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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.8 n.1 Rio de Janeiro abr. 2008
ARTIGOS
Encaminhamentos e dispersão. Questões para a psicanálise no hospital
Directions and dispersion. Questions for the psychoanalysis in the hospital
Sonia Alberti I; Hilana Erlich II; Paula Mocarzel III; Priscilla Monteiro IV; Daniela Prata V; Luis Eduardo G. Reis VI
I Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
III Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
IV Especialista pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
V Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
VI Psicólogo pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
Na relação entre psicanálise e medicina nos hospitais gerais e nos institutos de psiquiatria se verifica a importância da fala não só para a escuta do paciente como também no intercâmbio institucional entre os diversos profissionais. Quando não há a circulação da palavra, enormes idiossincrasias podem ocorrer na clínica, como exemplifica o caso Jovelina. Quando, ao contrário ela comparece, é possível sustentar mutuamente o trabalho, independente dos saberes e práticas implicados. Só então leva-se em conta o sujeito e a clínica se dá na plena extensão do conceito. O caso Lia, uma adolescente, o demonstra claramente. Por outro lado, há inúmeros casos em que a psicanálise pode aprender algo da medicina e vice-versa. Visa-se com este trabalho sustentar a hipótese de que medicina e psicanálise são dois saberes que têm diferentes recortes da realidade e que é no respeito por essa diferença que o encontro das duas práticas pode ser o mais frutífero. Procuramos sustentar esta hipótese através de quatro exemplos clínicos.
Palavras-chave: Psicanálise e medicina, Casos clínicos, Psicanálise e hospital, Teoria e prática clínica.
ABSTRACT
The relation of psychoanalysis and medicine in general hospitals as well as in psychiatric institutes testifies the importance of speech not only during clinical acts with patients but also in the exchange of ideas, diagnosis and treatment proposals between those who receive patients in these institutions. When no word is exchanged between professionnals, enourmous idiosyncrasies may occur, as shown by the exemple of the case Jovelina. When, on the contrary, people talk, then a mutual support of the work with patients is possible, whatever discipline and practices are involved. Only then the subject is implicated and real clinic can be done. The case Lia, an adolescent, shows this clearly! On the other hand, there are lots of cases through which psychoanalysis can learn from medicine and vice-versa. The hypothesis we sustain is that medicine and psychoanalysis are two fields of knowledge which are different and do cut into reality through their different perspectives, but only with the respect of these differences fructuous developpments can be achieved. We try to sustain this hypothesis through four clinical exemples.
Keywords: Psychoanalysis and medecine, Clinical cases, Psychoanalysis and hospital, Theory and clinical practice.
ENCAMINHAMENTOS E DISPERSÃO
Numa conferência na Aliança israelita, intitulada “Les problèmes des régulations”, Georges Canguillem faz a seguinte observação que escolhemos para a colocação de nossa questão: Quando você percebe um problema no fígado, é possível discutir a questão diagnóstica e a questão terapêutica do ponto de vista das intervenções médicas, mas ninguém discute, nem hesita, quanto ao que se espera da solução do problema, ou seja, espera-se que o fígado volte a secretar bile normalmente. “Em suma, na ordem do organismo, vemos que todos discutem, se assim posso dizer, a natureza do mal, e ninguém discute o ideal do bem” (CANGUILHEM, [ 1955 ], 2002, p.107), ninguém questiona o que se espera da terapêutica. No contexto do estudo das relações entre psicanálise e hospital, a questão dos encaminhamentos dos casos é, sem dúvida, uma das que melhor testemunham a existência – ou não – do que pode a psicanálise na promoção da saúde mental (ALBERTI; FIGUEIREDO, 2006). Nossa hipótese, no presente texto, é a seguinte: no momento em que não se sabe a natureza do mal, porque não se sabe em que lugar do organismo há um problema, a ordem médica pode lançar mão de outros discursos que não o da medicina ou, pode decidir que o problema deve se adaptar a ela. É na tensão dessas duas posturas que surgem as questões de encaminhamentos e de dispersão. Os exemplos, a seguir, nos trarão subsídios para investigá-las. Os casos que nos servem aqui para debater a questão foram todos atendidos em diferentes hospitais da rede pública do Rio de Janeiro, há menos de dez anos. É importante observar que se começamos com um caso que denuncia bem os problemas que podemos encontrar, podendo mesmo chocar pela gravidade da denúncia, nem sempre ocorrem idiossincrasias da mesma ordem e, como veremos, por exemplo, com o caso Lia, mais adiante, é possível trabalhar em equipes multidisciplinares de grande sustentação mútua. Isso, no entanto, não deixa de tornar ainda mais chocante a verificação das idiossincrasias que ainda podemos encontrar...
O caso Jovelina1
Jovelina é uma menina de cinco anos, que foi encaminhada ao Setor de Psiquiatria de um grande hospital da rede pública do Rio de Janeiro que também atende crianças e adolescentes, por uma neuropediatra do Setor de Pediatria do mesmo hospital. A queixa, como tantas outras que chegam até esse Setor da Psiquiatria em que trabalhávamos, por intermédio da Neurologia, era de hiperatividade e agressividade.
A história de Jovelina no hospital começara quando ela chegara ao Setor de Pediatria, com aproximadamente dois anos e seis meses, apresentando quadro de diarréia crônica, cujo início não ficara bem definido. Como sói acontecer, foi consultada por vários médicos, provavelmente Residentes em Medicina, e nem sempre as informações obtidas por um foram bem transmitidas ao outro. Um dos médicos escreveu no Prontuário que o início do quadro ocorrera aos dezoito meses, enquanto outro referiu o mesmo início aos seis meses de idade, informações, portanto, contraditórias que levantam no mínimo a questão sobre se houve consulta aprofundada ao Prontuário entre uma consulta e outra. Sem a preocupação de se construir sua história clínica, não se estabeleceu um intercâmbio entre os médicos nos diferentes momentos do atendimento da pequena paciente. Poderíamos levantar a hipótese de que isso, afinal das contas, não interferiu demasiadamente no atendimento da criança já que ambas as notações no Prontuário apontam para uma diarréia crônica o que poderia tornar a data irrelevante. Mas, no que tange nossa preocupação, talvez tivesse sido interessante parar e se perguntar sobre o por quê da discrepância... às vezes se dar conta de uma informação paradoxal sem grande importância aparente pode levar o clínico a questões que acabam por desvelar paradoxos bem maiores. No caso, talvez já aí uma acuidade clínica poderia levar a questionar o relato da mãe de Jovelina. Como se verá mais tarde, o problema no atendimento de Jovelina se deu também porque nunca se parou verdadeiramente para escutar sua mãe.
