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Ciências & Cognição
versão On-line ISSN 1806-5821
Ciênc. cogn. vol.17 no.2 Rio de Janeiro set. 2012
Artigo Científico
Aspectos qualitativos na prática da avaliação neuropsicológica
The qualitative aspects in practice of the neuropsychology assessment
Monah Winograd; Milena Vasconcelos Martins de Jesus; Emmy Uehara
Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
É consenso entre os profissionais de neuropsicologia que os resultados quantitativos dos testes neuropsicológicos refletem a maturidade conceitual e o nível cognitivo dos pacientes. Sabe-se que muitas variáveis podem interferir no desempenho dos indivíduos durante a realização dos testes, sendo a avaliação qualitativa tão importante quanto à avaliação quantitativa. Com o objetivo de averiguar a atribuição da importância atribuída à avaliação qualitativa por neuropsicólogos em sua prática clínica, foi realizada uma pesquisa qualitativa composta por uma entrevista semiestruturada com 11 profissionais da área. Os resultados foram organizados em 13 princípios de classificação e deram origem a 31 categorias, das quais 27 abordaram os aspectos qualitativos. Os dados encontrados permitiram concluir que a importância dada pelos neuropsicólogos à avaliação qualitativa ainda está muito aquém do necessário. Novas estratégias devem ser traçadas a fim de aprimorar a formação do profissional da neuropsicologia, visando um olhar mais global do funcionamento cognitivo e sócio-afetivo. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 002-013.
Palavras-chave: neuropsicologia; avaliação neuropsicológica; avaliação quantitativa; avaliação qualitativa.
Abstract
For neuropsychologists, the quantitative results of the neuropsychological tests reflect the conceptual maturity and cognitive level of patients. It is known that many variables can affect the performance of individuals during the tests, and qualitative evaluation as important as the quantitative assessment. In order to investigate the allocation of the emphasis on qualitative evaluation by neuropsychologists in clinical practice, we conducted a qualitative study consisting of a semi-structured interviews with 11 professionals. The results were organized into 13 principles of classification and resulted in 31 categories, of which 27 dealt with the qualitative aspects. The data obtained showed that the importance given by neuropsychologists qualitative evaluation is still very short. New strategies must be drawn in order to improve the professional training of neuropsychology, seeking a more global cognitive and socio-affective. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 002-013.
Keywords: neuropsychology; neuropsychological assessment; qualitative assessment; quantitative assessment.
Introdução
A neuropsicologia é a ciência que estuda a relação entre o comportamento e o funcionamento cerebral em condições normais ou patológicas. Em outras palavras, ela busca compreender as funções mentais e sua relação com o funcionamento neurológico (Capovilla, 2007). Mais detalhadamente, a neuropsicologia entende os processos mentais como sistemas funcionais complexos, não localizáveis em estreitas e circunscritas áreas do cérebro e ocorrendo com a participação de grupos de estruturas cerebrais, cada uma das quais contribuindo de modo diferenciado para a organização do sistema funcional em questão (Luria, 1981). De acordo com Lezak, Howieson e Loring (2004), a avaliação neuropsicológica ocupa lugar central na neuropsicologia por auxiliar na investigação das funções mentais, particularmente as funções cognitivas. Em resumo, a avaliação neuropsicológica é uma estratégia investigativa destinada a identificar, obter e proporcionar dados e informações sobre o funcionamento mental dos sujeitos.
Segundo Mäder (1996), os objetivos da avaliação neuropsicológica são basicamente auxiliar o diagnóstico diferencial, estabelecer a presença ou não de disfunção cognitiva e o nível de funcionamento em relação ao nível ocupacional e localizar alterações sutis a fim de detectar disfunções ainda em estágios iniciais. Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo e Cosenza (2008) ressaltam que as principais razões para se solicitar uma avaliação neuropsicológica são:
Lezak, Howieson e Loring (2004) apontam ainda a relevância da avaliação neuropsicológica para os cuidados com o indivíduo. Nesse sentido, a avaliação neuropsicológica pode fornecer aos membros de seu convívio familiar e social informações importantes relativas às suas capacidades e limitações. Essas informações incluem a capacidade de autocuidado, capacidade de seguir o tratamento proposto, reações às suas próprias limitações, adequação de sua avaliação de bens e dinheiro, dentre outras. Conhecer esses aspectos do paciente é fundamental para estruturar o seu ambiente, promovendo alterações, se necessário, de forma que ele tenha condições ótimas de reabilitar-se e evitando possíveis problemas secundários, como atribuição exagerada de responsabilidade ou de atividades que não estejam ao seu alcance (Mäder, 1996). Sendo assim, é fundamental que a avaliação considere, não somente as áreas deficitárias, como também as habilidades preservadas que são potenciais para reabilitação (Capovilla, 2007). Nota-se que a avaliação das forças e fraquezas do indivíduo remete a um modelo avaliação neuropsicológica que transcende o objetivo primário de apenas detectar, localizar e caracterizar uma disfunção.
