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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.14 no.2 Ribeirão Preto abr./jun. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.149449 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.149449

 

O conceito de saúde mental para profissionais de saúde: um estudo transversal e qualitativo*

 

El concepto de salud mental para profesionales de salud: un estudio transversal y cualitativo

 

 

Loraine Vivian GainoI; Jacqueline de SouzaI; Cleber Tiago CirineuI; Talissa Daniele TulimoskyII

IUniversidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IICentro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas, Cordeirópolis, SP, Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: este estudo visou investigar e comparar o conceito de saúde mental para profissionais atuantes em diferentes serviços da rede de saúde pública.
MÉTODO: trata-se de um estudo qualitativo, realizado no ano de 2017. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com 20 profissionais dos referidos serviços de uma cidade do interior do estado de São Paulo. Para análise dos dados foi empreendida análise temática.
RESULTADOS: identificaram-se duas categorias: Perspectiva Integral; Sintomas Psiquiátricos e Doença. A maioria dos participantes associou tal conceito com as noções de bem-estar, integralidade do ser humano e determinação social do processo saúde-doença. Alguns entrevistados dos serviços especializados e da Unidade de Urgência e Emergência referiram-se à ausência de doença e sintomas psiquiátricos para exemplificar o termo "saúde mental".
CONCLUSÃO: tais resultados estão relacionados à abordagem de saúde adotada pela Organização Mundial da Saúde e pelo Sistema Único de Saúde brasileiro. Estratégias para aproximar os profissionais dos diferentes serviços numa perspectiva de rede podem ser essenciais para ampliar tal discussão e consolidar uma perspectiva mais ampla de saúde.

Descritores: Saúde Mental; Pessoal de Saúde; Serviços de Saúde; Pesquisa Qualitativa.


RESUMEN

OBJETIVO: este estudio buscó investigar y comparar el concepto de salud mental para profesionales actuantes en diferentes servicios de la red de salud pública. La recolección de datos se realizó a través de entrevistas semiestructuradas con 20 profesionales de estos servicios en una ciudad del interior de São Paulo. Se trata de un estudio cualitativo, realizado en el año 2017. Para análisis de datos se realizó un análisis temática.
RESULTADOS: se identificó dos categorias: Perspectiva Integral; Los Síntomas Psiquiátricos y Enfermedades. La mayoria de los participantes presentaron un concepto ampliado y integral de la salud mental y el bienestar relacionado, pero algunos de los entrevistados de los servicios y urgencias se refierón a la ausencia de enfermidades y síntomas psiquiátricos para ejemplificar el término.
CONCLUSIÓN: tales resultados están relacionados al abordaje de salud adoptado por la Organización Mundial de la Salud y el Sistema Único de Salud brasileño. Estrategias para acercar a los profesionales de los diferentes servicios desde una perspectiva de red puede ser esencial para ampliar tal discusión y consolidar una perspectiva más ampliada de salud.

Descriptores: Salud Mental; Personal de Salud; Servicios de Salud; Investigación Cualitativa.


 

 

Introdução

Saúde e saúde mental têm conceitos complexos e historicamente influenciados por contextos sócio-políticos e pela evolução de práticas em saúde. Os dois últimos séculos têm visto a ascensão de um discurso hegemônico que define esses termos como específicos do campo da medicina. Entretanto, com a consolidação de um cuidado em saúde multidisciplinar, diferentes áreas de conhecimento têm, gradualmente, incorporado tais conceitos(1-3).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), "A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade"(4). Essa definição, de 1946, foi inovadora e ambiciosa, pois, em vez de oferecer um conceito inapropriado de saúde, expandiu a noção incluindo aspectos físicos, mentais e sociais(3,5-6).

Apesar das intenções positivas pressupostas nessa definição, ela tem recebido intensa crítica ao longo de seus 60 anos de existência. Isso se deve especialmente ao fato de que é proposto um significado irreal, em que as limitações humanas e ambientais fariam a condição de "completo bem-estar" impossível de ser atingida(3,6).