Mas o aspecto que nós julgamos mais importante nestas primeiras anotações encontradas no Prontuário, diz respeito a uma das hipóteses diagnósticas levantadas por um dos médicos que atendeu Jovelina no Setor de Pediatria, quando ela tinha dois anos de idade: “distúrbio de comportamento”. Não consta do Prontuário qualquer outra informação da qual se origine tal observação diagnóstica para além da queixa de diarréia... Mas foi em razão dessa observação que este pediatra – ou residente em pediatria – fez um encaminhamento à Neurologia, para “avaliação de distúrbio de comportamento e de aprendizagem”, provavelmente por acreditar que o neurologista estaria mais habilitado para tratar tais alterações comportamentais. Disso impõe-se a questão sobre o lugar da neurologia nas demandas clínicas hoje, tratada por vários autores (por exemplo, em ALBERTI; FULCO, 2005).
Então Jovelina, com dois anos e onze meses, aterrissa na Neurologia. As observações no Prontuário agora são bem mais numerosas: segundo a médica, a mãe relatava quanto à filha: dificuldade para dormir, comportamento irascível, impulsividade e agressividade desde os dois anos de idade, sem qualquer anormalidade anterior. A médica ainda observava um comportamento agitado da menina durante o exame, razão da impressão diagnóstica de “distúrbio de comportamento secundário/ADHA” (sic). Em função desta última observação, receitou: Dogmatil – um neuroléptico.
Os neurolépticos são fármacos recomendados para psicoses e distúrbios severos de comportamento, que prejudicam a capacidade cognitiva e de aprendizagem. Será então que neste Setor de Neurologia se supôs uma psicose no caso Jovelina? Ou será que a Neurologia se fiou exclusivamente no distúrbio de comportamento relatado pela mãe, sem maiores questionamentos sobre sua origem?
Após essa primeira consulta na Neurologia, Jovelina retornava regularmente e, com três anos e cinco meses, ou seja, seis meses mais tarde, permaneciam as queixas de distúrbios do comportamento e do sono (queixas da mãe sobre a dificuldade de dormir de sua filha). Ao exame, Jovelina apresentara-se agitada, impaciente e agressiva. Na ficha de atendimento, preenchida pela Neurologia nesta ocasião, ali onde o médico deve escrever suas “impressões”, lê-se: “TDAH, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”, e “problemática social secundária ao comportamento da menina”. O que podemos entender por isto? Que o contexto social no qual a criança está inserida está sendo influenciado por seu comportamento? Ou que este mesmo contexto social é um fator secundário, e, portanto menos importante, na condição de Jovelina? Malgrado essas questões irrespondíveis na leitura do prontuário, a neurologista faz uma outra tentativa, troca de remédio. Agora é a Ritalina o melhor remédio para o caso, apesar da pouca idade da paciente. Conforme as indicações laboratoriais que pudemos pesquisar, a Ritalina, ou cloridato de metilfenidato, é indicada para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, embora não haja estudos suficientes acerca dos efeitos da administração em crianças menores de seis anos. Mas a própria médica justifica sua indicação pela gravidade da hiperatividade, malgrado não termos podido encontrar qualquer referência sobre a natureza dessa hiperatividade, muito menos de sua gravidade...
Com quatro anos e dois meses, a mãe refere melhora no quadro, principalmente nas alterações do sono, mas relata tremores de braço e perna esquerdos de duração aproximada de três minutos. Em função disso, a Ritalina é mantida e Jovelina faz um eletroencefalograma, exame destinado a avaliar as ondas cerebrais. O resultado do exame indica anormalidades indicativas de epilepsia focal, que acomete pontos isolados do cérebro, sem generalizações. É administrada a Carbamazepina e o Tegretol, para controlar as crises.
É mister notar que os resultados de exames eletroencefalográficos exibem alterações menores em quase todas as crianças a eles submetidos, de maneira que tal resultado nem sempre é determinante para a possível localização de um foco.
Ainda em um relato de consulta ulterior, sem data, provavelmente por volta dos cinco anos, uma neuropediatra descreve a ocorrência de novas crises – que, como já dito, não ficaram especificadas no Prontuário –, além da continuação da hiperatividade. É então solicitada uma Tomografia Computadorizada de Crânio, sem justificativa especificada. Nessa mesma ocasião, em algumas linhas, lista-se as medicações administradas no intervalo de tempo durante o qual não foram feitas anotações no Prontuário: a Ritalina é considerada desnecessária por não surtir efeito e, após apresentar reações adversas à Carbamazepina – alteração de marcha e de fala – e ao Tegretol, esses são substituídos pelo Depakene, ou ácido valpróico, cuja administração em crianças, diga-se de passagem, deve ser cuidadosa, conforme advertência do próprio laboratório. A menina também tinha feito uso de Anafranil, um antidepressivo tampouco indicado para crianças menores de seis anos. Esse remédio também fora suspenso, sem qualquer indicação no Prontuário nem para seu uso, nem para sua suspensão. A avaliação desta última visita ao neurologista termina com uma recomendação médica: “após controle das crises – tratar comportamento”. Não fica clara a natureza das crises aqui denotadas. É em função dessa observação que se dá o encaminhamento para a Psiquiatria Infantil, quando Jovelina tem cinco anos, ou seja, dois anos e meio após sua entrada no hospital; com os seguintes dizeres da neuropediatra: solicita-se “acompanhamento com psicologia e psicomotricista/psicopedagogia para auxiliar em sua atividade escolar”.