De acordo com Lezak (1995), a avaliação neuropsicológica envolve o estudo de aspectos quantitativos (os testes normatizados permitem obter desempenhos relativamente precisos) e aspectos qualitativos, que incluem entrevistas, questionários, entre outros. Embora os resultados quantitativos dos testes neuropsicológicos reflitam a maturidade conceitual e o nível cognitivo, muitas variáveis interferem no desempenho dos indivíduos. Ou seja, os escores dos testes, isoladamente, fornecem apenas informações limitadas sobre o funcionamento mental do indivíduo. Desta forma, é fundamental a análise dos aspectos qualitativos durante a interpretação dos testes. Mais importante do que saber que o paciente falhou ao realizar um teste, deve-se investigar quais os motivos da sua falha, ressalta Lezak (1995). A verificação concomitante do modo como ele soluciona problemas também pode fornecer boas informações sobre o funcionamento cognitivo do paciente. O olhar minuncioso do profissional sobre a realização do teste oferece dados como a estratégia utilizada, a maneira e a orientação de como um traço é dado (da direita para esquerda ou da esquerda para direita ou uso excessivo de borracha) e os tipos de erros cometidos (Cho, Ryali, Geary & Menon, 2011; Woods, Herron, Yund, Hink, Kishiyama & Reed, 2011).
A avaliação neuropsicológica sendo um exame intensivo do comportamento, deve valorizar, não só as capacidades intelectuais em termos de desempenho individual, mas também os aspectos emocionais, funcionais e relacionais dos indivíduos (Marcelli, 1998). Em muitas situações, as observações da conduta do paciente fora da situação de teste e o emprego de entrevistas estruturadas ou semiestruturadas podem oferecer dados muito valiosos. Da mesma forma, o neuropsicólogo pode lançar mão de informações relatadas pelos responsáveis, cônjuges, cuidadores, bem como outros profissionais que também estejam acompanhando o indivíduo (Tharinger, Finn, Hersh, Wilkinson, Christopher & Tran, 2008).
É importante salientar que os instrumentos de avaliação, em especial os testes, informam o desempenho do sujeito somente no exato momento da sua aplicação (Cronbach, 1996). Diante disso, o neuropsicólogo deve considerar que, se a avaliação envolve etapas variadas e é realizada em diferentes momentos, é imprescindível atentar para as mudanças qualitativas do indivíduo, tais como o uso de fármacos, a realização de tratamento psicológico e/ou fonoaudiológico e qualquer tipo de acontecimento desestruturante durante a semana vigente.
Além dos instrumentos a serem utilizados, o setting de atendimento precisa de cuidados especiais. Jurado e Pueyo (2012), por exemplo, apontam que grande parte dos pacientes com danos cerebrais necessitam de salas contendo poucos distratores, um clima não ameaçador e procedimentos que minimizem a fadiga. Igualmente, o neuropsicólogo pode alternar a aplicação com testes verbais e não verbais, evitando uma sequência de testes desagradáveis ou com alto grau de dificuldade.
A influência dos aspectos sócio-afetivos e comportamentais durante o processo de avaliação foi apontado por Thompson, Stopford, Snowden e Neary (2005). Em seu artigo, os autores destacam a desinibição, rigidez mental e inflexibilidade, pensamento concreto, distratibilidade e comportamento perseverativo como alguns aspectos que afetam o desempenho nos testes e em vários domínios cognitivos na demência frontotemporal, por exemplo. Ainda, as observações comportamentais ao longo dos encontros podem fornecem dados relevantes para o neuropsicólogo. Lapsos ou pedido de repetição das instruções, nervosismo ou agitação psicomotora, desmotivação e falta de persistência na resolução das tarefas, apatia e falta de iniciativa, baixa frustração à tolerância, agressividade são atitudes que devem ser analisadas, pois podem fornecem informações mais ecológicas das alterações cognitivas e comportamentais do paciente (Salmon & Bondi, 2009; Spooner & Pachana, 2006). Assim, o acompanhamento dessas mudanças colabora na identificação de questões referentes aos aspectos positivos e negativos da evolução do problema e serve como referência para o planejamento da reabilitação neuropsicológica, se for o caso.
