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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
versão On-line ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.15 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.150461
ARTIGO ORIGINAL
A percepção de caminhoneiros sobre o uso de substâncias psicoativas no trabalho: um estudo etnográfico
La percepción de camioneros sobre el uso de sustancias psicoactivas en el trabajo: un estudio etnográfico
Ramón Araújo SilvaI; André Luiz Monezi AndradeII; Liliana Andolpho Magalhães GuimarãesIII; José Carlos Rosa Pires de SouzaIV; João Carlos Caselli MessiasV
IPontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação Strictuo Sensu em Psicologia, Campinas, SP, Brasil / Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação Strictuo Sensu em Psicologia, Campinas, SP, Brasil
IIIUniversidade Católica Dom Bosco, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Campo Grande, MS, Brasil
IVUniversidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Curso de Medicina, Campo Grande, MS, Brasil
VPontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação Strictuo Sensu em Psicologia, Campinas, SP, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: compreender a experiência subjetiva de caminhoneiros em relação ao uso de substâncias psicoativas.
MÉTODO: utilizou-se método qualitativo de caráter etnográfico.
RESULTADOS: os elementos encontrados, tais como elevado índice de consumo de substâncias, corroboram estudos epidemiológicos acerca da temática, acrescentando, todavia, sentidos subjetivos e depoimentos.
CONCLUSÃO: há uma divergência de opiniões que enfraquece a categoria em relação à negociação por melhores condições de trabalho, ao mesmo tempo que o uso de substâncias ilícitas é considerado normal e não é questionado por parte dos participantes.
Descritores: Saúde Ocupacional; Saúde Mental; Qualidade de Vida; Psicologia Organizacional.
RESUMEN
OBJECTIVOS: comprender la experiencia subjetiva de camioneros con respecto al uso de sustancias psicoactivas.
MÉTODO: se utilizó el método cualitativo de carácter etnográfico.
RESULTADOS: los elementos encontrados, como el alto índice de uso de sustancias, corroboran los estudios epidemiológicos sobre el tema, agregando, sin embargo, sentimientos subjetivos y testimonios.
CONCLUSIONES: existe una divergencia de opiniones que debilita la categoría en relación con la negociación para mejorar las condiciones de trabajo, mientras que el uso de sustancias ilícitas se considera normal y no se cuestiona por los sujetos.
Descriptores: Salud Ocupacional; Salud Mental; Calidad de Vida; Psicología Organizacional.
INTRODUÇÃO
Atualmente quase dois milhões de caminhoneiros são responsáveis pela principal modalidade de transporte de cargas da economia brasileira, a rodoviária(1-2), e estão sujeitos a exaustivas jornadas de trabalho. O uso de substâncias psicoativas pode ser estimulado pelas condições inadequadas de trabalho, poucas horas de sono, baixa qualidade de vida como um todo, e como forma de administrar os efeitos desagradáveis causados por possíveis transtornos mentais. Os motoristas de caminhão relatam que o tempo longe de casa e da família, as preocupações financeiras, a demora no carregamento e descarregamento das cargas são alguns dos aspectos que levam ao esgotamento mental(3).
Em relação aos aspectos físicos, muitos relatam problemas relacionados ao sono e ao cansaço causado por longas jornadas, além de estarem sujeitos a doenças cardiovasculares, hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus(4). Neste sentido, com o intuito de reduzir o cansaço e o sono em viagens longas, uma quantidade significativa de motoristas recorrem ao uso de anfetaminas muitas vezes associadas ao consumo de álcool e outras drogas(5).
Um estudo de revisão sistemática que avaliou a prevalência do uso de substâncias por caminhoneiros de diversos países, mostra que o Brasil foi o país com o maior consumo, sendo que 91% dos caminhoneiros afirmaram já terem consumido alguma quantidade de álcool enquanto estavam trabalhando(6). Neste trabalho, o menor consumo foi detectado em caminhoneiros do Paquistão. Em outro trabalho(7), foi avaliada a prevalência de uso de substâncias em uma amostra de 684 motoristas do estado de São Paulo sendo que 70% relataram terem ingerido álcool no último mês, e destes, 34% disseram ter sido em grande quantidade, de modo que 9% apresentaram um padrão de uso sugestivo de dependência. Neste estudo, mais da metade dos participantes também afirmaram utilizar principalmente tabaco e energéticos e o padrão de uso mais expressivo de álcool foi identificado principalmente entre aqueles que utilizavam múltiplas substâncias.
