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Psicologia Hospitalar
versão On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) v.4 n.1 São Paulo jan. 2006
ARTIGOS ORIGINAIS
Corpo, mobilidade e a cultura da imagem
Body, mobility and the culture of image
Isleide Fontenelle1
Fundação Getúlio Vargas - São Paulo - Brasil
RESUMO
O texto faz uma reflexão sobre a atual sociedade das imagens, se propondo a discutir a "experiência do corpo" numa sociedade assim constituída, enfocando a realidade social. A relação entre tempo, velocidade e mobilidade, impressa no desenvolvimento de um novo padrão de tempo, esteve na base da pesquisa sobre marca publicitária e sua importância para uma sociedade que se tornou das imagens. Busca a partir da realidade contemporânea procurar novos conceitos que ajudem a pensar o corpo na contemporaneidade.
Palavras-chave: Corpo, Mobilidade, Cultura da imagem.
ABSTRACT
The text reflects on the current society of images, proposing to discuss the "body" experience in a society thus oriented, focusing on social reality. The relationship between time, speed and mobility, present in the development of a new standard understanding of time, was the basis of this study on brand advertising and its importance for a society that has become a society of images. The study seeks to discover new concepts in contemporary society that will help to develop a corresponding contemporary body.
Keywords: Body, Mobility and the culture of image.
INTRODUÇÃO
"O 'corpo humano' encobre um caleidoscópio de épocas,
uma divisão de sexos e raças, ocupando um espaço característico
nas cidades do passado e nas atuais... ". (p.22)
"... pelo menos através dos meios de comunicação,
experimentamos nossos corpos de uma maneira mais passiva
do que o faziam as pessoas que temiam suas próprias
sensações... " (p.17)
Richard Sennett, Carne e Pedra
Não sendo uma especialista nas questões referentes ao corpo na sociedade contemporânea, acredito que minha contribuição à temática "corpo, imagem de marca"2, possa se dar a partir da pesquisa que realizei sobre a marca publicitária como um paradigma para pensarmos a atual sociedade das imagens (Fontenelle, 2002). Naturalmente, se estamos a falar de um novo tipo de sociedade, questões sobre o corpo se colocam: o que é o corpo numa sociedade das imagens? Como se daria a "experiência do corpo" numa sociedade assim constituída?
Se admitirmos que a imagem do corpo é formatada a partir das imagens oferecidas pela cultura, ou seja, que são produzidas socialmente, a marca publicitária se oferece como uma forma privilegiada para uma certa constituição corporal e, consequentemente, subjetiva. Com isso, não pretendo me centrar em "modelos de corpos" fornecidos pelas imagens dessas marcas - desde os belos corpos veiculados por tantas propagandas que vendem ideais de beleza formatados socialmente - até anúncios que parecem ir na contracorrente desses ideais estabelecidos, veiculando imagens de marca/corpo decadentes, híbridas, ambivalentes3 - mas, sim, na realidade social que possibilitou à marca publicitária apresentar-se como uma forma social por excelência para o processo de formação da imagem corporal.
Voltemo-nos, portanto, para o que estou chamando de "sociedade das imagens". São muitas as características que nos permitem definir nossa sociedade como "das imagens", dentre as quais o fato de que essa é uma sociedade capitalista, cujo princípio concorrencial está baseado na diferenciação dos produtos pelas imagens; é uma sociedade na qual houve uma imbricação tal entre economia e cultura ao ponto da indústria cultural - no sentido de indústria como cultura - tornar-se seu paradigma por excelência; é uma sociedade de tempo acelerado e, por consequência, de produção e descarte de tudo o que foi produzido. Isso, por sua vez, leva à implosão de todas as formas produzidas (não só produtos, bem como, valores e instituições), gerando uma sociedade do vazio, do "sem forma"; por conta disso tudo, essa é uma sociedade na qual "estar na imagem é existir" e vive-se, então, numa forma de socialidade marcada pela performance, pela produção de impressões.