É interessante notar que o encaminhamento realizado pela Neuropediatria para a Psiquiatria Infantil se dá pelos mesmos motivos que nortearam originalmente o encaminhamento para a Neurologia! Inicialmente eram “distúrbios de comportamento secundários” e agora se observa: “após controle das crises – tratar comportamento”. Resumindo: durante dois anos, a Neurologia fizera inúmeras experiências medicamentosas por causa do comportamento, então surgiu a queixa dos tremores dos membros (superior e inferior) esquerdo, a partir disso se fez um eletroencefalograma e a Neurologia passou a tratar o caso como de uma epilepsia focal, as crises epileptiformes não melhoraram e se indicou uma tomografia do cérebro e um encaminhamento para a Psiquiatria, no qual, não podemos deixar de observar, a Neurologia jogou a toalha para o que tange o comportamento. Jovelina, hiperativa, chega para ser tratada na Neurologia, mas depois é encaminhada para atendimento psicológico pelo mesmo sintoma, e isso na Psiquiatria Infantil. Foi então atendida neste Setor, e iniciou entrevistas preliminares para um atendimento psicanalítico. Nosso diagnóstico é de histeria, os tremores dos membros são provavelmente secundários à medicação e/ou sintomas conversivos, e não foi possível observar qualquer hiperatividade.
O destino do caso Jovelina no hospital é, para nós, muito significativo, pois demonstra claramente a falta de comunicação e de conhecimento existente entre as equipes hospitalares, no que diz respeito às atuações das especialidades envolvidas no atendimento dos pacientes. Quando procuramos entrar em contato com a Neurologia – e durante mais de seis meses fizemos reiteradas tentativas –, não foi possível uma única entrevista com algum médico que atendera Jovelina.
Mais ainda, a partir do caso, percebe-se o quanto os limites das áreas de atuação de disciplinas – Psicanálise, Psiquiatria e Neurologia – encontram-se indistintos. Esta confusão reflete-se diretamente na qualidade das relações entre os profissionais de saúde mental, neste caso dentro de um hospital geral.
Jovelina, com seus cinco anos de idade, pôde nos contar muitas histórias e sua mãe, que finalmente encontrou alguém com quem falar – alguém que assinalava as idiossincrasias em seu discurso, no que tange, por exemplo, à informação paradoxal sobre o início da diarréia crônica da filha – pôde, finalmente, tecer observações sobre as difíceis condições de vida em que ambas se encontravam e que certamente dizem muito mais respeito a um problema a ser levado ao Serviço Social do que à Neurologia. Antes, jamais se procurou escutar esta senhora, ao contrário, se solicitou uma tomografia do cérebro quando ela não teria nunca condições para fazê-la. Em entrevista, ela diz: “A neuropediatra pediu essa tomografia mas eu não tenho como fazê-la e fiquei com medo de dizer isso para ela, pois ela é muito rígida”. Refém de uma mãe alcoolista e violenta, na casa de quem essa senhora cria seus filhos, a mãe de Jovelina diz não ter a coragem necessária para mudar de vida e ir embora, apesar de sua mãe aterrorizar os netos com crises agressivas que deixam Jovelina apavorada. Estas cenas violentas ocorrem muito frequentemente à noite, razão de Jovelina apresentar “distúrbios do sono”.
Por que é tão difícil parar um pouco e se dedicar a tentar escutar a história de um paciente?
Anita, fenômenos no corpo2
Dentro deste contexto, também se inscreve a história de Anita. Este caso se associa ao anterior para denunciar uma das maiores dificuldades de nossa época, ou seja, a questão dos especialismos, das fragmentações e, finalmente, dos problemas nos encaminhamentos dentro de um hospital geral.
Anita veio encaminhada para a Psicologia, por um psiquiatra em outro grande hospital do Rio de Janeiro. Fora levada ao psiquiatra por sua irmã devido a uma “crise”, que, segundo o que se lê no Prontuário, é descrita como sendo de choro e agressividade, por causa de uma vizinha que há cinco anos incomodava a paciente.
Com o objetivo de verificar a história clínica, entrou-se em contato com o psiquiatra que a encaminhou para a Psicologia, porém essa tentativa foi frustrada, pois o psiquiatra não trabalhava mais na instituição – o que denuncia um outro problema: o tempo que às vezes leva um encaminhamento. Apesar da impossibilidade de encontrar o psiquiatra, o que foi possível descobrir foi que não havia um diagnóstico médico fechado da paciente. Na busca de maiores dados sobre o caso, o exame do Prontuário da paciente deixa entender que Anita já tinha passado alguns anos atrás pela clínica médica queixando-se de dores de cabeça muito fortes e dores de estômago. Assim, sua história no hospital é bem mais longa do que originalmente relatada no pedido de parecer.
Na época da primeira passagem pela clínica médica, com as queixas de dores de cabeça e de estômago, alguns exames haviam sido feitos para investigar um possível aneurisma ou uma úlcera, como aliás Anita bem descreveria no atendimento psicológico: “eu vou ter um problema de cabeça, um aneurisma ou uma úlcera perfurada, quando fico nervosa tenho dor de estomago e minha cabeça dói. Fico com medo de acontecer alguma coisa, às vezes é melhor morrer logo”. Discurso no mínimo hipocondríaco, com provável perturbação de linguagem, que se verifica no emprego gramatical do tempo dos verbos, além do nihilismo patente no final da frase. Malgrado isso, foram realizados exames investigatórios, tanto neurológicos, quanto gastrointestinais.