Também se avaliou a prevalência do uso de diversas substâncias em 993 caminhoneiros de todos os estados do Brasil e foi observado que aproximadamente 6% e 0,7% apresentaram traços no sangue de uso de anfetamina e cocaína, respectivamente(5). Além disso, entre aqueles que dirigiam regularmente distâncias superiores a 270 km, 11% faziam uso regular de anfetaminas e apresentaram um risco noves vezes maior de usarem anfetaminas (OR= 9,41, IC95%: 3,97-22,26) em comparação com aqueles que percorriam distâncias menores.
Vários estudos internacionais, desde os anos 1990, têm frisado a relação do uso e abuso de álcool e drogas e a morte de caminhoneiros no exercício da profissão, independentemente do rigor das leis de cada país(8). Ademais, foi constatado(9) que, mesmo com a restrição da comercialização de produtos que contenham anfepramona, femproporex, mazindol e sibutramina por meio da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC 50/2014 (Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA) e com o aumento do controle por meio da Portaria 116/2016 do Ministério do Trabalho, que prevê exames toxicológicos para motoristas profissionais, a redução do uso destas substâncias no período de 2013 a 2016 não foi significativa.
As fatalidades envolvem tanto os caminhoneiros quanto pedestres e outros veículos que trafegam nas rodovias da capital francesa, como mostrou um amplo estudo recente(10). Em relação às características dos caminhoneiros, em um estudo colombiano, os homens apresentaram maior comportamento de risco na direção. Entretanto, no caso das maiores infrações às leis de trânsito que causaram acidentes, não se observou diferença entre os sexos(11).
A prática do trabalho em turnos, mesmo que regulamentada em muitos países, tem sido associada à fadiga física que interfere diretamente no aumento da velocidade média dos veículos, com a intenção da chegada ao destino o mais rápido possível(12), além das jornadas extenuantes e condições inadequadas de infraestrutura ao caminhoneiro, mesmo em países desenvolvidos(13). A compreensão das causas do uso de substâncias por esta população, portanto, é relevante no cenário atual e permite um entendimento mais aprofundado sobre as motivações de uso e para a elaboração de políticas de prevenção. Neste sentido, o objetivo do presente estudo foi compreender a experiência destes profissionais em relação ao uso de substâncias psicoativas a partir da vivência subjetiva dos próprios caminhoneiros, buscando analisar o contexto e o sentido atribuído a esse fenômeno. Esse tema é amplamente abordado em estudos quantitativos e de caráter epidemiológico, porém não são frequentes aqueles que abordam os aspectos qualitativos envolvidos.
Método
Os elementos pertinentes ao desenho metodológico serão, a seguir, apresentados de acordo com os três domínios propostos no protocolo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)(14). O presente trabalho corresponde a um dos produtos derivados de um projeto de Mestrado em Psicologia.
Domínio 1 - Características da Equipe de Pesquisa. O responsável pelas entrevistas e acompanhamento dos participantes em suas viagens é bolsista em Programa de Pós-Graduação stricto sensu do sexo masculino e tem experiência pessoal no contato com caminhoneiros, pois possui parentes e amigos próximos que exercem ou exerceram esta profissão. Os demais pesquisadores, responsáveis pelas análises e discussão, são docentes em programas de pós-graduação, sendo uma mulher e três homens, todos com pós-doutorado em suas áreas de especialização, a saber: Psicologia da Saúde Ocupacional, Psiquiatria e Psicobiologia. O pesquisador responsável pelas entrevistas não conhecia previamente os participantes e foi sendo apresentado aos demais por indicação dos anteriores.
