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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.14 no.3 Rio de Janeiro dez. 2014

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Cartografar (n)a prisão

 

To cartograph (in) the prison

 

Cartografiar (en) la prisión

 

 

Maynar Patricia Vorga Leite*

Superintendência dos Serviços Penitenciários – SUSEPE, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar desafios específicos encontrados para pesquisar utilizando a cartografia como método em espaços, nos quais a circulação é restrita, como o cárcere. A cartografia enquanto metodologia de pesquisa poderia ser considerada como um exercício ético da possibilidade de ir e vir, ao passo que a prisão seria justamente o moralizante impedimento para tanto. Embora tenha sido escrito a partir de uma pesquisa cartográfica realizada num estabelecimento prisional, o texto não é um relato dessa investigação e sim uma análise peculiar sobre os dispositivos e ferramentas que tornaram possível cartografar no cárcere e cujas potencialidades foram evidenciadas ao praticar essa metodologia em condições tão limitantes à sua execução. A fim de apresentar esse processo de cartografar (n)a prisão é necessário mostrar os caminhos trilhados para ingressar nesse espaço, a adoção da cartografia como exercício e postura ética e uma análise da prisão durante o percurso. Para tanto é forçoso questionar como, por que, para que e o quê cartografar na prisão, abordando algumas considerações sobre política e economia do conhecimento. Desse modo, o artigo apresenta a cartografia como um método possível e potente para pesquisar no espaço prisional.

Palavras-chave: cartografia, prisão, cárcere, políticas do conhecimento.


ABSTRACT

This paper aims to enlighten specific defies, faced to research using the cartography as a method within places such as prison, where the movements are restricted. Cartography as a research methodology should be considered an ethic exercise of the possibility of moving around, whereas prison would precisely be the moralistic coercion against doing so. Though this text was written from a cartographic research developed in a penitentiary, it is not a report of this investigation, but a peculiar analysis about the dispositives and tools that made possible to cartography in prison, and which potentialities were highlighted when practicing this methodology in conditions so limiting to its execution. In order to expose this process of cartographying (in) the prison it is needed to show the pathways opened to enter this field, the adoption of cartography as an exercise and an ethic position, and an analysis of the prison in the course of the research. In order to do all this, it is necessary to query how, why, what and what for do a cartography inside the prison, dealing with some considerations about knowledge policy and economy. This way, this paper poses the cartography as a possible and potent method to research in the space of prison.

Keywords: cartography, prison, jail, knowledge policies.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar desafíos específicos encontrados para pesquisar utilizando la cartografía como método en espacios donde la circulación es restricta, como la cárcel. La cartografía como método de investigación podría ser considerada un ejercicio ético de la posibilidad de ir y venir, mientras que la prisión sería justamente el moralizante impedimento para tanto. Aunque haya sido escrito a partir de una pesquisa cartográfica realizada en un establecimiento penitenciario, el texto no es un relato de esa investigación, sino un análisis peculiar de los dispositivos y herramientas que tornaron posible cartografar en la cárcel, y cuyas potencialidades quedaron evidentes al practicar esa metodología en condiciones tan limitantes para su ejecución. Para presentar ese proceso de cartografiar (en) la prisión es necesario mostrar los caminos abiertos para ingresar en ese espacio, la adopción de la cartografía como ejercicio y postura ética, y un análisis de la prisión durante el trayecto. Para tanto es forzoso cuestionar como, por qué, para qué y lo qué cartografiar en la prisión, abordando algunas consideraciones sobre política y economía del conocimiento. De ese modo, el artículo presenta a la cartografía como un método posible y potente para pesquisar en el espacio carcelario.

Palabras clave: cartografía, prisión, cárcel, políticas del conocimiento.


 

 

1 Introdução

A distância não é como a matemática que precisa de cálculos para resolvê-la.
É um pouco de tudo indefinido.
É a saudade que tenho de tudo que perdi.
É a ânsia por respirar liberdade (Anônimas da B4 et al). 1

Este artigo é produto da experiência em pesquisa cartográfica realizada na Penitenciária Feminina Madre Pelletier (PFMP) nos anos de 2011 e 2012. O objetivo é analisar, a partir da Análise Institucional e do Abolicionismo Penal, os desafios que o cárcere apresentou para pesquisar de acordo com esse método, bem como as ferramentas que tornaram possível essa cartografia. Para tanto, a pesquisa e algumas das ferramentas empregadas serão descritos paulatinamente intercalando aspectos do campo da pesquisa e do conhecimento nela produzido.