Nenhuma anomalia identificada nos resultados desses exames, o clínico geral simplesmente a mandou para casa. Quando retornou, já veio direto para o psiquiatra, com a crise provocada pela relação com a vizinha. Este, sem fazer um diagnóstico, a encaminha então para a Psicologia, onde chega tanto tempo depois que o próprio psiquiatra já não se encontra mais na instituição. Um mal encaminhamento necessariamente se conjuga à dispersão dentro do hospital e a prática fica governada por um especialismo, conduzindo o tratamento a uma fragmentação.
Como se escuta e como se responde a esta escuta é uma questão muito importante para se perceber como se dá essa fragmentação. Como já se observou diversas vezes (por exemplo, CLAVREUL, 1983), o registro do médico se dá através do olhar, o olhar do médico recorta um fragmento do corpo, tomado como organismo. A tentativa desse aprisionamento do organismo, no registro do olhar, reduz, no entanto, a dimensão do corpo simbólico. O corpo do sujeito, como sabemos, para além do que vemos e percebemos dele, é um corpo que pertence a um sujeito singular. Isso implica, entre outras coisas, que o sujeito pode acreditar ter um corpo que o médico não vê. A única forma de termos acesso a esse corpo que o sujeito acredita ter, é através da fala do próprio sujeito. O psicanalista, por privilegiar a fala do sujeito, empresta o seu ouvido à escuta das manifestações do inconsciente. Mas isso não precisa ser uma prática só do psicanalista. Toda clínica, enquanto tal, poderia se dedicar a escutar o que diz o sujeito do mal de que se queixa... aliás, a origem da clínica médica é essa! Observa-se hoje que a medicina está um pouco esquecida dessa sua origem e que são os serviços de saúde mental nos hospitais os que muitas vezes vêm melhor retomando a importância da escuta e da relação médico-paciente, a partir da teoria psicanalítica da transferência. Por essa razão Lacan (], 1993) pode dizer que a psicanálise é a última flor da medicina: aquela que pode chamar a atenção da clínica médica sobre o que se encontra no âmago e nos fundamentos do saber da clínica (ALBERTI, 2002). No contexto institucional em que Anita foi atendida, onde se encontram diversos paradigmas, como o registro médico – o olhar –, e o registro psicanalítico – a fala –, sendo seus objetivos diferentes, onde um se coloca no lugar do mestre e o outro no lugar do agente como causa do desejo, falta uma intersecção discursiva.
Em função disso, levanta-se a hipótese de que o sujeito foi subordinado a um cientismo, que o divide e o fragmenta a partir das diversas especialidades, sem que estas se articulem num trabalho interdisciplinar, no qual a cooperação entre os profissionais partiria da singularidade da intervenção de cada um. Por alguma razão a ser ainda identificada e verificada, no lugar de uma interdisciplinaridade entre os saberes sobre a clínica, uma interação em torno das diferentes abordagens clínicas, a tendência é o especialista se estagnar em sua posição, reforçando cada vez mais a dispersão do tratamento, como numa esquizofrenia da instituição, que, no caso em questão, recobre a própria esquizofrenia do sujeito Anita.
Ao não obter nenhum resultado positivo dos exames laboratoriais solicitados pela clínica médica por causa das mesmas queixas que anos depois ela repetiria em entrevistas preliminares na Psicologia, no lugar de buscar outras possíveis causas para os sintomas, a clínica médica mandou a paciente para casa sem nenhum atendimento nem tampouco qualquer encaminhamento para estudo mais aprofundado.
A esquizofrenia no próprio atendimento de Anita, diante de entradas e encaminhamentos diferentes no próprio hospital e sem permitir buscar referências de quem a atendeu inicialmente, denuncia o problema dos técnicos que trabalham no hospital que não conseguem receber informações consistentes sobre um caso, como também ocorreu no caso de Jovelina, pois há um atendimento descontínuo, uma fragmentação dos atendimentos que impede um feedback aos próprios médicos sobre as diferentes clínicas que se fazem dentro do hospital.
A partir dos dois casos apresentados, podemos então ressaltar a problemática dos múltiplos encaminhamentos e de como isto pode influenciar na terapêutica do paciente, fazendo com que seu atendimento fique disperso, consistindo, a bem da verdade, em uma sucessão de quebras e cortes, sem a existência de uma continuidade e nem de efetiva comunicação entre os profissionais que tratam do caso. Podemos nos perguntar também se não é assim mesmo que deve ocorrer um tratamento com vários encaminhamentos, pois já que os diferentes saberes sustentam diferentes discursos, a conseqüência seria uma diferença nas suas práticas.
Entretanto, acreditamos que apesar de possuírem discursos diferentes, Medicina e Psicanálise podem superar as dificuldades inerentes ao diálogo entre diferentes saberes e estabelecer, entre si, um canal de diálogos e de trocas. Ao mesmo tempo em que auxilia na delimitação do campo de atuação de cada saber, este diálogo poderá proporcionar avanços e progressos para todos envolvidos na questão, principalmente para usuários dos serviços de saúde. Apostamos no fato de que as dificuldades inerentes caminham lado a lado com os benefícios.
Por que encaminhar para um profissional e não para outro? O que faz com que tal profissional esteja apto a cuidar do caso e o outro não? Quais qualidades são necessárias ao profissional de saúde para que ele tenha êxito em seu trabalho?
Para se responder a essas questões, a prática ensina que não se deve partir do intuito de valorizar um discurso em detrimento de outro, já que cada um tem sua singularidade e especificidade, funcionando bem em um determinado momento e podendo falhar em outro.
Acreditamos que a comunicação entre saberes fica prejudicada em função de um desconhecimento prévio tanto dos limites de cada ciência quanto dos campos de interseção com outra. Devemos lembrar que as diferenças existentes entre os discursos, influenciam de maneira decisiva a postura e a forma de atuar dos profissionais de um determinado campo. Isto por si só não é ruim e nem bom, apenas delimita o campo e a maneira de atuação de cada um. A questão é antes de competência dos discursos, por exemplo, de qual discurso pode, naquele momento, melhor responder à questão da emergência.