Decorrentes das críticas ao conceito da OMS e somadas aos vários eventos políticos e econômicos, surgiram as discussões sobre um novo paradigma, a saúde como produção social. Essa nova visão constitui-se da combinação das abordagens da medicina preventiva e da saúde integrativa, da expansão do conceito de educação em saúde e da rejeição da abordagem higienista(2,4,7).

Seguindo propostas de reforma do sistema de saúde brasileiro, o conceito de saúde foi formalmente revisitado e influenciado por experiências internacionais envolvendo políticas de saúde, como discutido principalmente na 8a. Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Naquela ocasião foi sugerido que a saúde incluísse fatores como dieta, educação, trabalho, situação de moradia, renda e acesso a serviços de saúde(1,8).

Como resultado, o conceito brasileiro de saúde começou a ser entendido de forma mais complexa, considerando os princípios de universalidade, integralidade e equidade no cuidado à saúde. Esses princípios, contudo, coexistem com abordagens claramente ligadas à antiga visão(8).

O termo ‘bem-estar’, presente na definição da OMS, é um componente tanto do conceito de saúde, quanto de saúde mental, é entendido como um constructo de natureza subjetiva, fortemente influenciado pela cultura(3,9). A OMS define saúde mental como "um estado de bem-estar no qual um indivíduo percebe suas próprias habilidades, pode lidar com os estresses cotidianos, pode trabalhar produtivamente e é capaz de contribuir para sua comunidade"(10-11).

Definições de saúde mental são objeto de diversos saberes, porém, prevalece um discurso psiquiátrico que a entende como oposta à loucura, denotando que pessoas com diagnósticos de transtornos mentais não podem ter nenhum grau de saúde mental, bem-estar ou qualidade de vida, como se suas crises ou sintomas fossem contínuos(12-13).

Nos anos 1960, o psiquiatra italiano Franco Basaglia propôs uma reformulação no conceito de loucura, mudando o foco da doença e expandindo-o com questões de cidadania e inclusão social(14). Tal ideia ganhou adeptos e acendeu um movimento que influenciou o conceito de saúde mental no Brasil e resultou na Reforma Psiquiátrica Brasileira(15-16).

Frente ao exposto, entende-se que há dois paradigmas principais para discussão dos conceitos de saúde e saúde mental, ou seja, o paradigma biomédico e o da produção social de saúde. No primeiro, o foco é exclusivamente na doença e em suas manifestações, a loucura como sendo essencialmente o objeto de estudo da psiquiatria. No segundo, a saúde é mais complexa que as manifestações das doenças e inclui aspectos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Neste paradigma, loucura é muito mais que um diagnóstico psiquiátrico, pois os pacientes com um transtorno psiquiátrico podem ter qualidade de vida, participar da comunidade, trabalhar e desenvolver seus potenciais.

O Sistema Único de Saúde brasileiro adota um conceito ampliado de saúde e inclui em suas prioridades o cuidado à saúde mental(1,8). Entretanto, este estudo pressupõe que que tal perspectiva não foi naturalizada pelos profissionais de saúde que integram esse sistema, ainda prevalecendo o paradigma biomédico. Assim, este estudo teve por finalidade abordar o termo ‘saúde mental’ sob a perspectiva de profissionais de saúde da rede de saúde pública.

 

Objetivo

Este estudo objetivou investigar e comparar o conceito de saúde mental para profissionais atuantes em diferentes serviços da rede de saúde pública.

 

Método

Local e desenho do estudo

Este é um estudo transversal e qualitativo conduzido em nove serviços de saúde de uma cidade do interior do estado de São Paulo.

Constituíram a pesquisa: um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), um Ambulatório de Saúde Mental (ASM), cinco Equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e uma Unidade de Urgência e Emergência que também atendia demandas psiquiátricas e de saúde mental.