Das características definidoras da sociedade das imagens, duas são fundamentais na compreensão de qual corpo lhe corresponde: a aceleração do tempo e o vazio por ele produzido. A idéia da mobilidade está no centro dessa questão que resvala, hoje, em aceleração do tempo. Richard Sennett (1997), numa bela reconstituição da história do corpo, lembra-nos como "o homem moderno é, acima de tudo, um ser humano móvel". A partir da revolução científica que mudou toda a compreensão do corpo4, coincidente do mesmo momento histórico do advento do capitalismo moderno, resultou uma visão de liberdade associada ao fato de mover-se. Agora, no século XX, Sennett nos mostra como as pessoas mexem-se rapidamente, especialmente em função de um "movimento total" condensado no automóvel. Mas, segundo esse autor, "a logística da velocidade... aliena o corpo dos espaços através dos quais ele se desloca... A velocidade do automóvel estimula o recurso aos símbolos e aos julgamentos liminares...O novo ambiente urbano converteu as descobertas de Harvey numa tríade de velocidade, fuga e passividade".
Foi, exatamente, essa relação com o tempo, com a velocidade e com a mobilidade impressa por esse novo padrão do tempo, que esteve na base da minha pesquisa sobre a marca publicitária e sua importância para uma sociedade que tornou-se das imagens. Convido, portanto, o leitor para uma rápida digressão sobre o que a marca tem a nos dizer sobre esse tempo veloz e seu impacto sobre o corpo na contemporaneidade.
A MARCA, O CORPO E O TEMPO DO FAST-FOOD
A história da construção de uma das maiores marcas globais para consumo de massa ao longo do século XX - a marca McDonald's - está inteiramente atrelada ao desenvolvimento do automóvel. Não por acaso, o McDonald's surgiu como um drive-in, um estabelecimento comercial baseado em um serviço de atendimento no interior do automóvel, podendo ser um cinema, um banco ou um restaurante. Na década de 1930, o restaurante de tipo drive-in tornou-se um fenômeno de sucesso nos Estados Unidos, consequência de uma era na qual o automóvel tornava-se o grande ícone de consumo americano, ainda embalado pelo romantismo de uma liberdade sobre rodas. O McDonald's é produto desse sucesso.
E se o automóvel passa a ilustrar a época do progresso técnico e como isso começou a imprimir um ritmo cada vez mais veloz do tempo, todo um desenho arquitetônico foi necessário para materializar a utopia da máquina. Daí porque é na rodovia - produto direto do automóvel e signo urbanístico por excelência do século XX - que se presencia o grande boom de drive-ins que, depois dos postos de gasolina, formaram um dos principais conjuntos arquitetônicos à beira das estradas americanas. "E a arquitetura desses edifícios, que nascem em função do desenvolvimento das rodovias, precisa ser, também, uma resposta à nova forma de olhar que é produto dessa velocidade automotiva: a atenção concentrada nas estradas em meio ao deslocamento veloz provoca o relance, o olhar fugidio para as coisas em redor. Como capturar esse olhar em meio a tanta mobilidade? Tal desafio exigia que se desse um novo tratamento às imagens arquitetônicas para atrair esse viajante das auto-estradas" (Fontenelle, 2002).
A velocidade impressa pelo automóvel, a necessidade comercial de capturar a atenção de um transeunte agora motorizado e a busca de um reasseguramento5 através de uma arquitetura padronizada geraram, num primeiro momento, a uniformidade das imagens arquitetônicas desses edifícios comerciais. Era preciso construções que pudessem ser visualizadas à distância, para que houvesse o tempo necessário do motorista perceber o local e parar. Por outro lado, era preciso também construções rebuscadas que pudessem se destacar em meio à paisagem. Não por acaso, essa foi a época em que se erigiram edifícios espalhafatosos, e uma das coisas mais surpreendentes que encontrei foi a história da construção dos famosos arcos dourados do McDonald's. Atualmente uma logomarca, no início os arcos eram parte da arquitetura da lanchonete. Não tinham uma função estrutural no edifício mas, tão somente, a de chamar a atenção para a lanchonete, com seus grandes arcos iluminados por neon. Essa foi uma época na qual ainda havia uma relação material, física com as marcas, ao contrário do que ocorre hoje (ver fotos 1 e 2).
Foto 1 - Réplica do primeiro restaurante McDonald"s, que hoje abriga o "McDonald"s Number 1 Store Museum", em Des Plaines, Illinois.
Foto 2 - Detalhe dos "arcos com formato de arco-íris", com iluminação em néon.