Tentar lançar luz sobre o campo de interconexões de saberes é tarefa de todos, de maneira que se torne possível melhor delimitar competências. Poderemos, então, realizar encaminhamentos fundamentados de acordo com tais campos de atuação. Há inúmeros exemplos de trabalhos institucionais em que isso funciona.
Encaminhamentos precisos e o favorecimento da intervenção precoce
Já em 1890, Freud salienta que alguns médicos, com formação científica, haviam começado a valorizar o tratamento psíquico em contraposição àqueles que, em função do progresso em algumas áreas de conhecimento relacionado propriamente com o lado físico do homem, restringiram seu interesse, contentando-se com o interesse pelo lado físico das coisas, deixando o campo psíquico para os filósofos (FREUD, ], 1975, p. 17-18). Os efeitos do psíquico sobre o corpo não eram vistos com bons olhos por esta classe médica, que parecia recear atribuir à vida psíquica qualquer independência, temendo que isso implicasse o abandono da base científica em que se apoiavam.
Quase duas décadas depois, Freud ([ 1919 ], 1975) levantou questões sobre a formação médica. Essa formação, segundo ele, dava ao estudante de medicina uma informação unilateral nos campos da anatomia, da física e química, omitindo o esclarecimento do significado dos fatores psíquicos nas diferentes funções vitais, lesando, assim, possíveis habilidades para melhor cuidarem da relação médico-paciente.
Finalmente, em “A Questão da Análise Leiga”, Freud ([ 1926 ], 1975) retoma a questão da formação do médico mostrando uma resistência por parte dos médicos à então formalizada psicanálise. Relembra que, enquanto a medicina começava a se impor como ciência, segundo o propósito de tornar consciente, realidades de maneira objetiva e racional, a psicanálise passava a ser considerada mais como um retrocesso às especulações filosóficas e muitos não atribuíam o menor crédito a esse novo saber do século XX. Diz ele que o médico recebe uma formação que privilegia "[...] mais ou menos o oposto do que ele necessitaria para uma preparação em psicanálise. Sua atenção é dirigida para fatos anatômicos, físicos e químicos [...]. O interesse não é despertado para o lado psíquico dos fenômenos vitais, o estudo das atividades psíquicas mais elevadas não diz respeito à medicina, é o campo de uma outra faculdade” (FREUD, [ 1926 ], 1975, p.321). Nem mesmo a psiquiatria deixa de visar exclusivamente às determinações corporais das perturbações psíquicas, tratando estas últimas da mesma forma como se tratava as outras doenças, ou seja, tratava as perturbações psíquicas como dependentes exclusivamente dos fatores anatômicos, físicos e químicos, estudados já nas outras doenças.
Além disso, em 1926 as doenças neuróticas (entendidas como eventos psíquicos) já não faziam parte nem da formação, nem do interesse médico em geral. Estava longe o tempo em que um renomado clínico geral de Viena com o nome de Dr. Breuer, poderia se interessar pelas idéias inovadoras de um jovem neurologista, recém chegado de um estágio com Charcot... Segundo o texto de 1926, Freud supõe o seguinte receio aos médicos: se eles dessem mais importância aos fatores psíquicos, eles perderiam a corrida pela cientificidade, eles correriam o risco de a medicina perder o seu caráter de cientificidade que conquistava, aos poucos, a duras penas! Por algum motivo, nas duas primeiras décadas do século XX, um ideal de cientificidade contaminou a medicina inteira, de forma que os paradigmas para se avaliar um bom médico já não eram sua prática e experiência, mas seu compromisso com a ciência. A medicina deixava de ser um saber milenar sobre a clínica e começava a existir como mercado da ciência, ou melhor, de um tipo de ciência que já pode ser associado com o discurso do capitalismo (ALBERTI, 2000). Freud conclui em seu texto de 1926, que o estudo das doenças neuróticas se torna inacessível em função da própria direção da medicina, e enquanto esta não puder assumir que há uma estreita ligação entre as coisas que distinguimos como físicas e psíquicas.
Nenhum lugar mais privilegiado hoje para verificarmos se já houve ou não modificação neste status quo, cem anos depois da criação da psicanálise, do que a prática hospitalar que alguns psicanalistas vêm tendo a oportunidade de freqüentar. Se nos guiamos pelos exemplos apresentados acima, teríamos que concordar com Freud ainda3. No entanto, seria esta a única experiência que temos hoje? Felizmente a literatura nos apresenta também outros exemplos e uma forma de verificarmos alguma mudança nesse âmbito, seria poder encontrar encaminhamentos feitos pelo próprio médico para os serviços de saúde mental, abrindo espaços para que outras direções de tratamento se dêem no cotidiano de sua clínica.
O encaminhamento depende da disponibilidade do profissional que recebe o paciente. Disponibilidade esta marcada pela possibilidade de uma escuta do que está para além dos fatos anatômicos, físicos e químicos da doença, como dizia Freud em 1926. Quando se trata da psicanálise, o que faz a diferença é escutar o paciente na sua diferença, coisa exclusivamente possível no momento em que se leva em conta sua subjetividade.
O hospital geral recebe pacientes que sofrem na sua maioria do corpo e apostam suas esperanças no saber-poder do médico. Localizar a dor no corpo é um meio que encontram de expressar o que muitas vezes fica complicado dizer. A dor com sede no corpo traz o paciente ao hospital, pois o corpo aparece para falar e revelar algo que não é dito. Cabe aos profissionais escutar a queixa do paciente que pode ultrapassar o âmbito do órgão ou do membro. Isto não significa excluir a doença do discurso médico, mas incluir e fazer valer uma outra escuta, mais apurada, que, aliás, é própria da atividade clínica, desde seus primórdios, com Hipócrates.
