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Ciências & Cognição
versão On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.12 Rio de Janeiro nov. 2007
Artigo Científico
Pensamento, crenças e complexidade humana
Thinking, beliefs and human complexity
Cristina Satiê de Oliveira Pátaro
Departamento de Metodologia de Ensino (DME), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo (FE/USP), São Paulo, São Paulo, Brasil
Resumo
Considerando a complexidade do funcionamento psíquico e mental, o artigo discute as relações entre crenças e pensamento humano. Parte-se do pressuposto de que processos relativos ao pensamento envolvem não apenas a cognição, mas também aspectos de outra natureza, como afetivos ou socioculturais (crenças). São apresentados os resultados de uma investigação cujo objetivo foi verificar possíveis influências das crenças no pensamento. A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a quatro grupos (católicos, adventistas, espíritas e estudantes universitários sem considerar a religião), totalizando 100 sujeitos. As questões, sobre temáticas de sexualidade, solicitavam do sujeito, primeiramente, um posicionamento pessoal e, em seguida, a postura de sua religião. Os dados evidenciaram a influência das crenças no raciocínio humano e, ao mesmo tempo, a existência de outros fatores atuantes nos processos do pensamento, ressaltando a efetiva complexidade do funcionamento mental e das relações entre aspectos culturais e sujeito. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.
Palavras-chave: crenças; cultura; complexidade; modelos organizadores do pensamento.
Abstract
Considering the complexity of mental and psychic functioning, this article discusses the relations between beliefs and human thinking. It assumes that processes of human thinking involve not only cognition but also suffers the influence of other aspects such as affective or cultural (beliefs). The article presents the results of a research that studied the possible influences of beliefs in human thinking. A questionnaire was applied to four groups (Catholics, Adventists, Spiritualists and academic students without considering the religious tendency), a total of 100 persons. The questions are concerning human sexuality themes; it was asked the personal positioning and subject's religion positioning. Results indicated the influence of beliefs and, simultaneously, the influence of other factors in human thinking, that indicate the complexity of mental functioning and of relations between culture and subject. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.
Keywords: beliefs; culture; complexity; organizing models of thinking.
Introdução
O presente artigo busca discutir a influência de aspectos culturais no pensamento humano, compreendendo que o funcionamento mental se dá a partir de elementos que não se limitam apenas à cognição, à lógica e racionalidade. Neste percurso, nosso intuito será o de apontar a perspectiva da complexidade como um caminho possível na compreensão não apenas das certezas e regularidades que possam permear o funcionamento psíquico e mental, mas também das ambigüidades, aleatoriedades e incertezas presentes nas relações entre sujeito, cultura e pensamento humano.
Nossa referência para as idéias que configuram a Teoria da Complexidade é o trabalho de Edgar Morin (1991, 1994, 2002a). De acordo com Morin, a complexidade do mundo real - dos objetos e fenômenos da natureza - só pode ser compreendida a partir de uma perspectiva multidimensional (em lugar de unidimensional e fragmentada) e que tenha em vista as incertezas e incompletudes de todo o conhecimento. Nesse sentido, a perspectiva de complexidade considera, na compreensão do mundo real, a ordem, a certeza e a regularidade tanto quanto a desordem, a incerteza, as não-regularidades. Busca conhecer as partes sem desvinculá-las da existência de um todo e vice-versa, levando em conta, assim, as grandes quantidades de interações e unidades existentes na realidade, de forma que as determinações e previsões dão lugar às não-determinações, às possibilidades e aos fenômenos aleatórios.
A partir desta perspectiva de complexidade, nossa intenção será a de buscar compreender o funcionamento psíquico e mental do ser humano. Para tanto, apresentaremos os resultados e discussões de uma investigação realizada que teve como objetivo analisar as possíveis relações entre o pensamento do sujeito e os aspectos vinculados à cultura, em especial, as crenças.
Assim, levando em conta os pressupostos aqui discorridos, pretendemos inicialmente apresentar, neste artigo, de que forma compreendemos o sujeito psicológico e as diferentes dimensões que o constituem. Em seguida, discutiremos acerca das relações entre sujeito e cultura, analisando de que forma os elementos culturais (como é o caso das crenças) passam a fazer parte da individualidade dos sujeitos. Em um terceiro momento, nosso olhar estará voltado para a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, referencial teórico e metodológico que orientou a pesquisa apresentada, e que permite considerar o pensamento humano a partir da articulação de aspectos de diferentes naturezas (cognitivos, mas também afetivos, socioculturais, biológicos, etc.). Por último, apresentaremos a pesquisa realizada, os resultados encontrados e as análises e discussões levantadas a partir dos dados da investigação.
Dimensões constituintes do sujeito
Compreender o psiquismo humano de uma forma que seja coerente com os princípios de complexidade, expostos anteriormente, exige que consideremos o ser humano em sua totalidade e multidimensionalidade, levando em conta os inúmeros elementos e relações que influenciam o funcionamento psíquico.
Encontramos essas características no trabalho de Araújo (1999; 2003). Este autor apresenta um modelo cujo objetivo é explicar o funcionamento psíquico em uma perspectiva complexa e não-fragmentada, que considere a influência de fatores diversos, tanto externos quanto internos ao sujeito, que ocorrem simultaneamente.
Segundo Araújo, cada ser humano, seu modo de ser, agir, pensar e sentir, é resultado da interação de diferentes dimensões, com características específicas, mas que se inter-relacionam, e que, em conjunto, fazem parte de um sistema mais complexo que define a individualidade do sujeito.
