando postula o inconsciente como entidade separada da consciência. Assim, os fenômenos, para a psicanálise, no modo como aparecem ao sujeito, são secundários em relação àquilo que os determina, o inconsciente.
Para a fenomenologia de Husserl, a consciência, longe de ser mero efeito de superfície, é a base sobre a qual a filosofia primeira deve-se voltar na sua busca de retorno às coisas mesmas. Portanto, não é necessário aqui o conceito de inconsciente, mas uma caracterização das dimensões da consciência, o que é presente na obra sartriana.
O fenômeno manifesta-se a uma consciência que o visa, e essa manifestação é por si só reveladora. As condições de aparição do fenômeno à consciência é o que a fenomenologia tentará desvendar. O fenômeno não indica nada além de si, como aponta Sartre:
[...] não indica, como se apontasse por trás de seu ombro, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto. O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se desvela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo. (Sartre, 1997, p. 16)
Dessa forma, as psicologias inspiradas pela fenomenologia apostam na descrição dos fenômenos tal como aparecem à consciência para, a partir daí, extrair o seu significado. Essa atitude metodológica difere substancialmente da concepção psicanalítica de uma interpretação dos fenômenos com base em uma estrutura subjacente a eles. No ato de descrever as condições sob as quais o fenômeno aparece, a fenomenologia descarta o dualismo (aparência versus coisa-em-si) presente nas concepções clássicas, principalmente aquelas que distinguem aparência versus essência, uma vez que a aparência fenomênica é reveladora de seu próprio significado.
Se o fenômeno é indicativo de si - mesmo, sua manifestação se dá para uma consciência. Para a fenomenologia, a consciência não é algo encapsulado, interno e substancial, mas é sempre consciência de alguma coisa, na medida em que seu conteúdo não é interno ou externo, mas se dá na relação com os objetos e com outras consciências. Assim, toda consciência é intencional, pois seu conteúdo pode ser deduzido de sua intencionalidade.
O conceito de intencionalidade deriva da palavra latina intentio, que quer dizer relação. Husserl distingue dois tipos de intencionalidades empreendidas pela consciência: a operante e a temática. A primeira ocorre quando a consciência se volta para os objetos em uma atitude operativa, sem se posicionar ou refletir sobre seu ato. Já na intencionalidade temática, a consciência, além de operar, dá sentido e significado para aquilo a que ela está se voltando.
Sartre se utiliza do conceito de intencionalidade para descrever os fenômenos imaginários. A apreensão da intenção da consciência quando lida com a dimensão imaginária fará parte da discussão do autor, em duas obras, A imaginação, de 1936, e O imaginário, de 1940.
Para o que nos interessa neste artigo, remeteremos à segunda obra por ser nela que Sartre tratará especificamente dos sonhos como dimensão imaginária.
A concepção sartriana sobre os sonhos
Sartre trata diretamente do tema dos sonhos na obra O imaginário, de 1940, como parte de um extenso esforço argumentativo de defender a idéia de que a percepção opõe-se à imaginação. Para isso, ele distingue dois modos intencionais de a consciência lidar com os objetos: um modo perceptual e outro imaginante.
A percepção, segundo Sartre, dá se no modo como a consciência visa aos objetos do mundo real. Tal como descrito no primeiro capítulo de O ser e o nada (1943), o objeto real de um mundo percebido aparece sob múltiplos Abschattungen (perspectivas) diante à consciência intencional, que elege os aspectos a que se direcionar.
Outra característica do objeto real é que ele está no meio do mundo, e por isso é dotado de uma temporalidade e espacialidade percebida pela consciência que o visa. Em termos espaciais, ele é co-extensivo aos outros objetos, aparece distante dos objetos que o circundam e da consciência que o percebe. Em termos temporais, a infinidade de percepções que a consciência pode apreender dele faz com que este se revele na medida dessa apreensão. Em outras palavras, o objeto percebido é sempre visto de um dado lugar e em dado tempo, jamais podendo ser apreendido de lugar nenhum ou de um tempo qualquer. Isso corrobora com seu caráter falível e inexato, o objeto percebido jamais se revela por inteiro, pois sua percepção total remete ao infinito.
