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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.2 no.2 São Paulo  2007

 

ARTIGOS

 

 

Distúrbio psicossomático e amadurecimento

 

Psychossomatic disorder and maturation.

 

 

Gabriela Bruno Galván

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo abordar a questão dos distúrbios psicossomáticos a partir da Teoria do Amadurecimento Pessoal de D.W.Winnicott, apontando as singularidades presentes nesse referencial e articulando a teoria com um caso clínico, como forma de ilustrar e discutir alguns aspectos da abordagem clínica da teoria winnicottiana no que se refere a pacientes com esse tipo de distúrbio.

Palavras chave: Psicanálise, Psicossomática, Winnicott.


ABSTRACT

This work has the objective of approaching the psychosomatic disturbs from the individual maturation theory developed by D.W.Winnicott, pointing out the present singularities on this referential and articulating the theory with a clinic case, as a way of illustrating and discussing some aspects of the clinic approach of the Winnicott's theory in what it refers to patients with psychosomatic disturbs.

Key words: Psychoanalysis, Psychosomatic, Winnicott.


 

 

A psicossomática constitui um campo de pesquisa e reflexão amplo e complexo, mostra disso são as diversas linhas teóricas que se propõem a discutir, compreender e tratar os distúrbios psicossomáticos. Este trabalho tem como objetivo abordar os distúrbios psicossomáticos a partir da concepção de D. W. Winnicott e, portanto, da teoria do amadurecimento pessoal do autor, ao mesmo tempo em que busca articular a teoria com um caso clínico, de caráter ilustrativo.

Winnicott (1969g/1994) toma como princípio básico da teoria do amadurecimento que o indivíduo nasce com uma tendência herdada no sentido do crescimento e amadurecimento e que, mediante um ambiente facilitador, a partir de um estado não-integrado, se desenvolve em direção à integração da personalidade: "[...] a psique e o soma [...] não se iniciam como uma unidade. Eles formam uma unidade se tudo corre bem no desenvolvimento desse indivíduo, mas isso é uma conquista." (Winnicott, 1969g/1994, p. 430 [grifo do autor]).

Num primeiro momento, a dependência do bebê com relação ao ambiente é absoluta; do ponto de vista do bebê não há dois, ele e o ambiente formam uma unidade. O amadurecimento consiste na passagem para a dependência relativa, para, finalmente atingir o estágio da independência relativa e, quando há saúde, o processo não cessa até a morte do indivíduo. Em cada um desses momentos do amadurecimento, a unidade indivíduo e ambiente tem características próprias - isso porque as necessidades do indivíduo mudam à medida que ocorre o desenvolvimento rumo à autonomia.

É durante o período da dependência absoluta que o bebê, sustentado por um ambiente facilitador, necessita realizar o que poderíamos chamar de três "tarefas básicas", que naturalmente ocorrem de forma simultânea: integração, relativa à necessidade do bebê de, a partir de um estado não-integrado, integrar-se no tempo e no espaço; personalização (alojamento da psique no corpo), referente ao estabelecimento de uma parceria psicossomática; e início do contato com a realidade (externalidade) / início das relações objetais, primeiramente como objetos subjetivos e, mais tarde, com o reconhecimento da existência de objetos externos. Isto se torna possível desde que haja uma mãe ou uma figura materna que, nesse momento de dependência absoluta, se adapte totalmente às necessidades do bebê e lhe forneça a sustentação necessária ao seu desenvolvimento.

Para Winnicott (1945d/2000), a tendência a integrar-se se realiza a partir das experiências instintivas que tendem a aglutinar a personalidade a partir de dentro, em conjunto com o cuidado recebido do ambiente. A conquista da integração se refere à possibilidade de ser um. Para isso um passo importante é a vivência do "eu" como diferente do "não-eu"; a seguir é possível se dar o enriquecimento do "eu" através da interação com o "não-eu". Diz Winnicott: "Em circunstâncias favoráveis, a pele se torna o limite entre o eu e o não-eu. Dito de outro modo, a psique começa a viver no soma e uma vida psicossomática de um indivíduo se inicia" (1965n/1983, p. 60). O corpo transforma-se em soma (corpo personalizado) e isso é feito por meio da elaboração imaginativa1 das funções corpóreas.

