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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.16 no.2 Rio de Janeiro ago. 2011

 

Artigo Científico

 

Entre corpo e percepção: a composição discursiva da figura de Jesus Cristo

 

Between body and perception: the discursive composition of Jesus Christ figure

 

 

Rubens César Baquião

Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

A figura de Jesus Cristo está presente em vários campos do pensamento ocidental. Nas representações contemporâneas de Cristo, os elementos sacros se atenuam enquanto evolui uma estética da imagem cristã com outros valores integrados. Entendemos que a figura de Cristo, no decorrer da história, recobre diversas axiologias e que não está relacionada apenas ao discurso religioso. A sintaxe discursiva que estrutura essas representações é um encadeamento de atos que conjuga a dimensão da intensidade (o sensível, o afetivo) e a dimensão da extensidade (o inteligível, o compreensível). A semiótica discursiva aprofunda-se nos conceitos fenomenológicos de corpo e percepção para analisar as transformações culturais em discursos produzidos em períodos históricos diferentes e em culturas distintas. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 030-049.

Palavras-chave: corpo; figuratividade; percepção.


Abstract

The figure of Jesus Christ is presented in many areas of occidental thought. In the contemporary representations of Christ, the sacred elements are to attenuate. There's an esthetic evolution of the christian image with other axiologies. We understand that the figure of Christ, in the course of history, involves different axiologies and this figure is not only in relationship with the religious discourse. The discursive syntax that organizes the representations of Christ is an assemblage of acts that conjugates the dimension of intensity (the sensibility, the affectivity) and the dimension of extensity (the intelligible, the comprehensible). The discursive semiotic investigates the phenomenological concepts of body and perception to analyzes the cultural transformations in discourses produced in different historical periods and in distinct cultures. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 030-049.

Keywords: body; figurativity; perception.


 

 

Introdução

A Linguística moderna surge a partir dos trabalhos de Ferdinand de Saussure e se desenvolve em várias linhas de pesquisa. Uma dessas correntes teóricas trata do estudo do discurso, que compreende a análise dos vários elementos linguísticos e também extralinguísticos (sociais e históricos) que compõem um texto. Entre as perspectivas que estudam o discurso destacam-se a Semiótica greimasiana e o Círculo de Bakhtin. O linguista lituano Greimas criou a escola francesa de Semiótica ao ampliar as teorias de Saussure e Hjemslev para a análise tanto de textos verbais quanto não-verbais (visuais, áudio-visuais, etc.). A Semiótica greimasiana se concentra no desenvolvimento constante de um instrumental analítico para examinar as diversas manifestações da linguagem. Bakhtin estudou os aspectos sociais e políticos da linguagem apoiado nas teorias marxistas e também se concentrou no estudo da literatura ao estabelecer novas teorias na análise do romance. Seus trabalhos se reúnem no chamado Círculo de Bakhtin, porque há muitas discussões sobre a autoria de textos que podem ser tanto de Bakhtin quanto de Volochinov ou Medvedev, que são contemporâneos de Bakhtin.

Mesmo com as diferenças conceituais entre as duas perspectivas, existem pontos de contato interessantes entre elas. Tanto o Círculo de Bakhtin quanto a Semiótica greimasiana desenvolveram estudos profundos calcados na fenomenologia, que é uma corrente filosófica cujas reflexões se concentram na percepção, no modo como a atividade sensório-motora define a existência humana. O conceito de corpo é fundamental no pensamento fenomenológico na medida em que os fenômenos físicos são percebidos pelas sensações corpóreas. O homem reconhece a existência dos fenômenos físicos por meio dos sentidos fisiológicos, que percebem tanto estímulos internos quanto externos em relação ao corpo. Assim, toda a experiência entre homem e mundo está ligada à atividade sensório-motora.

Neste artigo destacamos como objeto a figura de Jesus Cristo, pois entendemos que a imagem de Cristo estabiliza a ideia de sagrado na cultura ocidental e nosso intento é explorar o conceito de sagrado no discurso. As reflexões filosóficas, sociais e históricas do Círculo de Bakhtin fornecem a base contextual para a análise. Desse modo, acreditamos que os conceitos do Círculo de Bakhtin emprestarão um alcance sócio-histórico amplo e a Semiótica emprestará um instrumental analítico preciso para que se entenda o estabelecimento da figura de Cristo na cultura ocidental.

 

O conceito fenomenológico de corpo segundo Bakhtin

Como notórios pensadores que trabalharam com a fenomenologia, Bakhtin também refletiu sobre conceitos fenomenológicos como o corpo e a percepção. Ao trabalhar o conceito de corpo, Bakhtin classifica o corpo exterior como a experiência do homem com as imagens externas: a relação do sujeito com o corpo do outro é o "vivenciamento da imagem externa na autoconsciência e em relação a outra pessoa, das fronteiras externas do corpo e da ação física externa." (Bakhtin, 2003, p. 44). No entanto, a experiência do homem com o corpo exterior, o corpo do outro, não é uma relação direta, pois o corpo próprio se impõe como um corpo interior, carregado de conceitos, emoções, etc. Assim, toda relação com o corpo exterior e com as fronteiras externas do corpo está ligada à autoconsciência do corpo interior:

"O corpo interior - meu corpo enquanto elemento de minha autoconsciência - é um conjunto de sensações orgânicas interiores, de necessidades e desejos reunidos em torno de um centro interior: já o elemento externo [...] é fragmentário e não atinge autonomia e plenitude, tem sempre um equivalente interior que o leva a pertencer à unidade interior. Não posso reagir de forma imediata ao meu corpo exterior: todos os sons volitivo-emocionais diretos, que em mim estão ligados ao corpo, dizem respeito ao seu estado interior e às suas possibilidades como sofrimentos, gozos, paixões, satisfações, etc." (Bakhtin, 2003, p. 44)