Concluiremos esse texto com dois casos que demonstram que é possível trabalhar muito bem com os médicos desde que nós possamos lhes dizer o que nós fazemos, e dialogar com eles. Ao mesmo tempo, isso abre a possibilidade, ao alcance da mão do médico, de ele facilitar o nosso trabalho, a sustentar uma atividade clínica que nem sempre se direciona para lá onde a medicina desejaria a priori. Fundamental nisso tudo é observar que não existe a menor possibilidade de a medicina levar em conta as contribuições que nossa prática pode dar ao trabalho cotidiano no hospital, se nós não lhe explicarmos, esclarecendo cada médico, a partir de cada caso para nós encaminhado, o que fazemos, como fazemos e por que fazemos. Os dois casos clínicos a seguir demonstram uma preocupação com a subjetividade, da parte dos médicos, o que marcou uma diferença na intervenção com relação aos dois primeiros casos apresentados.
Lia e seu nariz4
Lia, uma menina de quinze anos, chega à Clínica Geral solicitando uma cirurgia plástica do nariz. Mais tarde, no contato com a médica que realizou sua triagem, ficamos sabendo que Lia detestava seu nariz, achava-o grande e feio e por conta disso, toda imagem que fazia de si ficava tremendamente comprometida; Lia já deixara de sair de casa por causa do nariz, todos a achariam horrorosa. Com grande lucidez, a médica encaminha a paciente tanto para o setor de Saúde Mental para ser avaliada por uma psicóloga, quanto para o setor de Cirurgia Plástica.
Algo foi observado nessa demanda de cirurgia da parte de Lia. Em primeiro lugar, segundo a médica, o nariz nem era tão grande, nem tão feio assim como a paciente dizia. Em suas palavras, era como se, em torno do nariz, se aglomerassem questões que o extrapolavam, em suma, Lia “exagerava ao falar de seu nariz” (sic). A médica nos disse ainda que o encaminhamento à Cirurgia Plástica fora somente um recurso que teria tido no momento para sustentar a demanda de tratamento e o encaminhamento para a Saúde Mental, malgrado acreditar na importância da avaliação daquele serviço para o caso. Aqui se pode dizer que, se por um lado a médica respondeu à demanda de Lia encaminhando-a à Cirurgia Plástica, por outro fez um ato clínico, solicitando concomitantemente um atendimento psicológico. Este último ato foi justificado pela médica da seguinte maneira: “Lia está obcecada, com idéia fixa de fazer uma plástica no nariz. Acho que ela deposita seus problemas no nariz e quer tanto modificá-lo por acreditar que todo o resto se transformará com isso”.
A indicação para a Saúde Mental se deu porque a médica pôde identificar, além do pedido de Lia, algo que não ia bem com ela. Coisa que a médica também observara durante o atendimento, pois a paciente brigara o tempo todo com a mãe e a avó que a acompanhavam, e estas diziam que a menina estava insuportável, muita agressiva.
É mister notar que, tal a médica que a atendeu na Clínica Geral, também na Cirurgia Plástica Lia encontrou de imediato alguns entraves para realizar sua cirurgia. Freqüentemente se queixava nas entrevistas conosco de que a Cirurgia Plástica demorava muito para se decidir pela cirurgia, que lá lhe diziam que as inscrições para novas cirurgias estavam fechadas no momento, diziam que ela tinha que ficar um pouco mais velha para fazer a cirurgia, pois em sua fase de crescimento o nariz ainda poderia mudar etc. Ou seja, tampouco a Cirurgia Plástica respondeu à demanda incondicional de Lia, sabia-se também lá que o melhor para Lia naquele momento era o atendimento no setor de Saúde Mental e que o atendimento que poderiam dar teria como visada sustentar o da Saúde Mental.
Lia iniciou tratamento com a psicóloga, apesar de muitas vezes no começo só falar com esta profissional por achar que isso seria condição para fazer sua plástica. Dizia: “quanto tempo vou precisar ficar aqui? Quando terminar, vou poder fazer a cirurgia?” Não levou muito tempo para surgir a verdadeira questão de Lia: ela odiava o nariz por ser igual ao do pai, com quem não falava há alguns anos. Para ela, o rosto é o cartão de visitas e sente seu nariz como uma cicatriz no meio deste. A paciente se apresentava como um nariz, era como se ela fosse este nariz grande e feio – a cara do pai.
Sete meses depois do início do tratamento, Lia já não mais falava em cirurgia plástica. Interrogava-se sobre algumas de suas questões, até então tamponadas pelo nariz e seu rosto, o cartão de visitas como o designava, não mais portava uma cicatriz. Sua cicatriz pode ser investigada em outro lugar, em sua história que, aos poucos, passou a tecer durante suas sessões.
Lia já saía e pode marcar seu primeiro encontro com um rapaz – coisa impensável até esse momento – pois o pai lhe comprara um vestido novo, pagara uma escova para seus cabelos! Lia e o pai se reconciliam e, em conseqüência, ela se reconcilia com sua imagem na medida em que pode sustentá-la e exibi-la a partir da identificação com o pai já não insuportável.
Não fossem as sensibilidades clínicas dos médicos que ela teve a sorte de encontrar em sua demanda de atendimento, mesmo que tivesse feito uma plástica em seu nariz, a cicatriz passaria para outro ponto do eu, talvez já bem mais complexo e dificilmente diagnosticável. O caso Lia é um exemplo de um encaminhamento que deu super certo! Observamos ainda que para dar certo foi necessário que a medicina sustentasse esse tratamento na Saúde Mental, o que foi feito para bem além do simples encaminhamento: Lia continuava com as consultas na Clínica Geral e na Cirurgia Plástica que eram marcadas com regularidade, com o principal intuito, na realidade, de dar sustentação da parte da própria medicina a suas entrevistas na Saúde Mental.