O autor afirma que o sujeito psicológico é, ao mesmo tempo, um ser biológico, que sente fome, frio e sede, mas que também tem sentimentos, emoções, desejos. Este mesmo sujeito interage com a realidade externa (objetiva) e também interna (subjetiva) e, nesta relação, constrói uma capacidade cognitiva de organizar suas experiências (Araújo, 2003). Todos os aspectos constituintes do sujeito (biológico, afetivo, sociocultural e cognitivo) atuam simultaneamente, influenciando a maneira de ser, pensar, agir e sentir de cada ser humano.
Adotar este modelo como explicação para o funcionamento psicológico do sujeito implica considerar que em qualquer situação da vida cotidiana entram em ação diferentes aspectos relativos às diferentes dimensões constituintes do sujeito: o funcionamento bio-fisiológico do organismo, as estruturas cognitivas, os sentimentos, emoções, valores, crenças, desejos do indivíduo, bem como a inter-relação deste conjunto como um todo junto ao meio.
Segundo a representação de Araújo (2003: 156), a seguir, o sujeito psicológico é constituído por diferentes dimensões - cognitiva, afetiva, biológica e sociocultural - e seu funcionamento se dá a partir das inter-relações destas entre si e com o mundo externo - físico, interpessoal e sociocultural - com o qual o sujeito interage:
Figura 1 - Modelo para o sujeito psicológico, segundo Araúo (2003).
Os estudos feitos a partir deste modelo psicológico, de acordo com Araújo, não podem perder de vista a sua totalidade e a noção de organização interna e externa das dimensões propostas, de forma que é possível estudar, separadamente, cada uma das dimensões - afetiva, cognitiva, sociocultural e biológica - mas não podemos deixar de considerar que estes aspectos se inter-relacionam e que esta dinâmica exerce e recebe influências da maneira como o sujeito psicológico lida e interage com o mundo interno e externo.
Dadas estas considerações, é possível dizer que o funcionamento psíquico ocorre a partir de um certo grau de previsibilidade, de certezas; ao mesmo tempo, entretanto, abre-se espaço ao inesperado, ao aleatório, à possibilidade de desordem e incerteza. Estes pontos são de fundamental importância se queremos uma teoria que explique o funcionamento psíquico, o sujeito da vida real, e que esteja de acordo com os princípios de complexidade.
É neste contexto, e a partir deste olhar de complexidade, que devem ser compreendidas as discussões propostas no presente artigo. Assim, sem perder a noção do funcionamento do sujeito psicológico como um todo, nosso foco, a seguir, estará voltado para a dimensão sociocultural, a partir da discussão a respeito das crenças pessoais e das relações entre sujeito e cultura.
Crenças, cultura e sujeito
Ao tecer suas considerações acerca da mente humana, Morin (2002a) considera a existência de dois tipos de pensamento: o pensamento racional, ligado à lógica, ao cálculo e à razão, e o pensamento mítico, relacionado a um âmbito mitológico, do imaginário, das analogias e dos símbolos. Segundo o autor, o raciocínio humano acontece a partir da articulação destes dois tipos de pensamento, que não podem ser vistos separadamente, de forma que a esfera imaginária - dos mitos, religiões, crenças - adquire para o ser humano tanta importância quanto a esfera do pensamento racional.
Diante de tal constatação, Morin coloca que o conhecimento é uma re-construção do real pelo ser humano e que, portanto, não é completo, nem pode ser encarado como uma cópia exata do mundo objetivo, sendo sempre permeado por constantes "erros e ilusões". Tudo isso leva o autor a ressaltar que o conhecimento humano não se encerra nos princípios da razão e da lógica, e deve ser sempre considerado dentro de seus limites e incertezas.
A partir desta premissa, passamos a nos debruçar sobre o estudo das relações entre as crenças pessoais e o pensamento humano. Considerando, desta forma, que tanto o pensamento quanto a construção do conhecimento são permeados não apenas por processos relativos à racionalidade e à lógica, mas também por fatores de outra natureza, fomos em busca de investigar em que medida as crenças - enquanto construção cultural, proveniente do imaginário, da "esfera mitológica" (Morin, 2002a) - podem vir a influenciar a organização do pensamento. Ao optarmos por estudar as crenças, elegemos assim um elemento relativo à cultura, a fim de investigar até que ponto essa dimensão cultural, que se incorpora ao indivíduo a partir de seu contato com diferentes grupos e com a sociedade, exerce influências no pensamento dos sujeitos.
Partindo do pressuposto de que as crenças, provenientes do meio cultural e social, passam a fazer parte da individualidade do ser humano, é necessário explorarmos um pouco mais de perto as relações entre sujeito e cultura, buscando compreender como se dá a internalização dos aspectos culturais pelo indivíduo.
O estudo de tais relações entre cultura e sujeito são pontos altamente discutidos em estudos de diferentes campos do conhecimento, em especial da Psicologia. Para abordarmos estas relações a fim de orientar a discussão do presente artigo, iremos nos ater mais especificamente nas perspectivas trazidas por Morin (2002b), Vygotsky (1998) e também por Martins e Branco (2001).
Para Morin (2002b), o ser humano está em constante interação com o mundo físico, com os fenômenos naturais, e, principalmente, com outros sujeitos ao seu redor. É desta interação entre os seres humanos que nasce a cultura.
