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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.14 no.1 Rio de Janeiro abr. 2014
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Perfil neuropsicológico na Síndrome de Tourette: um estudo de caso
Tourette Syndrome neuropsychological profile: a study case
Eliana Gomes da Silva Almeida*, I; Pompéia Villachan-Lyra**, II; Izabel Hazin***, III
I Núcleo de Avaliação Neuropsicológica e Acompanhamento Psicoterapêutico (NANAP), Recife, Pernambuco, Brasil
II Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE, Recife, Pernambuco, Brasil
II Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
RESUMO
Neste artigo discutiremos os principais achados da avaliação neuropsicológica de um adolescente com Síndrome de Tourette (ST), uma desordem neurodesenvolvimental rara que se caracteriza pela presença de tiques motores e/ou sonoros que, comumente, emergem na infância ou início da adolescência. Apesar da extensa avaliação de todas as funções cognitivas, pretendemos aqui centrar nossa discussão sobre as funções que são apontadas pela literatura como relevantes para a compreensão do perfil cognitivo neste quadro. Os resultados do caso aqui relatado são compatíveis com a literatura, e sugerem preservação intelectual e da memória de longo prazo, bem como déficits no funcionamento executivo, rebaixamento da velocidade psicomotora e mental, e da memória imediata. A discussão desse caso, dada a raridade do quadro, pode contribuir para a compreensão do funcionamento cognitivo de adolescentes com a ST. Finalmente, discutiremos aspectos importantes para a qualidade da avaliação neuropsicológica e encaminhamentos terapêuticos para os portadores desta síndrome.
Palavras-Chave: neuropsicologia, avaliação, cognição, síndrome de Tourett.
ABSTRACT
This article discusses findings resulting from the neuro-psychological assessment of an adolescent with Tourette Syndrome (TS), a rare neuro-developmental disorder characterized by the manifestation of physical and/or audible tics that emerge in childhood or early adolescence. Although we performed an extensive assessment of all cognitive functions, our reported findings focus on those functions that are described in prior research as relevant to the understanding of the cognitive profile of patients with this condition. The findings reported here are consistent with other reports and suggest that intellectual and long-term memory potentials are preserved, while noting deficiencies in executive functioning, reduced speed of mental and psycho-motor functions, and decreased recent memory capacity. Given the rarity of this diagnosis, our reporting of this case should contribute to the understanding of cognitive function in adolescents with TS. In addition, this article highlights and describes factors that affect the quality of neuropsychological assessment and facilitate accurate therapeutical diagnosis and referral for TS carriers.
Key-Words: neuropsychology, neuro-assessment, cognitive, Tourette's syndrome.
1 Introdução
Este artigo tem o objetivo de discutir o perfil neuropsicológico de um adolescente diagnosticado com a Síndrome de Tourette (ST), desordem neurodesenvolvimental rara, caracterizada pela presença, há mais de um ano, de tiques motores e sonoros, simples e complexos, estereotipados, de intensidade, frequência e severidade variáveis, que comumente se desenvolvem durante a infância ou início da adolescência, e persistem por toda a vida (Eddy, Rizzo & Cavanna, 2009).
A ST está associada a rebaixamento da autoestima, comprometimento do rendimento escolar e presença de dificuldades nas relações socioafetivo e familiares (Rasmussen, Soleimani & Hodlevsky, 2009). Foi descrita pela primeira vez em 1825, pelo médico francês Jean-Marc Gaspard Itard, que atuava na Instituição Real para surdos-mudos de Paris (Kushner, 2000). Os relatos de Itard referem-se ao estranho comportamento da Marquesa de Dampièrre, nobre francesa de 26 anos que emitia sons e proferia obscenidades, o que a obrigou a viver reclusa durante grande parte de sua vida (Kushner, 2000; Bastos & Vaz, 2009). Passados sessenta anos da descrição de Itard, o neurologista George Gilles de La Tourette partiu do caso da Marquesa para caracterizar o que denominou de maladie des tics, em português, "doença dos tiques" (Kushner, 2000; Bastos & Vaz, 2009).