A primeira tarefa da psique é a elaboração imaginativa das funções corpóreas. No início, todas as experiências do bebê são corporais, vividas no corpo, por meio do corpo: o alimento, a sensação do banho na pele, a motilidade, a respiração, o cheiro da mãe, o calor do colo, a forma de ser ninado; tudo é elaborado imaginativamente. Winnicott (1958j/2001 ) aponta para a evolução, em termos de complexidade da elaboração imaginativa de maneira que - ao mesmo tempo em que a elaboração da experiência enriquece e favorece o desenvolvimento do si mesmo – devido ao próprio amadurecimento, vão se criando as condições para abarcar e elaborar, em níveis mais complexos, as vivências tanto internas, quanto as referentes às relações interpessoais.

Emergindo do que se poderia chamar de elaboração imaginativa de funções corporais de todos os tipos e do acúmulo de memórias, a psique [...] liga o passado já vivenciado, o presente e a expectativa de futuro uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo (Winnicott, 1988/1990, p. 46).

Assim, psique e soma tornam-se envolvidos num processo de inter-relacionamento mútuo numa fase precoce do desenvolvimento individual, sendo que, "num estágio posterior o corpo vivo, com seus limites e com um interior e um exterior, é sentido pelo indivíduo como formando o cerne do eu imaginário" (Winnicott 1954a/2000, p. 334 [grifo do autor]).

Ou seja, a localização da psique no próprio corpo decorre de um processo complexo, que se desenrola com sucessivos momentos de integração entre psique e soma - que, com o suporte adequado do ambiente, vai permitir que o bebê alcance um estado de unidade.

A necessidade de um ambiente totalmente adaptado ao bebê diminui gradativamente, à medida que o bebê vai adquirindo condições de lidar e se enriquecer com uma gradual desadaptação da mãe e dar início à separação eu - não eu. Esse período de desadaptação e desilusão, mais do que possível e suportável, é necessário para o bebê, uma vez que é o que vai permitir a separação da mãe e o desenvolvimento e aprimoramento de novas funções psíquicas.

Entre as funções da psique que vão surgindo à medida que vai se alcançando maior complexidade no desenvolvimento, Winnicott aponta a mente, que poderá dar conta das falhas maternas: "Essa atividade mental do bebê transforma um ambiente suficientemente bom num ambiente perfeito, ou seja, transforma a falha relativa da adaptação num êxito adaptativo" (Winnicott 1954a/2000, p. 335),

Há, sem dúvida, outras maneiras pelas quais a mente se desenvolve. É função da mente catalogar eventos, acumular memórias e classificá-las. Pela mente, a criança é capaz de usar o tempo como forma de medida e também medir o espaço. A mente também relaciona causa e efeito. (...) É a mente a responsável pela gradual aquisição, pela criança, da capacidade de esperar a comida ficar pronta, enquanto ouve os barulhos que indicam a proximidade da hora de alimentação. Este é um exemplo grosseiro do uso da mente. (Winnicott, 1958j/2001, p. 9).

Em suma, segundo Winnicott (1988/1990, p. 161), a mente começa a operar quando a adaptação total do ambiente não é mais necessária nem desejável e o intelecto inicia a tarefa de dar conta das falhas ambientais. O início das funções mentais expressa a possibilidade do bebê de lidar com as lacunas que existem entre ele e sua mãe, desfazendo o "dois-em-um" vivido anteriormente. Isso significa novas possibilidades de administrar seus impulsos e necessidades, e, ao mesmo tempo, o início da transição da existência única de objetos subjetivos para a entrada na realidade compartilhada dos objetos objetivamente percebidos.