Essa concepção torna-se mais clara quando a contrastamos com o objeto irreal, este, segundo Sartre, não é percebido, mas imaginado pela consciência imaginante. O objeto irreal não tem mundo, não está no tempo e nem no espaço, brota da espontaneidade da consciência em uma atitude intencional de negação do mundo.
O objeto irreal é apreendido de uma só vez. A imagem não é dada a perspectivas e tampouco se dimensiona no tempo. Ao imaginar uma montanha, não temos dúvida de que a montanha imaginada é de tal forma, nem temos parâmetros para contrastá-la com a mesma montanha vista em um tempo seco ou chuvoso. A montanha imaginada dá se como um todo à consciência, não tem nuances ou perspectivas, não está sujeita às ilusões da percepção, mas é uma montanha inteira, evidente em si mesma.
O irreal em Sartre pode aqui entrar em contradição com a tese fenomenológica de que toda consciência é consciência de alguma coisa. Ora, a consciência imaginante projeta um mundo irreal na medida em que ela efetua sobre o mundo da percepção o mundo real, uma atitude nulificadora, tendo assim, como intenção básica, negar o mundo real e projetar possibilidades improváveis, senão impossíveis, diante à realidade perceptual imediata. 1 Assim, o homem, por meio da imaginação, pode transcender a situação imediata e projetar livremente um mundo irreal, o que reafirma seu caráter transcendental.
Coelho (1978, p. 57) assim nos fala sobre a concepção de imagem em Sartre: Ao contrário da percepção, cujo saber se constitui lentamente e é de caráter duvidoso, hipotético, na imagem há um saber imediato e absolutamente evidente..
Quando Sartre introduz o tema dos sonhos em O imaginário, o argumento que ele quer responder é que nos sonhos existe algo correlato àquilo que chamamos mundo, ou seja, há uma temporalidade, espacialidade e aproximações aos objetos, tais como acontecem no mundo real. Assim, poderse- ia afirmar que o sonho se trata de uma percepção, ou seja, é relativo a um mundo real?
Antes de avançarmos nessa questão, precisamos definir a concepção de Sartre sobre a consciência, oriunda da fenomenologia de Husserl, e como essa se desdobra em duas dimensões distintas.
Desde a obra A transcendência do ego e depois em O ser e o nada, Sartre nos fala de uma consciência não tética ou irrefletida, e uma consciência tética ou refletida. A consciência irrefletida ou não tética é a base sobre a qual se assenta a consciência refletida ou tética. Sartre, em A transcendência do ego(1936), refere-se ao cogito cartesiano, cogito ergo sum, como uma reflexão que tem como objeto a consciência pré-reflexiva, ou espontânea. Segundo ele:
[...] a consciência irrefletida deve ser considerada autônoma. É uma totalidade que absolutamente não tem necessidade de ser completada e devemos reconhecer, sem mais, que a qualidade do desejo irrefletido é de se transcender apreendendo no objeto a qualidade de desejável. Tudo se passa como se vivêssemos em um mundo onde os objetos, além de suas qualidades de calor, odor, forma etc., tivessem as de repugnante, atraente, encantador, útil, etc., etc., é como se essas qualidades fossem forças que certas ações exercessem sobre nós. No caso da reflexão, e apenas nesse caso, a afetividade é por si só posta como desejo, temor, etc., somente no caso da reflexão posso pensar Odeio Pedro, Tenho dó de Paulo etc... (Sartre, 1994, p. 41-42)
Nota-se que a consciência irrefletida não se compromete com um posicionamento ou uma valoração diante do objeto que ela visa. Dá-se, pelo contrário, como um fluxo espontâneo de vivências que captam as qualidades dos objetos de forma imediata, mas é a própria consciência irrefletida que a consciência reflexiva põe como objeto ao se tornar consciência de ser consciente. Assim, o cogito cartesiano só faz sentindo se se tem como primado ontológico a consciência irrefletida, pois o pensar, no cogito, repousa sobre algo que é vivido, antes de se colocar como reflexão.