A consciência que o homem tem de seu corpo exterior, de todas as relações com o corpo do outro e com as imagens externas, é atravessada pelos conceitos e emoções interiores. Só é possível experimentar a consciência do corpo em sua plenitude na relação significativa que há entre o corpo interior e o corpo exterior. É no seu relacionamento com o corpo exterior que o sujeito toma consciência dos elementos sociais e políticos de seu mundo. A noção de valores éticos se dá por meio da relação com o corpo do outro:

"Só o outro está personificado para mim em termos ético-axiológicos. Neste sentido, o corpo não é algo que se baste a si mesmo, necessita do outro, do seu reconhecimento e da sua atividade formadora. Só o corpo interior - a carne pesada - é dado ao próprio homem, o corpo exterior é antedado: ele deve criá-lo com seu ativismo." (Bakhtin, 2003, p. 48)

A experiência com o corpo interior está relacionada a experiência com o corpo exterior, já que conceitos e emoções são inerentes ao homem; mas a experiência com o corpo exterior só é alcançada por meio da ação vigorosa do sujeito no mundo de valores sociais e políticos no qual vive, pois este mundo axiológico é distinto da carne sensível que é o corpo. Entende-se que a distinção entre corpo exterior e corpo interior é teorizada para dar conta da relação de determinado sujeito com o corpo do outro (corpo exterior) e também com o seu corpo (corpo interior). Esta relação entre elementos externos (imagens e ações) e elementos internos (conceitos e emoções) é indissociável no contexto concreto da vida do sujeito.

 

O conceito fenomenológico de corpo segundo a semiótica discursiva

A Semiótica do discurso retoma conceitos da fenomenologia - com base principalmente nas reflexões do filósofo Merleau-Ponty - e o estudo da atividade sensório-motora passa a ser fundamental no conhecimento da significação. A semiótica tensiva, desenvolvida pelos trabalhos de Zilberberg e Fontanille, se concentra no estudo da interação entre o sensível e o inteligível no nível discursivo. O sensível é o campo dos afetos e sensações e o inteligível é o campo do entendimento e da compreensão. Segundo Fontanille, a sintaxe do discurso é um encadeamento e uma sobreposição de atos que conjuga a dimensão da intensidade (o sensível, o afetivo) e a dimensão da extensidade (o inteligível, o compreensível). Essas tensões estão relacionadas à percepção, ao modo como o corpo sofre a experiência da significação. Ao tratar da significação, a semiótica considera que a linguagem pode ser examinada em dois planos: o plano da expressão, que é a materialidade enunciada (fonética, gráfica, pictórica, etc) dos discursos e o plano do conteúdo, que é o campo dos conceitos ligados à expressão. Os conceitos são os significados, os sentidos semânticos vinculados à expressão da linguagem. Os dois planos da linguagem foram concebidos pelo linguista dinamarquês Hjemslev. Ao tratar dos dois planos da linguagem - plano da expressão e plano do conteúdo - Fontanille (2007, p. 30) diz que:

"Sejam quais forem os nomes que se lhes dê, os dois planos da linguagem são separados por um corpo perceptivo que toma posição no mundo do sentido, que define, graças a essa tomada de posição, a fronteira entre o que será da ordem da expressão (o mundo exterior) e o que será da ordem do conteúdo (o mundo interior). É também esse corpo que reúne esses dois planos em uma mesma linguagem. Portanto, o sensível e o inteligível estão irremediavelmente ligados no ato que reúne os dois planos da linguagem."

Fontanille (2007, p. 44) retoma e desenvolve os conceitos de exteroceptividade, interoceptividade e proprioceptividade a partir da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. A exteroceptividade é a percepção do mundo exterior, é o modo como o corpo percebe as formas físicas e biológicas do mundo natural (plano da expressão) e a interoceptivade é o momento em que o corpo percebe seu mundo interior: afetos e conceitos (plano do conteúdo). A proprioceptividade é a posição do sujeito da percepção, que experimenta a significação a partir de seu corpo próprio, que é um invólucro sensível, uma fronteira entre o domínio interior e o domínio exterior. O corpo próprio é mais que um mediador entre a exteroceptividade e a interoceptividade e sua atividade sensório-motora interfere na significação. O corpo percebe o ambiente que o interpela e converte as figuras do mundo (exteroceptivas) em figuras interiores (interoceptivas), que são equivalentes às figuras exteriores, mas que estão contaminadas pela dimensão patêmica (proprioceptiva) do corpo sensível. Além do corpo exterior (exteroceptivo) e do corpo interior (interoceptivo) o conceito de corpo próprio (proprioceptivo) define o momento em que o sujeito experimenta a significação em uma instância de legítima individualidade.

Assim, um mesmo discurso é entendido de maneiras diferentes por vários sujeitos porque cada um deles possui um corpo próprio que define um momento de sentido único. A proprioceptividade é a instância em que a sensibilidade singular - individualidade corpórea - do sujeito irá definir o sentido de um discurso.

 

Os esquemas tensivos

Para que se entenda melhor o modo como a semiótica trabalha a interação entre o sensível e o inteligível é importante discutir o conceito de presença. Segundo Fontanille (2007, p. 47):

"Perceber algo [...] é perceber mais ou menos intensamente uma presença. De fato, antes de identificar uma figura do mundo natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou "pressentimos") sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que, por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece."