Domínio 2 - Desenho do Estudo. O presente estudo configura-se como uma pesquisa qualitativa que empregou o método etnográfico, que consiste na imersão do pesquisador na comunidade escolhida, de modo a ter contato direto com a realidade dos indivíduos pesquisados. Assim, a compreensão vai se alicerçando em observações, entrevistas, contato com instituições, situações e vivências que refletem a riqueza do fenômeno estudado(15). Foram realizadas quatro viagens ao longo de dois anos em diferentes caminhões pelas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do país, em um total percorrido de 9.600 km. Nestas ocasiões, foram entrevistados sete caminhoneiros, escolhidos por conveniência a partir da questão "fale-me sobre o seu trabalho". Não houve critério específico para a definição da área geográfica, considerando a própria natureza da ocupação em questão. Todas as entrevistas foram áudio-gravadas e posteriormente transcritas, compondo o corpus da pesquisa. O perfil dos participantes está descrito na Tabela 1. Dos sete entrevistados, cinco afirmaram fazer uso de anfetaminas para conseguir trabalhar. Todos, contudo, emitiram suas opiniões a respeito do fenômeno.
Além das gravações, os dados foram coletados a partir de observações e anotações do Diário de Campo do pesquisador. O próprio fato de a pesquisa ter tido caráter etnográfico implica uma importante atitude de abertura e colaboração por parte dos participantes, pois estes concordaram em levar o pesquisador consigo em viagens de mais de 20 h de duração. Ainda assim, algum deles poderia ter solicitado para que algum elemento de seus depoimentos não fosse divulgado, contudo, isso não aconteceu. O convívio intensivo proporcionou o estabelecimento de vínculos que permitiram que os entrevistados se sentissem mais à vontade para tratar abertamente de um assunto, a priori, polêmico e delicado.
Domínio 3 - Análise dos dados. As análises foram realizadas com base no referencial conceitual da Psicologia da Saúde Ocupacional(16). Considerando a complexidade do cotidiano dos caminhoneiros, o grande número de aspectos observados e relatados e a seleção ativa por parte do pesquisador, típica da etnografia, buscou-se priorizar os aspectos mais importantes e significativos do cotidiano e da saúde mental a partir dos conteúdos produzidos, sem categorias previamente determinadas. Procedeu-se, assim, à interpretação dos fatos e relatos que se mostraram mais significativos para os trabalhadores e também para os objetivos desta pesquisa. Cada elemento mais importante da análise é ilustrado por falas representativas atribuídas aos respectivos pseudônimos, além de dados oriundos do Diário de Campo do pesquisador.
O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Campinas (CEP nº35508214.3.0000.548). Todos os participantes assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e, no texto, são utilizados pseudônimos por questões éticas.
Resultados
Os resultados qualitativos encontrados são coerentes com dados epidemiológicos e quantitativos pertinentes à literatura científica da área(5-7) e indicaram vários aspectos importantes da rotina de trabalho dos motoristas, que têm repercussão direta sobre suas condições de vida e saúde, em especial o uso de drogas, principalmente anfetaminas. Esse tema é encarado por uma parte deles como algo natural e, de certa forma, inerente à profissão enquanto, por outros, é visto de forma oposta. O uso frequente de anfetaminas é justificado de maneira contraditória pelos caminhoneiros como uma forma de preservar a vida e para suportar a necessidade de várias horas de trabalho sem dormir. No entanto, o uso de substâncias para permanecer em estado de vigília gera uma série de polêmicas entre os próprios caminhoneiros, em que os que não usam criticam os que usam e vice-versa.
Uma linha de argumentação está centrada na ideia de que colegas morrem por não utilizarem estimulantes. Isso porque não é possível dirigir por várias horas sem fazer uso da substância e pode ser muito mais perigoso não usar, pois o motorista sentirá o efeito do cansaço em determinado momento, e poderá dormir ao volante. Edson afirmou o seguinte a esse respeito: É... meu colega, primeira viagem dele, semana passada, falou que não tomava rebite, virou ali em Itatim, dormiu, tombou... O caminhão acabou, mas ele não teve nada não, não machucou. Se não for tomar, então não adianta pegar o serviço (Edson).
Por outro lado, estão os que não usam anfetaminas e outras substâncias e referem-se aos colegas que usam como "loucos" (sic). Dizem estar cientes que o uso poderá causar uma série de prejuízos e afirmam, ainda, que vários motoristas ficaram gravemente feridos, tiveram membros amputados ou morreram porque utilizaram alguma substância estimulante e seu efeito cessou repentinamente, fazendo com que cochilassem. Também afirmam que, em alguns casos, os acidentes se devem a delírios ou alucinações quando estão dirigindo, decorrentes do uso constante da droga.