A questão pela qual me detenho nessa questão é porque há uma relação visceral entre o corpo e a arquitetura de uma época. Não por acaso, foi exatamente a partir da "experiência corporal" que Richard Sennett foi buscar uma "nova história da cidade", desde Atenas até a Nova York multicultural. A partir desse estudo, o autor nos diz que, hoje, "como o desejo de livre locomoção triunfou sobre os clamores sensoriais do espaço através do qual o corpo se move, o indivíduo moderno sofre uma espécie de crise tátil: deslocar-se ajuda a dessensibilizar o corpo. Esse princípio geral vem sendo aplicado a cidades entregues às exigências do tráfego e ao movimento acelerado de pessoas, cidades cheias de espaços neutros, cidades que sucumbiram à força maior da circulação" (Sennett, 1997).
E é na Nova York atual que isso se presentifica tanto. "O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a conversações... nossa ágora só existe na aparência... Dotada do sistema de transporte de massa mais extenso do mundo, a cidade acabou por realizar o ideal iluminista do corpo em movimento". De outro lado, Nova York é uma cidade onde os prédios não são feitos para durar: "de todas as cidades do mundo, Nova York foi a que mais cresceu à custa de demolições; daqui a cem anos, as pessoas terão evidências mais tangíveis da Roma de Adriano do que da grande metrópole de fibra ótica" (p.289-292).
Mas se a história desse "tecido urbano camaleônico" favoreceu o multiculturalismo, como assinala Sennett, ele também é sintoma desse tempo que estou chamando de acelerado e que gera uma arquitetura do "sem-forma", do "sem história", repercutindo profundamente na formação da imagem do corpo. Já se disse que as grandes cidades do final do século XX - das quais Nova York é paradigmática - tornaram-se "midiáticas", no sentido preciso de que é o cenário metropolitano o "lugar por excelência da atenção flutuante, como a do telespectador. É na metrópole que se forma a disciplina 'tátil' do olhar e é portanto a arquitetura que fornece a matriz dessa nova civilização midiática" (Arantes, 1995). Ora, isso se dá, justamente, a partir de uma cidade e de uma forma arquitetônica que não podem mais oferecer um "sentido de lugar" , já que pressionadas pela força do tempo acelerado impressa pelo capital: a cidade torna-se um lugar de passagem, a socialidade, a do estranhamento, e a arquitetura apenas uma fachada de publicidade.
A fim de explicar concretamente como a "experiência das imagens" é produzida na e pela cidade, Arantes (p.50-51) lembra uma passagem de Fuller: "se você vai a Times Square, em Manhattan, ou viaja por quase qualquer uma das rodovias americanas, você se depara com um fluxo de imagens que parecem mais reais do que a própria realidade. Você tem a impressão de um mundo físico em que as coisas foram desmaterializadas ou reduzidas a superfícies... [sendo que] "é a vida na metrópole que nos arrasta para um mundo de superfícies".
É nessa condição de implosão de espaços, outrora possibilitadores de formações identitárias que a marca publicitária se oferece como uma "ilusão de forma" a partir da qual se possa experienciar o corpo. Pois, se para constituir-se o corpo precisa da forma do Outro (entendido aqui como cultura), esse espaço - que sempre é uma construção simbólica, histórica, contingente, define-se contemporaneamente como um espaço que está sempre arrebatado pelo fluxo incessante de produção e descartabilidade, produto de uma era em que se fundiram ciência, tecnologia e capitalismo.
Sintoma e protagonista dessa época, a marca publicitária é um modelo exemplar da própria constituição identitária: insistindo na continuidade e no padrão através do "nome", a marca também só permanece ao se abrir para o deslocamento permanente de imagens e produtos que a nossa era do descartável está a forçar, oferecendo-nos um refúgio numa cultura que tornou-se descartável. Explico: na pesquisa que realizei sobre a constituição e manutenção da marca McDonald's - e isso vale para as grandes marcas que se estabeleceram ao longo do século XX, e até mesmo no final do século XIX, como a Coca-Cola, e que permanecem até hoje - tudo nelas mudou nos produtos e imagens. A única coisa que permaneceu foi o nome. Assim, ao deslocar incessantemente suas imagens e ao inovar constantemente os produtos para dar conta de uma era da "frugalidade, da multiplicidade das escolhas", a marca está mudando para permanecer. E, nessa busca de manutenção da marca, presenciamos um processo identitário muito similar ao que ocorre entre os sujeitos, ao ter de lidar com a relação entre permanência e mudança.