De acordo com a Associação de Psiquiatria Americana (APA), a ST tem como critérios diagnósticos: a. Múltiplos tiques motores e um ou mais tiques vocais em algum momento durante a doença, embora não necessariamente ao mesmo tempo (um tique é um movimento ou vocalização súbita, rápida, recorrente, não rítmica e estereotipada); b. Os tiques ocorrem muitas vezes ao dia (geralmente em ataques) quase todos os dias ou intermitentemente durante um período de mais de 1 ano, sendo que durante este período jamais havendo uma fase livre de tiques superior a 3 meses consecutivos; c. A perturbação causa acentuado sofrimento ou prejuízo significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo; d. O início dá-se antes dos 18 anos de idade; e. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (por exemplo, estimulantes) ou a uma condição médica geral (por ex., doença de Huntington ou encefalite pós-viral) (DSM-IV-TR, 2002, p.101).
Os tiques vocais podem ser simples ou complexos. Os primeiros se expressam através do coçar a garganta, fungar, gritar ou grunhir. Os tiques vocais complexos são traduzidos pela coprolalia (uso involuntário ou inapropriado de palavras obscenas), palilalia (repetição de palavras ou frases) e ecolalia (repetição involuntária de palavras ou frases de outras pessoas). Os tiques podem ser exacerbados quando os sujeitos se encontram em situações consideradas ansiogênicas ou que promovam tensão emocional, ao mesmo tempo em que podem deixar de ocorrer por segundos ou horas. Adicionalmente, os sujeitos com ST podem igualmente apresentar comportamentos disfuncionais, tais como a imitação de gestos realizados por outras pessoas, sejam eles comuns (ecocinese) ou obscenos (ecopraxia) e a realização de gestos obscenos (copropraxia) (Ramalho, Mateus, Souto & Monteiro, 2009). A taxa de prevalência da ST tem variado nos estudos. No entanto, para a grande maioria, o diagnóstico seria encontrado em 0,04 a 0,05% da população (APA, 2002; Nielsen, 1999), com incidência maior (3:1 a 5:1) no sexo masculino (Bastos & Vaz, 2009; Hirtz, Thurman, Gwinn-Hardy, Mohamed, Chaudhuri & Zalutsky, 2007; Robertson & Yakely, 2002).
A ST está associada a diferentes comorbidades, tais como ansiedade, depressão, dificuldades de aprendizagem e desordens do sono (Leckaman, Yeh, & Lombroso, 2003). No entanto, os transtornos comumente associados são o de déficit de atenção com hiperatividade e o obsessivo-compulsivo (e.g., Freeeman, 2007, Goetz, 2007, Swain, Lawrence, Lombroso, King & Leckman, 2007). Considerando que a ST está associada a diferentes comorbidades, alguns estudos têm sido realizados no sentido de contribuir com uma melhor compreensão do perfil neuropsicológico de crianças e adolescentes com essa síndrome. Com esse objetivo e usando estratégias de investigação similares às utilizadas no presente artigo, podemos citar o estudo realizado por Bornstein, Baker, Bazylewich e Douglass (1991) que investigou o desempenho de 28 adolescentes, caracterizados como portadores da ST, em testes neuropsicológicos. Ainda com o objetivo de definição de um perfil de funcionamento cognitivo, Cavanna, Eddy e Rickards (2009) fizeram uma revisão da literatura destacando os principais resultados de estudos centrais que investigam o funcionamento cognitivo de pacientes com ST. Tais autores também discutem as limitações e as implicações neurológicas dos principais achados das pesquisas relatadas.
Os estudos de neuroimagem estrutural e funcional têm evidenciado alterações nos núcleos da base, notadamente no volume do putâmen esquerdo, bem como na atividade e metabolismo do córtex pré-frontal, do estriado, do tálamo, envolvendo o sistema límbico, motor e de linguagem. De modo geral, pode-se afirmar que as regiões destacadas compõem o circuito córtico-estriado-talâmico (Bastos & Vaz, 2009). Disfunções neste circuito ocasionam déficits neuropsicológicos associados aos domínios motor, de percepção visual, atenção, memória, aprendizagem e funcionamento executivo (Eddy et al., 2009).
Vale salientar que não há consenso em torno da etiologia de tais déficits. Algumas pesquisas propõem que as alterações neuropsicológicas identificadas na ST estariam diretamente associadas às comorbidades, notadamente às alterações de funcionamento executivo e atenção (Channon, Pratt & Robertson, 2003). Por outro lado, autores discutem que as alterações motoras e de processamento visual, consistentemente apontadas na literatura como vinculadas à ST, seriam identificadas em casos puros da síndrome, apesar do comprometimento ser considerado menor quando comparados aos casos de ST associados ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H) ou ao Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), tal como citado por Osmon e Smerz (2005).
