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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2018

 

EDITORIAL

 

91 anos com Michel Foucault: o belo perigo

Muitos podem discordar do historiador francês Veyne (2011), para quem a obra de Foucault (1926-1984) seria o acontecimento mais importante do pensamento no século XX. Poucos, porém, podem negar a presença e ressonância de seu trabalho no panorama do pensamento contemporâneo. Uma das evidências dessa força é o grande número de leituras que sua obra suscita. Respondendo à própria multiplicidade de suas pesquisas, esses textos assumem diversas perspectivas, mostrando que seu trabalho não constitui domínio exclusivo dos filósofos.

Ao longo de 30 anos, Foucault produziu importantes contribuições para diferentes campos do saber ocidental: Medicina, Psiquiatria, Psicologia, História, Direito, Pedagogia, Antropologia, Estética. Sua obra, marcada por deslocamentos temáticos, metodológicos e políticos, introduziu na reflexão filosófica elaborações sobre objetos considerados "impertinentes": a loucura, a punição, o corpo, a sexualidade. Suas pesquisas, pautadas em investigações históricas, não buscavam o conhecimento erudito das sociedades passadas, mas, antes, a melhor compreensão de nosso presente pelo confronto com o que já não somos ou pensamos.

Foi em razão dessa importância que decidimos realizar o evento em comemoração aos 91 anos do nascimento do pensador francês. Ao encontro demos o título "91 anos com Michel Foucault: o belo perigo".

Em 1968, Foucault concedeu rara entrevista (Foucault, 2016, p. 75) em que praticou uma fala inédita, pois disse de si mesmo na primeira pessoa e nomeou como "belo perigo" o comprometimento que tanto ele quanto seus livros enfrentariam a partir do que dissesse naquela conversa. Naquelas entrevistas, Foucault nos surpreendeu quando se interrogou sobre a relação de intimidade entre a linguagem e a loucura, citando escritores e poetas que fizeram diferença na literatura, como Joyce, Artaud e Raymond Rossell. Tantos anos depois, o "belo perigo" a que Foucault nos expõe, por seus livros, cursos, "ditos e escritos", é o inquietante fascínio do encontro com um pensador engajado e crítico incansável do próprio pensamento.

As ideias de Foucault, como também do psiquiatra italiano Franco Baságlia, foram referências importantes para a efetivação da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Além de algumas conferências proferidas em diferentes cidades do Brasil, inclusive em Belo Horizonte, em 1973, muitas pesquisas sobre a prática psiquiátrica no Brasil foram desenvolvidas com base na perspectiva metodológica de investigação histórica proposta por Foucault.1

Na multiplicidade de temas suscitados pela investigação de Foucault, decidimos privilegiar suas elaborações em torno da loucura, da psiquiatria, da medicina e da saúde, esta última destacada por ele como herdeira, nas sociedades modernas, do lugar e importância dada à salvação na sociedade medieval (Foucault, 1980, p. 228), sendo que, em nome tanto de uma quanto de outra, praticaram-se e se praticam uma série de truculências e atrocidades.

Esse estatuto dado à saúde (como norma ou ideal) estaria em foco também nas pesquisas que Foucault desenvolveu sobre o "biopoder", no fim dos anos 1970, poder que se exerce pela vida e a partir da vida e não mais ameaçando de morte.

O biológico reflete-se no político; o fato de viver […] cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder […] é o fato de o poder encarregar-se da vida, mais do que a ameaça da morte, que lhe dá acesso ao corpo […] O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão (Foucault, 1977, p. 134).

Foucault, ao longo de sua vida, também se posicionou e participou de diferentes movimentos em favor daqueles que tinham sua palavra e voz abafadas por diferentes instâncias de poder, buscando viabilizar a circulação do discurso de prisioneiros, de imigrantes, loucos, homossexuais, hermafroditas, enfim de "homens infames".

Analista implacável das relações de poder, Foucault se entregou a uma série de ações militantes, em torno de questões como as da prisão, do racismo, dos movimentos sindicais, das ditaduras e das denominadas "minorias sexuais". É nesse período de engajamento, entre 1970 e o ano de sua morte por aids, em 1984, que ele forjou e viveu uma nova concepção do intelectual, não como aquele que queria "formar consciências", mas como alguém que buscava intervir em situações específicas, questionando maneiras sedimentadas de pensar e agir.

REFERÊNCIAS

Costa, J. F. (1981). História da psiquiatria no Brasil. (3a ed.). Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

Foucault, M. (1977). História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1980). O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2016). O belo perigo. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Machado, R. et al. (1978). Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Veyne, P. (2011). Foucault: seu pensamento, sua pessoa. M. J. Morais (Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

1 Ver, por exemplo, Costa (1981) e Machado, R. et al. (1978).

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