Própria da natureza humana e da vida coletiva, a cultura é definida por Morin (2002b: 35) como sendo constituída pelo:
"Conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social."
Em cada sociedade, de geração em geração, a cultura é protegida, nutrida, regenerada e, ao mesmo tempo, modificada, para que não seja destruída, não caia em extinção. Segundo o autor, da mesma forma que não existe cultura sem as competências proporcionadas pelo cérebro humano, também não haveria linguagem ou pensamento sem a cultura.
De acordo com Morin, as relações entre cultura e sujeito são estreitas e mútuas. Se, por um lado, a cultura depende da vida em sociedade, por outro, o ser humano, em sua constituição, também possui muito da cultura à qual pertence.
Essa "reprodução" da cultura em cada sujeito é o que o autor denomina imprinting. Para Morin, o imprinting pode ser compreendido como uma marca, uma inscrição, imposta à mente humana pela cultura. Desde o nascimento, através da cultura familiar e, posteriormente, através da cultura social, o imprinting vai impondo sua marca e, tal qual uma cicatriz, passa a fazer parte da constituição do sujeito, sua individualidade, e com ele permanece continuamente.
Entretanto, a cultura exerce suas influências não apenas externamente, impondo sua marca, mas também internamente, fazendo emergir do próprio sujeito o poder de suas idéias, suas crenças e paradigmas. Em muitos casos, estas influências vão além, de modo que a cultura - através das idéias, de suas influências no pensamento e na visão de mundo - age também em outra direção: é ela que igualmente "impede de aprender e de conhecer fora dos seus imperativos e das suas normas, havendo, então, antagonismo entre o espírito autônomo e sua cultura" (Morin, 2002b: 35).
Assim, para Morin, a cultura passa a fazer parte do sujeito e não imprime apenas suas marcas, mas traz também uma consignação de como deve o sujeito organizar, conceber, lidar com o mundo ao seu redor e com os demais seres humanos.
Diante de tais considerações e partindo do pressuposto de que as crenças possuem suas raízes na cultura, conforme colocamos anteriormente, é possível afirmar que o sujeito, ao mesmo tempo em que possui determinadas crenças e tende a agir de acordo com elas, é também, em certa maneira, tomado por suas crenças, passando assim a pensar e a enxergar o mundo através delas. Neste aspecto, a crença é ao mesmo tempo uma forma de guiar as condutas e também de limitá-las.
Entretanto, é preciso considerar que, se por um lado o imprinting imprime as marcas da cultura no sujeito, por outro, como já afirma o próprio Morin, o sujeito não é passivo nesta relação. Vejamos.
Adentrando mais especificamente o campo da Psicologia, encontramos os estudos do psicólogo russo Lev S. Vygotsky. Dentre seus estudos sobre as relações entre cultura e sujeito, destacaremos, no presente trabalho, suas considerações acerca do conceito de internalização.
De acordo com Vygotsky (1998), a internalização é a reconstrução interna de uma operação externa ao sujeito e implica uma série de transformações psicológicas, a seguir:
Nas palavras do autor,
"O processo, sendo transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente. (...) [as funções] somente adquirem o caráter de processos internos como resultado de um desenvolvimento prolongado. Sua transferência para dentro está ligada a mudanças nas leis que governam sua atividade; elas são incorporadas em um novo sistema com suas próprias leis." (Vygotsky, 1998: 75)
As idéias de Vygotsky, como é possível notar, auxiliam na compreensão dos processos psicológicos envolvidos na internalização dos aspectos culturais pelos seres humanos, a qual está intimamente relacionada ao próprio desenvolvimento do sujeito.
A partir dos estudos de Vygotsky, Martins e Branco (2001) abordam igualmente o conceito de internalização, ao discutirem as relações entre cultura e sujeito. A partir de uma perspectiva sociocultural construtivista, propõem considerar a relação bidirecional que caracteriza a transmissão da cultura para o sujeito. De acordo com estes autores, os participantes do processo de transmissão cultural estão ativa e constantemente transformando as mensagens culturais. Assim:
"Emissor e receptor organizam e reorganizam ativamente a informação cultural de forma que a cultura se encontra continuamente em transformação mediante a ação de todos os participantes da experiência social." (Martins e Branco, 2001: 171).
Esta perspectiva nos traz amplas possibilidades na relação entre sujeito e cultura, abrindo espaço para a participação de ambos na construção do novo ao longo deste processo de constante interação.
Para Martins e Branco, embora o estudo do conceito de internalização venha recebendo a atenção de vários pesquisadores e de diferentes áreas do conhecimento, a noção apresentada por Vygotsky é a que mais trouxe contribuições para o campo de pesquisa do desenvolvimento humano. Nas palavras dos autores, o processo de internalização pode ser entendido como:
"[um] processo através do qual sugestões ou conteúdos externos ao indivíduo apresentados por um 'outro social' são trazidos para o domínio intra-psicológico (do pensar e do sentir subjetivos), passando a incorporar-se à subjetividade do indivíduo. Este 'outro' são pessoas, instituições sociais ou mesmo instrumentos mediados culturalmente." (Martins e Branco, 2001: 172)
A compreensão apresentada por estes autores evidencia a dinâmica entre indivíduo e cultura, demonstrando de que forma ocorrem as influências mútuas recebidas e exercidas por ambos os pólos desta relação:
"No que se refere ao indivíduo, a internalização de aspectos culturais é antecedida e orientada por elementos motivacionais, afetivos, que elegem e priorizam objetivos e conteúdos culturais, atribuindo-lhes um significado próprio no interior de um universo amplo de possibilidades. Por outro lado, a cultura à qual o indivíduo está ligado, e na qual ele se constitui, orienta suas expectativas e comportamentos em uma certa direção, sem com isto impor-lhe, necessariamente, um padrão definido de crenças, valores e comportamentos. Em função de aspectos motivacionais próprios, o indivíduo pode se opor de forma mais ou menos intensa às orientações apontadas pelas sugestões sociais, dando origem à singularidade de sua constituição subjetiva e, em conseqüência, permitindo-lhe introduzir novos aspectos na cultura coletiva." (Martins e Branco, 2001: 172)
No trecho que acabamos de citar, tanto o indivíduo quanto a cultura estão abertos à transformação, à formação de novos significados, que ocorrerão em função da forma como se dá a relação entre ambos. Ou seja, não é possível considerar cultura sem indivíduo ou vice-versa.
