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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.1 Belo Horizonte abr. 2012
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p134
ARTIGOS
http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p134
Contribuições de Baruch Espinosa à teoria histórico-cultural
The contributions of Baruch Espinosa to the historical-cultural theory
Los aportes de Baruch Spinoza a la teoría histórico cultural
Hamilton Viana Chaves*; Osterne Nonato Maia Filho**; Juliano Cordeiro da Costa Oliveira***; Francisco Edmar Pereira Neto****
Resumo
L. S. Vygotski fez recorrentes citações das obras do filósofo holandês Baruch Espinosa. Foi desse pensador que emanou, dentro das concepções vygotskianas, a noção de corpo e sua relação com a mente. Essa concepção repercutiu diretamente naquilo que o bielorrusso entedia como funções psicológicas e emoções. Este artigo tem o propósito de fazer um cotejo dos pensamentos espinosianos e vygotskianos, a fim de mostrar as influências do primeiro pensador sobre o segundo. Conceitos como intelectualismo, os instrumentos intelectuais e o determinismo que são encontrados na psicologia vygotskiana procedem da filosofia de Espinosa. As aproximações entre a filosofia panteísta de Espinosa e a teoria histórico-cultural de Vygotski permitem elucidar a constituição de um caminho alternativo para a compreensão não dicotômica das emoções humanas.
Palavras-chave: Teoria histórico-cultural, Ética, Funções psicológicas, Emoções.
Abstract
L. S. Vygotski quoted the Dutch philosopher Baruch Espinosa repeatedly. The notion of body and its relation to the mind arose within the vygotskian concepts as a derivation of Espinosa's ideas. This concept is directly linked to what the Belarusian thought about the psychological functions and emotions. This article proposes to compare Espinosa's and Vygotski's thoughts, with the aim of showing the influence of the former upon the latter. Concepts such as intellectualism, the intellectual tools and determinism, found in the vygotskian psychology, are originally from Espinosa's philosophy. The approximation between the pantheistic philosophy of Spinoza and the Historical-Cultural Mind of Vygotsky allows us to elucidate the constitution of an alternative path to a non-dichotomous understanding of human emotions.
Keywords: Historic-cultural approach, Ethics, Psychological functions, Emotions.
Resumen
L. S. Vygotski hizo citaciones recurrentes de las obras del filósofo holandés Baruch Spinoza. De este pensador emanó, dentro de las concepciones vygotskianas, la noción de cuerpo y su relación con la mente. Esa concepción tuvo un impacto directo en lo que el bielorruso comprendía por funciones psicológicas y emociones. Este artículo tiene como objetivo cotejar los pensamientos spinosianos y vygotskianos para mostrar la influencia del primer pensador sobre el segundo. Conceptos como el intelectualismo, los instrumentos intelectuales y el determinismo que se encuentran en la psicología vygotskiana derivan de la filosofía de Spinoza. La proximidad entre la filosofía panteísta de Spinoza y la teoría histórico-cultural de Vygotski permite dilucidar la constitución de un camino alternativo a la comprensión no dicotómica de las emociones humanas.
Palabras claves: Teoría histórico-cultural, Ética, Funciones psicológicas, Emociones.
Introdução
Vygotski fez recorrentes citações das obras do filósofo holandês Baruch Espinosa. Foi desse pensador que emanou, dentro das concepções vygotskianas, a noção de corpo e sua relação com a mente. A psicologia elaborada por Vygotski foi sensivelmente afetada de tal modo que se depreendem, no estudo científico das funções psíquicas e das emoções desse autor, as definições presentes nas obras do filósofo da Ética. Este artigo tem o objetivo de fazer uma análise da teoria vygotskiana, apontando as contribuições de Baruch Espinosa, especialmente o seu estudo das emoções, tentando entender em que medida influenciou a pesquisa realizada por Vygotski, servindo como marco regulador para compreensão de outros fenômenos psíquicos, como a memória.