A escolha por esses serviços deu-se devido ao fato de desenvolverem ações de saúde mental. Optou-se também por abranger serviços da atenção primária e secundária à saúde com o intuito de captar possíveis diferenças no conceito em questão. O município estudado conta, ainda, com outros serviços como Centro de Especialidades Médicas, Centro de Fisioterapia, Farmácia, Central de Ambulâncias, Centro Odontológico, os quais não desenvolvem ações específicas de saúde mental e, portanto, não foram incluídos na pesquisa.

Na época da coleta de dados, os CAPS contavam com oito profissionais; o ASM com sete profissionais; as ESFs, 84 profissionais; e a Unidade de Urgência e Emergência, 21 profissionais. Esses serviços tinham profissionais das mais variadas áreas como, por exemplo, psicólogos, enfermeiros, dentre outros.

Amostra e recrutamento dos participantes

Objetivando obter uma amostra representativa em termos de diversidade profissional, incluiu-se pelo menos um participante de cada categoria profissional de cada grupo de serviços, ou seja, todas as categorias profissionais. A inclusão de uma maior variedade de participantes torna possível obter diferentes pontos de vista e é recomendada para a pesquisa qualitativa(17).

O primeiro passo na seleção dos participantes de cada grupo foi obter uma lista com os trabalhadores desses serviços, separá-los em categorias profissionais e classificá-los em termos daqueles que trabalhavam mais próximos a atividades relacionadas ao cuidado em saúde mental e daqueles com maior tempo de trabalho em redes de saúde. Foram excluídos os trabalhadores plantonistas, os com tempo de serviço menor que um ano na função e os que estivessem em férias durante o tempo da coleta. Os profissionais foram pessoalmente convidados pelos pesquisadores durante seu horário de trabalho. Não houve recusas de participação e 20 profissionais aceitaram participar.

Outro importante aspecto, relacionado à seleção dos participantes em estudos qualitativos, diz respeito à saturação dos dados(18), logo, a necessidade de inserção de mais indivíduos foi avaliada ao longo do processo de coleta, análise preliminar e validação dos dados junto aos entrevistados.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada utilizando entrevista semiestruturada. Os entrevistadores seguiram um roteiro com ideias norteadoras para conduzir as entrevistas, a saber: "Fale-me o que é saúde mental para você" e "Me dê alguns exemplos da sua prática para ilustrar este conceito".

As entrevistas foram conduzidas e gravadas em salas privadas, nos próprios serviços dos entrevistados, por uma psicóloga (mestranda) e uma estudante de psicologia que haviam recebido treinamento anterior para a atividade. Cada entrevista durou cerca de 40 minutos. A coleta de dados foi encerrada assim que o critério de saturação de dados foi atingido. Os dados foram coletados entre junho de 2013 e maio de 2014.

Vale enfatizar que a importância da publicação de dados coletados no de 2014 se dá devido à importância do tema no contexto contemporâneo e à escassez de publicações sobre a percepção dos profissionais de saúde e saúde mental (Estratégia de Saúde da Família, Unidade de Urgência e Emergência e Serviços Especializados de Saúde Mental) acerca do conceito de saúde mental, fato este que implica diretamente nas ações e práticas efetivas para o processo de cidadania e inclusão social.

Análise dos dados

A análise dos dados valeu-se do método indutivo, pois o conhecimento emergiu dos dados empíricos, a partir da observação e vivência em campo sobre a realidade pesquisada. Desta forma, foi considerada mais apropriada a utilização dos princípios da análise temática(17). De acordo com esta, enfatiza-se que há cinco fases para análise de dados qualitativos: compilação, desmontagem, remontagem, interpretação e conclusão.

Na primeira fase, nomeada compilação, os dados correspondem à organização das informações de forma sistemática numa base de dados. Assim, as entrevistas foram transcritas constituindo um corpus de informações sobre a percepção dos participantes acerca dos conceitos de saúde e saúde mental.