Para Winnicott (1971d/1994), a integração no ser humano inicia-se com um "arranjo operacional satisfatório entre a psique e o soma" (1971d/1994, p.209), em um momento no qual ainda não cabe o conceito de intelecto. Neste contexto, a mente é "um caso especial do funcionamento do psique-soma" (Winnicott 1954a/2000, p. 345), sendo que, na saúde, a crescente integração psicossomática é a base do desenvolvimento individual. O que pode se caracterizar como um problema no desenvolvimento é o crescimento excessivo da função mental que assuma o cuidado do psique-soma em substituição a um ambiente não suficientemente bom. Se tudo corre bem, a mente não ocupa o lugar do ambiente, mas ela permite a compreensão e a utilização das falhas relativas provenientes do ambiente. (Winnicott 1954a/2000).

Assim, podemos dizer que o amadurecimento é a realização de uma tendência inata à integração em uma unidade. Esta integração pressupõe uma série de conquistas – como a personalização - que são fundamentais para este sentido de ser, porém não são definitivas. A conquista de uma unidade não é permanente e intacta, é parte de um processo que, na relação com o meio, pode se perder e se ganhar, de forma dinâmica.

 

Distúrbio Psicossomático: "O negativo de um positivo"

Winnicott (1966d/1994) detém-se sobre a questão da psicossomática e especifica aquilo que considera como distúrbio ou doença psicossomática, em termos de desenvolvimento emocional. Dessa forma fica claro que não se trata de estudar o que se poderia considerar como aspectos emocionais subjacentes a doenças orgânicas ou sintomas físicos, nem mesmo o inverso: os sintomas psíquicos como conseqüências e repercussões de alterações funcionais ou patologias orgânicas. Trata-se, por outro lado, de compreender o desenvolvimento emocional, em termos de amadurecimento individual, particularmente no que se refere à inter-relação entre psique e soma.

Na concepção winnicottiana de amadurecimento -como descrito anteriormente -no desenvolvimento saudável, o indivíduo caminha rumo à conquista de um si mesmo integrado. Porém, essa integração não esta garantida, sendo que pode não ser nunca alcançada ou pode mesmo ser perdida em algum momento da vida. Isso significa que, ao nascer, soma e psique estão indiferenciados, de forma que a diferenciação e integração psicossomática são conquistas, desde que tudo corra bem no desenvolvimento do indivíduo: "É bem conhecido o fato de quem nem todos chegam tão longe, e de que muitos perdem aquilo que haviam alcançado" (Winnicott, 1988/1990, p. 144). A princípio podemos afirmar que os distúrbios psicossomáticos apontam para falhas nessa integração.

A enfermidade no transtorno psicossomático não é o estado clínico expresso em termos de patologia somática ou funcionamento patológico (colite, asma, eczema crônico), mas sim a persistência de uma cisão na organização do ego do paciente, ou de dissociações múltiplas, que constituem a verdadeira enfermidade. (Winnicott, 1966d/1994, p. 82)

É nesse sentido que Winnicott afirma que "a enfermidade psicossomática é o negativo de um positivo" (Winnicott, 1966d, p. 88), sendo que o positivo diz respeito à conquista de um si mesmo integrado. A idéia de um "negativo do positivo" se refere não só a existência no indivíduo de uma dissociação – contrária à realização da integração – mas também ao fato de que há uma defesa operando no sentido de manter algum tipo de ligação psique-soma, ainda que a integração propriamente dita não possa acontecer.

É importante ter em mente o seguinte ponto sobre os problemas psicossomáticos: o elemento físico da doença empurra a doença psicológica de volta para o corpo. Isto é particularmente importante por constituir uma defesa contra a fuga para o puramente intelectual, que levaria o indivíduo a perder uma parte do vínculo entre a psique e o soma (Winnicott, 1988/1990, p. 185).