Elementos da filosofia de Espinosa: uma crítica ao dualismo mente-corpo
A teoria histórico-cultural foi resultante de estudos empreendidos por L. S. Vygotski e colaboradores. As maiores elaborações ocorrem a partir de meados da década de 20 do século passado, a partir de estudos realizados no campo das funções cognitivas em consonância com teorias adotadas por esses estudiosos soviéticos (Rey, 2002). Entre as contribuições filosóficas, está a teoria dos afetos, do filósofo holandês Baruch Espinosa.
Vygotski fez diversas referências à filosofia espinosiana no que diz respeito à concepção da regulação do comportamento ou intelectualismo. A modalidade de organização da conduta e sua relação com a formação cultural do fenômeno humano inserem-se no macroprojeto espinosiano entendido este, afirma Scruton (2000), como representante da modernidade racionalista. Conquanto seja necessário ponderar que a proposta racionalista espinosiana não se insere no modelo cartesiano. Aliás, para o próprio Vygotski (2004), não há que se pensar nem em semelhança nem em antítese, uma vez que a teoria de Descartes sobre as paixões e a teoria de Espinosa sobre as emoções seriam amplamente distintas.
Na busca pelo fundamento de um conhecimento verdadeiro, Descartes formula um método baseado na dúvida. Algo para ser aceito como verdade precisará ser claro e distinto, sem a possibilidade de ser questionado. O resultado desse caminho é o Cogito. O puro pensamento é a substância primordial (res cogitans), solo de origem de toda verdade. Isso exclui, de imediato, como sendo claramente verdadeira qualquer coisa relativa à corporeidade (res extensa). Aqui se encontra o fundamento do dualismo mente-corpo em Descartes.
Espinosa prefere se basear na geometria euclidiana, com seu método demonstrativo. Ao contrário de Descartes, Espinosa toma como ponto de partida os próprios axiomas por ele elaborados e, com base nisso, realiza proposições e demonstrações. É dessa forma, por exemplo, que discute Deus como causa de si mesmo. Isso pode ser observado nos dois primeiros axiomas da primeira parte da Ética: I. "Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa." II. "O que não pode ser concebido por outra coisa deve ser concebido por si" (Espinosa, 1983, p. 77). Para Espinosa (1983), Deus é causa de si mesmo e tudo deriva dele, as demais coisas são modificações da substância divina, ou seja, seus atributos. Disso deriva que Deus está em todas as coisas, inclusive na natureza ou corporeidade. Para Espinosa, Deus e natureza seriam a mesma substância, marca do panteísmo de sua filosofia - Deus Sive Natura (Vaz, 2006). Espinosa posiciona-se de uma forma diversa da concepção cartesiana acerca do dualismo mente-corpo. Em seu entendimento, há a concepção de que "[...] Alma e corpo são um só e mesmo indivíduo, concebido ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão" (p. 152).
É dessa diferença na relação corpo e alma presente nas duas filosofias que procede a compreensão de liberdade humana e de como a razão governa a emoção. Na filosofia cartesiana, a alma governa as afecções conforme consegue se livrar das paixões do corpo e de suas necessidades. Não há nada mais ilusório do que isso para Espinosa, pois liberdade não é estar livre das necessidades e sim ter consciência delas por intermédio da razão. "Tudo aquilo por que nos esforçamos pela Razão não é outra coisa que conhecer; e a alma, na medida em que usa da Razão, não julga que nenhuma outra coisa lhe seja útil, senão aquela que conduz ao conhecimento" (Espinosa, 1983, p. 240).
Para Espinosa, o esforço ou conatus em viver sob a direção da razão faria o homem conduzir-se ao bem supremo, que é Deus ou a natureza. Sendo que a emoção é resultante do aumento ou diminuição da potência, entendida esta como perfeição.