Assim, a percepção da presença de um objeto ou de um afeto, é compreendida como uma articulação semiótica. Essa articulação pode ser analisada por meio dos conceitos de visada e apreensão dos fenômenos. A intensidade sensorial que nos coloca em relação com o mundo, de natureza tensa, se situa no domínio da visada. A compreensão inteligível dos fenômenos, de qualidade extensa, se caracteriza pelo relaxamento cognitivo e se situa no domínio da apreensão. De modo que a presença suscita duas operações semióticas no plano da percepção: a visada (intensa) e a apreensão (extensa). Nesse sentido, os conceitos de visada e apreensão são compreendidos a partir de um ponto de vista fenomenológico:

"Como é uma tomada de posição sensível, destinada a instalar uma área de referência, ela consiste também em uma tomada de posição sobre as grandes dimensões da sensibilidade perceptiva: a intensidade e a extensão. No caso da intensidade, dir-se-á que a tomada de posição é uma visada; no caso da extensão, uma apreensão. A visada opera sobre o modo da intensidade: o corpo próprio vai, então, em direção àquilo que nele suscita uma intensidade sensível (perceptiva, afetiva). A apreensão opera, em contrapartida, sobre o modo da extensão: o corpo próprio percebe as posições, as distâncias, as dimensões e as quantidades." (Fontanille, 2007, p. 98)

Zilberberg e Fontanille desenvolveram esquemas que possibilitam analisar a interação enunciativa entre a sensibilidade e a inteligibilidade, estes esquemas são uma das bases da semiótica tensiva. Os esquemas tensivos representam as variações de tensão no campo de presença da percepção, de forma que a significação é gerada a partir de tensões na atividade sensório-motora. O domínio sensorial-afetivo (sensível) é identificado na evolução do eixo da intensidade e o domínio racional-quantitativo (inteligível) é reconhecido no desdobramento do eixo da extensão (este eixo também representa o desdobramento espaço-temporal). As variações de equilíbrio entre o sensível e o inteligível podem conduzir ao aumento da tensão afetiva ou ao relaxamento cognitivo. São teorizados quatro esquemas elementares para representar a interação tensiva entre sensível e inteligível:

1º movimento - Esquema da decadência: Orienta-se a partir do eixo da intensidade na direção do eixo da extensão, parte do sensível para o inteligível. Pode-se compreender esse esquema ao analisar a edição de um filme que enquadra o rosto de um ator em um close-up, para destacar um estado emocional, e que depois amplia o campo para enquadrar o cenário e outros atores em um plano panorâmico. Essa edição parte da intensidade, do sensível, e se desdobra na extensão, no inteligível.

 

Esquema 1 - Esquema da decadência (Adaptação do esquema de Fontanille, 2007, p. 111).

 

2º movimento - Esquema da ascendência: Orienta-se a partir do eixo da extensão na direção do eixo da intensidade, parte do inteligível para o sensível. É o contrário do exemplo anterior: seria uma edição de filme que parte de um plano amplo, extenso, que enquadra uma paisagem e vários atores, e se aproxima do rosto de um único ator para enquadrar um estado emocional intenso.

 

Esquema 2 - Esquema da ascendência (Adaptação do esquema de Fontanille, 2007, p. 111).

 

3º movimento - Esquema da amplificação: O sensível e o inteligível crescem em conjunto. Esse movimento parte de um mínimo de intensidade e de uma extensão fraca e se desenvolve em uma tensão máxima juntamente com o desdobramento da extensão. É o que acontece em várias sinfonias, que se iniciam com um solo tocado de forma suave por um único instrumento e se desenvolvem até a explosão do conjunto intenso de todos os instrumentos.

 

Esquema 3 - Esquema da amplificação (Adaptação do esquema de Fontanille, 2007, p. 112).

 

4º movimento - Esquema da atenuação: É o declínio geral da intensidade-sensível e da extensão-inteligível. Tanto o sensível quanto o inteligível estão no grau mais baixo, na zona mais tênue, esta seria a zona do apagamento das figuras, mas onde é possível surgirem novas formas semióticas. É o caso da filosofia zen-budista, que busca a atenuação do sensível, o apagamento dos sentidos, e também o apagamento do inteligível por meio do "não-pensar". É também nesta zona de apagamento que o zen-budista pode alcançar a iluminação, que seria uma nova forma semiótica.

 

Esquema 4 - Esquema da atenuação (Adaptação do esquema de Fontanille, 2007, p. 112).

 

Estes são os esquemas desenvolvidos para delimitar as variações tensivas e que formam o esquema da práxis enunciativa, que será explicado e aplicado no decorrer deste artigo.

 

O corpo como valor sagrado

Entre os trabalhos do Bakhtin fenomenólogo destaca-se seu estudo sobre o processo de construção do conceito de homem - entende-se, aqui, homem como valor. Bakhtin compreende que os valores éticos, estéticos e religiosos são fundamentais na formação do homem e que todos esses valores podem ser examinados no decorrer da história do corpo humano. Bakhtin reflete sobre a relação entre corpo interior e corpo exterior desde a pré-história até o estabelecimento do pensamento cristão.