Nesse sentido, a investigação neuropsicológica do quadro clínico ora aqui discutido pode contribuir para uma maior compreensão acerca do funcionamento cognitivo deste grupo clínico. Consequentemente, pode também favorecer reflexões acerca das implicações para um planejamento escolar, bem como guiar a tomada de decisão em termos de reabilitação. Tudo isso tem o potencial de contribuir para o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes diagnosticados com a ST.
2 Apresentação do Caso Clínico
L. é um adolescente de 14 anos, cursando o 9º ano do Ensino Fundamental. Nasceu de parto normal aos nove meses de gestação sem intercorrências e sem complicações evidenciadas. Segundo os pais, seu desenvolvimento transcorreu normalmente, com destaque apenas para um pequeno atraso no início da fala. Relatórios de desenvolvimento escolar também apontam algumas dificuldades no campo da linguagem (produção/articulação e compreensão) desde a Educação Infantil. Naquela ocasião, a família buscou ajuda fonoaudiológica, levantando-se a possibilidade de um diagnóstico de Dislexia. No campo da matemática, dificuldades são referidas desde os anos iniciais de escolarização. A situação atual é de baixo desempenho acadêmico em todas as disciplinas.
Há aproximadamente dois anos, L. apresenta alguns comportamentos repetitivos que foram identificados como tiques (estalido da língua e piscar de olhos). O diagnóstico psiquiátrico é de Síndrome de Tourette. Além do tratamento psiquiátrico, ele tem acompanhamento psicológico com o objetivo de auxiliá-lo a lidar com a ansiedade e fortalecer sua autoestima, já que dificuldades de relacionamento, sobretudo no âmbito escolar, também se tornaram presentes.
O encaminhamento para avaliação neuropsicológica foi feito pelo psiquiatra, com o intuito maior de investigar a presença de possíveis dificuldades cognitivas decorrentes do uso da medicação (Primozida 3mg/dia e Metilfenidato 18mg/dia).
Como de hábito em avaliações neuropsicológicas, além das entrevistas de anamnese, foi utilizada uma bateria de testes que incluem: instrumentos de avaliação de nível intelectual, testes de avaliação da atenção e da memória em suas diversas dimensões, testes visuoespaciais e visuoconstrutivos, testes de avaliação das funções executivas. Dentre estes, como instrumentos de particular valor para o diagnóstico diferencial, destacam-se os que avaliam a atenção e as funções executivas.
O processo avaliativo foi realizado em dez sessões, incluindo duas entrevistas com os pais e instrumentos utilizados, estão listados a seguir:
- Capacidade intelectiva
* Escala de inteligência wechsler para criança (WISC-III): Avalia dois fatores ligados à inteligência: QI verbal e QI de execução. O QI verbal está relacionado ao conhecimento adquirido, cristalizado, raciocínio sobre materiais verbais, compreensão verbal e memória operacional sobre conteúdos verbais. O QI de execução, por sua vez, avalia a inteligência fluida, processamento espacial, organização perceptual e integração visuomotora.
- Atenção
* Teste de atenção concentrada (AC): Avalia a capacidade de selecionar um conjunto de estímulos dentre outros, resistir à interferência de estímulos distratores e dividir a atenção entre três estímulos específicos.
* D2: Avalia também a capacidade de seleção de um estímulo dentre outros, enquanto inibe estímulos concorrentes. Tem sobre outros testes de atenção, a vantagem de permitir um exame mais detalhado da capacidade de concentração, na medida em que fornece vários tipos de resultados que tornam possível avaliar separadamente a rapidez, a exatidão, a qualidade da atenção e a flutuação no desempenho.
- Percepção visual
* Subteste percepção da bateria neupsilin: Propõe-se a avaliar a percepção visual com ênfase na percepção de faces.
- Memória verbal
* Rey auditory verbal learning test (RAVLT): O paradigma de aprendizagem auditivo-verbal de Rey é utilizado em todo o mundo, tanto em pesquisa quanto na clínica. Há consenso sobre sua validade psicométrica e de que seus vários escores fornecem informações relevantes sobre diferentes aspectos da memória e da aprendizagem.