Embora, atualmente, inúmeros estudos apontem as contribuições dos testes neuropsicológicos na investigação do funcionamento cognitivo e mental, parece haver uma carência de investigações sobre a análise qualitativa da avaliação neuropsicológica. Este artigo tem como objetivo averiguar o modo como a avaliação qualitativa é levada em consideração pelos profissionais que realizam avaliação neuropsicológica.
Metodologia
Fizeram parte desta pesquisa 11 profissionais da área de neuropsicologia, dos quais 8 residem na cidade do Rio de Janeiro, 2 na cidade de Niterói e 1 na cidade de Belo Horizonte. Dentre os participantes, o tempo de prática clínica neuropsicológica variou entre 1 a 8 anos, sendo a média 4,4 e o desvio-padrão 2,3. A pesquisa realizada fez uso de entrevistas semiestruturadas, visando o entendimento amplo do processo de avaliação neuropsicológica na prática de cada profissional. Para tanto, foram formuladas 16 perguntas norteadoras com o objetivo de averiguar a compreensão, a condução e a importância da análise qualitativa na avaliação neuropsicológica para cada profissional. As entrevistas foram gravadas com consentimento dos entrevistados e posteriormente transcritas. As respostas foram agrupadas e classificadas, dando origem a conjuntos de categorias, que, por sua vez, foram analisados e interpretados. Somente após a apresentação formal da pesquisa, o esclarecimento de dúvidas e a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi dado continuidade à pesquisa. Assim, todas as exigências éticas feitas pelos Comitês de Ética, baseadas nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde e nas boas práticas clínicas, foram respeitadas.
A análise dos dados deste trabalho seguiu a seguinte proposta desenvolvida por Minayo (1994):
Vale ressaltar que, como se trata de procedimentos de análise qualitativa, a preocupação principal foi apreender o conteúdo subjacente ao discurso manifesto. Sem excluir as informações estatísticas, a investigação realizada procurou enfatizar as ideologias, as tendências e outras determinações características dos fenômenos analisados. Ao se tratar de análise em pesquisa qualitativa, não se deve esquecer de que, apesar de mencionar uma fase distinta com a denominação "análise", durante a fase de coleta de dados a análise já poderá estar ocorrendo.
Resultados
As tabelas 1 e 2 abaixo têm como objetivo exemplificar a construção dos princípios de classificação e suas categorias. Elas apresentam extratos das respostas dos entrevistados, as quais deram origem a alguns princípios de classificação. Estes, por sua vez, deram origem aos conjuntos de categorias que foram representadas quantitativamente em forma de porcentagem.
Princípio de Classificação 1 | |
Respostas: | |
| |
Conjunto de categorias relacionadas ao princípio de classificação | Porcentagem |
a) Menciona apenas diagnóstico diferencial | 27% |
b) Menciona apenas avaliação qualitativa | 9% |
c) Menciona apenas perfil cognitivo | 36% |
d) Menciona diagnóstico diferencial associado à avaliação qualitativa | 27% |
Tabela 1 - Princípio de classificação "Função Principal da Avaliação Neuropsicológica", seu conjunto de categorias e suas respectivas porcentagens.
Princípio de Classificação 2 | ||
Respostas: | ||
| ||
Conjunto de categorias relacionadas ao princípio de classificação "Aspectos Avaliados" | Porcentagem | |
a) Menciona apenas funções cognitivas (ex: memória, linguagem, inteligência, etc.) | 55% | |
b) Menciona funções cognitivas associadas à avaliação qualitativa | 45% |
Tabela 2 - Tabela do princípio de classificação "Aspectos Avaliados na Avaliação Neuropsicológica", seu conjunto de categorias e suas respectivas porcentagens.