Na pré-história, o significado do corpo exterior (o outro) determinava o reconhecimento do conceito de homem. O corpo humano era valorizado em seu aspecto plástico e era por meio desse relacionamento estético que o homem primitivo se reconhecia e se instituía como ser. Quando predominava a noção de corpo exterior na concepção de homem, este se reconhecia e se fazia presente em termos plásticos:

"Assim era o homem na Antiguidade na época do seu florescimento. Todo o corpóreo era consagrado pela categoria de outro, vivenciado como valor imediato, e a autodeterminação significativa, internamente axiológica, subordinava-se à determinação externa através do outro e para o outro, o eu-para-mim dissolvia-se no eu-para-o-outro. Vivenciava-se o corpo interior como valor biológico [...] O reflexo gnosiológico e o idealismo puro estavam ausentes. O elemento sexual não predominava, de modo algum, ele é hostil à plasticidade." (Bakhtin, 2003, p. 49)

A relação que o homem pré-histórico tinha com seu corpo era de natureza plástica e predominavam os valores externos. A experiência com o corpo interior era desprovida de reflexões e idealizações e também não havia a relação entre a noção de divindade e o corpo interior, este era reconhecido só em seu aspecto biológico. O sexo, uma das formas mais antigas de relação entre o corpo humano e a ideia de divindade, era um elemento de pouco destaque, pois sua representação comprometia a noção estético/plástica do corpo exterior 1. O sexo é uma característica fundamental no desenvolvimento ético-estético-religioso do corpo humano, é por meio da sexualidade que o homem trava contato mais íntimo com o corpo interior:

"No movimento dionisíaco predomina o esbanjamento interior mas não solitário do corpo. Intensifica-se a sexualidade. Os limites plásticos começam a cair. O homem plasticamente acabado - o outro - afunda num vivenciamento intracorpóreo amorfo porém único. O eu-para-mim ainda não está isolado nem se contrapõe aos outros como categoria essencialmente distinta de vivenciamento do homem. O terreno para isto está apenas sendo preparado." (Bakhtin, 2003, p. 49)

Com o surgimento dos cultos de Dionísio, deus do vinho, da orgia e das artes, na Grécia arcaica, o homem passou a entrar em contato mais íntimo com a própria sexualidade e, dessa maneira, a reconhecer melhor seu corpo interior, carregado de emoções e sensações que o levavam ao êxtase. Tudo isso era favorecido pela sacralização da embriaguez e da sensualidade, que eram meios de se alcançar um estado divino de delírio dionisíaco e entrar em contato com o deus: a epifania. Foi desse modo que a plasticidade do corpo se atenuou e a relação com o interior do corpo se intensificou, a idéia de um elemento espiritual no corpo começou a se desenvolver. Mas o corpo ainda estava em vias de se espiritualizar.

"O epicurismo ocupa uma posição intermediária original: nessa corrente, o corpo se torna um organismo, é um corpo interior [...] mas todos os elementos plástico-picturais já estão apagados. Uma leve ascese marca a antecipação do peso da solidão interior do corpo na idéia de homem, agregada à categoria de eu-para-mim como espírito." (Bakhtin, 2003, p. 50)

O epicurismo surgiu na Grécia do período helenista, após a abertura comercial e cultural entre ocidente e oriente, efetuada pelas conquistas militares de Alexandre Magno. Nesse período, o mundo grego travava contato estreito com as religiões orientais como o mitraísmo e o budismo. Segundo o epicurismo, os prazeres espirituais devem se sobrepor aos prazeres sensuais, mas o corpo não é negado e os epicuristas consideram que os próprios deuses são seres corpóreos, embora possuam uma matéria mais sutil que a do corpo humano. Ainda persistia a intensidade das ideias pagãs. Mas é com o surgimento de uma leve negação do corpo, pregada por Epicuro, no século IV antes de Cristo, que a categoria do eu-para-mim, que foi levemente percebida no período dionisíaco, começou a se desenvolver na concepção de um corpo interior espiritual. No entanto, a concepção desenvolvida de espírito ainda não se efetuou no epicurismo, essa noção se desenvolveu no neoplatonismo.

Plotino instituiu a escola filosófica neoplatônica em Alexandria no século II depois de Cristo. Essa nova escola, de origem platônica, misturava aos princípios filosóficos de Platão elementos estóicos, gnósticos, judeus, cristãos, orientais etc. Seu pensamento se difundiu amplamente pelo mediterrâneo e sua aceitação em Roma foi uma das bases do cristianismo católico, que é uma consequência do pensamento helenista caracterizado por uma proximidade de ideias ocidentais e orientais. Segundo Plotino, toda a existência se concentra no único, todas as coisas existentes emanam de uma unidade que remete ao uno supremo. Segundo essa escola filosófica altamente religiosa, o eu-para-mim e o eu-para-o-outro são elementos que emanam de uma mesma unidade e tanto o eu quanto o outro são aspectos desse único. É assim que o corpóreo é negado e o espiritual é instituído, já que tanto a noção do corpo interior quanto a noção do corpo exterior emanam diretamente da ideia de unidade transcendental. Esse percurso de espiritualização do corpo na concepção do homem encontra seu ponto culminante no estabelecimento do pensamento cristão:

"Para Cristo, todos os homens se dissolvem nele como o único e em todos os outros homens; nele, que perdoa, e nos outros, os perdoados; nele, o salvador, e em todos os outros, os salvos; nele, que assume o fardo do pecado e da expiação, e em todos os outros, libertos desse fardo e purificados. Daí que em todas as normas de Cristo contrapõe-se o eu ao outro; o sacrifício absoluto para mim e o perdão para o outro." (Bakhtin, 2003, p. 52)

O problema da relação entre o eu e o outro no cristianismo é resolvido no pensamento da compaixão de Cristo por todos os homens. Cristo é o corpo que envolve todos os outros corpos em uma unicidade corpórea absoluta não-egoísta. O eu e o outro se encontram e se entendem no pensamento da doutrina cristã.