Daí porque o mercado/marca tornam-se tão atrativos, pois "os tormentos da autoconstrução e da subsequente busca de aprovação social para o produto acabado ou semi-acabado são substituídos pelo ato menos aflitivo, muitas vezes agradável, de escolher entre padrões prontos. As identidades negociadas vêm acompanhadas do rótulo da aprovação social colado de antemão. A incerteza quanto à viabilidade da identidade autoconstruída e a agonia de procurar confirmação são assim evitadas... os símbolos de estilos de vida são endossados por pessoas com autoridade e pela informação de que um número impressionante de pessoas o aprova. A aceitação social não precisa portanto ser negociada - desde o início ela é, por assim dizer, 'inerente' ao produto posto no mercado" (Bauman, 1999).
Diante de uma sociedade assim constituída, já não seria mais possível pensar em identidades fixadas a partir de socialidades típicas do século XX, como a identidade do trabalhado, por exemplo. Viveríamos, agora, uma era de plasticidade absoluta, na qual um sujeito-consumidor poderia assumir diferentes formas, representar diferentes papéis. A isso, o psicólogo Lifton (1993) chamou de "seres proteus", numa alusão a uma figura mitológica que muda de forma o tempo todo. Interpretada e exaltada como uma "prática subjetiva do desenraizamento" por autores como Sennett - numa crítica ao individualismo moderno que sempre exaltou a auto-suficiência e atribuiu negatividade à instabilidade social em nome de uma ordem racional a qualquer custo.O fato é que os "seres proteus" também sinalizam um campo aberto do qual o marketing já se deu conta, investindo no fato de que é através do consumo de estilos de vida que essas diferentes formas podem ser vividas.
Assim, o corpo, imagem de marca, apresenta, a ambiguidade de ser o corpo possível para se viver dentro da sociedade, das imagens - já que necessário para sobrevivência material no seu interior - e ser, ao mesmo tempo, fonte de angústia, de dor, por se deparar o tempo todo com o risco da insignificância e da própria inexistência em uma sociedade na qual só se é sujeito quem está dentro das imagens veiculadas para consumo.
Portanto, voltemo-nos, finalmente, para a relação entre o corpo e a subjetividade, a fim de compreendermos melhor os possíveis limites e aberturas forjados pela sociedade das imagens nessa nova forma de se lidar com o corpo.
CORPO E IMAGEM: OS DILEMAS DA SUBJETIVIDADE
Segundo Terry Eagleton, Friedrich Nietzsche estava certo "ao identificar o corpo como a enorme lacuna de toda filosofia tradicional", daí porque teria sido ele, junto com Marx e
Freud, os três pensadores do período moderno a tomar o corpo como ponto de partida, sendo que Marx voltou-se para o corpo do trabalhador, Nietzsche para a idéia do corpo como poder e Freud ficou às voltas com o corpo do desejo. Assim, os três negaram o pensamento como "uma realidade autônoma, voltando-nos sempre para os interesses corpóreos de onde ele foi gerado". (Eagleton, 1993)
A partir de Marx, pensaríamos o sistema da produção econômica como uma espécie de "metáfora materializada do corpo". Tomando a sociedade e a tecnologia como as extensões do corpo humano - a sociedade como uma extensão do corpo simbólico e a tecnologia como uma extensão do corpo físico - Marx vai assumir que "o mundo é o corpo do ser humano e que, tendo projetado seu corpo no mundo construído, os homens e as mulheres são eles mesmos descorporificados, espiritualizadados" (Scarry, 1987). Falar de corpo na sociedade capitalista seria falar, portanto, de uma expropriação do corpo, de sua instrumentalização a partir do que é instituído pelo capitalismo.
Embora em linha com o pensamento materialista marxista, Nietzsche vai desconsiderar o processo de trabalho para centrar-se na questão do corpo como "uma expressão efêmera da vontade de poder", sendo o objetivo do poder não a sobrevivência material, mas "a riqueza, a profusão, o excesso" (Eagleton,172-181). Aqui, o corpo é pensado no seu sentido mais carnal, a ponto do autor afirmar que o mundo "é do jeito que é somente em função da estrutura peculiar de nossos sentidos, e uma biologia diferente nos daria um universo inteiramente diferente", embora esse corpo represente-se para Nietzsche como o inconsciente, "um subtexto submerso em toda a nossa vida reflexiva mais refinada" (p.172-173).