Na segunda parte da Ética, enfatiza-se que o homem é uma unidade do corpo e da alma. Embora sejam aspectos distintos um do outro, relacionam-se entre si. A ligação interna entre eles está no fato de que a essência do corpo é o objeto a ser pensado pela alma, ao passo que a essência da alma é pensar o corpo. Por meio da relação de interioridade e simultaneidade, reafirma-se, como destaca Ferreira (2001), a unidade na diversidade entre o corpo e a alma, uma vez que o corpo não se sobrepõe à alma e a alma não se sobrepõe ao corpo. Em realidade, ambos exprimem, conjunta e simultaneamente, um mesmo acontecimento na atividade do conhecer:
[...] a alma está unida ao corpo pelo fato de que o corpo é objeto da alma; por consequência, por essa mesma razão, a ideia da alma deve estar unida com o seu objeto, isto é, com a própria alma, da mesma maneira que a alma está unida ao corpo (Espinosa, 1983, p. 154).
Portanto, o homem é a unidade do corpo e da alma, haja vista que ambos constituem a própria essência do homem enquanto um todo. A causa, por sua vez, da união da alma e do corpo é Deus (Natureza Naturante e substância única). Corpo e alma são modos, desdobramentos da substância divina. "Daí resulta que o homem consta de uma alma e de um corpo, e que o corpo humano existe exatamente como o sentimos" (Espinosa, 1983, p. 146). Então, a alma só pode existir enquanto o corpo também existe, havendo uma interdependência entre corpo e alma na filosofia de Espinosa, diferentemente da concepção de Descartes do penso, logo existo. Nesse caso, em Descartes, há uma primazia do sujeito (mente) isolado dos sentidos, e o conhecimento verdadeiro, por sua vez, consistirá justamente na separação da alma e do corpo.
Posto isso, pode-se dizer que, em Espinosa, pensamento (alma) e extensão (corpo) são atributos da substância única, Deus, constando de infinitos atributos dos quais conhecemos apenas dois: o pensamento, pelo qual a substância produz a alma, e a extensão, pela qual produz o corpo. Dessa forma, diferentemente da filosofia de Descartes, não há como separar e hierarquizar alma e corpo no processo do conhecimento, nem de submeter um ao outro. A mente (inteligência), nesse contexto, interliga-se com os sentidos, a experiência vivida, a linguagem e a cultura. Isto é, ela forma-se dentro de um todo.
Intelectualismo, instrumentos intelectuais e o determinismo
Segundo Van der Veer (1984), pelo menos três ideias de Espinosa influenciaram a teoria histórico-cultural de Vygotski. São elas: o intelectualismo, o uso de ferramentas intelectuais (simbólicas) e o determinismo; essa tríplice noção, contudo, pode ser resumida em uma única concepção vygotskiana, a de que o desenvolvimento do psiquismo se dá mediante uma contínua apropriação da cultura, o que tentou demonstrar Vygotski por meio da análise de duas vias, a filogenética e a ontogenética.
É seguindo esse fio de Ariadne que Vygotski (2000) tratou de estudar o gradual desenvolvimento daquilo que denominava funções psicológicas superiores. A história da espécie humana, assim como a ontogenia do sujeito, constituir-se-ia numa progressiva formação de um psiquismo mais elaborado, uma vez que este superaria as condições impostas pela biologia. Isso conduziu Vygotski a forjar o conceito de funções psicológicas superiores, que dizia tratar-se:
[...] em primeiro lugar, dos processos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas nem determinadas com exatidão, que na psicologia tradicional se denominam de atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos, etc. (Vygotski, 2000, p. 29).