Segundo Bakhtin, a noção que temos do corpo exterior determina a ideia do corpo interior e assim reciprocamente. O homem percebe e participa do mundo por meio da relação entre corpo exterior e corpo interior. O que determina a particularidade de uma cultura são, entre outras coisas, essas relações perceptivas complexas, nas quais o corpo interior se impõe e, ao mesmo tempo, sofre imposição do corpo exterior.

 

As várias faces de Cristo

Destacamos alguns textos visuais e sincréticos - pinturas e propagandas publicitárias - que retratam a figura de Jesus Cristo. Foram escolhidas imagens de diversos períodos históricos da cultura ocidental propositalmente, para demonstrar que a caracterização da figura de Cristo está vinculada a sua produção sócio-histórica. As diferenças nos elementos que caracterizam Cristo em cada imagem estão ligadas ao universo cultural no qual os discursos foram produzidos. Os valores de uma determinada cultura interferem na sua compreensão do cristianismo, assim como o cristianismo interfere nos valores da cultura que o acolhe.

Este mosaico foi produzido no primeiro século após a instituição do cristianismo como religião oficial do Império Romano pelo imperador Constantino. Cristo segura um texto em latim cuja tradução é "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" e é representado como um guerreiro que veste os trajes de legionário romano. A cultura romana se apropria dessa personagem da tradição judaica, cuja origem é a cultura oriental, e a representa com elementos próprios dos romanos, que são uma cultura ocidental. As primeiras figuras romanas de Cristo não têm barba porque a tradição romana costumava identificá-lo ao imperador que, geralmente, não usava barba. A sociedade pagã romana valorizava a figura do herói épico, por isso, nesse mosaico, Cristo assume os valores da cultura que o representa e o tema é o da militância. Cristo é representado como um guerreiro vencedor, pois ele é capaz de subjugar a figura do leão e da serpente (essas figuras são pejorativas tanto nos mitos hebraicos quanto nos mitos greco-romanos: a serpente é a sedutora que introduz o pecado original e tanto Sansão, herói judeu, quanto Hércules, herói greco-romano, lutam contra o leão). É interessante notar nesse mosaico que a cultura que, segundo os textos religiosos, crucificou Cristo, não o representa crucificado. Jesus segura a cruz como uma arma (uma lança, talvez), assim, a cruz não é usada para "subjugá-lo" mas pode ser usada por ele para vencer os inimigos.

Figura 1

Figura 1 - Mosaico romano do século V (Hadas, 1969, p. 186).

Figura 2

Figura 2 - A coroação de espinhos (Bosch, 1968, p. 9).

Essa pintura de Hieronymus Bosch foi produzida cerca de mil anos depois do mosaico romano. Nesse período o império romano já havia caído e uma das instituições mais poderosas da época era a Igreja Católica, cuja origem é justamente o Império Romano. Nessa pintura, Jesus observa o enunciatário de forma passiva e aceita o sofrimento imposto a ele, pois o martírio é necessário para que ele cumpra seu papel de redentor dos pecados da humanidade. Nessa pintura, o discurso do cordeiro expiatório dos pecados se sobrepõe ao discurso da militância do texto anterior. O discurso de aceitação do sofrimento, característico do cristianismo medieval, se afasta do discurso heróico-pagão do Império Romano. Cristo não oferece resistência aos seus algozes e aceita de forma passiva A coroação de espinhos, que é o nome e o tema da pintura. Os cabelos e a barba ruiva assemelham Cristo ao perfil do norte da Europa (pele e cabelos claros), que é a cultura onde o texto foi produzido. Torna-se tradição representar Cristo com barba nesse período e nos períodos posteriores.

 

Figura 3 - A elevação da cruz (Rubens, 1994, p. 20).

 

Esta é uma pintura do século XVII, de Rubens, que se chama A Elevação da Cruz. Ela foi produzida cerca de um século após a pintura A Coroação de Espinhos, de Bosch. Essa pintura retrata o momento culminante do martírio de Cristo, pois este está em conjunção com o sofrimento que o possibilita expiar os pecados da humanidade. Nesse caso, o heroísmo do mártir difere do heroísmo do guerreiro romano, pois Cristo precisa sofrer e morrer para estar em conjunção com a dor da expiação e tornar-se competente para salvar a humanidade. A cruz, que no mosaico romano era uma arma nas mãos do Cristo militante, se torna um instrumento usado para torturá-lo e matá-lo. Cristo aceita seu corpo ser pregado e elevado na cruz. A religião cristã, que se origina da apropriação pelos romanos pagãos de uma tradição monoteísta do oriente (o sectarismo judaico-cristão), torna-se a religião dominante na Europa desse período.

Figura 4

Figura 4 - A cruz do anjo (Bosch, 1968, p. 22).

Este trabalho de Salvador Dalí, de 1959, chama-se A cruz do Anjo. Nesse período, Dalí estava na fase conhecida como misticismo-nuclear, em que o pintor era influenciado pelas descobertas da física atômica. O discurso científico, no século XX, passa a ocupar o lugar do discurso religioso. Os elementos geométricos na obra mostram a influência da mecânica quântica na obra de Dalí, o cubo é uma figura geométrica perfeita, suas faces regulares são idênticas, assim como o Cristo e a cruz compartilham uma identidade regular. A esfera, na parte inferior direita do quadro, também é um símbolo geométrico da perfeição. Percebe-se que a ciência proporciona uma nova visão de mundo ao homem do século XX. O conhecimento científico da anatomia humana também influencia na composição deste trabalho. O sangue do corpo de Cristo é o sangue da cruz e as raízes da cruz se assemelham a um sistema circulatório. O Cristo crucificado se enraíza no inconsciente da cultura ocidental: uma alusão figurativa às teorias da psicanálise, que influenciaram o surrealismo de Salvador Dalí. Cristo não tem rosto porque ele e a cruz são um só, e seus dedos são prolongações do braço da cruz. A cor azul, que está relacionada ao céu, ao espírito e à serenidade, é o lugar onde as raízes crescem, estas, de cor vermelha, transmitem a ideia de carne e sofrimento em oposição à serenidade espiritual da cor azul. A base azul onde a cruz está enraizada é atravessada por agulhas que figurativizam a dor da crucificação. As raízes vermelhas se misturam ao azul, o sofrimento da carne se mescla à serenidade do espírito, é por meio do martírio da carne que se alcança a imortalidade no céu.