Tal forma de corpo foi a base do pensamento freudiano, tanto é que o pai da psicanálise fundou toda a sua teoria baseado na constatação de um corpo "inadequado" aos padrões instituídos pela modernidade. Mas, se havia um corpo sofrido como produto do desamparo instaurado pela passagem para a modernidade numa história de longa duração, o momento histórico específico, no qual Freud se debruçou - a partir do final do século XIX -, revelava como os anseios do corpo tomavam formas consoantes com um período marcado pela repressão e que, obviamente, estabelece relações com o modo de produção capitalista e um tipo de poder que este forja.
Há, portanto, na base do pensamento desses "três maiores estetas do período moderno", como afirma Eagleton, a idéia de que "nossos corpos não são gloriosamente autônomos... mas presos por sua evolução aos corpos dos outros, e por isso acontecem essa hesitação e o desvio traiçoeiro de nossos impulsos". (Eagleton, 1993). E se isso é algo estrutural ao corpo, há que se pensar nas formas históricas específicas com as quais essa estrutura tem que lidar. Voltemos, portanto, ao século XXI.
Ainda com base nos conceitos da literatura acima explicitada, o que se diz hoje é que passamos de uma era da repressão como mola de poder para uma política do gozo, atrelada como essa está a uma lógica de mercado. E, sendo assim, isso significa dizer que o corpo, nesses termos, torna-se refém de uma lógica contraditória que assume o vazio estrutural do social apenas para oferecer imagens que possam tamponar esse vazio historicamente determinado pela aceleração do tempo. De outro modo, mas na mesma direção, autores afirmam que uma sociedade assim instituída promove a passagem do clássico neurótico freudiano para a emergência de sujeitos que, dentro da mesma noção de patologia, seriam sujeitos esquizofrênicos apresentados não mais como exceção, mas como regra, na vivência desse tempo fragmentado. O "esmaecimento dos afetos" substituiria as psicopatologias do antigo ego burguês. Mas, segundo Jameson, "a liberação, na sociedade contemporânea, da antiga anomie do sujeito centrado pode também implicar não apenas a liberação da ansiedade, mas também a liberação de qualquer outro tipo de sentimento, uma vez que não há mais a presença de um ego para encarregar-se de sentir". Com isso, o autor ressalta que não está afirmando que os produtos culturais da nossa era seriam destituídos de sentimentos, mas sim que tais sentimentos "são agora auto-sustentados e impessoais e costumam ser dominados por um tipo peculiar de euforia". Daí porque Jameson vai afirmar que "é fácil agradar ao ideal esquizofrênico, desde que se ofereça apenas um eterno presente aos olhos..." (Jameson, 1996).
Todas essas questões nos levam a constatar que a problemática do corpo está na ordem do dia. Sabe-se, pela teoria lacaniana, da qual Jameson claramente faz uso para esboçar sua idéia de uma subjetividade esquizofrênica - condizente com a fragmentação do tempo e a transformação da realidade em imagens -, o quanto a experiência do corpo do sujeito que se convencionou chamar de esquizofrênico se contrapõe à formação do eu do sujeito que se inscreve na cultura via a introjeção de uma imagem de corpo por essa veiculada. Embora o exemplo tenha sua validade como metáfora de um sujeito condizente com a sociedade das imagens, creio que transferir conceitos teóricos de uma época para outra exige uma parcela extra de cautela. O esquizofrênico, como novo modelo de subjetividade ao qual Jameson se refere como norma corrente da sociedade contemporânea, certamente não é o mesmo vivido como exceção na sociedade sobre a qual Freud se debruçou.
Prefiro partir da realidade contemporânea para, dela, tentar forjar novos conceitos que nos ajudem a pensar o corpo na contemporaneidade. Ou seja: se vivemos uma época na qual o corpo libidinal está de fato atrelado aos imperativos do lucro e, com isso, exprime-se um momento de dúvida acerca do que ainda pode escapar à força do capitalismo de imagens - Lipovestsky (1983) nos lembra, com muita propriedade, como até mesmo a indiferença torna-se uma "condição ideal" para experimentações do e no capitalismo contemporâneo - e, por outro lado, essa mesma época é saudade como uma era de abertura para novas possibilidades criadoras, já que desaprisiona o velho sujeito burguês de identidades fixas, é preciso buscar nessas ambiguidades possibilidades de pontos de partida para o novo, assumindo que é no corpo onde essas ambiguidades se inscrevem em primeira mão.