No início, Lia passou pelo menos quatro meses buscando marcar a cirurgia de qualquer jeito, e foi necessário que tanto a Clínica Médica quanto a Cirurgia Plástica sempre derivassem suas demandas a seu tratamento psicológico. Isso pode ser tão bem feito que Lia sustentou o atendimento na Saúde Mental, apesar de o sintoma muitas vezes ter se agudizado ainda mais, sobretudo nos momentos em que o resgate de sua história exigia grande perseverança na aposta do tratamento. O trabalho clínico ensina, a quem queira realmente ouvir, que um encaminhamento precisa muitas vezes ser sustentado repetidas vezes. Mas isso só é possível quando aquele que faz o encaminhamento tem certeza dele, ou seja, só é possível quando não há vacilação. Amiúde isso não ocorre porque o próprio profissional que faz o encaminhamento não tem dados suficientes para assumir uma convicção. E isso, não poucas vezes, é conseqüência da dificuldade dos setores de saúde mental de saberem dizer o que fazem.
Waldemar e a gastroenterologia5
O outro caso é o de Waldemar que tem três anos quando é encaminhado a um gastroenterologista a fim de se fazer uma endoscopia. Ao longo de seus três aninhos de idade, já passou por vinte e seis especialistas diferentes, tendo feito vários exames invasivos, cada um queria descobrir porque recusava alimento.
Foi alimentado até a idade de um ano e oito meses com conta gotas, por já "não gostar de comer" na época. Aos três anos, tem apenas seis quilos e a preocupação de sua mãe é de ele "pegar uma pneumonia e não sobreviver, por tamanha fraqueza".
Na consulta médica, algo chamou a atenção do gastroenterologista, para além dos dados orgânicos bastante preocupantes: estranhou o fato de Waldemar estar no colo de sua mãe, na "posição canguru", chupar chupetas e ainda usar fraldas com três anos de idade. Resolveu adiar qualquer possibilidade de intervenção endoscópica - método com muitos riscos em crianças tão pequenas. Encaminhou para tratamento psicológico.
Ao apresentar o caso à analista no momento do encaminhamento, afirmou: "se ele tem algo no estômago é secundário, primário é sua relação com sua mãe".
Durante a primeira entrevista com a analista, a mãe de Waldemar lhe confia ter achado "esquisito" o fato de o médico não ter feito nenhum procedimento médico propriamente dito, dando-lhe apenas um remédio para alcalinizar o meio gástrico, uma vez que Waldemar "não comia nada". O que ela achou mais esquisito (sic), no entanto, foi o encaminhamento para um tratamento com uma psicóloga concomitante a um acompanhamento clínico. Para verificarmos o acertado desse encaminhamento, vejamos a entrevista na íntegra:
No primeiro encontro, Waldemar estava em "posição canguru", fato sobre o qual o gastroenterologista já havia chamado a atenção. Além disso, usava fralda e chupeta. Sua mãe logo perguntou como seria a entrevista uma vez que "ele não se separa [de mim]". Já no momento da entrada no consultório, foi explicado a Waldemar que no armário havia brinquedos, colocando-os à sua disposição. No exato momento que a mãe repetiu "tá vendo como ele não se separa de mim", Waldemar se dirigiu ao armário, pegando um carrinho.
Enquanto Waldemar brincava com o carrinho, fazendo do corpo da mãe o trajeto, pedimos à mãe que nos contasse o que a fez procurar atendimento. Relatou então o encaminhamento do médico como fator principal, dizendo-se um pouco surpresa com o fato. Waldemar já havia passado por vinte e seis médicos, já tinha sido submetido a exames bastante invasivos, como por exemplo uma colonoscopia. A mãe teria procurado esse gastroenterologista por ter ouvido falar que ele é um dos poucos no Estado a fazer endoscopia em criança.
A mãe então contou um pouco da história de Waldemar: desde que nasceu recusava alimento. Não mamou no seio, não aceitou mamadeira, sendo então alimentado até um ano e oito meses com conta gotas. Continuava se alimentando muito mal, era muito fraco e magro; ela temia agora que seu filho pudesse ter alguma coisa caso pegasse uma gripe. Se comia uma banana hoje comeria novamente apenas amanhã à noite, o mesmo acontecia com uma verdura. Não sabia como agir diante do fato, pois ficava desesperada. Não sabia se a toda hora deveria oferecer comida ou se deixar ele ficar com fome. O fato é que quando não oferecia, ele ficava um dia sem comer e não pedia. Se oferecia a todo tempo, ele só recusava.
Existia também a outra questão, ou seja, Waldemar não se separava dela para nada, e isso a preocupava em relação ao atendimento psicológico, pois não saberia como ficaria o atendimento. Percebendo a dificuldade de ambos na separação (aliás, nesse momento ele já brincava com o carrinho), o convite para os retornos às entrevistas seguintes foi feito para ambos. Para fazer este convite, no entanto, a analista se dirigiu diretamente para Waldemar, explicando que a partir da semana seguinte o aguardaria para brincarem juntos. Ele imediatamente perguntou pela mãe e lhe foi respondido que sua mãe poderia ficar na porta da sala, mas que o espaço seria dele e da analista. Para mostrar como seria, a analista posicionou uma cadeira na porta da sala, mostrando onde sua mãe ficaria. Respondeu então afirmativamente ao convite para o tratamento. Ainda nessa primeira entrevista, quando perguntado se o carrinho era seu brinquedo preferido, respondeu que seu brinquedo é sua mãe. Logo sua mãe quis então explicar: o que ele quer dizer é que não se separa dela.