Figura 5

Figura 5 - Propaganda da cachaça Sagatiba 1 (Sagatiba, 2004, p. 48).

Esta imagem é uma propaganda da cachaça Sagatiba, publicada na revista Playboy em 2004. A figura central é um jovem representado com barba e cabelo longo, do mesmo modo como a figura de Cristo é tradicionalmente representada. A posição desse jovem remete à posição de Cristo na cruz por meio da iconicidade. Segundo Fontanille: "O ícone é o momento da estabilização de uma figura reconhecida enquanto tal" (Fontanille, 2005: 110). O enunciatário reconhece a posição icônica na qual Cristo é representado e imediatamente a relaciona à posição do jovem da propaganda de cachaça. A cruz, instrumento de tortura, é substituída por um taco de sinuca, instrumento usado para diversão. O espaço onde o jovem está é o de um bar, é um lugar relacionado ao prazer e não ao sofrimento do martírio. O jovem veste camiseta e calças jeans como qualquer jovem frequentador de bares. Se considerarmos que a revista Playboy é uma publicação de natureza hedonista, entenderemos que este Cristo convive de forma natural com o prazer carnal, ainda mais porque a propaganda de cachaça divide seu espaço com belas mulheres nuas e propagandas de carros de luxo no interior da revista.

Figura 6

Figura 6 - Propaganda da cachaça Sagatiba 2 (Sagatiba, 2004, p. 49).

Esta imagem é parte conjunta da anterior, as duas ocupam simultaneamente duas páginas no interior da revista. Na parte inferior esquerda, há uma foto da garrafa de cachaça Sagatiba e, abaixo da foto, o texto "puro espírito do Brasil". Aqui o termo espírito faz menção ao conteúdo do sagrado que é transposto ao espaço da orgia. A figura de Cristo ocupa a parte central da imagem e é carregada por várias pessoas, como em um stage dive, que se costuma fazer em shows de rock'n'roll. Cristo, relacionado ao termo espírito, desloca o conceito de sagrado ligado ao martírio e vincula o sagrado aos prazeres carnais como a dança e a embriaguez. Cristo deixa de ser o cordeiro expiatório e se assemelha mais ao deus grego Dionísio, cujo culto privilegia o êxtase dos prazeres carnais. A particularidade deste enunciado consiste em vincular o sagrado e o profano, mesmo se referindo a outros enunciados "cristãos", o texto se estrutura de forma única, pois atenua o tema do martírio geralmente vinculado à figura de Cristo e a integra no interior de uma cultura hedonista.

 

Práxis enunciativa e semiosfera

A práxis enunciativa é um conceito introduzido em semiótica por Greimas no final da década de 1980 e desenvolvido por outros semioticistas como Bertrand, Fontanille e Zilberberg. Fontanille (2007, p. 109) define a práxis enunciativa como um "conjunto aberto de enunciações encadeadas e sobrepostas no interior do qual se introduz cada enunciação singular.". Entende-se que toda enunciação integra elementos de outras enunciações, mas cada enunciação se caracteriza por uma particularidade que a diferencia das enunciações com as quais se relaciona. Segundo Fontanille (2007, p. 271-272):

"A práxis enunciativa administra essa presença de grandezas discursivas no campo do discurso: ela convoca ou invoca no discurso os enunciados que compõem o campo. Ela os assume mais ou menos, ela lhes atribui graus de intensidade e uma certa quantidade. Ela recupera formas esquematizadas pelo uso ou, ainda, estereótipos e estruturas cristalizadas. Ela as reproduz tais como são ou as desvirtua e lhes fornece novas significações. Ela também apresenta outras formas e estruturas, inovando de forma explosiva, assumindo-as como irredutivelmente singulares ou propondo-as para um uso mais amplamente difundido."

É na instância da práxis enunciativa que ocorrem as mudanças nos enunciados que compõem os discursos, mudanças dinâmicas que acontecem na linguagem. É a práxis que remodela os elementos discursivos ao recuperar formas e estruturas já conhecidas ou ao apresentar novas formas e estruturas. A práxis apresenta os enunciados do modo como já são conhecidos em seu uso ou os altera para que adquiram novas significações. É assim que figuras amplamente conhecidas (como a da cruz, que é um instrumento de tortura antigo) adquirem novas significações ao serem representadas com elementos discursivos diferentes (a cruz também é uma figura que remete ao tema da salvação no discurso da religião cristã). A práxis recupera essas figuras e as remodela fornecendo-lhes elementos novos que se manifestam em discursos originais.

Fontanille se apropria do conceito de semiosfera, desenvolvido pela semiótica russa, e o conjuga ao conceito de práxis enunciativa. A práxis seria o domínio no qual um discurso particular se sobrepõe a outros discursos com os quais se relaciona e a semiosfera seria o campo no qual ocorre o diálogo entre diferentes concepções culturais.