Realizando um paralelo entre tais colocações e as considerações de Edgar Morin (2002b), apresentadas anteriormente, pudemos verificar nestas últimas, de forma análoga, as estreitas inter-relações entre cultura e sujeito. Segundo Morin, através do imprinting, a cultura inscreve no indivíduo um conjunto de práticas, saberes, crenças, valores, idéias, conhecimento, que influenciam o desenvolvimento da individualidade do sujeito. Mas evidentemente, embora todos os indivíduos de um determinado grupo sejam submetidos ao mesmo imprinting cultural, cada sujeito, em sua individualidade, irá constituir-se e construir-se de maneira diferente, uma vez que não é a cultura unicamente que influencia o ser humano - o qual, para Morin, deve ser considerado de maneira multidimensional, como um sujeito ao mesmo tempo físico, biológico, psíquico, afetivo, cultural e social (Morin, 2002b, 2002c). Ou seja, entram em ação, entre outros fatores, os "aspectos motivacionais" próprios de cada sujeito (Martins e Branco, que acabamos de citar), que possibilitarão que os aspectos culturais sejam apreendidos pelo indivíduo adquirindo significado próprio.
Diante do quadro exposto até agora, entendemos que uma compreensão das relações entre cultura e indivíduo, que leve em conta toda complexidade inerente a estes elementos, necessita, por um lado, de uma noção de cultura que esteja aberta a transformações, que exerça suas influências sobre o indivíduo em uma relação não-unilateral e não-determinista. Por outro lado, exige também uma noção de indivíduo ativo que, embora possua, em sua subjetividade, traços da cultura e da sociedade da qual participa, tenha possibilidades de (re)significar e (re)construir os aspectos culturais. Esta noção de indivíduo só se faz, do nosso ponto de vista, à medida que encaramos esse ser humano de forma complexa e multidimensional (como já nos propõe Morin), e nos parece coerente com o modelo de sujeito psicológico apresentado no início deste artigo (Araújo, 1999, 2003) - o qual considera as diferentes dimensões constituintes do ser humano, a partir de uma perspectiva de complexidade.
Neste contexto, em busca de analisar as relações entre as crenças e o pensamento humano, os pressupostos apresentados até agora nos conduziram à opção pela Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, que discorreremos a seguir.
A Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento
A Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento (Moreno et al., 1999; Arantes, 2000) é uma das bases que fundamenta a pesquisa aqui apresentada e constitui-se, assim, na base teórica e metodológica para a mesma. Esta teoria foi inicialmente proposta por Moreno, Sastre, Leal e Bovet, e parte dos trabalhos de Jean Piaget, e também da teoria de modelos mentais de Johnson-Laird. Vejamos.
As autoras adotam como um dos pontos de partida os estudos de Jean Piaget acerca dos aspectos estruturais do pensamento e o funcionamento cognitivo. Reconhecem a importância e abrangência de tais idéias - que inovam ao constituírem uma teoria acerca dos estádios do desenvolvimento cognitivo, colocando o sujeito como organizador da realidade - mas também apontam para suas limitações. Neste sentido, Moreno e colaboradores (1999) consideram que o desenvolvimento cognitivo, na perspectiva de Piaget, é tomado apenas a partir do ponto de vista estrutural, sem dar muita atenção ao fato de que o emprego de determinadas operações depende não apenas dos estádios, mas também dos conteúdos aos quais se aplicam. Assim, as autoras propõem que o funcionamento mental se dê não apenas em vista dos aspectos estruturais, internos ao sujeito, mas também, de maneira articulada, considerando os conteúdos presentes na realidade - ou seja, os elementos, enquanto "um produto da interpretação que o sujeito faz dos objetos e fatos perceptíveis." (Moreno et al., 1999: 77).
Um segundo ponto em que se baseia a teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento é a idéia defendida por Philip Johnson-Laird de que o raciocínio humano opera por meio de modelosmentais. Johson-Laird considera que o raciocínio não segue unicamente a lógica formal, mas envolve a compreensão de significados e a manipulação de modelos mentais, estes vistos como uma representação interna que o sujeito realiza do mundo ao seu redor (Johson-Laird, 1993, apud Moreno et al., 1999). De acordo com este autor, por meio de modelos mentais, o ser humano representa a realidade que o cerca e é capaz de raciocinar, verificar hipóteses e alternativas. Assim, a compreensão envolve a elaboração de modelos do mundo, e o raciocínio consiste na manipulação de tais modelos. O papel da representação na teoria dos modelos mentais é de fundamental importância para explicar a elaboração dos modelos, bem como sua manipulação, que se dá através do pensamento.