Em seguida, na fase de desmontagem da análise, o corpus de informações foi dividido em unidades de significado, ou seja, segmentado em palavras, sentenças ou parágrafos que contivessem aspectos relacionados entre si quanto a conteúdo e contexto. Como não havia categorias pré-estabelecidas para análise desse corpus, os pesquisadores realizaram leitura flutuante visando discriminar os termos em evidência. Logo, realizaram-se releituras sucessivas das frases que continham esses termos para construção de um primeiro nível de códigos.

Desse primeiro nível de código, os pesquisadores envolvidos (psicóloga, terapeuta ocupacional e enfermeira) entrecruzaram os agrupamentos em categorias criando temas específicos a partir das convergências dos discursos, criando unidades de significado. Neste sentido, esta fase relaciona-se à terceira etapa de análise proposta por Yin(17), conhecida como remontagem. Em seguida, reagruparam-se os referidos códigos para a formação de duas categorias: "Perspectiva Integral" e "Sintomas Psiquiátricos e Doenças", momento em que as discrepâncias quanto às categorias foram discutidas e balizadas entre os três pesquisadores.

Após a construção completa das categorias, foi realizada a interpretação dos conteúdos, tendo como parâmetro as concepções saúde e saúde mental, com base nas definições da OMS, de Almeida Filho(5), Foucault(13) e Amarante(12).

Por fim, elaborou-se a quinta fase do processo de análise, também descrita por Yin(17), denominada de conclusão, na qual se busca ampliar os conceitos estudados, sugerindo propostas e convocando novos estudos.

Enfatiza-se que o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (CAAE 10341212.0.0000.5393) e cumpriu com todos os princípios éticos estabelecidos para pesquisas envolvendo seres humanos.

 

Resultados

Os participantes eram, em sua maioria, do sexo feminino, tinham idade média de 34 anos (idade mínima de 24 e máxima de 54) e tempo médio de oito anos desde a última formação (mínimo um ano e máximo 30 anos). O tempo médio de trabalho nos serviços de saúde atuais foi de três anos (tempo mínimo um ano e máximo 9 anos).

A partir da análise, foram encontradas duas categorias: "Perspectiva Integral" e "Sintomas Psiquiátricos e Doenças", as quais serão descritas a seguir com exemplificações das falas dos participantes, de acordo com seus respectivos serviços.

É importante ressaltar que foram selecionados os fragmentos de discursos mais significativos, os quais originaram as categorias e fizeram-se importantes para a redação deste artigo.

Categoria 1: Perspectiva Integral

Nesta categoria, destaca-se a importância de discorrer sobre como os profissionais dos serviços da rede de saúde pública compreendem o conceito de saúde mental.

Para isso, vale destacar que a maioria dos participantes dos serviços investigados descreveram o conceito de saúde mental de modo a sinalizar uma concepção mais genérica e integral do termo "saúde mental", não havendo muita distinção entre os fragmentos de discursos dos profissionais entrevistados, apresentados a seguir.

Especificamente nos Serviços Especializados de Saúde Mental, os profissionais verbalizaram sobre suas percepções de como compreendem a saúde mental, originando as seguintes falas: Saúde mental envolve tudo, saúde em geral, bem-estar físico, felicidade e alimentação (Assistente Social, CAPS). [Saúde mental] é a pessoa ser capaz de ter boas condições de moradia, trabalhar, ter filhos (Psiquiatra, CAPS). [Saúde] é uma combinação de bem-estar físico, mental, financeiro e emocional (Técnica de Enfermagem, CAPS). [Saúde] é sentir-se bem por dentro, ter uma boa alimentação e fazer exercícios físicos (Recepcionista, CAPS).

Para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família, o conceito de saúde mental se aproximou daqueles citados pelos profissionais dos CAPS: Como a gente trabalha na área da saúde, a gente ouve bastante que não é só ausência da doença e sim uma qualidade de vida (Agente Comunitária de Saúde 1, ESF).