- Memória episódica
* Teste de recordação de história: Verifica a capacidade de armazenar e recuperar informações de caráter episódico, relativas a fatos que compõem duas histórias que são apresentadas oralmente. Tais informações são solicitadas logo após a leitura de cada história e, trinta minutos após, é novamente solicitada a recuperação das informações contidas em ambas as histórias lidas.
- Funções executivas
* Teste wisconsin de classificação de cartas: Avalia a capacidade de raciocínio abstrato e a capacidade para modificar as estratégias cognitivas em resposta a contingências ambientais mutáveis. Como tal, permite a avaliação das funções executivas, na medida em que requer a capacidade de desenvolver e manter uma estratégia apropriada de solução de problema. A tarefa proposta pelo teste demanda planejamento estratégico, exploração organizada utilizando feedback ambiental para modificar contextos cognitivos, direcionando o comportamento para alcançar um objetivo e modulando a tendência a respostas impulsivas.
* Teste de stroop: Avalia a capacidade de selecionar um aspecto do estímulo enquanto inibe respostas impulsivas ou usuais. Ou seja, o indivíduo deverá ser capaz de inibir a tendência automática de leitura de palavras, para, ao invés disso, manter-se fiel à instrução do teste e dizer apenas a cor na qual a palavra está escrita.
* Teste de fluência verbal: Os testes de fluência verbal avaliam a capacidade de produzir linguagem, espontaneamente, dentro de uma estrutura de regras específica. A fluência pode ser investigada quanto aos aspectos semânticos (da ordem das categorias de palavras) ou fonológicos (da ordem dos sons que iniciam as palavras). Contribui também para a investigação de aspectos relativos à memória semântica.
- Visoespacialidade e Visoconstrução
* Figuras Complexas de Rey: Em linhas gerais, esse teste avalia a organização visuoespacial (percepção), praxia visuomotora, memória visual, memória de curto prazo, planejamento e desenvolvimento de estratégias. É um teste de cópia e de reprodução de memória de figuras geométricas complexas. Objetiva verificar o modo como o sujeito apreende os dados perceptivos que lhe são apresentados e a conservação espontânea pela memória.
3 Resultado quantitativo e síntese interpretativa
A partir deste momento, teceremos alguns comentários a respeito do perfil neuropsicológico de L., apresentando em paralelo os dados quantitativos da sua avaliação.
Capacidade intelectiva
A análise do seu desempenho na WISC III aponta para diferença significativa (acima de 15 pontos) entre os escores nos domínios verbal e de execução, o que representa heterogeneidade da capacidade intelectiva global. O cálculo da amplitude no domínio não verbal, o cálculo das diferenças entre os escores fatoriais da escala verbal e da escala de execução, bem como a análise da discrepância entre compreensão verbal e organização perceptual, possibilitam afirmar que o QI total não é uma medida válida no caso de L., exigindo que a análise seja realizada com base no desempenho isolado nas escalas verbal e de execução, bem como nos valores dos índices fatoriais. Salienta-se que tal discrepância é por si mesma significativa, uma vez que estudos indicam que esta comumente associa-se a lesões e/ou disfunções neurológicas (Figueiredo, 2000).
O desempenho de L. na escala verbal apresentou-se de acordo com a média esperada (Percentil 58). Já na escala de execução, obteve a classificação limítrofe (Percentil 05). Esse rebaixamento deveu-se, sobretudo, ao seu desempenho no subteste de armar objetos, cuja pontuação ponderada foi de apenas 01 (um) ponto. Tal subteste investiga essencialmente a organização visuoespacial e a capacidade executiva de planificação, sob regime de controle do tempo. Tal desempenho explica igualmente a classificação limítrofe atribuída ao índice fatorial de organização perceptual (Percentil 05). Tais resultados serão posteriormente discutidos.
Atenção
O desempenho de L. na avaliação da atenção (testes AC e d2), não foi compatível com déficit de atenção. No d2 demonstrou capacidade para selecionar corretamente o estímulo (seletividade), para manter o foco atencional (concentração) e agilidade na execução da tarefa. Em termos qualitativos, L. percebe os erros que comete e tende a corrigi-los, ainda que não consiga evitá-los – o que é sugestivo de dificuldade de controle inibitório, tal como será discutido posteriormente no item "funções executivas". Tais achados contribuem para o debate acerca da etiologia dos déficits atencionais na ST. Os resultados apresentados corroboram dados da literatura que sugerem que os déficits atencionais identificados em sujeitos com diagnóstico de ST estão mais associados à neuropatologia das comorbidades do que a aspectos neurobiológicos da síndrome (Osmon & Smerz, 2005).