O desenvolvimento dessas funções citadas, e, por assim dizer, a superação da biologia entendida no campo do psiquismo como funções psicológicas inferiores, se dá conforme a razão domina as condições naturais humanas. Aqui há de se fazer um adendo com intuito de esclarecer o que o bielorrusso e o holandês entendiam como natureza. Vygotski insere-se na matriz do materialismo histórico-dialético, dessa forma, comunga com a concepção de trabalho presente em Marx e Engels (1984) como traço diferencial da espécie humana em relação aos demais animais. Para esses pensadores, o homem tem a capacidade de produzir indiretamente sua própria vida material. Isso significa que a possibilidade de utilização de instrumentos é uma das marcas da espécie humana com fins de dominar a natureza.
Ou mais especificamente, como lembrava Marx (1994), o homem tem uma capacidade para além do uso de instrumentos, pois pode fabricar os próprios instrumentos que viabilizam sua mediação com a natureza (trabalho).
Para Espinosa (1983), a natureza e demais entidades da realidade são compostas da mesma substância, sendo que se apresentam de modos diferentes. Ele aproxima a extensão infinita à existência divina de tal modo que sua filosofia é tida como panteísta. Faz-se necessário observar que o panteísmo espinosiano não pode ser considerado místico, apesar de Deus e natureza compartilharem da mesma substância, concebe-o como não transcendente, visto que é imanente à realidade mesma.
O filósofo admite que Deus é substância única indivisível (natureza naturante), ou seja, aquilo que existe e é concebido por si, infinito, produtor e dotado de infinitos atributos. Por conseguinte, tudo o que existe que não está na essência divina é um modo finito de exprimir a substância, isto é, a natureza naturada (tudo que resulta da naturante, que é produzido pela causalidade divina). Sendo Deus substância única, como destaca Ramos (2009), ele não está no interior da natureza; Deus é a própria natureza da qual somos modos de exprimir (natureza naturada).
O corpo exprime a natureza de maneira extensa, enquanto que a alma a exprime de maneira pensante. Os homens, por exemplo, não têm o estatuto de substância. Entretanto, eles têm uma existência modal, uma vez que ganham existência a partir da substância divina, pois os homens são afecções da substância que só existem por ela e por ela são concebidos. Dessa forma, os homens não estão separados da natureza, mas sim inseridos nela, como modos de expressão da natureza, diferentemente da tradição judaico-cristã.
A natureza seria assim a finalidade do próprio homem, uma vez que realize o escrutínio de suas afecções e, por meio das ideias claras e distintas, este compreenda suas próprias necessidades. Dessa forma, pode-se inferir o conceito de consciência presente na filosofia espinosiana (Nadler, 2008). Trata-se da percepção que a alma tem das afecções do corpo e também das ideias dessas afecções. Isso marca, tal como destacou Pollock (2005), mais um conceito de Espinosa que o diferencia de Descartes.
A filosofia cartesiana, ao cindir a matéria em dois predicados, passa a ser concebida como dualista. Para Espinosa, entretanto, não há qualquer separação entre corpo e alma, entre matéria e mente, e isso é discorrido em pormenores no escólio da proposição II da parte III de Ética. Demonstra que nem o corpo pode determinar a alma a pensar nem a alma pode determinar o corpo ao movimento, pois se trata da mesma coisa apresentada de modo distinto. Essa acepção espinosiana, diferente de Descartes, a quem Espinosa procurava corrigir, o faz ser compreendido como monista. É a partir disso que Damásio (2002) mostra, pelo viés da neurociência, que o erro de Descartes foi a abissal separação entre corpo e mente, como se fosse possível conceber uma mente desencarnada. Ainda para o neurocientista (Damásio, 2004), a filosofia de Espinosa passou despercebida para as ciências modernas tal como uma árvore que cai em silêncio na floresta e ninguém estava lá para testemunhar, ou seja, a lógica da mecânica cartesiana perdurou e permanece nos estudos da contemporaneidade.
No início século XX, Vygotski (2004) foi afetado por essas elaborações intelectuais, espinosianas e, dessa forma, é possível observar essa influência em alguns conceitos de sua teoria histórico-cultural. Tal como Espinosa concebe que mente e corpo não são entidades distintas; dessa forma, fez um cuidadoso exame das teorias sobre as emoções presentes em seu tempo. Realizou um estudo histórico-psicológico das emoções, tomando como ponto de partida a análise das teorias de William James e Carl Lange.