A compreensão de saúde mental para profissionais da Unidade de Urgência e Emergência também dialogou com os anteriores: Eu entendo muito mais do que ausência de doença. Tem que avaliar o aspecto biopsicossocial. Ficar preso à ausência de doença é se restringir demais (Enfermeira, Unidade de Urgência e Emergência).

Além dessa perspectiva mais geral do conceito de saúde mental, alguns profissionais mencionaram aspectos socioculturais e recursos que os indivíduos têm ao seu alcance.

Os profissionais dos Serviços Especializados de Saúde Mental relataram: Eu acho que é muito relativa, a definição leva a padrões de normalidade da sociedade em geral. Isto tem a ver com os valores e a educação que cada pessoa tem (Psicóloga, CAPS). [Saúde] não apenas a ausência de doença […]. Saúde mental é conseguir conciliar os desejos e dificuldades, ter fé no futuro, apesar das adversidades […] E procurar ajuda quando não se sentir bem (Terapeuta Ocupacional, CAPS). Saúde mental é você ter vínculo social com amigos, família, conseguir expressar o que sente, se sentir bem consigo mesmo (Psicólogo, Ambulatório de Saúde Mental).

Os profissionais da Estratégia de Saúde da Família, complementaram que: Saúde mental é o paciente estar bem consigo mesmo. Ciente da sua situação e da sua condição de vida. A saúde mental pra mim, hoje, é saber conduzir os problemas da forma do que eles veem e tentar resolvê-los da melhor maneira possível (Enfermeira, ESF). Saúde mental engloba o bem estar no dia a dia da pessoa, como ela se sente. Não só a parte física [...] como ela se vê na sociedade e no ambiente familiar (Agente Comunitário de Saúde 2, ESF). [...] não é só o bem-estar físico, como também mental, espiritual, social, econômico (Médico da Saúde da Família 2, ESF).

Os profissionais da Unidade de Urgência e Emergência não verbalizaram falas significativas relacionadas aos aspectos socioculturais e às estratégias e recursos utilizados pelos indivíduos no âmbito de enfrentamento do sofrimento psíquico.

Categoria 2: Sintomas Psiquiátricos e Doenças

Nesta categoria, optou-se por discorrer sobre a importância do impacto dos sintomas psiquiátricos e do diagnóstico para o conceito de saúde mental.

Com exceção dos profissionais da ESF, os entrevistados referiram a "ausência de doenças" e/ou sintomas psiquiátricos como sendo ideias auxiliares para exemplificar como conceituavam o termo saúde mental.

Logo, de acordo com os profissionais dos Serviços Especializados de Saúde Mental, surgiram os seguintes fragmentos: […] durante a anamneses ficou claro que ela tinha um problema de saúde mental. Ela estava muito confusa, delirante, com delírios místicos irracionais (Enfermeira, CAPS). A paciente tinha comportamentos anormais. Quando ela chegou, nós percebemos que ela não estava em seu estado normal […] Ela queria demolir uma casa para construir outra, completamente fora da realidade. Ela estava dizendo que não queria tomar nenhuma medicação para se sentir melhor. E ela falava freneticamente (Técnica em Enfermagem, CAPS). Eu definiria mais pela negação, não ter sofrimento psíquico (Psicólogo, Ambulatório de Saúde Mental).

Já na perspectiva dos profissionais da Unidade de Urgência e Emergência, foi possível destacar as seguintes falas: Saúde é ausência de doença (Enfermeira, Unidade de Urgência e Emergência). Um dos fatores que você pode já identificar é o comportamento das pessoas. O paciente chega num hospital já com uma mudança de comportamento, que você sabe que uma pessoa que está em sã consciência não faria (Técnico em Enfermagem, Unidade de Urgência e Emergência).

 

Discussão

Os profissionais participantes deste estudo eram, em sua maioria, do sexo feminino e com idade média de 34 anos o que corresponde ao perfil profissional predominante – mulheres entre 30 e 40 anos – encontrado em outras pesquisas tanto com profissionais de saúde em geral(19-21), quanto profissionais atuando em serviços de saúde mental(22).