Processamento visual
Os achados oriundos da avaliação neuropsicológica, relacionados ao processamento visual, indicam que não há dificuldades relacionadas à função perceptiva elementar, ou seja, na apreensão de estímulos visuais apresentados em diferentes modalidades. No entanto, déficits são identificados quando a atividade exige a integração visual, notadamente associada à visoconstrução e às funções executivas de planejamento, automonitoramento, execução e controle de movimento fino. Nesse sentido, o desempenho de L. ficou abaixo do esperado nos subtestes armar objetos (01 ponto ponderado) e cubos (08 pontos ponderados). Ambos subtestes são da escala WISC III.
Os resultados destacados são semelhantes aos dados presentes na literatura da área. Comumente, as dificuldades referidas no processamento visual, decorrentes da disfunção frontoestriatal, são localizadas nos domínios visuomotor e visuoespacial, mas não no domínio visuoperceptual. No entanto, é interessante notar que L. obteve resultado na média superior (Percentil 75) para a cópia da figura complexa de rey, atividade que exige integração visual e visuoconstrução (Rauch & Savage, 1997). Nesta direção, estudos apontam para a inconsistência dos déficits no domínio perceptual, sugerindo que a natureza da tarefa tem papel relevante (Osmon & Smerz, 2005).
Por outro lado, pesquisas ressaltam que, comumente, as tarefas que avaliam a visuoespacialidade e visuoconstrução exigem o controle motor, habilidade comumente afetada, o que torna a evidência de déficits perceptuais na ST limitada, exigindo investigação rigorosa, em especial quando é identificada comorbidade com TDA/H (Eddy et al., 2009).
Memória
A análise do desempenho de L. nos instrumentos de avaliação dos sistemas mnemônicos indica que ele é capaz de codificar, armazenar e recuperar informações, reconhecendo mais facilmente que evocando, como esperado. Tais resultados são similares aos dados da literatura, que reforçam a inexistência de dificuldades na memória associadas a ST (Eddy et al., 2009). No entanto, estes mesmos estudos indicam falhas na construção de estratégias mnêmicas, o que poderia vir a explicar o pior rendimento de L. na memória imediata quando comparado à memória tardia, ou seja, a informação precisa de mais tempo para ser processada e armazenada.
A investigação da memória operacional, associada às funções executivas, revela que L. teve desempenho na média inferior no subteste dígitos (07 pontos ponderados) da WISC. Torna-se relevante destacar que comumente, nos casos de ST pura, a memória operacional encontra-se intacta. Por sua vez, tal sistema é consistentemente comprometido quando a ST está associada ao TDA/H (Eddy et al., 2009), o que é sugestivo de comorbidade no caso de L.
Funções executivas
Inicialmente, destaca-se a necessidade de investigação das funções executivas, não como constructo unitário e homogêneo, mas essencialmente como conjunto de habilidades que demandam avaliação específica de seus componentes. Nesse sentido, estão preservadas em L. as habilidades de abstração e flexibilidade do pensamento, formação de conceito e construção de categorias, avaliadas pelo teste de fluência verbal (na média), wisconsin (na média em relação ao percentual de erros perseverativos, às categorias completadas, às respostas de nível conceitual, ao número de ensaios para completar a primeira categoria), bem como pelo subteste de semelhanças do WISC (acima da média, 11 pontos ponderados).
No entanto, no que se refere às habilidades de planejamento, execução e auto-monitoramento, o seu desempenho aponta para a possibilidade de dificuldades importantes. A este respeito, destaca-se o rendimento de L. no item fracasso em manter o contexto do wisconsin (2DP abaixo da média) e no item aprendendo a aprender (3DP abaixo da média). Tais aspectos exigem a competência para automonitorar a estratégia utilizada, sendo esta habilidade bastante sensível à distração. Assim, pequenos deslizes da atenção nesta tarefa podem gerar grande prejuízo. Além disso, destaca-se o baixo desempenho de L. nos subtestes do WISC III: armar objetos (1 ponto ponderado) e cubos (8 pontos ponderados). Nos dois subtestes em questão, além das competências de planejamento, execução e automonitoramento, estes demandam competência para coordenar ações psicomotoras amplas e finas, o que sugere eventuais dificuldades no domínio da visuoconstrução.