A partir da articulação entre as idéias da teoria dos modelos mentais e da epistemologia genética de Piaget - conforme destacamos - Moreno e colaboradores (1999) desenvolvem então a teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, segundo a qual o ser humano, a fim de orientar-se e conhecer o mundo que o cerca, constrói modelos da realidade em sua interação com os objetos, pessoas e relações ao seu redor, e também consigo mesmo.
Os Modelos Organizadores do Pensamento - que influenciam a forma de agir, pensar, ser e sentir do sujeito, assim como a própria construção do conhecimento - são construídos com base em elementos estruturais internos ao sujeito, mas também externos a ele, ou seja, os conteúdos da realidade. De acordo com as autoras,
"Concebemos um modelo organizador como uma particular organização que o sujeito realiza dos dados que seleciona e elabora a partir de uma determinada situação, do significado que lhes atribui e das implicações que deles se originam. Tais dados procedem das percepções, das ações (tanto físicas como mentais) e do conhecimento em geral que o sujeito possui sobre uma certa situação, assim como das inferências que a partir de tudo isso realiza. O conjunto resultante é organizado por um sistema de relações que lhe confere uma coerência interna, a qual produz, no sujeito que o elaborou, a idéia de que mantém também uma coerência externa, ou seja, uma coerência com a situação do mundo real que representa." (Moreno et al., 1999: 78)
De acordo com o trecho acima, é possível verificar que, como se baseiam na representação e interpretação do sujeito, os modelos organizadores nem sempre correspondem exatamente à situação do mundo real. Desta forma, embora confiram ao sujeito uma "coerência interna", a qual, por sua vez, "produz a idéia de uma coerência externa", isso não significa que o modelo construído corresponda exatamente à realidade que representa.
Segundo Moreno e colaboradores (1999), o sujeito constrói os modelos organizadores a partir da avaliação que faz diante de determinada situação do mundo real, processo em que estão envolvidas as seguintes atividades cognitivas: abstração de elementos, atribuição de significados e estabelecimento de implicações e/ou relações. Vejamos:
A abstração de elementos ocorre uma vez que o sujeito seleciona alguns elementos da realidade observada para que constituam o modelo organizador. Assim sendo, nem todos os elementos da situação observada são necessariamente abstraídos e, ao mesmo tempo, o modelo organizador pode contemplar elementos que não se encontram na realidade e que são, assim, inferidos pelo próprio sujeito. Na elaboração do modelo organizador, os elementos que não são vistos como significativos ou pertinentes são desconsiderados e passam a não fazer parte do modelo elaborado.
Aos elementos que são abstraídos, o sujeito atribui significados. Não há, portanto, no modelo organizador, elemento sem significado. Entretanto, segundo as autoras, contextos diferentes podem levar um mesmo sujeito a atribuir significados diferentes a um mesmo elemento, da mesma forma que, a este mesmo elemento, sujeitos diferentes podem atribuir significados diferentes.
O estabelecimento de implicações e/ou relações diz respeito às conseqüências que o sujeito atribui na relação entre elementos e significados do modelo em questão.
A construção do modelo organizador depende de como estes três processos, que ocorrem simultaneamente, são articulados internamente pelo sujeito: um determinado elemento é abstraído em função do significado que lhe é atribuído no contexto da construção de um determinado modelo, e destes dois aspectos dependem as implicações estabelecidas.
Um aspecto importante a ser ressaltado é que a construção dos modelos organizadores permite a imaginação do sujeito, a inferência de novos elementos (Arantes, 2000), pois o modelo organizador pode ser constituído também de alguns elementos não necessariamente presentes na realidade. Tais elementos passam a integrar o modelo organizador construído, adquirindo tanta importância quanto os demais na constituição do modelo. A imaginação do sujeito pode se basear em aspectos da razão, de natureza lógico-matemática, mas também de outra natureza. E, desta forma, podemos dizer que a Teoria dos Modelos Organizadores avança no sentido de considerar que a organização do pensamento está relacionada não apenas a aspectos (e processos) cognitivos, mas também aos sentimentos e emoções, desejos, fantasias, representações sociais, crenças, que influenciam os próprios processos mentais de seleção de elementos, atribuição de significados e estabelecimento de implicações.
É neste sentido que a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento permite-nos considerar que as crenças pessoais podem exercer tanta influência no pensamento humano quanto os aspectos cognitivos. É neste contexto, portanto, que se desenvolveu a pesquisa apresentada a seguir.
Objetivos da pesquisa
O problema central da pesquisa foi investigar se os modelos organizadores aplicados diante de situações da vida cotidiana estão de alguma forma relacionados às crenças do sujeito, ou, dito de outra maneira, verificar em que medida as crenças influenciam a organização do pensamento. O tipo de crença considerado foi a crença religiosa, e o conteúdo das situações apresentadas aos sujeitos foi a sexualidade.
Metodologia
Para atender aos objetivos da pesquisa, foi aplicado um questionário a um total de 100 sujeitos adultos, entre 20 e 40 anos, divididos em 4 grupos: 25 Católicos, 25 Adventistas, 25 Espíritas e 25 estudantes universitários sem que fosse considerada a religião. O questionário foi aplicado a cada grupo, em seu próprio espaço religioso, o que, no caso dos estudantes, foi feito na própria Universidade.