É importante perceber que um empobrecimento na integração psique-soma não favorece a continuidade do amadurecimento pessoal. Os empecilhos para a integração e a manutenção do estado de unidade trazem prejuízos significativos ao indivíduo em seu desenvolvimento e em suas possibilidades de relacionamento.

Para Winnicott, a dissociação no indivíduo age como uma defesa organizada contra as dificuldades encontradas no desenrolar do amadurecimento, sendo que, "concedendo-se tempo e circunstâncias favoráveis, o paciente tenderá a recobrar-se dessa dissociação. As forças integradoras nele tendem a fazer o paciente abandonar a defesa." (Winnicott, 1966d/1994, p. 84).

Porém, as dificuldades no tratamento aos indivíduos com doenças psicossomáticas acentuam-se pela própria característica da assistência médica contemporânea, que se baseia em um sistema de especialidades, no qual cada profissional da saúde cuida de uma parte do corpo, de um problema ou de um sintoma, o que multiplica o número de profissionais que tratam, simultaneamente, o mesmo indivíduo que apresenta diversas patologias. Esse sistema reproduz – no ambiente – a dissociação presente como defesa, no paciente.

O que faz sentido neste agrupamento é a necessidade que alguns pacientes têm de manterem os médicos em dois ou mais lados de uma cerca, por causa de uma necessidade interna, e também que esta necessidade interior faz parte de um sistema defensivo altamente organizado e vigorosamente mantido, com as defesas voltadas contra os perigos que surgem da integração e da conquista de uma personalidade unificada. Estes pacientes precisam de nós para serem cindidos (mas, contudo, essencialmente unidos nos antecedentes longínquos que não se podem permitir conhecer). (Winnicott, 1966d/1994, p. 88)

Considerando, então, que na doença psicossomática estamos tratando de uma dissociação no indivíduo - que essa dissociação aparece como defesa no contexto mais amplo do amadurecimento individual - parece importante pensarmos alguma hipótese a respeito da origem dessa defesa. (Winnicott, 1966d/1994) propõe uma classificação, contemplando duas idéias principais, uma delas considerando falhas em um momento mais precoce do amadurecimento do que a outra.

Primeiramente, como uma falha mais precoce, poderíamos considerar um estabelecimento frágil da personalização no início do desenvolvimento, relacionado a uma maternagem não suficientemente boa2, ou seja, um "fracasso materno, o que deixa o bebê sem os elementos essenciais para o funcionamento dos processos maturacionais" (Winnicott, 1966d/1994, p. 89).

A outra possibilidade etiológica que o autor levanta se refere às dificuldades inerentes à conquista da integração em uma unidade. Aqui estamos diante da possibilidade de o bebê ter alcançado uma integração tal que lhe permita constituir-se como um EU SOU, separado do mundo não-eu. Essa etapa do desenvolvimento traz como "desafio" lidar com a possibilidade de o mundo repudiado como não-eu tornar-se hostil e ameaçador para o eu recém-estabelecido. O que Winnicott aponta é a defesa como uma "batida em retirada do EU SOU e do mundo tornado hostil pelo repúdio que o indivíduo faz do NÃO-EU para uma forma especial de cisão que ocorre na mente, mas que se dá ao longo de linhas psicossomáticas" (Winnicott, 1966d/1994, p. 90),

Desta maneira, a enfermidade psicossomática implica uma cisão na personalidade do indivíduo, com debilidade da vinculação entre psique e soma, ou uma cisão organizada na mente, em defesa contra a perseguição generalizada por parte do mundo repudiado. Permanece na pessoa enferma individual, contudo, uma tendência a não perder inteiramente a vinculação psicossomática. (Winnicott, 1966d, p. 90)