Quanto às categorias encontradas na análise temática, na primeira, a perspectiva dos profissionais dos serviços da rede de saúde pública de um município do interior do estado de São Paulo denota noções de integralidade do indivíduo e de bem-estar, quando questionados sobre o conceito de saúde mental.

No entanto, a maioria dos participantes dos serviços envolvidos no estudo, apresentaram concepções fortemente influenciadas pela definição da OMS sobre saúde: a mais difundida nos materiais de ensino acadêmico.

Ao observar os fragmentos dos profissionais dos Serviços Especializados de Saúde Mental e da Unidade de Urgência e Emergência, percebe-se que a fala é construída a partir de vivência real com pessoas que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico. Tais profissionais verbalizaram sobre o conceito – dando ênfase ao bem-estar – com mais propriedade e empoderamento, enquanto os profissionais da Estratégia de Saúde da Família se expressaram uma maneira mais tímida e implícita, buscando fazer referência ao que outros dizem a respeito.

Infere-se que isso pode estar atrelado ao nível educacional de formação, sendo que o profissional da Estratégia de Saúde da Família tem um grau inferior quando comparado aos demais; pelo contato e/ou (con)vivência com a pessoa em sofrimento psíquico; ou mesmo pela implicação e envolvimento direto no seu processo de trabalho. Esse questionamento é algo que merece estudos mais delimitados e aprofundados.

Sob essa ótica, é de grande relevância pensar que o sistema de saúde mental precisa ter como protagonista a própria pessoa em sofrimento psíquico, para que possa exercer sua autonomia na sociedade, construindo laços afetivos e (re)significando a conquista de sua própria autonomia, mesmo não tendo a remissão completa da sintomatologia decorrente de seu diagnóstico(15-16).

Com base no apontamento verificado na categoria, vale ressaltar que a OMS cita a inclusão dos aspectos psicológicos como parte da saúde e a ideia da produção social de saúde, o que reafirma que bem-estar físico e mental dependem de boas condições de vida, envolvendo alimentação, moradia, situação de emprego entre outros(3,6). Essa ideia inovadora, na época de sua divulgação, estimulou países do mundo todo a repensar suas políticas de saúde enquanto tentavam aliviar a depressão pós-guerra(5).

Entretanto, o conceito da OMS tem recebido críticas por limitar a saúde apenas a um estado completo de bem-estar(6). Outra fragilidade dessa definição se relaciona a doenças crônicas, que não eram, na época, um problema tão evidente de saúde, mas agora constituem uma das principais problemáticas na maioria dos países. Além disso, avanços da tecnologia biomédica tornaram possível o aumento da longevidade, mesmo com um diagnóstico estabelecido. Esse novo perfil epidemiológico torna a definição da OMS obsoleta e resulta em maiores gastos com saúde, pois, se saúde é um completo estado de bem-estar, uma pessoa com uma doença crônica estaria doente e em necessidade constante de cuidado médico(6).

Ainda sobre o conceito da OMS, um estudo australiano com médicos e pacientes de uma Clínica de Medicina Integrativa verificou a dificuldade deles em explicar a frase "saúde é mais que apenas a ausência de doenças". Os autores verificaram que foi mais fácil definir doença, e as explicações baseavam-se mais em comparações com aspectos negativos de saúde. Entretanto, em relação ao conceito de bem-estar, os participantes indicaram que estaria além do sentir-se bem mentalmente, ter felicidade e satisfação com a vida, envolvendo ainda aspectos sociais, capacidades físicas e cognitivas otimizadas, espiritualidade e vitalidade(3).