Ao responder às questões, que versavam sobre temáticas de sexualidade, os sujeitos deveriam, primeiramente, dissertar sobre seu posicionamento pessoal diante da temática apresentada e, em um segundo momento, colocar a postura de sua religião. As duas questões analisadas foram: Questão A - "Na sua opinião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?" e Questão B - "Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?".
Para a análise dos dados, foram identificados os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos, a partir das respostas dadas em cada uma das questões. De posse destes dados, foram analisadas as relações entre a distribuição dos modelos organizadores dentro de cada um dos grupos entrevistados, bem como as relações entre o posicionamento de um mesmo sujeito diante de ambas as questões.
Resultados e discussões
Na seqüência, temos os modelos organizadores encontrados e a distribuição dos mesmos dentro dos diferentes grupos entrevistados, considerando primeiramente a Questão A e, em seguida, a Questão B:
Análise da Questão A: "Na sua opinião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?"
Modelos Organizadores | % | Modelo 1 | Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de Deus, casamento, procriação) | 37 | Modelo 2 | Relação sexual como elemento que define a continuidade ou não do relacionamento entre o casal | 8 | Modelo 3 | Relação sexual como fator de união entre o casal | 24 | Modelo 4 | Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal | 24 | Modelo 5 | Relação sexual valorada de diferentes maneiras, em função do tipo de relacionamento entre o casal | 7 |
Tabela 1 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão A:
Gráfico 1 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão A nos diferentes grupos.
Dos dados da Questão A é relevante destacar, por um lado, a presença do Modelo 1, que agrega em si elementos e significados associados à religião (Deus, casamento, procriação). Este modelo se faz presente nos 3 grupos religiosos entrevistados, principalmente dentro do grupo Católico, e evidencia que de fato as crenças religiosas parecem influenciar a organização do pensamento.
Por outro lado, é importante ressaltar que, mesmo sendo composto por uma maioria de sujeitos que declararam possuir alguma religião, nenhum dos entrevistados do grupo de estudantes aplicou o Modelo 1 ao responder à primeira questão. Este dado indica que o grau de influência das crenças parece variar de acordo com o contexto social, e que deve haver outras variáveis que influenciam igualmente o pensamento dos sujeitos ao organizarem seu pensamento diante do tema solicitado (experiências pessoais, emoções e sentimentos, crenças de outra natureza).
Análise da Questão B: "Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?"
Modelos Organizadores % Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de Deus, casamento, procriação) 61 Modelo 2 Relação sexual exige responsabilidade, pois traz conseqüências 12 Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 7 Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 7 Modelo 5 A postura religiosa é insuficiente, antiquada, ortodoxa, para explicar o papel da relação sexual 6 ----- Não respondeu à Questão B 7 Tabela 2 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão B: Gráfico 2 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão B nos diferentes grupos. Analisando os dados da Questão B podemos notar uma grande quantidade de sujeitos aplicando o Modelo 1, pautado em princípios ligados tradicionalmente à religião, correspondendo a 61% da amostra como um todo e à maioria dos sujeitos dos grupos católico e adventista. O que chama a atenção, entretanto, é o grupo de estudantes, onde encontramos uma parcela de 6 sujeitos aplicando o Modelo 5, que considera a postura religiosa insuficiente e antiquada para explicar o papel da relação sexual. Ao notarmos que todos os estudantes que aplicaram este modelo afirmaram ser católicos, e que a maioria dos sujeitos do grupo católico aplicou o Modelo 1, veremos que, em nossa amostra, uma mesma religião deu origem a raciocínios diversos, orientados em direções opostas. Este dado nos faz considerar que as crenças, relacionadas a uma cultura, não são internalizadas de uma mesma maneira por todos os sujeitos, sendo que outros aspectos subjetivos (ex: sentimentos, valores, conhecimentos do sujeito) parecem atuar na forma como os indivíduos incorporam suas crenças. Partindo agora para uma análise das respostas dadas por um mesmo sujeito às diferentes questões, temos os gráficos a seguir, que apresentam a freqüência de sujeitos que mantiveram ou alteraram seu raciocínio em suas respostas às questões A e B, primeiramente considerando o total da amostra e, em seguida, levando em conta os diferentes grupos entrevistados: Gráfico 3 - Distribuição dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo organizador e modelos diferentes nas questões A e B. Gráfico 4 - Distribuição, por grupo entrevistado, dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo organizador e modelos diferentes nas questões A e B Como mostram os dados, embora as crenças religiosas tenham exercido um certo grau de influência nas respostas, levando uma parcela dos sujeitos a manter seu raciocínio nas duas questões, a maioria da amostra aplicou raciocínios diferentes ao responderem sobre o papel da relação sexual, primeiramente segundo sua opinião pessoal e, em seguida, sob a postura de sua religião. Os dados da investigação sugerem que a cultura, internalizada pelos sujeitos, embora influencie a individualidade de cada membro da sociedade, não anula os demais aspectos subjetivos que se manifestam na dinâmica do funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo, os resultados obtidos permitem considerar que tal funcionamento deve ser entendido a partir de uma visão de complexidade, a qual, ao considerar as diferentes variáveis que podem atuar no pensamento