Outra habilidade das funções executivas aqui destacada é o controle dos impulsos, avaliada em dois instrumentos: stroop e wisconsin. Seu desempenho em ambos os instrumentos sugere dificuldade. No stroop, o tempo utilizado na execução da tarefa ficou acima da média populacional (3DP), mesmo considerando que não tenha cometido erros. Isto indica que ele é capaz de se concentrar e realizar a atividade com precisão, ainda que o tempo necessário para isso esteja muito acima do seu grupo de referência, ou seja, parece haver rebaixamento da velocidade psicomotora. Ainda nessa direção, observa-se que L. ficou 2DP acima da média no item fracasso em manter o contexto do wisconsin, o que sugere dificuldade no controle da impulsividade. Dados similares foram encontrados no item aprendendo a aprender (desempenho abaixo de 3DP), que avalia a capacidade do sujeito de beneficiar-se da experiência do teste e diminuir, ao longo da atividade, o número de tentativas necessárias para o alcance do objetivo.
Os resultados supracitados são coerentes com a perspectiva que defende que a ST não apresenta déficits em aspectos cognitivos do funcionamento executivo, tais como resolução de problemas e raciocínio conceitual. No entanto, parece estar associada à presença de déficits diretamente relacionados ao funcionamento subcortical do sistema frontoestriatal, comprometendo assim a velocidade motora e mental, o que configuraria clinicamente uma síndrome desexecutiva (Osmon & Smerz, 2005).
4 Perfil neuropsicológico
O perfil neuropsicológico de L. aproxima-se dos perfis associados a pacientes com disfunção frontoestriatal, tal como Parkinson ou Coréia de Huntington. No entanto, vale salientar que a partir da avaliação neuropsicológica é possível identificar particularidades em termos de habilidades executivas específicas, relacionadas a cada um desses quadros. Adicionalmente, ressalta-se aqui a importância de se compreender tais peculiaridades, por exemplo, pelo fato de que o Mal de Parkinson e a Coréia de Huntington são patologias degenerativas e a ST não.
O desempenho de L. nas tarefas propostas na avaliação neuropsicológica sugere déficits no funcionamento executivo, notadamente em habilidades associadas a áreas subcorticais. Tais achados são importantes para a compreensão de algumas características do seu perfil neuropsicológico. Inicialmente destaca-se a discrepância entre os domínios verbal e não verbal da WISC-III. Relembra-se que o subteste no qual L. obteve pior rendimento foi armar objetos, que avalia diretamente a visuoconstrução e visuoespacialidade sob controle de tempo. Tal perfil coaduna-se ao que aponta a literatura, quando esta sugere a preservação do potencial intelectivo dos pacientes com ST, mesmo que a discrepância entre as habilidades verbais e de execução ainda seja um ponto de discordância entre os estudos (Rasmussen et al., 2009).
O rebaixamento da velocidade psicomotora e mental pode estar subjacente a outros resultados identificados, como por exemplo, o baixo rendimento em memória imediata e preservação da habilidade mnêmica a longo prazo. Nota-se, adicionalmente, que L. não apresentou dificuldades em tarefas de visuoconstrução nas quais o tempo não interferiu na pontuação, tal como as figuras complexas de rey. Por outro lado, vale à pena considerar que L. utilizou mais de sete minutos para a execução da tarefa de cópia, o que corrobora a perspectiva de comprometimento da velocidade psicomotora e mental.
Outro ponto importante a salientar é o desafio na circunscrição da ST pura e a ST associada às suas principais comorbidades, a saber, o TDA/H e o TOC. Não há unanimidade na literatura em termos da presença e modalidade dos déficits atencionais e de memória operacional na ST pura. Tais déficits estão normalmente associados aos transtornos de TDA/H e TOC (Swain et al., 2007).
5 Considerações finais
Considerando ter sido o objetivo deste artigo, discutir acerca do perfil neuropsicológico de um adolescente diagnosticado com uma síndrome rara como o é a Síndrome de Tourette (ST), desejamos finalizá-lo trazendo à tona a importância da interdependência necessária a qualquer processo de avaliação neuropsicológica. A saber, a interdependência entre a utilização de recursos de caráter quantitativo e a necessária complementação da análise com uma metodologia qualitativa.