Como se pode observar na Tabela 1 em relação à função principal da avaliação neuropsicológica (FPAN), 36% mencionaram que avaliam apenas o perfil cognitivo e 27% avaliam apenas o diagnóstico diferencial. Em relação ao diagnóstico diferencial associado à avaliação qualitativa, o percentual também foi de 27%. Vale destacar que somente 9% dos entrevistados mencionaram ser a avaliação qualitativa a função principal da avaliação neuropsicológica. Esse resultado provavelmente se deve ao fato de os psicólogos perceberem outras prioridades além da avaliação qualitativa, talvez em função da formação dos profissionais. Tanto os cursos de graduação, quanto os de pós-graduação em neuropsicologia enfatizem a abordagem quantitativa, em detrimento da abordagem qualitativa. Isso talvez ocorra por acreditarem que a abordagem quantitativa seja mais confiável, avaliando melhor o indivíduo. Contudo, a tabela 2 mostra que, no processo da avaliação neuropsicológica (PAN), 91% dos psicólogos relataram fazer uma análise qualitativa associada à avaliação quantitativa. O restante (9%) fazia apenas uma análise quantitativa.
Com relação à demanda (D), foi realizada a seguinte pergunta: qual a principal queixa que chega ao seu consultório? As respostas permitiram concluir que 36% das queixas referem-se à dificuldades de aprendizagem associadas à queixa de problemas de memória ou de déficit de atenção como principal demanda da avaliação neuropsicológica. Em segundo lugar, encontra-se apenas a queixa de problemas de memória, segundo 27% das respostas. A dificuldade de aprendizagem foi mencionada por 22% dos profissionais entrevistados e o déficit de atenção por apenas 9 %.
Para compreender os aspectos considerados na avaliação neuropsicológica (AAN), foi realizada a seguinte pergunta: quais os aspectos que você avalia? Contrariando a percentagem anterior (segundo a qual 91% dos psicólogos relataram fazer uma análise qualitativa associada à avaliação quantitativa), a avaliação apenas das funções cognitivas está presente em 55% das respostas e as funções cognitivas associadas à avaliação qualitativa estão em 45% das respostas, revelando que menos da metade dos neuropsicólogos entrevistados parece considerar que a avaliação qualitativa fornece informações sobre outras funções que não as cognitivas. Isso ocorreu, talvez, porque existe um direcionamento para avaliação de determinadas funções cognitivas, já que muitas vezes o paciente vem encaminhado por um médico especialista (psiquiatras e neurologistas).
Contudo, com relação às informações sobre a história de vida (IHV), observou-se que 55% mencionaram a utilização de roteiro semiestruturado associado à avaliação qualitativa. Esse número cai para 36% quando se trata apenas da utilização do roteiro semiestruturado, chegando a 9% em se tratando apenas da avaliação qualitativa, talvez por existirem poucos instrumentos quantitativos de avaliação sobre a história de vida do paciente.
Além disso, por meio da pergunta "quais os aspectos do comportamento que você observa durante a avaliação neuropsicológica?" (AC) observou-se que 64% mencionaram a avaliação dos aspectos do comportamento, enquanto que somente 36% mencionaram também aspectos do comportamento associados a uma avaliação das alterações emocionais. Esse resultado pode, talvez, estar relacionado ao fato de as alterações emocionais serem manifestações mais sutis, portanto, mais difíceis de serem avaliadas.
Por outro lado, quando questionados sobre "como esses dados influenciam na sua avaliação?" (ICAN) pode-se observar que 73% apontaram a influência do comportamento no resultado da avaliação neuropsicológica. Esse número diminui para 18% no que se refere à influência do comportamento apenas na conduta do profissional. Somente 9% não mencionaram a influência do comportamento na avaliação neuropsicológica.
Quando perguntado se os psicólogos relatam todos os dados no laudo (CAQL), 82% das respostas revelaram que constava uma avaliação qualitativa no laudo neuropsicológico, enquanto que 18% revelaram que constava no laudo uma avaliação qualitativa, porém com restrições.
No que se refere às falhas da avaliação neuropsicológica (CAQL), 55% mencionaram a pouca quantidade e a qualidade insatisfatória dos testes disponíveis, caindo para 27% em relação à qualidade dos profissionais. 18% não mencionaram falhas na avaliação neuropsicológica.