humano de forma não previsível, ajuda a explicar a tendência à mudança no raciocínio dos sujeitos, verificada em nossa amostra. Por outro lado, os dados demonstraram também que cada uma das três religiões consideradas influenciou de forma diferente a organização do pensamento, levando em conta as variações intrapessoais diante das questões analisadas. Este fato anuncia que o grau de influência exercida pelas crenças na organização do pensamento de um sujeito pode também estar, de alguma maneira, relacionado à própria natureza da crença. Regularidades e não-regularidades Como vimos, os resultados gerais obtidos demonstraram que efetivamente os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos, ao se posicionarem diante de temáticas de sexualidade, tiveram associados a seus elementos, significados e implicações, aspectos e conteúdos relativos às crenças religiosas, mesmo quando estas não estavam explicitamente presentes no contexto. Como exemplo do que acabamos de colocar, dentre os modelos organizadores encontrados a partir das respostas da amostra entrevistada, podemos citar o Modelo 1 da Questão A, que, por sua vez, correspondia ao Modelo 1 da Questão B. Nestes casos, o raciocínio empregado pelos sujeitos fundamentava-se em princípios religiosos tradicionais para explicar o papel da relação sexual no relacionamento de um casal, citando elementos como Deus, procriação e casamento, de maneira coerente com alguns dos pressupostos encontrados nas religiões com as quais trabalhamos. Na primeira questão, que não fazia referência explícita a princípios religiosos, tal raciocínio foi aplicado por 37% dos sujeitos, correspondendo a 18 católicos, 12 adventistas e 7 espíritas. Já na Questão B, que solicitava do sujeito a postura de sua religião, 61% de nossa amostra aplicou o Modelo 1, sendo 23 católicos, 22 adventistas, 9 espíritas e 7 estudantes. Diante da ocorrência destes dados, podemos afirmar que os seres humanos incorporam elementos vinculados às suas crenças na forma de pensar e de posicionar-se frente às situações cotidianas, o que indica que, de uma maneira geral, os aspectos culturais, internalizados pelos indivíduos em sua relação com os grupos e com a sociedade, podem influenciar a própria organização de seu pensamento. Tal fato, portanto, confirma, em parte, a hipótese central, de que as crenças influenciam a organização do pensamento humano. Assim sendo, como já propôs Morin, é possível dizer que as crenças e a cultura - que, confirme vimos, relacionam-se ao "pensamento mítico", da criação, do imaginário e das analogias - são aspectos de fato tão importantes para o ser humano quanto a esfera do "pensamento racional", já consagrado e exaltado desde a Modernidade, com as idéias Iluministas e o pensamento cartesiano. Nesse sentido, consideramos que os resultados contribuem com uma perspectiva recente, dentro dos estudos da Psicologia, que busca compreender os processos do pensamento para além dos aspectos e processos cognitivos da mente humana. Entretanto, como um trabalho de Psicologia que adota o referencial da Teoria da Complexidade, a análise dos dados obtidos com nossa investigação contempla não apenas as regularidades presentes, mas atenta também para as não-regularidades, as incertezas e aleatoriedades que regem os fenômenos observados. Desta forma, o que chama a atenção na investigação é o fato de que, mais do que as regularidades, as permanências, foram encontradas mudanças, variações, tanto na forma com a qual os sujeitos organizaram seu pensamento quanto no grau de influência exercida pelas crenças religiosas nos modelos organizadores identificados. Sendo assim, em busca de compreender as relações entre as crenças e a organização do pensamento, foi encontrado um número maior de hipóteses e de novos questionamentos do que propriamente respostas e/ou considerações conclusivas. A seguir, discutiremos rapidamente cada uma das não-regularidades identificadas diante dos dados apresentados, as quais vêm, do nosso ponto de vista, confirmar a complexidade dos processos que envolvem o pensamento humano e as relações entre o sujeito e a cultura: A partir dos pontos aqui discutidos, podemos afirmar que os resultados obtidos com a pesquisa que aqui se coloca, embora confirmem a hipótese inicial, também trazem indícios para considerar que as relações entre as crenças - e por extensão os aspectos culturais - e o pensamento humano são permeadas por uma série de outros fatores que atuam simultaneamente durante a organização do raciocínio, isto é, na elaboração dos modelos organizadores. Tais fatores podem ser de ordem inter e intrapsíquica, sendo que, neste último caso, podem estar relacionados, supomos, a diferentes dimensões constituintes do sujeito: afetiva (através da atuação de sentimentos e valores); biológica (com o próprio funcionamento cerebral); cognitiva (influenciada pelos esquemas de ação e estruturas cognitivas) e até mesmo outros aspectos da própria dimensão sociocultural (influência da linguagem e representações sociais). Para finalizar, devemos ter em vista que este trabalho centrou-se apenas nas possíveis influências exercidas pelas crenças religiosas no pensamento humano, e que há outros aspectos também relacionados à cultura (contexto familiar, linguagem, crenças de outra natureza) que, julgamos, certamente exercem sua parcela de influência na organização do pensamento dos sujeitos. Considerações finais O presente artigo buscou discutir as relações entre as crenças e o pensamento humano, a partir de uma perspectiva de complexidade. Partimos do princípio de que as crenças pessoais, ao fazerem parte da individualidade do sujeito, passam a influenciar o próprio funcionamento mental, a organização do pensamento, atuando juntamente aos processos cognitivos. Para as discussões, apresentamos os resultados de uma investigação embasada na Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento. Esta teoria considera que o sujeito constrói modelos