"A semiosfera é o domínio no qual os sujeitos de uma cultura experenciam a significação. A experiência semiótica na semiosfera antecede, segundo Lotman, a produção dos discursos, pois ela é uma de suas condições. A semiosfera é, antes de tudo, o domínio que permite a uma cultura definir-se e situar-se para poder dialogar com outras culturas. É também um campo cujo funcionamento dialógico tem por principal tarefa regular e resolver as heterogeneidades semioculturais." (Fontanille, 2007, p. 282-283)

A semiosfera é a instância na qual as diferenças culturais se integram de forma harmoniosa no discurso. As diferenças entre elementos contraditórios de culturas distintas são resolvidas na semiosfera. Assim, na enunciação, determinada cultura recebe em seu interior uma cultura exterior que lhe é estranha. A contribuição exterior é percebida de forma intensa e a cultura hospedeira irá modificá-la - no campo de presença espaço-temporal - de forma que o estranho passe a ser difundido como algo familiar. A cultura hospedeira assimila a cultura estrangeira modificando suas especificidades exteriores (que são percebidas na intensidade sensível) e atenuando - no desdobramento da extensidade espaço-temporal - o impacto do estranho. A contribuição exterior é modificada e se torna um signo de caráter universal. Fontanille desenvolve um esquema que une o conceito de práxis enunciativa ao conceito de semiosfera:

"Conseqüentemente, a práxis atua em duas dimensões essenciais: a intensidade, de um lado, e a quantidade, de outro. Portanto, seu campo de exercício, a semiosfera, acolhe as contribuições e transforma-as em quatro fases definidas como: (1) tipos A e B: a intensidade e a extensão evoluem em razão inversa uma da outra. Em A, a irrupção explosiva da contribuição exterior engendra um afeto intenso, mas sem extensão. Em B, a difusão compre seu papel, e a contribuição exterior é, ao mesmo tempo, domesticada, negociada, diluída e integrada: o campo inteiro é afetado por ela, mas fracamente; (2) tipos C e D: a intensidade e a extensão evoluem na mesma direção, conjuntamente. Em C, tanto a extensão como a intensidade estão no grau mais baixo. Em D, a amplificação - enfática, conquistadora e normativa - cumpre seu papel e tange ao mesmo tempo a intensidade (do reconhecimento) e a extensão (da difusão). O esquema da semiosfera toma, então, a seguinte forma:"

 

Esquema 5 - Práxis enunciativa e semiosfera (Adaptação do esquema de Fontanille, 2007, p. 285).

 

Esse esquema possibilita analisar o processo perceptivo da significação e, para demonstração, será aplicado na sexta figura em anexo, a propaganda da cachaça Sagatiba 2.

A figura de Jesus Cristo, tradicionalmente relacionada ao martírio e ao ascetismo, é percebida de forma intensa (em A) no interior da cultura hospedeira, de natureza hedonista, que a acolhe. Ocorre a exclusão de elementos específicos (em C) que estão ligados à tortura física da crucificação e a figura de Cristo é integrada e difundida de forma familiar (em B) no interior da cultura que a assimila. Em D, a figura de Cristo se desdobra com ênfase tanto na intensidade (do reconhecimento do estranho) quanto na extensidade (da difusão do familiar) e instaura um novo discurso que se sobrepõe aos discursos anteriores, que relacionam Cristo ao martírio da expiação. Nesse enunciado, os elementos relacionados ao sofrimento do corpo crucificado são diluídos e a figura de Cristo é integrada a uma cultura hedonista que a difunde de forma familiar. Segundo Fontanille e Zilberberg:

"A universalização de uma forma poderia até mesmo [...] ser definida como o descarte da práxis que a produziu. A zona crítica do "desdobramento universal" é, na verdade, o local onde se introduz um metadiscurso que redefine até o próprio referente do discurso e da cultura. Nesse sentido, é em tal zona que se realizam e estabilizam os remanejamentos do campo discursivo, para formar novos 'universos'". (Fontanille & Zilberberg, 2001, p. 196)

Um discurso, embora esteja encadeado a outros discursos, possui uma singularidade que o diferencia como uma práxis particular. Essa singularidade que define um discurso, mesmo ligado a outros, ocorre na zona que Fontanille e Zilberberg (2001: 196) chamam de "desdobramento universal". Essa é a delimitação espacial esquemática em que se identifica a unidade singular de um discurso. O esquema da práxis enunciativa é uma forma de analisar o campo perceptivo da enunciação em seu processo. A aplicação do esquema da práxis enunciativa, complementado pela semiosfera, possibilita destacar elementos que estabilizam um novo discurso de forma única.

A figura singular de Jesus Cristo sofre modificações de acordo com os valores da cultura que a representa e também modifica a cultura que a acolhe. Com o arcabouço da semiótica discursiva, é possível identificar a ocorrência das transformações culturais ao analisar discursos produzidos em períodos históricos diferentes e em culturas distintas.

 

Considerações finais

A figura de Jesus Cristo está presente em vários campos do pensamento ocidental. As reflexões de Bakhtin sobre o desenvolvimento da concepção de espírito e sobre a origem do cristianismo e nossa análise da imagem de Cristo, nos permitem expor algumas hipóteses sobre o estatuto do cristianismo nos dias contemporâneos. Na propaganda de cachaça Sagatiba, o martírio cristão tradicional é descartado e a figura de Cristo - que continua reconhecível porque se fixa de forma icônica - é representada com outros valores integrados, como o prazer e a diversão. Bakhtin disse que o problema da relação entre o eu (corpo interior) e o outro (corpo exterior) era resolvido na doutrina cristã porque Cristo é um corpo espiritual que une todos os outros corpos em uma unidade absoluta. A noção do poder espiritual de Cristo no pensamento ocidental possibilitou o entendimento e a integração dos valores internos e externos no conceito de homem. Isso porque os valores divergentes do eu e do outro- conceitos fundamentais no desenvolvimento do pensamento humano - são conciliados na noção de compaixão e martírio cristãos. É na ideia da compaixão de Cristo que o eu e o outro compartilham um espaço de valores comuns. Mas na figura hedonista de Cristo da propaganda de cachaça Sagatiba, os valores cristãos-sacros se atenuam enquanto evolui uma estética da imagem de Cristo com outros valores integrados. A figura de Cristo continua reconhecível, mas o sagrado martírio deixa de ser um discurso central na contemporaneidade.