Trata-se de estudiosos que construíram de forma independentes, segundo Brandão (2002), a mesma concepção acerca das emoções, embora o primeiro deles a tenha elaborado e o segundo, expandido. Assim, seus constructos teóricos converteram-se em uma única concepção designada como teoria James-Lange. Em síntese, tal teoria afirma que as emoções dependem de um sistema de feedback do organismo; isto é, a emoção decorre da percepção das alterações fisiológicas, de tal modo que a interpretação dessas mudanças é correlacionada como uma emoção específica. No modelo James-Lange, o sujeito fica triste porque chora, fica com raiva porque briga e com medo porque treme.
A questão impetrada por Vygotski (2004) não fica presa à diacronia dos eventos. Qualquer que fosse a ordem da causa e de seu efeito a teoria James-Lange encerra um dualismo do tipo mecanicista. Para Vygotski, essa teoria pode ser considerada a viva encarnação da doutrina cartesiana, uma vez que quase repete palavra por palavra o que, 300 anos antes, Descartes havia descrito.
Influenciado por Espinosa, Vygotski (2000) procurou mostrar que a espécie humana não segue a medida causal do corpo que afeta a mente ou o contrário. É por meio do intelectualismo e do uso de ferramentas intelectuais (simbólicas) que a organização do comportamento humano se dá. Posteriormente, será explicitada a dimensão do determinismo destacado no início deste tópico.
Para caracterizar o que denominava intelectualismo, ou seja, a capacidade de utilizar o psiquismo superior para organizar a conduta, Vygotski utilizou o mesmo exemplo de Espinosa presente no escólio da proposição XLIX, da parte II, de Ética. Ele demonstrou que, diante de dois estímulos de igual natureza, o homem confia sua ação ou conatus, na versão espinosiana, à sorte. Ambos retomam o exemplo apresentado pelo filósofo francês Jean Buridan discutido na primeira metade do século XV, o qual usou uma metáfora para justificar seu pensamento. Para esse filósofo, um asno, ao encontrar-se em igual distância da mesma quantidade de feno, morreria de fome. Disso decorre sua dedução de que "quando a razão chega à conclusão de que suas possibilidades são iguais, a vontade deixa de atuar" (Buridan apud Vygotski, 2000, p. 95).
Para Espinosa (1983), essa possibilidade da estátua do asno aplicado ao humano é uma falácia, pois, segundo sua concepção, o homem determinar-se-á por si mesmo, o que o faz concluir que este tem a faculdade de ir e fazer tudo o que quer. Mais à frente, no primeiro axioma da parte V, retoma essa questão com o seguinte pensamento: "I – Se, no mesmo sujeito, são excitadas duas ações contrárias, deverá necessariamente produzir-se, em ambas ou numa só, uma mudança, até deixarem de ser contrárias" (Espinosa, 1983, p. 279).
Vygotski aborda essa questão proposta por Buridan da mesma maneira que Espinosa. "[...] O homem, ao achar-se em situação do asno de Buridan, recorre à ajuda de motivos ou estímulos auxiliares, introduzidos artificialmente. Um homem no lugar do asno de Buridan confiará na sua sorte e dominará assim a situação" (Vygotski, 2000, p. 72).
Espinosa, como apóstolo da razão, insere-se na perspectiva racionalista da filosofia moderna. Embora com as referidas diferenças esboçadas anteriormente em relação a Descartes, acreditava no esclarecimento das ações humanas mediante o uso da razão. O homem seria uma forma precária de uma totalidade que é Deus-Natureza, pois, para Espinosa, as paixões seriam constitutivas da natureza humana, tão naturais como as ações. Somente por meio do entendimento das paixões é que se pode ascender ao conhecimento. Espinosa dizia que o poder da mente consiste no conhecimento, considerado não como liberdade a partir do erro, mas como algo natural e próprio da atividade.