da realidade em sua interação com os objetos, pessoas e relações presentes ao seu redor, e também consigo mesmo. Os modelos organizadores do pensamento são construídos a partir não apenas de processos cognitivos, mas também diante da influência de aspectos de outra natureza, como afetiva (sentimentos, emoções) e sociocultural (crenças). A pesquisa apresentada teve como objetivo investigar as relações entre as crenças religiosas e os modelos organizadores do pensamento aplicados por sujeitos diante de situações que envolviam questões relacionadas ao tema da sexualidade. Em uma perspectiva mais ampla, a pesquisa buscou verificar até que ponto os aspectos culturais (aqui representados pelas crenças), que são internalizados pelos sujeitos, passam a influenciar a organização de seu pensamento. Os dados da pesquisa, obtidos a partir da aplicação de um questionário a sujeitos de diferentes religiões, demonstraram que os modelos organizadores aplicados incorporaram elementos relativos às crenças religiosas, indicando que estas de fato influenciam a organização do pensamento. Por outro lado, foi verificado também que tal influência atuou em conjunto a outras variáveis concernentes ao funcionamento psíquico dos sujeitos em questão, evidenciado pelas variações nos modelos organizadores encontrados, tanto entre os diferentes grupos entrevistados quanto na análise das respostas de um mesmo sujeito. Diante de todo o exposto, gostaríamos de encerrar as discussões com algumas considerações suscitadas pelo estudo feito e pelos resultados obtidos. Não nos resta dúvida de que o funcionamento mental do ser humano deve ser compreendido a partir de uma perspectiva de complexidade. Pensamos, assim, que os resultados apresentados vêm por confirmar ainda mais a necessidade de considerarmos que os processos do pensamento humano, diante da infinidade de variáveis que nele atuam, só podem ser de fato compreendidos levando-se em conta que as não-regularidades existem tanto quanto as regularidades, que as possibilidades não são necessariamente previsíveis, que aquilo que influencia não determina. O intuito, portanto, não foi delinear um caminho único, com teorias acabadas e que se pretendem absolutas. Pensamos que novos estudos, que tenham como ponto de partida uma perspectiva ampla, encarando o ser humano em sua totalidade e complexidade, podem esclarecer ainda mais nossa compreensão da realidade humana e de suas relações com o mundo. Ao mesmo tempo, na intenção de estudar as influências das crenças na organização do pensamento, a pesquisa traz também contribuições para a discussão acerca das relações entre o sujeito e a cultura, ao modo com o qual os elementos culturais são internalizados pelos sujeitos e até que ponto estes mesmos elementos passam a ser incorporados à forma de pensar do ser humano. E, neste sentido, os resultados de nossa pesquisa apontam para o fato de que os aspectos culturais, criações humanas que têm sua origem na vida social dos indivíduos, exercem sua parcela de influência, orientando o modo de pensar dos sujeitos e sua atuação no mundo e que, no pensamento humano, tais aspectos adquirem tanta importância quanto outros, de ordem cognitiva ou afetiva, por exemplo. Por outro lado, essa mesma cultura não pode ser vista como determinante na constituição da individualidade do ser humano, uma vez que, como discutido, as crenças (em especial as religiosas) não foram suficientes para orientar por si só a organização do pensamento diante das questões cotidianas, em direção à homogeneidade e constância dos raciocínios aplicados pelos sujeitos, já que atuam em meio a outros fatores subjetivos. Desta forma, estamos inclinados a considerar que a cultura, ao ser internalizada - através de aspectos como as crenças (que aqui elegemos para nosso estudo) - passa a fazer parte da dinâmica do funcionamento psíquico e mental do ser humano, mas não anula os demais fatores que influenciam este processo, tanto vinculados à própria dimensão sociocultural, como a demais dimensões do ser humano. Isso parece ser coerente com as perspectivas que consideram a relação entre a cultura e o indivíduo, bem como o processo de internalização desta pelo sujeito, de uma maneira não unilateral, apresentadas ao longo do presente artigo através das idéias de Morin (2002b), Vygotsky (1998) e Martins e Branco (2001). Assim, ao ser incorporada à individualidade do sujeito, os aspectos culturais passam, neste processo, pela subjetividade de cada ser humano, de forma que a internalização não representa simplesmente a reprodução dos elementos da cultura no indivíduo. Diante disso, ressaltamos que, em nossa opinião, qualquer estudo que tenha como objetivo compreender o funcionamento mental e psíquico do ser humano e sua atuação no mundo deve fazê-lo sempre levando em conta as influências exercidas pelo contexto cultural nesta dinâmica. Isto é, o ser humano não pode ser visto desvinculado da cultura e da sociedade nas quais se insere. Ademais, acreditamos que estudos futuros sobre as relações entre o funcionamento mental e a influência da cultura podem contribuir para uma compreensão ainda maior destes processos. Referências Bibliográficas Arantes, V.A. (2000). Estados de ânimo e os modelos organizadores do pensamento: um estudo exploratório sobre a resolução de conflitos morais. Tese de Doutorado. Barcelona: Facultat de Psicologia, Universitat de Barcelona. [ Links ] Araújo, U.F. (1999). Conto de Escola: a vergonha como um regulador moral. São Paulo: Moderna; Campinas: Editora UNICAMP. Araújo, U.F. (2003). A dimensão afetiva na psique humana e a educação em valores. Em: Arantes, V. (Ed.) Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 153-169). São Paulo: Summus. [ Links ] Martins, L.C. e Branco, A.U. (2001). Desenvolvimento moral: considerações teóricas a partir de uma abordagem sociocultural construtivista. Psicologia Teoria Pesq., 17 (2), 169-176. 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