Voltando à nossa discussão inicial, podemos afirmar que o sonho não é percebido como objeto real, mas é produto da consciência imaginante, 2 que em sua atitude de negação do mundo real cria um mundo irreal com um enredo, uma espacialidade e temporalidade próprias, análoga ao mundo real. A consciência não tética crê na realidade do sonho, produto da consciência imaginante, mas por sua atitude mesma de ser irrefletida, ela não assimila essa crença como crença, ou seja, não duvida da realidade apresentada. Isso é diferente da percepção, segundo Sartre (1996, p. 215):
Afirmar Eu percebo é negar que estou sonhando ou, se quisermos, é uma motivação suficiente e necessária para que eu afirme que não estou sonhando. Mas, se o sonho afirmasse que é percepção da mesma maneira e com a mesma certeza da percepção, o julgamento Eu percebo seria apenas provável, e deveríamos, mais uma vez, apoiá-lo na comparação dos objetos percebidos entre si, sobre a coesão das cenas vistas, sua verossimilhança etc.
Assim, não há dúvida no sonho, caso houvesse ele se dissolveria. A consciência reflexiva ou tética, nesse caso, se coloca em uma atitude de fascínio diante às cenas imaginariamente produzidas. Sartre traça aqui uma analogia entre a posição da consciência reflexiva de um leitor fascinado por um romance e a entrega acrítica da consciência ao imaginário dos sonhos.
A consciência tem consciência de si como aprisionada, fascinada por uma história que se passa, e sobre a qual não há recursos do real. Daí que não há lembranças enquanto sonhamos, a menor lembrança o dissolveria, pois traria a consciência reflexiva ao domínio do imaginário, o que é impossível. O sonho é uma crença, a consciência reflexiva se vê enfeitiçada pelo mundo onírico, o fato de imaginar, prever ou antever possibilidades, próprias dessa dimensão da consciência, retiraria esse caráter, trazendo o sonho para o domínio do vigil:
Num mundo imaginário, não há sonho de possibilidades, já que as possibilidades supõem um mundo real, a partir do qual as possibilidades são pensadas. A consciência não pode recuar em relação a suas próprias imaginações para imaginar uma seqüência possível à história que ela está representando isso seria acordar. (Sartre, 1996, p. 222)
No ato de sonhar, não necessariamente há um Eu que sofre e executa as ações, mas a existência desse Eu na maior parte dos sonhos contradiz a idéia de um mundo imaginário fechado, em que a consciência reflexiva aprisionada se vê fascinada por uma história alheia aos seus intentos. Como explicar então a existência desse Eu no sonho?3
Para Sartre (1996), os objetos do sonho que nos aparecem não são reais. Assim, identificamo-nos com algum personagem da história que nos é posta, da mesma forma como nos identificamos, em geral, com o protagonista de um filme ou romance. Trata-se de uma forma de penetrarmos no mundo irreal elegendo um objeto que já tenha lugar nesse mundo. Vemos então o mundo do sonho, em que todos os objetos são criações de nós próprios orientados por esse Eu imaginário com o qual nos identificamos. Mas esse Eu não é o Eu da consciência reflexiva. Para Sartre, o constatar de que Eu sonho retira-nos da consciência imaginativa.
Segundo Sartre (1996), se a consciência reflexiva for chamada a ocupar um lugar no sonho, o mesmo se dissolve, pois a crença e o fascínio a que essa se submetera perdem seu lugar. Isso pode ocorrer de várias formas, como se segue.
Alguns sonhos despertam emoções reais e chamam a consciência reflexiva a lidar com essas emoções. É o caso dos pesadelos em que, diante a um medo real de um objeto imaginário, a consciência reflexiva é chamada para dar conta desse medo, e então despertamos. Outra forma disso ocorrer pode ser por uma invasão de um objeto externo que não encontre uma analogia com o mundo imaginário. Exemplifiquemos: o barulho de um televisor ligado pode evocar objetos imaginários análogos ao ruído escutado; entretanto, um abrir de portas súbito pode não ser captado pela consciência imaginativa com a mesma facilidade, e a consciência reflexiva é logo chamada para dar-se conta do surpreendente.