Essa formulação a respeito do distúrbio psicossomático implica uma necessidade de diferenciar qual é o ponto que deve ser tratado em termos terapêuticos e de que forma isso pode ser feito. Winnicott (1966d) aponta para algumas peculiaridades significativas no tratamento aos distúrbios psicossomáticos. Uma delas é que uma vez que a personalidade se encontra dissociada, as dissociações do ambiente são exploradas pelo indivíduo. Como exemplo disso está a questão da multiplicação na busca de soluções médicas, a partir de profissionais diferentes. Por outro lado, se a defesa está a serviço da proteção do si mesmo – por exemplo, diante das ameaças que surgem da possibilidade de integração – não se trata simplesmente de unificar o cuidado, buscando uma suposta integração de fora para dentro. Tampouco parece se tratar de buscar uma solução ou cura pautada nos sintomas somáticos emergentes. Naturalmente, o podemos pensar é que cabe fornecer as condições necessárias para que o indivíduo encontre os elementos essenciais para não mais necessitar manter dissociados, em algum grau, psique e soma.

 

Ilustração Clínica3

Acompanhei Fernanda durante dois anos e, como muitas vezes acontece na clínica, experimentei diversos momentos de dúvida e confusão a respeito dela, daquilo que me mostrava, de como se relacionava comigo e, também, a respeito daquilo que eu poderia lhe oferecer como ajuda. Ao mesmo tempo encontrei respostas na teoria do amadurecimento pessoal que possibilitaram uma intervenção de acordo com as necessidades da paciente em termos de seu amadurecimento. Penso que apresentar um recorte desse caso clínico pode contribuir para a compreensão das questões relativas aos distúrbios psicossomáticos, bem como auxiliar na discussão acerca do papel do analista no tratamento desses indivíduos.

Fernanda procurou ajuda terapêutica porque vivia uma crise em seu casamento e não sabia ao certo o que sentia em relação a seu marido, nem tampouco tinha idéia de que rumo dar à sua vida afetiva. Além disso, após o nascimento de sua filha Andréa (dez anos atrás) começara a engordar, chegando a um grau de obesidade difícil de reverter, apesar de ter feito diversas tentativas de regime, inclusive usando medicamentos para controlar o apetite.

A questão da obesidade era central na vida de Fernanda. Até os trinta anos - quando nasceu sua filha - controlava seu peso com atenção redobrada para evitar engordar significativamente. Até então, era "a magra da família", já que sua mãe e sua irmã estavam sempre muito acima do peso ideal. Mesmo durante a gestação não se permitiu engordar mais do que o necessário para uma gravidez saudável. O que impressionava em Fernanda era a passagem de "magra" para "obesa", vivida e relatada como imperceptível para si mesma: "Eu não percebia que estava engordando. Eu fiquei em casa logo que a Andréa nasceu, ficava cuidando dela, amamentava e em um ano engordei mais de dez quilos." A partir de então continuou engordando, chegando a pesar trinta quilos além de seu peso anterior, tornando-se "a mais gorda" (sic) das mulheres da família.

Fernanda contou que durante os primeiros meses de vida de Andréa, ficava em casa cuidando da filha. Desse período não tinha muitas lembranças. Não se recordava como eram os seus dias, como se sentia naquela fase, como estava sua relação com o marido, como era cuidar de sua filha recém nascida. O que considerava mais marcante era que dormia quando a filha estava dormindo e cuidava dela quando esta a solicitava. Contou que dormia tão profundamente que diversas vezes esqueceu a mamadeira fervendo na água e, quando acordava, o plástico estava todo derretido. O que ela contava remetia a uma intensa identificação com o bebê, sendo que muitas vezes não se sentia em condições de cuidar sozinha de sua filha. Não se lembrava de ter o apoio do marido que, a princípio, não queria nem mesmo ter filhos. Tampouco contava com sua mãe, sempre doente e necessitando de sua atenção. Dessa forma parece significativo que na ocasião do nascimento dessa filha -com um problema físico congênito – tenha surgido ou tornado-se mais exacerbada a dissociação apresentada por Fernanda.