Durante os seis primeiros meses de tratamento, a mãe ficava na porta da sala que ficava aberta e não poucas vezes se imiscuía no tratamento. Mas pouco a pouco Waldemar foi fechando a porta, desligando-se do que acontecia do lado de fora, dirigindo-se cada vez menos à mãe. Isso possibilitou abrir espaço para brincadeiras e os efeitos de seu tratamento tiveram visibilidade. A tônica do caso que queremos aqui ressaltar é que, somente no momento em que o grave problema clínico de Waldemar passou a ser considerado como um sintoma do sujeito Waldemar, somente quando um médico pode perceber que se Waldemar não tivesse um espaço em que efetivamente passasse a praticar uma posição subjetiva em detrimento de sua ligação com a mãe, nenhum outro tratamento poderia trazer qualquer resultado. Foi nesse momento que as coisas puderam mudar para ele. Em particular, Waldemar pode construir uma história que ele passou a contar a cada vez. A separação da mãe já não era mais insuportável, ao contrário, começou a comer arroz e feijão e a “só querer saber de brincar”, como dizia a mãe agora.
Com efeito, em sessão, a brincadeira inicial com o carrinho e o corpo da mãe logo foi desdobrada, de maneira que já não havia somente o carrinho e o corpo da mãe, mas havia um acidente com o carrinho. Em função desse acidente, o pai era chamado, salvando a todos com sua presença. Com a introdução do pai na brincadeira, aos poucos o carro ia para o posto abastecer e voltar para casa cheio de comida. Após inúmeras repetições desse desdobramento, do acidente e da compra da comida por várias sessões, um dia Waldemar resolveu que já estava na hora de fazer comida para alimentar a analista. Com a colherzinha fingia colocar em sua boca frutas, dando-lhes os nomes. Entretanto, no meio de várias frutas, comidas e doces, aparecia uma barata. "Come, é uma barata!". A analista fez de conta de estar cuspindo aquele alimento, dizendo não gostar de baratas e que não queria comer barata. Waldemar ria muito e repetia infinitamente o gesto com a colher cheia de baratas. Foi justo após essa sessão que Waldemar começou a se alimentar bem e apresentar grande mudança em seu comportamento, ou seja, justo quando se passou a dar ouvidos a suas questões que puderam aparecer as baratas, impossíveis de engolir, e que certamente se encontravam nessa estória por alguma razão. A mãe de Waldemar ficou evidentemente bastante aliviada e surpresa com o fato das coisas estarem se encaminhando, a endoscopia ficou desnecessária e Waldemar seguiu apenas com o atendimento psicológico e o acompanhamento clínico com o gastroenterologista, para verificação do ganho de peso.
O que faz com que alguns médicos reconheçam a existência do inconsciente? Seria a influência da própria psicanálise e, a partir daí uma aposta no sujeito? Teria este médico uma experiência analítica pessoal?
Ao tomar o psiquismo como fator relevante no processo de doença, o médico em questão passou a ter condições de poder precisar um outro encaminhamento ao caso, possibilitando uma intervenção ainda a tempo, capaz de quebrar o ciclo de dispersão favorecido pelo cada vez maior especialismo médico que levara este menino de três anos a mais de vinte especialistas!
É preciso observar que nem no caso Lia, nem no caso Waldemar, a eficácia terapêutica se baseou numa adaptação dos sintomas e doenças do sujeito à medicina e suas mais novas conquistas via avanços da ciência. Ao contrário, o que permitiu um sucesso terapêutico de ambos esses casos foi a possibilidade dos médicos que atenderam esses sujeitos de fazerem valer a percepção clínica de que a questão implicava um para além das: anatomia, física e química. Sem relegar o problema aos filósofos, esses médicos puderam acompanhar e sustentar o atendimento na Saúde Mental de maneira a permitir um outro tipo de tratamento – que faz valer o sujeito e suas próprias questões – numa Outra cena que já não diz respeito às imagens de exames com aparelhos os mais sofisticados, nem aos medicamentos de ponta, saídos do que há de mais novo no campo das pesquisas disso que se conhece como a ciência médica atual. O que norteou os últimos dois encaminhamentos, ao contrário dos dois primeiros, foi a percepção dos clínicos que os fizeram – independente de suas especialidades. Para tanto, não estavam preocupados com os ideais do bem orgânico, suportando uma indefinição do que poderia vir a ser a visada do atendimento. Nos dois primeiros casos, ao contrário, por não ter havido espaço para um não saber sobre a visada dos atendimentos, tanto Jovelina quanto Anita se perderam anos nos corredores dos hospitais que os recebiam. Evidentemente, quando há uma resistência do hospital, ela pode encontrar-se com, e fertilizar, a própria resistência do doente, de sua família, da comunidade. O caso Jovelina é testemunho disso, apesar do esforço que finalmente pudemos fazer para atendê-la. Mas o mal já estava feito e Jovelina, uma menina histérica de cinco anos, com graves problemas em casa, não mais nos foi trazida para uma continuação do trabalho, ela literalmente desapareceu, não tivemos mais qualquer acesso pois a mãe não voltou nem mesmo a seu trabalho. Depois de tanto tempo sem falar, certamente não seria simples para a mãe de Jovelina começar a contar sua história, a resistência venceu e foi procurar ecos em outros atendimentos em que se manteria calada. Eis o que acaba tantas vezes reforçando uma prática hospitalar que perde a noção da importância da atenção no sujeito.
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Endereço para correspondência
Sônia Alberti
E-mail: sonia.alberti@wb.com.br
Recebido em: 10 de janeiro de 2007
Aceito para publicação em : 11 de outubro de 2007
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo
NOTAS
1 Caso originalmente apresentado na 11a. Semana de Iniciação Científica da UERJ, em outubro de 2002. Preferimos deixar incógnito aqui o nome do hospital, sobretudo por entendermos não se tratar de caso isolado na rede pública.
2 Caso originalmente apresentado durante o I Congresso Brasileiro de Psicologia: Ciência e Profissão. São Paulo, setembro de 2002.
3 É mister observar que festejamos este ano os oitenta anos de “A psicanálise leiga”!
4 Caso também originalmente apresentado no I Brasileiro de Psicologia: Ciência e Profissão, em São Paulo. Setembro de 2002.
5 Caso originalmente apresentado no curso: “A emergência na saúde mental” do 40o. Congresso Científico do Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ), em agosto de 2002.