Outra forma da consciência reflexiva invadir o sonho e apagá-lo, segundo Sartre (1996), vem da própria incapacidade da consciência imaginativa finalizar uma seqüência que seja lógica com o acontecimento do sonho, chamando a consciência reflexiva para imaginar um futuro ou ponderar os acontecimentos. Em determinado sonho careço de futuro, estando em uma situação de embate, de forma que chamo a consciência a pensar sobre como me desvencilhar daquela situação. Trazendo às claras, um exemplo de um sonho relatado pelo próprio Sartre:
Por exemplo, eu sonho com freqüência que vão guilhotinar-me e o sonho termina no momento em que a guilhotina vai cair sobre meu pescoço. O que motiva o despertar não é o medo pois, por mais paradoxal que isto possa parecer, esse sonho não se apresenta sempre sob a forma de um pesadelo , mas sim a impossibilidade de imaginar um depois. A consciência hesita, essa hesitação motiva uma reflexão, e despertamos. (Sartre; 1996, p. 229)
Sartre discorda de Descartes quando desse afirma ser o sonho uma apreensão da realidade. Para o primeiro, o sonho nada mais é que [...] a odisséia de uma consciência voltada para si própria e, apesar dela própria, a constituir apenas um mundo irreal (Sartre, 1996, p. 229).
A questão que se coloca agora é como tratar os sonhos em uma clínica existencial, ou seja, de que forma podemos apreender de um sonho do indivíduo os elementos significativos para sua existência como um todo.
As contribuições da concepção sartriana sobre os sonhos para a clínica existencial.
Sartre propõe, no último capítulo de O ser e o nada, um novo tipo de método de abordagem aos problemas psíquicos que ele nomeia como Psicanálise
Existencial. Nesse método, o analista deve auxiliar o analisando a regredir em sua história até que lhe seja possível desvelar o sentido de seu projeto original. O projeto original é a base sobre a qual se assentam todos os outros projetos existenciais do indivíduo; é como um fio que une todos os aspectos de uma existência a uma totalidade; assim, qualquer ato intencional se liga, de alguma forma, ao projeto original da pessoa.
Quando o sujeito se torna consciente de seu projeto original que perpassa toda sua história, ele pode escolher outro projeto se for o caso, ou resignar-se com a sua própria escolha, o que aumenta, de alguma forma, sua responsabilidade diante à existência.4
Este artigo não se propõe a refletir sobre o sonho dentro do método da psicanálise existencial de Sartre. Nossa pretensão em levantar a concepção do autor sobre os sonhos tem um intuito mais teórico do que metodológico, de forma que pretendemos auxiliar a qualquer terapeuta de inspiração fenomenológico-existencial, independente do método terapêutico escolhido. De qualquer forma, vejamos como o fenômeno por nós aqui investigado se insere no projeto de psicanálise sartriano e como pode nos auxiliar em nossas próprias metodologias.
O sonho, quando fenomenologicamente compreendido em seu contexto de significado, pode se relacionar a outros sentidos do ser-no-mundo como um todo, sendo assim um fenômeno, como qualquer outro, em que o ser se revela em um aspecto específico, mas que se refere à totalidade desse mesmo ser.
Para Sartre (1996), se há alguma coisa real na produção imaginante, essa é a intenção de imaginar. O criado a partir daí perde sua realidade, pois não conhece os limites do mundo real. Trazer o sonho para o mundo real seria então, no sentido sartriano, desvelar a intencionalidade contida na imaginação. Essa intencionalidade desvelada nos daria a intenção da consciência imaginante ao produzir o material onírico, e compreenderíamos as veredas imaginárias tomadas pela consciência para realizar essa intenção.