Com relação à avaliação da fluência verbal (AFV), observou-se que 82% mencionaram realizar apenas avaliação quantitativa, enquanto que 18% mencionaram a avaliação quantitativa associada à avaliação qualitativa. No caso da avaliação da compreensão verbal (ACV), observou-se que 55% mencionaram apenas testes quantitativos, enquanto que 45% mencionaram os testes associados a uma avaliação qualitativa. Por sua vez, a avaliação da memória (AM) e a avaliação da atenção (AA), de acordo com as respostas dos entrevistados, são realizadas apenas por testes quantitativos (100%).
Nota-se que estes números parecem contradizer o relato de 82% dos profissionais, segundo o qual o laudo contém também uma avaliação qualitativa, bem como o fato de 73% dos entrevistados apontarem a influência do comportamento no resultado da avaliação neuropsicológica. Pode-se formular a hipótese de que estes profissionais, embora realizem análise qualitativa e observem a influência do comportamento nos resultados, não o fazem relativamente à fluência e compreensão verbais, à memória e à atenção, reservando-a para outros aspectos do sujeito. Cabe, contudo, questionar esta conduta relatada pelos profissionais, uma vez que a avaliação qualitativa pode e deve incidir sobre todas as etapas da avaliação neuropsicológica e sobre todas as funções avaliadas, o que parece não ocorrer.
Discussão
O objeto de estudo da abordagem qualitativa é o nível de crenças e valores expresso pela linguagem comum e na vida cotidiana. Em outras palavras, o material primordial da investigação qualitativa é a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos discursos intelectuais, burocráticos e políticos. Nesses termos, a fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e, ao mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições históricas, socioeconômicas e culturas específicas (Minayo & Sanches, 1993).
Desse modo, a investigação qualitativa tem como objetivo trazer à luz fenômenos, indicadores e tendências que podem ser observados pelos profissionais em sua prática, embora não possam ser quantificados através de testes objetivos. Ela é apropriada para aprofundar a percepção e a compreensão da complexidade dos processos psicológicos particulares e específicos a indivíduos e grupos. Portanto, está relacionada à capacidade intuitiva e exploratória dos neuropsicólogos na apreensão dos aspectos subjetivos dos indivíduos avaliados.
O termo "subjetivo", segundo Flick (2009), refere-se ao fato de os indivíduos possuírem uma reserva complexa de conhecimento sobre si e sobre o mundo que inclui suposições implícitas ou explícitas, as quais são frequentemente expressas espontaneamente pelos indivíduos ao responderem a perguntas abertas. Por essa razão, os métodos qualitativos consideram a comunicação do pesquisador em campo como parte explícita da produção de conhecimento, ao invés de simplesmente encará-la como uma variável a interferir no processo. Dito de outro modo, a subjetividade do pesquisador, bem como daqueles que estão sendo estudados, tornam-se parte do processo de pesquisa. As reflexões dos pesquisadores sobre suas próprias atitudes e observações em campo, suas impressões, irritações, sentimentos etc., tornam-se dados em si mesmos, constituindo parte da interpretação e são, portanto, documentadas. A pesquisa qualitativa, então, torna-se - ou está ainda mais fortemente ligada a - uma postura específica baseada na abertura e na reflexividade do pesquisador (Flick, 2009).
A Tabela 3 abaixo apresenta as impressões sobre a colaboração e engajamento de cada psicólogo durante a entrevista semiestruturada. Nela, pôde-se perceber que a maioria dos psicólogos foi objetivo em suas respostas, não desenvolvendo muito o tema proposto. Esta conduta revela, possivelmente, medo de se comprometerem com suas opiniões, dando a impressão de que os profissionais não estavam à vontade na discussão dos temas propostos, talvez em função da entrevistadora ser uma profissional da área.
Impressões sobre os psicólogos entrevistados | |
Psicólogos | Impressões |
1 | Colaborativo, muito objetivo. |
2 | Colaborativo, objetivo. |
3 | Colaborativo, reticente, inseguro em suas respostas. |
4 | Colaborativo, seguro em suas respostas, desenvolvendo bem o assunto. |
5 | Colaborativo, pouco seguro nas suas respostas, ênfase na abordagem quantitativa. |
6 | Colaborativo, seguro em suas respostas, domínio da teoria neuropsicológica. |
7 | Colaborativo, objetivo. |
8 | Colaborativo, domínio da teoria no que se refere a seu público-alvo (idosos). |
9 | Colaborativo, seguro em suas respostas, recusou gravação da entrevista. |
10 | Colaborativo, objetivo, seguro em suas respostas. |
11 | Colaborativo, domínio da teoria neuropsicológica. |
Tabela 3 - Impressões sobre a colaboração e engajamento de cada psicólogo durante a entrevista semiestruturada.