Ressalta-se que a avaliação neuropsicológica deve contemplar um continuum entre aspectos quantitativos e qualitativos, atentando-se que o baixo desempenho em tarefas cognitivas específicas não representa, necessariamente, a existência de um déficit cognitivo na função correspondente. Por vezes, o déficit está associado a habilidades subjacentes à realização da tarefa. Nesse sentido, o baixo rendimento em teste de atenção pode não estar associado à seletividade ou à sustentação, mas ao rebaixamento da velocidade psicomotora, exigida na tarefa de cancelamento, sendo este o paradigma dominante na avaliação da atenção. Sendo assim, defende-se aqui que os resultados de uma dada avaliação neuropsicológica devem ser tomados em sua totalidade, em consonância com a compreensão neuropsicológica do quadro clínico do paciente e com seus aspectos idiossincráticos.
Diante do exposto, no que se refere ao tratamento e encaminhamento apontados para L., foi sugerida aqui a manutenção do acompanhamento deste paciente por um neuropsiquiatra, notadamente em termos da prescrição e acompanhamento da medicação necessária. Foi sugerido ainda o acompanhamento psicoterápico, com o objetivo de auxiliá-lo a lidar com a ansiedade e com a socioafetividade, sobretudo no que diz respeito à relação com a presença dos tiques. Indica-se ainda o trabalho de reabilitação neuropsicológica, com o intuito de favorecer o desenvolvimento de estratégias de planejamento e gerenciamento de resolução de problemas, devendo ser ainda trabalhadas as suas dificuldades visuomotoras, sobretudo diante de atividades realizadas dentro do controle de tempo.
Sendo esse um caso clínico raro, sobre o qual existem ainda poucos relatos de casos, bem como um universo de reflexões teóricas ainda dissonantes, entendemos que o esforço aqui empreendido tem o seu lugar de contribuição. Contudo, ainda se constitui como um campo aberto ao desenvolvimento de novas pesquisas, sobretudo no Brasil.
Finalizando, tecemos alguns comentários a respeito dos limites deste artigo. Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar que este relato de caso é proveniente de um trabalho realizado num contexto clínico e não resultado de um trabalho de pesquisa em sentido estrito. Como tal, apesar do caso contribuir para a investigação do perfil neuropsicológico, traz em si mesmo o limite de ser o relato de apenas um caso. Contudo, por ser um caso de ST, tem a sua contribuição, dada a raridade do quadro clínico.
Outro aspecto relevante que merece destaque acerca de possíveis limitações do presente estudo diz respeito ao caráter ecológico de uma avaliação. Entendemos que a avaliação ecológica tem um lugar de destaque inquestionável nos processos de investigação do funcionamento psíquico e cognitivo, e, tanto quanto possível, deve ser valorizada e contemplada. No entanto, considerando que este trabalho foi realizado num contexto de atendimento clínico, isso não pôde ser feito. Apesar de levarmos em conta aspectos psicossociais, psicoafetivos e psicoeducacionais, isso ainda não foi suficiente para que o consideremos como uma avaliação ecológica no sentido mais amplo do termo.
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Endereço para correspondência
Eliana Gomes da Silva Almeida
Núcleo de Avaliação Neuropsicológica e Acompanhamento Psicoterapêutico (NANAP)
Rua Bernardino Soares Silva, 70 Sl. 301, Espinheiro, CEP 52020-080, Recife – PE, Brasil
Endereço eletrônico: eligsa.almeida@gmail.com
Pompéia Villachan-Lyra
Universidade Federal Rural de Pernambuco, UFRPE, Recife - PE- Brasil
Rua Bernardino Soares Silva, 70 Sl. 301, Espinheiro, CEP 52020-080, Recife – PE, Brasil
Endereço eletrônico: lyrapomp@gmail.com
Izabel Hazin
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Natal-RN-Brasil
Av. Senador Salgado Filho, s/n, Campus UFRN, CCHLA – DEPSI, Lagoa Nova, CEP 59078-970, Natal - RN, Brasil
Endereço eletrônico: izabel.hazin@gmail.com
Recebido em: 21/03/2012
Reformulado em: 03/01/2013
Aceito para publicação em: 07/03/2013
Acompanhamento do processo editorial: Deise Maria Leal Fernandes Mendes
Notas
* Mestre em Psicologia Cognitiva - UFPE.
** Doutora em Psicologia Cognitiva - UFPE.
*** Doutora em Psicologia Cognitiva - UFPE.