Esse nível de intelectualismo espinosiano em Vygotski, tal como descrito anteriormente, consiste na formação das funções psicológicas superiores. A intelectualização da espécie humana, assim como ocorre no desenvolvimento da criança, é um processo contínuo de formação de uma cultura intelectualizada, no caso do homem, e a apropriação desta pela criança ao longo de seu desenvolvimento.1
O segundo ponto de aproximação entre Vygotski e Espinosa é a utilização de ferramentas intelectuais pelo homem. O filósofo argumentava que o intelectualismo é um processo e, como tal, parte de ideias simples e, laboriosamente, aproxima-se das mais complexas. As primeiras ideias seriam instrumentos intelectuais para as consequentes que, por sua vez, tornar-se-iam instrumentos intelectuais para novas ideias (Mignini, 1999). Ele usou como exemplo dessa afirmação a construção de ferramentas materiais; citou o caso do martelo que, na qualidade de instrumento necessário para forjar o ferro, sofreu um processo instrumental para sua construção; isto é, em um tempo passado, ele foi forjado por instrumentos mais simples, pode-se chegar a fazer tantas coisas e tão difíceis com pouco trabalho. É o grau de complexidade do instrumento que determina o esforço de produção. Espinosa acreditava que:
[...] Também o intelecto, por sua força nativa, faz para si instrumentos intelectuais e, por meio deles, adquire outras forças para outras obras intelectuais, graças às quais fabrica outros instrumentos ou poder de continuar investigando, e assim prosseguindo gradativamente até atingir o cume da sabedoria (Espinosa, 1983, p. 48-49).
Vygotski, parafraseando Espinosa, discutiu sobre uso da memória natural e demonstrou que o espírito humano elaborou formas mais complexas, que se apresentam como instrumentos intelectuais. Quando, culturalmente, o homem se empreende a criar diversas estratégias mnemotécnicas, produzem-se formas alternativas de memorização não dependentes exclusivamente das condições naturais. O homem experimentaria a verdadeira liberdade; ou seja, deixar-se-ia conduzir pela razão com a finalidade de formar funções psicológicas superiores, em um campo simbólico, a mnemotécnica, ou em um campo instrumental, as memórias dos computadores, por exemplo.
A necessidade de memorizar informações, isto é, tornar inteligível o domínio da memória libertaria o homem do jugo da concretude da natureza. Vygotski empreendeu o estudo dessa função e outras tantas, a fim de compreender como se dá a formação do sujeito e sua racionalidade.
Mostrou, com base em estudos antropológicos, que o desenvolvimento da memória acentuou-se à proporção que a espécie humana aproximava-se do padrão do homem europeu, o que o fez distinguir estes dos não europeus, entendidos como primitivos (Vygotski & Luria, 1996). No sistema dos ditos povos primitivos, já haveria estratégias mnemotécnicas, que podem ser compreendidas como funções psicológicas superiores, mas tais soluções encontrar-se-iam limitadas pelo contexto material.
Por funções psicológicas superiores contextualizadas, Vygotski entendia como aquelas que são utilizadas de acordo com um contexto marcado. Assim, como demonstravam os estudos antropológicos apresentados por ele, certos povos primitivos utilizavam partes do corpo para, simbolicamente, referir-se a informações que desejavam memorizar. A memória do homem não primitivo prescinde desse tipo de solução, e a organização das informações, embora simbolicamente arranjadas, se dá em um campo não material, isto é, mental. É possível perceber que, no primeiro caso, a memorização depende do contexto corporal materializado e, no segundo, há o campo da mente em ação (Wertsch, 1999). Isso foi o que levou Baquero (2001) a classificar a primeira modalidade como sendo funções psicológicas superiores rudimentares e, no segundo caso, funções psicológicas superiores avançadas.