Em todo caso, em uma pesquisa qualitativa, os dados coletados tornam-se a base do trabalho interpretativo e das inferências feitas pelo pesquisador. Para facilitar a compreensão interpretativa desses dados, a Tabela 4 apresenta, de forma resumida, os conjuntos de categorias e as correspondentes porcentagens extraídos das entrevistas realizadas com os 11 neuropsicólogos. Ela é composta por 13 princípios de classificação divididos em 31 categorias, das quais 27 abordam resultados apenas quantitativos (AQte), qualitativos (AQ), ambos os resultados (AA) e outras respostas (OR) e as quatro categorias restantes dizem respeito à demanda (D) da avaliação neuropsicológica que cada profissional entrevistado recebe na clínica.
Resumo dos Conjuntos de Categorias | ||
Princípio | Conjuntos de Categorias | Percentual |
D | apenas dificuldade de aprendizagem | 22% |
dificuldade de aprendizagem e queixa de memória ou déficit de atenção | 36% | |
apenas queixa de memória | 27% | |
apenas desatenção | 9% | |
FPAN | apenas diagnóstico diferencial (OR) | 27% |
apenas avaliação qualitativa (AQ) | 9% | |
apenas perfil cognitivo(OR) | 36% | |
diagnóstico diferencial e avaliação qualitativa (AQ) | 27% | |
PAN | análise quantitativa e análise qualitativa (AA) | 91% |
apenas análise quantitativa (AQte) | 9% | |
AAAN | apenas funções cognitivas (OR) | 55% |
funções cognitivas e avaliação qualitativa (AQ) | 45% | |
IHV | apenas roteiro semiestruturado (OR) | 36% |
roteiro semiestruturado e avaliação qualitativa (AQ) | 55% | |
apenas avaliação qualitativa (AQ) | 9% | |
AC | apenas avaliação de comportamentos específicos (OR) | 64% |
avaliação de comportamentos específicos e alterações emocionais (AQ) | 36% | |
ICAN | alterações no resultado da avaliação neuropsicológica (AQ) | 73% |
alterações apenas na conduta do profissional (OR) | 18% | |
Não menciona a influência do comportamento na avaliação neuropsicológica (OR) | 9% | |
CAQL | Menciona avaliação qualitativa no laudo (AQ) | 82% |
Menciona, com restrições, avaliação qualitativa no laudo (OR) | 18% | |
FAN | Menciona a quantidade e qualidade dos testes disponíveis (AQte) | 55% |
Não menciona falhas na avaliação neuropsicológica (OR) | 18% | |
Menciona qualidade dos profissionais (AQ) | 27% | |
AM | Menciona apenas testes quantitativos (AQte) | 100% |
AFV | Menciona apenas testes quantitativos (AQte) | 82% |
Menciona testes quantitativos e avaliação qualitativa (AA) | 18% | |
AA | Menciona apenas testes quantitativos (AQte) | 100% |
ACV | Menciona apenas testes quantitativos (AQte) | 55% |
Menciona testes quantitativos e avaliação qualitativa (AA) | 45% |
Tabela 4 - Resumo dos conjuntos de categorias e seus respectivos percentuais.
Considerando, como objetivo geral do trabalho, averiguar a presença da avaliação qualitativa na avaliação neuropsicológica, observou-se que, entre os conjuntos de categorias criados, 33% (9 categorias) referiam-se apenas à avaliação qualitativa (AQ), enquanto que 22% (6 categorias) estavam relacionadas apenas à avaliação quantitativa (AQte). Referiram ambos os aspectos (AA) 11% (3 categorias); e em 33% (9 categorias) foram consideradas outras respostas (OR). O número de categorias relacionadas apenas à avaliação qualitativa foi maior que a quantitativa, uma vez que este foi o ponto central do presente trabalho.
Considerações finais
Tendo em vista os objetivos da avaliação neuropsicológica, é possível supor que ela seria a ciência mais indicada para integrar a psicologia às neurociências. Contudo, para que isso ocorra, é necessário um trabalho árduo para que as peculiaridades de cada sujeito não sejam esquecidas em uma avaliação quantitativa. Visando preencher as lacunas deixadas pela avaliação quantitativa, a avaliação qualitativa torna-se fundamental, já que é por meio dela que a avaliação do sujeito como todo é possível.