Essa polêmica pode gerar também discussões acaloradas como a que o pesquisador presenciou na porta de uma empresa no polo industrial de Camaçari/BA, quando dois motoristas, por pouco, não se agrediram fisicamente, como ficou registrado em seu Diário de Campo: Agora há pouco, presenciei uma discussão acirrada, sendo um dos envolvidos na discussão o Rafael, com quem eu viajo agora. Ele defendia contundentemente a possibilidade de se dirigir com segurança e ser produtivo sem o uso de arrebite. Já o outro motorista contestava veementemente, afirmando ser impossível trabalhar tantas horas sem o uso da droga e que era muito mais perigoso dirigir sem usá-la. Eles pareciam bastante alterados, foi necessário a intervenção de outros motoristas - que também esperavam para descarregar seus caminhões - para evitar uma discussão maior. O outro caminhoneiro parecia desacreditar que Rafael não usava "rebite", e afirmava que ainda que fosse verdade, é certo que mais cedo ou mais tarde ele pagaria o preço por aquilo que considerava uma "imprudência", e sentindo os efeitos do cansaço se envolveria em um acidente (Diário de Campo).
O desenho etnográfico da pesquisa também permitiu a observação daquilo que não se fala, mas transparece ao olhar. A situação, a seguir, também foi registrada no Diário de Campo do pesquisador que acompanhou Joca em uma viagem de 27 h com somente cinco paradas rápidas: O relógio marcava 4h00 da manhã, e Joca dirigia tranquilamente, ele parecia não se cansar, havíamos começado a viagem há 14 h e ele não demonstrava sinal de cansaço, nem de que pretendia parar. Ele já havia dito que não usava anfetaminas, mas eu estranhava tamanha disposição, inclusive suspeitava que uma das paradas rápidas que ele fez tinha sido com o objetivo de ingerir a substância (Diário de Campo). Diante da admiração por ser possível viajar tanto tempo sem dormir, admite usar a droga: Quando fico sem viajar por um período superior a quatro dias (algo que acontece muito raramente), uso em casa para "relaxar" porque já estou "viciado" (Joca).
Os entrevistados relataram ainda, que é comum encontrar colegas em quadros de delírio ou alucinação em decorrência do uso da substância e que esses colegas veem mulheres, animais e fantasmas na beira da estrada após utilizar estimulantes por um período prolongado. Palavras como "assustado", "acelerado", "doido", "afobado", "nervoso", "atacado" e "falando sem parar" também foram usadas para descrever o estado de alguns caminhoneiros após a ingestão de substâncias estimulantes do sistema nervoso central.
Porém, este uso não se restringe a anfetaminas: Hoje não é só rebite que vira, hoje vira muita coisa, cocaína... muita coisa... Nunca tive acidente, em 42 anos, nunca tive acidente. Isso aí e a pinga também. Tem muito motorista que bebe bebida alcoólica. Hoje, é menos, mas ainda tem gente que bebe (Chico); Outro entrevistado, que tem 39 anos de idade e 15 de profissão, acrescenta: Na verdade eles nem sabem o que estão fazendo, nem veem, porque andam mais drogados. E não só motoristas novos! Tem os motoristas velhos que também fazem uso de cocaína, de rebite, de pedra [crack] (Armando).
O motorista Josué aborda um certo aspecto de funcionalidade em relação às substâncias. Ao ser indagado sobre ter conhecimento ou não da nocividade das anfetaminas e das consequências a curto, médio e longo prazo, foi enfático ao responder: Saber a gente sabe, mas é uma questão de escolha, é melhor morrer aos poucos do que morrer de uma vez (Josué). Após ser solicitado que explicasse melhor, continua: É assim, se você não usa, você dorme, bate, vira o caminhão e morre. E, se você usar rebite, você fica ligado, tá mais ou menos livre desse risco e os efeitos colaterais podem demorar a aparecer (Josué).