Quando eu lhe perguntava a respeito desse período, como fora, como se sentira, Fernanda buscava me oferecer alguma associação que pudesse explicar a sua necessidade de comer, ao mesmo tempo em que procurava simbolismos na maternidade - e no fato de ter desejado uma filha muito mais que o seu marido -que justificassem um possível descuido com relação a seu corpo. Esses momentos "associativos", por um lado, eram bastante desanimadores para mim, na medida em que eu percebia que eram relatos e observações bastante distanciadas da experiência pessoal de Fernanda.. O que ela trazia era uma elaboração mental de uma vivência à qual não tinha acesso experiencial. Por outro as explicações que ela buscava me mostravam que deveria deixar de lado possíveis interpretações que poderiam exacerbar ainda mais o funcionamento mental defensivo do qual ela se utilizava nesse momento.

Isso acontecia também quando me contava de episódios em que "dormia" no trânsito. Havia períodos em que sentia muito sono e uma grande necessidade de dormir. Mais de uma vez disse que "cochilava" enquanto estava parada no farol e que acordava com as buzinas dos outros carros. Apesar de não entender esses episódios como simplesmente momentos de grande cansaço físico (era uma de suas "explicações"), eu não sabia ao certo a gravidade de seu estado. O que percebia era que existiam esses momentos de desconexão – seja com o mundo externo, seja com ela mesma - ao mesmo tempo em que predominava um funcionamento mental intenso que garantia a eficiência em seu trabalho e na organização de sua vida cotidiana e a mantinha afastada de sensações, sentimentos, vivências das quais pudesse se apropriar.

Durante o período em que a acompanhei ela passou por vários momentos de angústia e medo com relação a problemas de saúde em sua família: sua mãe teve que fazer duas grandes cirurgias, sua filha também passou por diversos procedimentos para corrigir o problema físico congênito e outros episódios de menor gravidade, também relativos à saúde. Em todas essas ocasiões, Fernanda vinha para as sessões e contava todos os detalhes da internação ou da cirurgia que havia acompanhado – a hora que chegou ao hospital, o que o médico falou, o que conversou com as pessoas, qual foi a sua ajuda na ocasião – dizia que não sabia identificar o que sentira, como havia sido estar naquela determinada situação. Ela precisava contar literalmente o que havia acontecido e era necessário que tivesse alguém , de fato, com ela. Era o que eu fazia: mantinha-me presente, me interessando e cuidando desses aspectos mais concretos e orgânicos que ela trazia, ao mesmo tempo - ao olhá-la como a pessoa que vivenciava as diversas situações - buscava facilitar o contato de Fernanda consigo mesma, seus sentimentos, sua experiência. Ela precisava estar em contato comigo para saber o que se passava com ela mesma. Neste contexto cabe ressaltar a afirmação de Winnicott (1969g/1994) de que embora exista uma tendência inata para a integração, não é possível que esta se realize de maneira plena se a mãe não manejar o bebê e o corpo do bebê como se os dois formassem uma unidade:

Há algumas mães, ou pessoas que cuidam de crianças, que estabelecem bom contato com o bebê como pessoa, mas parecem incapazes de sabero que o corpo do bebê está sentindo ou precisando; de modo semelhante, há outras pessoas que são naturalmente boas em cuidados físicos, mas parecem ignorar o fato de que há um ser humano começando a alojar-se no corpo que estão banhando e limpando. Quando aqueles que cuidam de um bebê ou criança pequena possuem esse tipo de dificuldade, a criança de que cuidam não pode tornar-se integrada em uma unidade. (Winnicott, 1969g, p. 431)

Passado o principal momento de angústia (não vivida como tal), seguiam-se dias em que sentia que seu corpo "travava", tinha dificuldade de andar porque suas costas doíam intensamente, piorava a fibromialgia (dores em vários pontos do corpo) e Fernanda procurava, então, as pessoas que poderiam ajudá-la a superar a crise: o acupunturista, o homeopata, a fisioterapeuta – em um movimento característico daquilo que Winnicott (1966d/1994) aponta como "dispersão dos agentes responsáveis", característica dos distúrbios psicossomáticos, nos quais a personalidade não se encontra integrada e o ambiente é explorado também de maneira dissociada.