Torna-se anacrônico, contudo, empreender uma crítica ao etnocentrismo vygotskiano, pois, no final do século XIX e início do século XX, não havia uma profusa discussão sobre esse tema. É dessa forma que antropólogos como John Rankine Goody, a partir da década de 70 do século passado, podem ajudar a atualizar o pensamento vygotskiano.
Se quisermos analisar as modificações que afetaram o pensamento humano, somos forçosamente obrigados a abandonar as dicotomias etnocêntricas características do pensamento social do período da expansão europeia. Em seu lugar, há que procurar critérios mais específicos para as diferenças (Goody, 1988, p. 19).
Talvez o que o autor desejasse salientar fosse que se deveria focar em um modelo científico diferenciado do etnocentrismo europeu para analisar os dados, e não no possível nível de intelectualização de um povo. Contudo, o processo de análise, intelectual, eurocêntrico, foi largamente empreendido por Vygotski e Luria, segundo Valsiner e Van der Veer (2001), quando Luria realizou viagens ao Uzbequistão, na Ásia Central, a fim de estudar o pensamento dos povos primitivos, "não intelectualizados", e que não haviam ainda sofrido significativas mudanças decorrentes da revolução soviética. Mais tarde, pôde-se:
[...] Perceber como, na década de 1970, Luria evitou cuidadosamente o uso dos termos "primitivo" e "atrasado", os quais ele utilizava livremente em suas cartas para Köhler e em outras publicações do início da década de 30, como em seu capítulo de Estudos sobre a história do comportamento [...] em que disse que as mulheres uzbeques "encontravam-se em um nível baixo de desenvolvimento cultural", ou seja, um "nível muito primitivo" (Valsiner & Van der Veer, 2001, p. 275).
A terceira concepção espinosiana adotada por Vygotski é a noção de determinismo (Van der Veer, 1984). Esse posicionamento filosófico tem uma noção particular em Espinosa, que definirá, em parte, a teoria histórico-cultural de Vygotski. A compreensão de determinismo condiz com a sua noção de liberdade. Nesse sentido, o determinismo pode ser mais bem lido como autodeterminismo. Espinosa adota a postura de que a real compreensão das afecções poderia, mediante seu esclarecimento por meio da razão, prover o homem da capacidade de se posicionar frente às afecções. Na sua compreensão, o pensamento racional seria uma verdade compensadora e o preconceito religioso seria um véu que encobre a razão.
O determinismo destacado por Vygotski, em Espinosa, refere-se à liberdade. Mas aqui o tema deve ser visto com cautela, já que a noção de liberdade em Espinosa não concorda com a adotada pelo senso comum, que vê o livre arbítrio como uma escolha desenfreada. Pois, como evidencia Derry (2004), para Espinosa, a liberdade não é caracterizada pela indeterminação das ações humanas, senão pela autodeterminação das escolhas, e esta só surge quando não é controlada pelas paixões. Isso ocorreria quando o homem entende as razões de suas ações baseando-se em ideias adequadas. Para ser guiado por estas, em vez de um conhecimento insuficiente, o sujeito deve ser livre de determinação externa.
Sini (2005) afirma que, no sistema de Espinosa, repousam três modos de se reagir à paixão: a primeira forma destacada é a imaginação. Esta é apresentada, dentro da filosofia de Espinosa, como uma necessidade. Ao imaginar, o homem mantém seu conatus, resistindo à paixão e substituindo-a. Isso é o que Espinosa entendia como a potência da inteligência ou da liberdade humana, o que o fazia afirmar que a "alma pode fazer que todas as afecções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se refiram à ideia de Deus" (Espinosa, 1983, p. 285).