Além da palavra bem-estar, os participantes da pesquisa mencionada utilizaram as palavras "mental" e "físico" para explicar o conceito de saúde mental. Esses termos contrastantes apareciam principalmente em estudo sobre loucura na Grécia Antiga, como pode ser visto, por exemplo, nos escritos do filósofo Galeno. Essa divisão enfraqueceu-se durante a Idade Média quando a loucura, como outras doenças, era apenas considerada uma manifestação demoníaca. A visão de um humano fragmentado retornou com força em meados do século XVII com a emergência do paradigma biomédico, que apontava as doenças psiquiátricas como o simples oposto de saúde mental(12-13).

Em termos práticos, ainda com relação à primeira categoria, profissionais citaram a importância de aspectos socioculturais e os recursos que os indivíduos com sofrimento psíquico utilizam. A esse respeito, os profissionais dos Serviços Especializados de Saúde Mental e da Estratégia de Saúde da Família referiram sobre a influência que a pessoa em sofrimento psíquico recebe do ambiente, do contexto, da família, dos amigos, da situação econômica, da espiritualidade, da ajuda de outras pessoas, dos próprios desejos e expectativas. Para os profissionais da Unidade de Urgência e Emergência, não surgiram discursos significativos para essa questão.

Destaca-se, ainda, que alguns participantes parecem entender os conceitos como socialmente determinados, corroborando um paradigma de saúde também como produto social(5,7,12). Nessa categoria, os entrevistados apontaram os recursos pessoais dos indivíduos diante das adversidades como parte da saúde mental, concordando com o que é proposto pela OMS(4).

Na segunda categoria, as manifestações da doença (sintomas) foram elementos essenciais para explicar o que significa saúde mental, sugerindo que esta seria o oposto de doenças psiquiátricas, apesar das discussões atuais sobre a importância da ampliação desse conceito, incluindo aspectos relacionados ao bem-estar, qualidade de vida e condições sociais de vida(5,12,15). Além disso, classificar a pessoa como doente, pode levar à diminuição de sua autonomia e de sua capacidade de se sentir saudável, mesmo com suas limitações(23).

Todavia, observou-se nessa categoria a importância dada aos sintomas psiquiátricos e ao diagnóstico para a obtenção do conceito de saúde mental.

A prevalência do paradigma biomédico na concepção de saúde mental foi encontrada em uma pesquisa realizada com enfermeiros da Zona da Mata mineira. Os autores pontuam que poucos profissionais apresentam uma concepção ampliada de saúde mental, considerando a subjetividade. Discute-se ainda quanto ao estigma, ao pouco conhecimento dos profissionais e à prevalência de ações voltadas apenas para a doença(24).

Resultados similares, enfatizando a questão do estigma na saúde mental, foram encontrados em uma pesquisa realizada com profissionais e usuários de Centros de Atenção Psicossocial e Estratégia de Saúde da Família em Fortaleza/CE. Os resultados indicaram que a palavra loucura ainda é entendida como sinônimo de doença mental e está relacionada a sofrimento e preconceito(16).

Esses dois estudos corroboram o que foi levantado em uma revisão sistemática de literatura mundial que objetivou verificar as crenças e percepções sobre as questões de saúde mental predominantes em diferentes populações e culturas. Mesmo com algumas diferenças entre os contextos, ainda se explica saúde mental a partir de sintomatologias (emocionais, comportamentais), embora as causas apresentadas para problemas de saúde mental envolvam aspectos psicossociais, ambientais, espirituais, biomédicos e genéticos(25).

No presente estudo, com base nos discursos dos profissionais dos Serviços Especializados de Saúde Mental e da Unidade de Urgência e Emergência do município, a sintomatologia decorrente de um sofrimento psíquico baseada em comportamentos inadequados para o convívio social, confusão de pensamento e delírios (independentemente de sua origem), pode levar a uma prévia análise para se induzir a uma padronização acerca do conceito de saúde mental. Vale ressaltar que os profissionais da Estratégia de Saúde da Família foram aqueles que não denotaram um conceito de saúde mental atrelado à sintomatologia nos discursos analisados nesta pesquisa.