Por sua vez, o casamento de Fernanda era uma reprodução, na relação, da dissociação que vivia internamente. O marido tinha um comércio ao qual se dedicava integralmente. Pouco ficava em casa e, quando estava, pouco conversavam. Dividiam as contas da casa e Fernanda se sentia muito constrangida se necessitava pedir-lhe ajuda financeira para pagar contas não previstas. Acabava arcando com a despesa, mesmo que não tivesse o dinheiro necessário. Dormiam em quartos separados e não mantinham nenhum contato físico, motivo de grande ressentimento por parte de Fernanda que esperava atitudes mais afetivas do marido, como andar de mãos dadas ou tocá-la de alguma maneira mais carinhosa. A ausência de relacionamento sexual não parecia ser um incômodo para ela. Sentia falta de um toque físico que pudesse ajudá-la a se sentir mais integrada no corpo, mais do que o contato com o corpo do outro, ou mesmo prazer sexual, em uma relação.

Nas sessões não era diferente, ela mantinha um grande distanciamento. Fernanda falava para uma profissional, técnica, que ela consultava para analisar os seus problemas, descobrir suas origens e tentar resolvê-los. Quanto a mim, procurava me aproximar dela, não embarcando na busca de explicações racionais e teóricas para situações que Fernanda trazia como se contasse a história de outra pessoa. Eu buscava, em seus relatos, algo que pudesse me ajudar a vê-la e compreendê-la e, ao mesmo tempo, ajudá-la a sentir que estar com alguém que a compreendesse era possível.

Certo dia, Fernanda veio para a sessão muito mobilizada. Havia se esquecido de pagar o convênio médico de sua filha. Como esta tinha um problema congênito cujo tratamento era cirúrgico, ainda necessitaria de várias intervenções, a um custo muito alto. Por conta disso, seria difícil encaixá-la em outro convênio médico, além do que o tratamento teria que ser interrompido no período de carência de um novo plano de saúde. O risco de perder o direito ao convênio devia-se a ela já ter deixado de pagar outros meses, por falta de dinheiro e, ao não pagar o mês que esquecera, poderia perder o direito à assistência médica.

Pela primeira vez desde que a conhecera, senti que Fernanda estava na sessão. Chorou muito e se mostrava atônita com o que fizera (ou deixara de fazer). Não buscava explicações, não fazia relações com outros acontecimentos de sua vida, não se culpabilizava. Ela estava perplexa com aquilo que deixara escapar, aquilo que não fizera, o que acontecera "espontaneamente", sem o seu controle. Fernanda percebia-se naquilo que não tinha feito. Assustava-se tremendamente com as conseqüências que isso poderia ter e sofria por isso. Estava muito angustiada. O que parecia era que, naquela situação, ela se sentiu desmanchar, ela se aproximou da vivência de uma agonia impensável, experiência provavelmente vivida no início de seu desenvolvimento em decorrência de falhas ambientais.

Naquele momento em que ela pôde viver essa experiência comigo, na sessão, o mais importante era que eu pudesse, também, estar com ela oferecendo-lhe acolhimento e sustentação e não interpretações sobre o ocorrido. E também que eu não me afligisse, mas mantivesse a calma, ou seja, sustentasse a situação, ajudando-a a pensar e a buscar soluções. Percebia, ainda, que era fundamental para Fernanda sentir-se compreendida em seu desespero e não encontrar algum sentido simbólico ou uma explicação para o seu esquecimento.

O que gostaria de destacar é que esse episódio trouxe à tona a angústia - e as dificuldades no desenvolvimento – vividas por Fernanda. A diferença que esse episódio mostra é que foi possível que ela vivenciasse essa experiência, ao contrário de muitas outras que eram somente relata-das e das quais ela não conseguia se apropriar. E aqui, a minha presença, enquanto analista, no sentido de estar com ela, sem interpretá-la ou tentar aliviar a sua angústia com algum tipo de consolo, pode ter contribuído para que Fernanda se arriscasse um pouco mais no sentido de buscar uma integração.