A intencionalidade da consciência imaginante pode ser clareada quando acessamos a experiência imediata do sujeito em relação ao conteúdo imaginário produzido, e ele, ao aproximar dessa experiência, a traz para reflexão, no modo da consciência tética. Se temos por objetivo esclarecer a intenção da consciência, ela só é esclarecida através da experiência. Isso reafirma o princípio fenomenológico, já tratado neste texto, que diz que o irrefletido tem primazia sobre o refletido, ou seja, a experiência é sempre a base da reflexão.
Na prática, o relato de determinado sonho seria paulatinamente compreendido quando nos atentássemos à experiência que a pessoa traz de seu sonhar. Assim, ao ouvir o relato de um sonho, o terapeuta pode provocar o sonhador no sentido de que este se aproxime das experiências que emergem no estar em contato com o material onírico. O próprio relato dar-nos-á pistas nesse sentido, o tom e os sentimentos presentes na fala do cliente já são elementos importantes a serem explorados em uma abordagem psicoterapêutica, pois refletem a forma como a consciência irrefletida lida com o conteúdo onírico apresentado.
No sentido sartriano, o que se propõe é trazer a consciência reflexiva para o relato da criação da consciência imaginativa. A consciência reflexiva, no seu papel de se relacionar com a relação da consciência, abre a possibilidade de o sujeito se posicionar diante àquilo que lhe aparece na tela do seu mundo imaginário. Isso vem a reforçar a tese defendida por alguns autores que se inspiram na fenomenologia existencial, seja de base sartriana ou não, de que a psicoterapia deve ser de caráter vivencial (ver Erthal, 1989; Gendlin, 1999). O voltar-se da consciência sobre ela mesma não se dá de forma puramente intelectual, mas na forma em que o sujeito pode se experienciar experienciando esse algo sobre o qual ele fala. Isso também ocorre na Gestalt-terapia, de Fritz Perls, em que é proposto o conceito de awareness, que significa um estar cônscio sobre o algo que se vivencia.
A experiência da experiência, ou seja, a consciência reflexiva quando se volta ao conteúdo onírico, desvelará a intenção da consciência imaginativa na produção da tela imaginária. Essa intenção desvelada pode remeter o cliente a outras intenções presentes em seus projetos existenciais e na sua forma de serno- mundo.
Assim, o processo de captar a intencionalidade da consciência do sonhador através da experiência em vigília do próprio sonho é de grande valia para o trabalho psicoterápico, na medida em que o significado da experiência de um sonho se afina a outros significados presentes na existência.
Esse modo de compreensão dos sonhos na clínica existencial do sonhar busca trazer para os domínios do mundo vigil as imagens do mundo onírico e compreendê-las enquanto intenção da consciência que as criou. Isso difere da proposta psicanalítica que, sob um fundo interpretativo, o inconsciente busca interpretar os sonhos, através da técnica da associação livre. Como afirmamos anteriormente, a psicanálise herda uma concepção dualista da realidade e concebe o homem como dividido em, pelo menos, duas instâncias psíquicas. Os sonhos e os sintomas, ou os atos falhos, devem, segundo a psicanálise, ser interpretados como manifestações do inconsciente na vida do sujeito. Já na fenomenologia existencial inspirada em Sartre, o sentido dos sonhos aponta para a existência do indivíduo como um todo e se equivale a outros significados presentes no projeto existencial do sujeito, a psicanálise existencial é por fim;
[...] um método destinado a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si mesmo aquilo que é. Uma vez que o método busca uma escolha de ser, ao mesmo tempo que um ser deve reduzir os comportamentos singulares às relações fundamentais, não de sexualidade ou de vontade de poder, mas sim de ser, que se expressam nesses comportamentos. Orienta-se desde a origem, portanto, rumo a uma compreensão do ser, e não de partir rumo a outro objetivo que não o de encontrar o ser e a maneira de ser do ser frente a este ser. (Sartre, 1997, p. 703)
Uma vez que se parte do pressuposto que a consciência é intencional e que ela se desdobra, no sentido apontado por Sartre, em uma dimensão irrefletida e reflexiva, torna-se inócuo o conceito de inconsciente, tal como entendido por Freud (1996). A consciência irrefletida está disponível à consciência reflexiva desde que a última se volte para a primeira numa atitude de reflexão. Essa volta da consciência para si mesma pode ser facilitada pelo terapeuta, quando esse provoca o contato do cliente com os conteúdos imaginários relatados por ele.