Deve-se analisar, com cuidado e de modo singularizado, o sentido e o significado do adoecimento, compreendendo as implicações concretas do sofrimento psíquico na vida cotidiana dessas pessoas. Assim, faz-se necessário atenção às reais habilidades dos indivíduos, de modo que a sintomatologia e/ou sintomas decorrentes do sofrimento psíquico não sejam utilizados como formas de tutela ou para possibilitar vantagens em determinadas situações(26).

É de extrema relevância enfatizar que a similaridade na compreensão dos profissionais sobre o conceito de saúde mental deve-se ao fato de que a investigação foi realizada em um município de pequeno porte, onde o contato entre os profissionais dos serviços especializados de saúde mental com outros serviços da rede pública é facilitado, aproximando-se das premissas de um trabalho mais articulado que vise à assistência integral do indivíduo.

Contudo, tal resultado destaca a importância das proposições de Amarante(12) de que, há alguns anos atrás, "trabalhar com saúde mental" significava abordar os pacientes com doenças mentais dentro do escopo de instituições psiquiátricas. Entretanto, discutir saúde mental nos tempos atuais significa abordar uma área complexa e extensa que vai além do tratamento de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais. Além disso, o termo saúde mental refere-se aos campos do conhecimento, trabalho técnico e políticas públicas de saúde, sendo difícil estabelecer limites para sua definição devido ao seu amplo escopo e por ser baseado em diferentes tipos de conhecimento como psiquiatria, neurologia, psicologia, filosofia, fisiologia, sociologia e, até mesmo, geografia.

 

Conclusão

O objetivo deste estudo foi investigar e comparar o conceito de saúde mental para os profissionais de Estratégia de Saúde da Família, Unidade de Urgência e Emergência e serviços especializados de saúde mental.

Alguns profissionais dos serviços especializados e Unidade de Urgência e Emergência mencionaram sintomas psiquiátricos e a ideia de ausência de doença como acessórios para exemplificar como concebem a saúde mental. No entanto, a maioria dos participantes associou tal conceito com a noção de bem-estar, integralidade do ser humano e determinação social do processo saúde-doença.

Entende-se que tais resultados estão relacionados à abordagem de saúde adotada pela Organização Mundial da Saúde e Sistema Único de Saúde brasileiro e que a organização do processo de trabalho das equipes, a especificidade das demandas cotidianas e o próprio projeto terapêutico dos serviços podem estar também influenciando tais concepções.

Fomentar discussões sobre o conceito de saúde mental e implementar estratégias para aproximar os profissionais dos diferentes serviços numa perspectiva de rede pode ser essencial para ampliar tal discussão e consolidar uma perspectiva mais ampliada de saúde nos diferentes settings de cuidado e na própria comunidade.

Quanto a estudos futuros, seria importante identificar se os conceitos descritos pelos profissionais estão refletidos na prática profissional ou se apenas se reproduzem os discursos absorvidos dos documentos oficiais e discussões acadêmicas. Isto é, respostas automaticamente repetidas não necessariamente garantem a internalização do conceito. Assim, estudos adicionais que utilizem a técnica de observação dos processos de trabalho e condutas adotadas pelos profissionais no dia a dia diante de uma pessoa com transtornos mentais seriam essenciais para aprofundar tais discussões.

Como limitações do estudo, destacam-se a utilização de apenas uma técnica de coleta de dados e, além disso, a própria presença de entrevistadores da área da saúde que pode ter influenciado os participantes a apresentarem um discurso esperado. Sugerem-se, ainda, estudos que ampliem essa discussão, incluindo usuários dos serviços e suas percepções sobre saúde e saúde mental.

 

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Recebido: 28.08.2018
Aceito: 05.09.2018

Autor de correspondência:
Loraine Vivian Gaino
E-mail: lorainegaino@gmail.com
 https://orcid.org/0000-0002-2074-909X

 

 

* Artigo extraído da dissertação de mestrado "Saúde Mental na rede de atenção à saúde em um município do interior de São Paulo", apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

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