REFERÊNCIAS
Arantes, O. (1995) O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp. [ Links ]
Baudrillard, J. (1995) A Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Bauman, Z. (1999) Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Eagleton, T. (1993) A ideologia da estética. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Fontenelle, I. (2002) A. O nome da marca: mcdonald's, fetichismo e cultura descartável. São Paulo: Boitempo. [ Links ]
Jameson, F. (1996) Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática. [ Links ]
Lifton, R. J. (1993) The protean self: human resilience in an age of fragmentation. Nova York: Basic Books. [ Links ]
Lipovestsky, G. (1983) A era do vazio. Lisboa: Relógio d'água. [ Links ]
Marling, K.A., (1997) ed. Designin Disney's Theme Parks: the architecture of reassurance . Montréal: Canadian Centre for Architecture; New York: Flamarion. [ Links ]
Scarry, E. (1987) The body in pain. London: Oxford. [ Links ]
Sennett, R. (1997) Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro, Record. [ Links ]
1 Psicóloga, com doutorado em Sociologia pela USP, e pós-doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. - Profa. da área de Psicologia da Fundação Getúlio Vargas - SP. - Autora do livro: "O nome da marca: McDonald´s, Fetichismo e Cultura Descartável". Edit. Boitempo, 2006.
2 Refiro-me ao título da mesa redonda da qual participei no II Congresso Interamericano de Psicologia da Saúde: Corpo e (In)Satisfação.
3 Segundo Jean Baudrillard, na sociedade de consumo o corpo tornou-se seu mais belo objeto, e a sua "redescoberta, após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da liberdade física e sexual, a sua omnipresença... na publicidade, na moda e na cultura das massas - o culto higiênico, dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda - tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objeto de salvação. Substitui literalmente a alma, nesta função moral e ideológica. (Baudrillard,1995: 136). Por outro lado, as últimas décadas do século XX começaram a se deparar com propagandas que passam a anunciar outras formas de corpo antípodas daquelas hegemonicamente idealizadas. Referindo-se aos corpos veiculados pelas propagandas Bennetton - doentes (como o de um paciente terminal de aids, agonizando), ausentes (como a camiseta manchada de sangue a denunciar a vítima mortal da guerra), o psicanalista constata, nessa forma de propaganda, uma passagem da formação dos ideais para uma era do "não sentido", quando o que a Bennetton está a nos dizer é: "não és mais do que este horror que estou te mostrando, por isso, veste-te com Bennetton, já que só resta a tua aparência".
4 Richard Sennett refere-se à obra de William Harvey, De motu cordis, de 1628, na qual suas descobertas sobre a circulação do sangue puseram por terra mais de dois mil anos de uma ciência médica cujos princípios eram "relativos ao calor do corpo que governaram a Atenas de Péricles". A revolução de Harvey mudou completamente a compreensão do corpo de então: "sua estrutura, seu estado de saúde e sua relação com a alma - dando origem a uma nova imagem modelo" e teve ressonância nas mais diferentes formas de pensamento, desde Adam Smith, na Riqueza das Nações - que reconheceu as contribuições de Harvey para a idéia de um Homo economicus que "poderia movimentar-se por toda a sociedade, explorar posses e habilidades oferecidas pelo mercado..." a projetos de saúde pública e urbanismo em todo o mundo, voltados para "tudo que facilitasse a liberdade do trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, através das quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca de moralidade por saúde - e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da felicidade humana".
5 "Arquitetura do reasseguramento" foi um termo desenvolvido por Marling, 1997, baseado num estudo dos parques temáticos da Disney, cujos desenhos arquitetônicos são inteiramente voltados para a constituição de uma série de "marcos visuais" ou "pontos de referências" que dêem segurança ao visitante. O autor estende, então, esse estudo para o "mundo real", assumindo que hoje é este que tenta copiar os parques da Disney na construção dos shopping centers, dos condomínios e, por que não? das lojas de marca. Diante da mobilidade impressa pelo tempo veloz, seriam esses marcos que assegurariam a confiabilidade de um lugar.