Na prática, o terapeuta deve pedir para que o cliente relate a experiência do sonho, estimulando-o a entrar em contato com o que ele vivencia no relato e explorando as diversas nuances do enredo da história. Devemos ressaltar que, embora o sujeito sinta-se protagonista das cenas descritas, em uma temporalidade e espacialidade própria, e tenha às vezes a impressão de realidade, tão comum nos relatos oníricos, toda a história relatada é produto criativo da consciência imaginante, de forma que cabe ao terapeuta provocar o cliente a se identificar com os diversos atores presentes no enredo do sonho.
Assim, as imagens presentes, humanas ou não, por se tratarem de imagenseu, podem ser integradas à consciência reflexiva para que o sujeito as reaproprie em sua existência real, trazendo para o nível perceptual o que era do domínio imaginário.
Cabe também atentarmo-nos ao papel da liberdade, tão enfatizado por Sartre, principalmente em seu ensaio de ontologia. A consciência imaginante, ao negar o mundo real, elege o que negar, e o que se nega nos desvelam o sentido para o qual a consciência se voltou. Quando se sonha que se voa, por exemplo, negamos a gravidade, contingência real, que por vezes é negada pela consciência imaginante, como prova de sua habilidade em, nulificando a realidade, transcender os aspectos por ela escolhidos.
O sonho, produto da consciência imaginante, é nulificação das contingências reais com as quais nos deparamos, na maior parte das vezes, em vigília. Ao se valer de imagens análogas ao mundo real, o enredo do sonho nos faz compreender qual direção a consciência imaginante optou para produzir o material onírico. Por exemplo, sentimentos de menos-valia nas relações sociais podem evocar sonhos de situações em que o sujeito aparece bem quisto e admirado pelos outros.
Mas a consciência imaginativa, ao transcender os limites da realidade, não elege apenas desejos a se realizar. Sonhos em que o sujeito aparece sendo punido ou ameaçado por forças transcendentes a ele próprio desvelam que a consciência imaginante desconhece os limites da sobrevivência do próprio Ser, o que pode ser ameaçador à consciência reflexiva que lida com as contingências reais da vigília. As situações com as quais o sujeito se depara evocam nele a possibilidade de transcender e se lançar em experiências que nem sempre favorecem o Eu, e, dependendo dos casos, o aniquila.
A situação ameaçadora mobiliza a consciência reflexiva para uma tomada de decisão ou ponderação a respeito da situação vivida. A sensação evocada por sonhos desse tipo por clientes em psicoterapia é, em geral, mobilizadora da fala e da reflexão do sujeito, que traz essas sensações para serem trabalhadas na sessão. Em nossa experiência, esses sonhos, em geral, remetem a situações de angústia vivida pelo sujeito em sua vida vigil e que clamam por posicionamento e resolução por parte da pessoa. De qualquer forma, devemos nos atentar no sonho ao que o sujeito elege para transcender no mundo real, ou seja, quais contingências reais ele escolheu ultrapassar via imaginação, isso nos dá subsídios para compreender a relação que essas escolhas têm com a própria existência do sujeito como um todo.
Enfim, a formulação sartriana sobre os sonhos vem beneficiar o terapeuta de orientação fenomenológica e existencial, com uma compreensão das diversas intencionalidades da consciência nessa produção imaginária que é o sonho. Saber distinguir o papel de cada uma nesse jogo e remontar o mosaico das cenas do sonhador tornam-se uma arte que se faz quando o indivíduo é convocado a ser sujeito de seu próprio imaginário.