Com o objetivo de averiguar a presença da avaliação qualitativa na prática da avaliação neuropsicológica, foi construída uma entrevista semiestruturada com 16 questões. A sua elaboração foi uma tarefa complexa, devido à escassez de bibliografia e à ausência de um modelo de entrevista semiestruturada sobre o assunto. Outra dificuldade encontrada foi o fato de poucos psicólogos realizarem a avaliação neuropsicológica. Soma-se a isto, o fato de que nem todos profissionais contatados mostraram-se disponíveis em colaborar com o trabalho, justificando assim, a pequena amostra deste trabalho.
Embora o número de participantes tenha sido pequeno, os neuropsicólogos que colaboraram forneceram informações importantes da sua prática na avaliação neuropsicológica. Suas respostas proporcionaram não só os dados expressos intencionalmente por eles, mas também conteúdos subjacentes que através de uma análise qualitativa tornaram-se reveladores sobre o assunto. Essas respostas possibilitaram criar princípios de classificações, conjuntos de categorias e seus respectivos percentuais. A partir da análise dos dados, verificou-se que:
a) Para somente 36% dos profissionais, a avaliação qualitativa é uma das funções principais da avaliação neuropsicológica;
b) Para 45% dos profissionais, a avaliação qualitativa é um dos aspectos avaliados na avaliação neuropsicológica.
c) Para 64% dos profissionais, a avaliação qualitativa é apenas uma forma de coletar informações sobre a história de vida do paciente, embora 82% relatem sua presença nos laudos.
Além disso, apesar de 73% dos psicólogos entrevistados reconhecerem a influência do comportamento no resultado da avaliação neuropsicológica e 82% mencionarem a avaliação qualitativa no laudo, apenas 45% mencionaram uma avaliação qualitativa além da avaliação quantitativa na avaliação das funções cognitivas. Isso significa que 55% das respostas apontaram que os aspectos avaliados são exclusivamente relacionados às funções cognitivas. Este resultado demonstra que, apesar da importância dada à avaliação qualitativa pelos psicólogos entrevistados, ela ainda está muito aquém da importância dada à avaliação quantitativa.
Outro dado interessante é que apenas 36% das respostas apontaram alterações emocionais, quando perguntado sobre quais os aspectos do comportamento que eles observavam durante a avaliação neuropsicológica. Dessa forma, as alterações emocionais mostraram-se pouco importantes no processo de avaliação, uma vez que não apareceram de forma significativa no discurso espontâneo dos profissionais entrevistados. Vale ressaltar que, embora a pergunta tenha sido sobre a observação do comportamento, considera-se que, na avaliação neuropsicológica, as alterações emocionais, muitas vezes, podem ser verificadas por comportamentos observáveis, como, por exemplo: expressões faciais, postura, entonação da voz, entre outros.
Diante de tantas questões complexas relacionadas à avaliação neuropsicológica, algumas até discutidas neste trabalho, surpreende o fato de 18% das respostas apontarem ausência de falhas na avaliação neuropsicológica. Esse resultado nos permite concluir que há profissionais que realizam a avaliação neuropsicológica e que talvez conheçam pouco sobre a base teórica da neuropsicologia, em especial das funções cognitivas e mentais. Sendo a avaliação qualitativa pouco valorizada nessa área, acredito que seja contraditório afirmar que a avaliação neuropsicológica é um exame sem falhas.
Em suma, o presente trabalho nos permite concluir que, em se tratando da avaliação neuropsicológica, tanto a avaliação quantitativa quanto a qualitativa são abordagens necessárias, porém, isoladamente, em muitas circunstâncias elas são insuficientes para abarcar toda a realidade observada. Portanto, elas podem e devem ser utilizadas como complementares. Assim, o estudo quantitativo pode gerar questões para serem aprofundadas qualitativamente, e vice-versa (Minayo & Sanches, 1993).
Agradecimentos
Esta pesquisa foi realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Notas
M. Winograd
Endereço para Correspondência: Rua Marques de São Vicente, 225, Prédio Leme, Sala 201, Rio de Janeiro, RJ 22.451-900, Brasil.
E-mail para correspondência: winograd@uol.com.br.