Discussão
O objetivo deste trabalho, como previamente mencionado, foi o de compreender os aspectos subjetivos envolvidos no consumo de substâncias psicoativas por caminheiros em suas atividades profissionais, considerando a magnitude deste fenômeno no transporte de carga brasileiro.
Os elementos encontrados confirmam o que estudos anteriores apontaram(5-7), que o uso de substâncias psicoativas ainda é algo comum entre estes profissionais. É digna de nota a divergência de opiniões entre eles e as inflamadas discussões, passíveis de provocar discórdias e até mesmo a ameaça de brigas e confrontos violentos, como a que foi presenciada, fato da maior gravidade. Em lugar de haver um senso de união dos trabalhadores sujeitos a condições bastante desfavoráveis de trabalho, o que se testemunhou foi uma ruptura interna que provavelmente dificulta a luta por conquistas para sua categoria. Da mesma forma, chama a atenção o fato de que eles não questionam as jornadas de trabalho que chegam a mais de 20 h, muito comumente. Paradoxalmente, o que se apresentou de forma clara entre eles foi a legitimidade ou não do uso de substâncias, e não as demandas e relações contratuais que os 'obrigam' a isso.
Além do cansaço, outros importantes elementos são o tédio e solidão. Em um estudo realizado na Suécia(17) foram identificados diversos comportamentos secundários durante a condução, como usar celular para manter contato social, procurar papéis e documentos na cabine, tomar café ou fazer lanches, muitas vezes com o objetivo de quebrar a monotonia. Estes comportamentos estão associados ao aumento do risco de acidentes pelo fato de desviarem a atenção do condutor. No caso da ingestão de substâncias psicoativas, tais sentimentos ficam ainda mais exacerbados e, portanto, tal dispersão e risco, proporcionalmente potencializados.
No presente estudo, constatou-se que o uso de drogas pode se configurar como um comportamento de sobrevivência econômica dos caminhoneiros, fato que confirma os elementos apontados em outros estudos(5-7,9). Tal fato é insalubre, porque estes motoristas colocam suas vidas e a de outras pessoas em risco por uma questão de necessidade econômica. Em um estudo brasileiro realizado com 260 caminhoneiros 43,2% dirigiam mais que 16 horas/dia e 2,9% trabalhavam por turnos. A média diária de horas de sono foi de 5,97 h/dia. Do total da amostra deste estudo, 23,8% dormiam menos de 5 h/dia, 50,9% faziam uso de bebida alcoólica; 95,6% usavam cafeína e 11,1% usavam anfetaminas. Nos últimos cinco anos, 27 motoristas (13,1%) estiveram envolvidos em acidentes, cinco deles com feridos e três com mortes(18).
Na "Lei dos Caminhoneiros", que passou a vigorar em 2012, estão previstas obrigações como direção defensiva, observância de tempo de direção e descanso, bem como a obrigatoriedade de teste de uso de drogas e bebidas alcoólicas(15). Todavia, muitas formas de contrato de trabalho, terceirizações, quarteirizações, baixos valores de frete, transferência de riscos e manutenção, conduzem a situações extremas, nas quais estes profissionais são cada vez mais explorados(19). Assim, as possíveis soluções não se restringem a imposição de leis e regras, mas também de melhores condições de trabalho e cidadania aos caminhoneiros(1-3) que são forçados a utilizar recursos ilícitos para conseguir sobreviver, como o uso de cocaína(20). Estes elementos evocam uma reflexão mais ampla e sistêmica que está ligada à manutenção de uma rede de oferta deste tipo de substâncias. Neste sentido, trata-se de um arranjo perverso do sistema econômico: a logística de carga, de alguma forma, não prescinde do tráfico de drogas.
Este problema, contudo, não é exclusivamente brasileiro. Na Austrália, dois levantamentos nacionais sobre os efeitos da fadiga nos motoristas de transporte rodoviário de longa distância indicaram que o uso de estimulantes era muito comum. Os resultados mostraram que o uso de drogas estimulantes era duas vezes maior em motoristas que tinham dificuldades em controlar sua fadiga e duas a três vezes maior pelos motoristas remunerados ou dependente do tipo de remuneração, assim como os mais jovens e menos experientes estavam mais susceptíveis a ter este comportamento. Isso demonstrou o impacto de fatores externos, especialmente o sistema de pagamento do caminhoneiro(22).