Considerações finais
Uma abordagem existencial em psicoterapia deve se nutrir de formulações teóricas de diversos autores oriundos da filosofia fenomenológica e existencial. A aproximação com o pensamento de Sartre, sobretudo com suas obras psicológicas, torna-se relevante, haja vista a riqueza e a profundidade de seu empreendimento fenomenológico nesse conjunto de obras. Assim, o texto se propôs a abordar o fenômeno do sonhar, tão monopolizado por concepções dualistas e organicistas, em uma perspectiva fenomenológica e existencial.
O sonho aparece-nos como um enigma a ser decifrado graças a anos de tradição metafísica presente em nossa cultura e modo de ver ocidental. Deixar que ele se revele tal como é é o grande desafio a que se propõe uma abordagem fenomenológica. Compreender o modo como a consciência produz o sonho é um princípio fundamental para que possamos circunscrevê-lo dentro do escopo de realidade em que ele se revela.
A consciência imaginante é vista por Sartre como uma prova contundente da liberdade humana em ultrapassar a si mesma e projetar mundos para além daquilo que chamamos realidade. No entanto, esse mundo, quando visto por uma perspectiva vigil, dá-nos a ilusão de algo obscuro e inacessível a nós mesmos.
A dificuldade em aceitar a existência como um todo não fragmentado, mas que comporta infinitas perspectivas, faz com que nós tendamos a imaginar outras existências para responder a essa que chamamos de real. O mundo platônico das idéias, o inconsciente em Freud, e tantas outras formulas metafísicas, afastam o homem do seu lugar originário e possível de ser e de se fazer.
Devolver o imaginário à existência é parte do desafio de nos encontrar com o nosso próprio corpo no mundo da vida. Descobrir-se sendo no mundo é um empreendimento espantoso, mas necessário à consecução de nossa própria liberdade em meio à nossa existência. O imaginário nos dá pistas valiosas no sentido de que nos aponta a existência ultrapassando a si mesma, rumo à sua própria criação. Essa fascinante dimensão da consciência humana auxilia-nos a desvelar os significados implícitos no nosso lidar cotidiano no mundo da vida. O sonho, há tempo, deixou de ser fonte de sabedoria e revelação, como era para os povos primitivos, para ocupar um lugar de objeto diante o olhar científico-moderno.
A fenomenologia, no seu papel fundamental de recuperar no sentido do homem no mundo da vida, auxilia aqui na re-integração do homem consigo próprio. O imaginário, tantas vezes negado e rechaçado pela razão ocidental, deve, no sentido fenomenológico, ser resgatado e integrado à existência como um todo, realizando-se nos possíveis em que o ser escolher Ser.
Referências
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Texto recebido em novembro/2007.
Aprovado para publicação em março/2008.
*Mestre em Psicologia Clínica, psicoterapeuta existencial, professor das Faculdades Metropolitanas de Belo Horizonte, professor do Curso de Especialização em Psicologia Clínica FEAD/MG. E-mail: gaosantos@ig.com.br
1É comum nos relatos de prisioneiros de guerra (ver Frankl, 1991) a predominância de fantasias imaginárias quando as situações reais não possibilitam nenhuma forma de realização. Os prisioneiros têm uma tendência a criar um mundo fantástico, em que atos simples, como um almoço em família, são vivenciados como um recurso a uma situação aterrorizante.
2O leitor aqui pode confundir a consciência imaginante como mais uma dimensão da consciência, tal como a tética e a não tética. No entanto, Sartre, ao se utilizar desse conceito, quer dizer mais de uma atitude da consciência, seja a tética ou a não tética, em relação ao mundo.
3Em a Transcendência do Eu, Sartre define o Eu como um transcendente projetado pela consciência no mundo, assim não há um eu interno, mas um eu transcendente e objetivo.
4A Psicanálise Existencial apresenta dois momentos metodológicos distintos e complementares. O primeiro é o analíticoregressivo, em que o sujeito se volta para sua história de forma a lhe desvelar o sentido do projeto original; e o segundo é o progressivo-sintético, em que o sujeito vai projetando novas escolhas a partir do material já analisado.