Segundo o sociólogo Maffesoli (2006, p. 31), a estrutura social da modernidade, que se organiza na função do indivíduo em um cenário industrial de ordem econômica e política, evolui para uma estrutura complexa em fins do século XX. Nesse novo cenário, os indivíduos tendem a se cristalizar em grupos nos quais se identificam por meio da vestimenta e da música, por exemplo. Maffesoli compreende que essas "tribos pós-modernas" caracterizam-se pelo hedonismo e que, nesses grupos, "[...] o que está em jogo é a exaltação da vida no que tem de sensível e afetuoso. O ascetismo, a contenção, a limitação, próprios da educação judaico-cristã, não têm mais curso. Prevalece apenas a consumação do instante. Alegria dos sentidos que alia o espírito e o corpo, celebrando a inteireza do ser" (Maffesoli, 2007, p. 42). Na propaganda de cachaça Sagatiba percebe-se a integração da figura de Cristo em um cenário hedonista. Ao compreender que o martírio e a compaixão (que são pontos fundamentais no contato entre o eu e o outro na religião cristã) são atenuados na imagem de Cristo, evidencia-se o declínio do discurso religioso político/institucional. Assim, o ícone cristão identifica-se com um grupo que valoriza a estética pessoal e os prazeres corpóreos. O eu e o outro passam a se relacionar pelo afeto e não pela compaixão. Os símbolos e figuras religiosos e políticos são elementos fundamentais no campo cultural e as mudanças nos valores relacionados a essas figuras refletem (e refratam) mudanças na organização social. Rousseau (1999, p. 143) refletiu sobre isso quando escreveu sobre o estabelecimento de exércitos cristãos na Roma pagã:

"Sob os imperadores pagãos, os soldados cristãos eram valentes. Todos os autores cristãos assim o dizem e eu o creio: era uma emulação de honra contra as tropas pagãs. Desde que os imperadores foram cristãos esta emulação deixou de existir, e quando a cruz substituiu à águia, toda a coragem romana desapareceu."

Rousseau identifica a valentia dos exércitos cristãos romanos como um fator ligado aos valores pagãos. Essa valentia militar, segundo Rousseau, desaparece com a aceitação do cristianismo por parte dos imperadores romanos. A compaixão cristã dilui os valores heróicos dos soldados romanos. É interessante que Rousseau credita o desaparecimento da coragem militar romana à substituição do estandarte romano da águia (exaltação da força e imposição bélicas) pela cruz (exaltação da compaixão e submissão pacíficas). Assim, é possível que a mudança em um único elemento cultural - entende-se a cruz como um símbolo político/religioso - altere os valores de toda uma sociedade. Do mesmo modo, compreendemos que a identificação entre a figura de Cristo e o grupo hedonista, representados na propaganda publicitária, revela mudanças nos valores religiosos da sociedade contemporânea. Nesse caso, percebe-se a diluição do martírio na figura de Cristo, que é integrada à estética dos grupos contemporâneos.

Entende-se que uma sociedade é composta por meio do estabelecimento e da organização dos diversos elementos que estruturam sua linguagem. Qualquer alteração em um desses elementos irá repercutir no campo cultural e, por consequência, em toda a sociedade. A explicação e a previsão das mudanças históricas e sociais residem na análise das estruturas imanentes da linguagem e também no estudo das áreas mais amplas do discurso.

 

Referências bibliográficas

Bakhtin, M. (2003). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes.         [ Links ]

Bosch, H. (1968). Gênios da pintura nº 39. São Paulo: Editora Abril.         [ Links ]

Fontanille, J. (2007). Semiótica do discurso. São Paulo: Editora Contexto.         [ Links ]

Fontanille, J. (2005). Significação e Visualidade - exercícios práticos. Porto Alegre: Editora Sulina.         [ Links ]

Fontanille, J. & Zilberberg, C. (2001). Tensão e Significação. São Paulo: Editora Humanitas.         [ Links ]

Hadas, M. (1969). Roma Imperial. Rio de Janeiro: José Olympio.         [ Links ]

Maffesoli, M. (2007). O ritmo da vida, variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Editora Record.         [ Links ]

Maffesoli, M. (2006). O tempo das tribos, o declínio do individualismo nas sociedades de assa. Rio de Janeiro: Editora Forense.         [ Links ]

Rousseau, J.J. (1999). O Contrato Social, princípios de direito político. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

Rubens, P.P. (1994). Rubens. London: Park Line.         [ Links ]

Sagatiba (setembro, 2004). Puro espírito do Brasil. Playboy, 350, 49.

 

 

Notas

(1) Bakhtin fez essa reflexão com base no conhecimento arqueológico de sua época. Hoje, com a descoberta de vários sítios arqueológicos pré-históricos, principalmente no Brasil, sabemos que o homem pré-histórico já representava, com destaque, o sexo em suas pinturas.

R.C. Baquião
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