Após essa sessão algumas mudanças ocorreram. A principal delas foi que a relação comigo tornou-se menos impessoal. Podia haver certa aproximação, o que permitiu que ela entrasse em contato com algumas necessidades afetivas importantes. O seu casamento passou a fazer parte das sessões não só como uma constatação da distância existente entre ela e o marido, mas como uma questão afetiva, que eventualmente mobilizava sentimentos, necessidades e angústias.

Com relação ao seu corpo, conseguia perceber que havia um enorme desconforto consigo mesma, a ponto de evitar olhar-se no espelho ou prestar atenção ao corpo durante o banho. Passou a realizar alguns movimentos no sentido de reverter a dissociação que vivia: estranhar o seu casamento e sentir falta de contato vivo e real com seu marido, perceber e explicitar em alguns contextos as suas necessidades; algumas tentativas de habitar o seu corpo também começaram a ser feitas – relatou em uma sessão que depois de muito tempo havia se demorado no banho, sentindo a água escorrendo pelo corpo e percebendo as sensações de seus próprios movimentos. Por outro lado, os seus sintomas físicos permaneciam inalterados, bem como a dificuldade em emagrecer, o que a incomodava intensamente.

É importante destacar que sob a perspectiva winnicottiana de desenvolvimento não é a presença ou ausência de sintomas que determinam a saúde psíquica do indivíduo. Saúde é mais do que a ausência de doença, é a realização da tarefa principal do ser humano, entendida como a possibilidade de se tornar um indivíduo e amadurecer enfrentando todas as dificuldades intrínsecas a essa tarefa, sem perder a essência da existência a partir da criatividade pessoal.

O que se quer mostrar aqui é que, no caso de Fernanda, embora não tenha havido num primeiro momento nenhuma mudança significativa em seus sintomas físicos, houve sim um passo importante no sentido do descongelamento em seu amadurecimento. Podemos entender esse momento da análise de Fernanda como o início de um movimento, uma aproximação na relação terapêutica que poderá, ao longo do tempo, facilitar a retomada de seu desenvolvimento emocional.

Esse caso ilustra algumas particularidades do atendimento a pacientes com doença psicossomática, não só no estabelecimento de uma relação terapêutica, mas também na compreensão do processo terapêutico, tendo como base o amadurecimento da pessoa e não a remissão de possíveis sintomas apresentados.

 

 

Referências

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Loparic, Z. (2001). O primeiro ano de vida. Concepções modernas do desenvolvimento emocional. In D. W. Winnicott (2001/1965a), A família e o desenvolvimento individual (pp. 3-20). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1958j)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: gabrielagalvan@terra.com.br

 

 

1 A elaboração imaginativa, ligada às funções corpóreas, não se refere, nesse início de desenvolvimento, a um mecanismo mental. Conforme diferencia Dias (2003), Winnicott propõe que, nesse estágio, a psique via elaboração imaginativa promove uma esquematização do corpo e do funcionamento corpóreo, sem a participação da mente. Isso significa que elaboração imaginativa é diferente do conceito de fantasia como operação mental que, para Winnicott, se desenvolve no mundo interno já constituído, portanto, possível em um momento posterior do amadurecimento.
2 Maternagem suficientemente boa nesse momento específico se refere à facilitação, pela mãe, da tarefa do bebê de realizar o alojamento da psique no corpo. Isso se dá por meio do holding e do handling do bebê, o que inclui segurar, abraçar, envolver o bebê de maneira que ele se sinta seguro e não solto no espaço. É importante destacar que não se trata de um cuidado apenas físico, mas de um cuidar do bebê – banhar, aquecer, alimentar, afagar – olhando para ele e interagindo com ele como pessoa inteira.
3 Agradeço à Dra Elsa Oliveira Dias as contribuições na discussão do caso aqui apresentado.