A possibilidade de imaginar é algo que percorre todas as idades do desenvolvimento do homem. Desde a criança até o adulto, a imaginação vincula-se à realidade. Em Vygotski (2003), é por meio de um enlace emocional que pode se manifestar de duas maneiras distintas: no primeiro plano, toda emoção tende a manifestar-se por meio de imagens concordantes com elas e, de distinto modo, a própria imaginação influi nas emoções. Assim, qualquer que seja o vínculo entre imaginação e emoção, ambos estariam em consonância na regulação das paixões.
O segundo modo de reagir às paixões, destacado por Sini (2005), é a ciência moderna. Espinosa estava inserido no seio do pensamento moderno, no qual as premissas não científicas foram desconstruídas à proporção que a ciência moderna avançava. Isso queria dizer, segundo sua teoria, uma contínua aproximação com a natureza e a superação da ignorância humana. Teorias científicas que provocaram profundas mudanças na modernidade, tais como a teoria heliocêntrica, a biogênese, teoria da gravitação universal, entre outras, eram tidas como uma forte ameaça ao pensamento religioso, quer cristão, manifestado pelo catolicismo ou pelo calvinismo, quer judeu, comunidade da qual Espinosa fazia parte.
Ora, se a ciência moderna poderia realizar uma aproximação do homem com a natureza, do mesmo modo o pensamento racional, uma vez em que reage às paixões, poderiam ambos ter o mesmo fim; pelo menos é o que pensava Vygotski em relação à Espinosa quando afirmava que a:
[...] teoria fundamental de Espinosa é a seguinte. Ele era um determinista e, diferente dos estoicos, afirmava que o homem tem poder sobre os afetos, que a razão pode alterar a ordem das conexões das emoções e fazer com que concordem com a ordem e as conexões dadas na razão. Espinosa manifestava uma atitude genética correta. No processo de desenvolvimento ontogenético, as emoções humanas entram em conexão com as normas gerais relativas tanto à autoconsciência da personalidade como a consciência da realidade (Vygotski, 1997, p. 87).
O terceiro e último gênero que permitiria o homem reagir à paixão é a própria filosofia. Tal como manifestada em sua Ética, esta é compreendida não como uma doutrina da ciência e sim como preceito contra o erro humano e a ignorância. A Ética de Espinosa procura mostrar como alcançar a forma de conhecimento mais perfeito. Nesse sentido, sua obra é tida como um processo de libertação das afecções que atentariam contra o conatus.
Considerações finais
As aproximações entre a filosofia panteísta de Espinosa e a teoria histórico-cultural de Vygotski permitem elucidar a constituição de um caminho alternativo para a compreensão não dicotômica das emoções humanas. A influência do mecanicismo dualista de Descartes na compreensão dos fenômenos psicológicos não permite que se entenda o real mecanismo de funcionamento das nossas funções psicológicas. O caminho não é o de purificar a mente racional, a consciência do contato pernicioso das paixões. O que podemos divisar desde Espinosa é que a elaboração de instrumentos intelectuais permite uma maior integração e controle das emoções. É uma rota de maior adaptabilidade, pois as emoções são vistas como parte integrante de nossa existência.
As influências diretas da obra de Espinosa no pensamento vygotskiano foram decisivas na elaboração das ideias acerca do poder de controle dos instrumentos psicológicos sobre as funções cognitivas humanas.
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* Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professor do Curso de Psicologia da Unifor e psicólogo do IFCE. E-mail:hamilton@unifor.br **** Mestre em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor do Curso de Pedagogia da FAEC/UECE. E-mail:edmarpsi@yahoo.com.br
** Doutor em Educação (UFC), professor dos cursos de Psicologia da Unifor e UECE. E-mail:osterne_filho@uol.com.br
*** Mestre em Filosofia (UFC) e professor do Curso de Audiovisual e Novas Mídias da Unifor. E-mail:julianocordeiro81@gmail.com
1 Há que se destacar que, para Vygotski, a ontogenia não repete a filogenia tal como concebe a teoria da recapitulação.