Em um amplo estudo comparativo(23) entre 200 caminhoneiros portugueses e 206 brasileiros, contatou-se que os portugueses eram mais velhos, com maior escolaridade, maior tempo de sono nos dias de trabalho e de folga, e 72% consumiam álcool mais do que seis vezes por semana. Destes, 94% usavam substâncias estimulantes como cafeína e guaraná em pó, sendo 0,50% de anfetaminas e faziam mais trabalho em turnos. Entre os brasileiros, 35% sofriam de algum distúrbio do sono e 43% dirigiam mais que 16 h por dia, enquanto estas taxas entre os portugueses eram de apenas 21% e 2%, respectivamente. Noventa e cinco por cento dos brasileiros usava psicoestimulantes, sendo 11% destes, anfetaminas. Os acidentes com vítimas ou fatais nos cinco anos anteriores à pesquisa mostraram uma frequência de 20% entre os portugueses e 13% nos brasileiros. Estes dados mostram discrepâncias muito graves, sendo a realidade brasileira evidentemente pior, apesar do índice de acidentes ser menor.
Um estudo realizado com 279 caminhoneiros nas rodovias federais brasileiras apontou que 72,6% consumiram bebidas alcoólicas nos últimos doze meses, sendo que 78% com frequência mínima mensal. Entre os motoristas, 9% haviam ingerido álcool no dia da coleta da pesquisa de etilometria. Neste mesmo estudo, os resultados parciais dos testes de saliva para detecção de benzodiazepínicos, cocaína, maconha e anfetaminas, revelaram 0,9% de positividade para cocaína e 5,3% para anfetaminas(24). Esses dados levam a questionar o estado emocional destes profissionais, pois o uso de estimulantes tem um aspecto funcional, como já mencionado, porém álcool e maconha sugerem aspectos depressivos.
Um interessante estudo realizado nos Estados Unidos(25) identificou quatro categorias principais de estressores presentes na atividade dos caminhoneiros: solidão /saudade da família, questões relacionadas à saúde, falta de respeito, e legislação. Estes elementos parecem condizer com aqueles vividos pelos profissionais brasileiros, com a diferença de que, no caso dos americanos, há um elevado índice de rotatividade (turnover) na categoria, ao passo que, no Brasil, isso não ocorre.
Diante desses dados, destacamos ainda os elementos relacionados aos aspectos emocionais e de saúde, derivados da forma como o trabalho é organizado e que fazem com que os trabalhadores entrevistados se refiram à "natureza do demônio" quando fazem referência à relação com os empregadores(25), transparecendo uma clara ambiguidade em relação à profissão, por um lado, prazer, e por outro, profundo desgaste e sofrimento. No caso americano, todavia, parecem haver mais alternativas de ocupação do que no brasileiro, o que torna a questão das drogas algo ainda mais sério.
Conclusão
Muitos autores em diversos países têm confirmado o fenômeno do uso de substâncias psicoativas por caminhoneiros. Partindo de diferentes desenhos metodológicos, busca-se abordar esta relevante questão e sua multiplicidade de fatores; epidemiológicos, bioquímicos, organizacionais e sociais.
Chama a atenção a segmentação de opiniões entre os motoristas, o que enfraquece a categoria. Isso pode estar relacionado à dificuldade que os mesmos encontram em conseguir avanços concretos em suas reivindicações, fazendo com que os resultados de protestos e greves tenham impactos menores do que aqueles que poderiam ter, de fato.
Também se ressalta a falta de reflexão destes profissionais a respeito das condições desumanas às quais são expostos, compreendidas de maneira natural, como parte do trabalho. O uso ou não de substâncias, portanto, passa a ser apenas uma resposta a uma situação não questionada, vista por parte dos sujeitos da pesquisa como um recurso necessário para o trabalho, sem o qual o profissional é visto como imprudente. Trata-se de uma situação grave: um trabalhador ser criticado pelos seus colegas por não querer se envolver em um ato ilícito.
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Autor Correpondente:
João Carlos Caselli Messias
E-mail: joao.messias@puc-campinas.edu.br
Recebido: 20.09.2018
Aceito: 28.06.2019