A pesquisa pretendia lançar alguma luz sobre novos caminhos possíveis para a desconstrução da criminalidade e para a administração das situações e comportamentos criminalizados e criminalizáveis (Hulsman, 1993, pp. 75-6). Para tanto, a proposta era cartografar produções de vida no cárcere realizando grupo de discussão e escrita junto a pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade. No primeiro ano a cartografia consistiu em construir caminhos para obter as permissões necessárias e, nesses percursos, familiarizar-me com algumas rotinas e peculiaridades do sistema prisional e dessa Penitenciária. Durante o ano de 2012 foram realizados encontros grupais de discussão e escrita, semanais e com uma hora de duração. Para compor o grupo foram convidadas mulheres privadas de liberdade na galeria de seguro, uma parte dos estabelecimentos prisionais destinada às pessoas em situação de prisão cuja integridade física está ameaçada e que nessa Penitenciária chama-se B4. A estas pessoas não lhes é permitido permanecer ou circular pelo mesmo ambiente que as outras; além disso, raramente é possível preparar atividades exclusivamente para elas. Uma funcionária da Penitenciária se referiu às mulheres da B4 como sendo as mais excluídas dentre as excluídas, e essa situação me levou a querer trabalhar justamente com essas prisioneiras.

A cartografia é um método de pesquisa-intervenção no qual o pesquisador mergulha no campo e se mantém atento ao que não espera encontrar, às irregularidades, surpresas, inconsistências, às forças declaradas ou não e aos seus jogos, aos movimentos e devires. Não busca essências ou descobertas de objetos dados, e sim a problematização do que se encontra naturalizado. Justamente por acompanhar fluxos, uma cartografia não tem momento definido para começar. Desse modo, cabe salientar que no ano de 2009, realizando estágio de Psicologia Clínica em outro estabelecimento prisional, havia começado a compreender o cárcere na perspectiva da Análise Institucional e da Criminologia Crítica, isto é, como um dispositivo de poder que, sob pretexto de propiciar segurança pública, se constitui numa opção política de segregação, num espaço no qual toda fluidez é restrita, prescrita e proscrita, que se organiza e funciona mediante barreiras e bloqueios naturalizados. A PFMP seguia os padrões dos estabelecimentos prisionais de regime fechado: muros, portões de metal, cães de guarda, grades chaveadas em todas as passagens, um posto de segurança na entrada, onde era necessário entregar a identidade e ser revistado com ou sem detector de metais. Nesse contexto, seria cabível pensar em cartografar, que envolve circular, fazer circular, vaguear...?

Assim sendo, ingressar na prisão para fazer esta pesquisa demandou contato direto com o instituinte que resistia no cárcere (Baremblitt, 1992). Magaly, uma psicóloga que trabalhava na Penitenciária e que anteriormente me havia ajudado a encontrar um supervisor de estágio, sugeriu temas de discussão que, inseridos na apresentação do projeto, funcionaram como chaves, facilitando a sua aceitação por parte das autoridades envolvidas. A pesquisa foi muito bem acolhida pelas instâncias que deveriam autorizar sua execução – nas pessoas das diferentes diretorias e assessorias que se sucederam desde as primeiras tratativas até o último encontro na B4. Enquanto pesquisadora, além das autorizações inerentes à pesquisa, foi necessário que a direção da Penitenciária me fornecesse um documento indicando as datas e os horários em que me era permitido ingressar, bem como o nome da pessoa que me acompanharia, posto que o meu acesso e circulação na PFMP estavam condicionados ao acompanhamento permanente por um profissional da Penitenciária. Fui acompanhada sucessivamente por duas psicólogas: Magaly, durante a familiarização, e Faltemara, durante o período de encontros grupais. Para além das permissões formais, Magaly e Faltemara me acolheram – sem me conhecer –, desempenhando um papel de cicerone que foi fundamental para que a pesquisa na prisão pudesse configurar-se como cartografia. No seu fazer aguerrido elas me ensinaram tudo quanto sabiam sobre o funcionamento do cárcere, abrindo caminhos e alertando-me para as armadilhas institucionais. Houve também atitudes receptivas por parte de alguns trabalhadores da Penitenciária que faziam resistência aos entraves do cárcere; eles tentavam facilitar ao máximo o meu ingresso, sorriam, perguntavam gentilmente como estava indo o meu trabalho e falavam da importância desse tipo de estudo.

 

2 Cartografar... (n)a prisão?!

De acordo com Barros (2007, p. 210), cartografar é "traçar as linhas que estão compondo um determinado território, as que estão dele escapando produzindo desterritorializações, as que estão se recompondo produzindo reterritorializações". A cartografia pressupõe lugares móveis, circulação livre e relações lateralizadas de conhecimento e poder, além de objetos e sujeitos que não são naturais e que não existem anteriormente ao ato de conhecer. O que se procura não são verdades absolutas, leis ou essências, e sim aquilo que deixa de ser – ou de parecer que era. Trata-se de um modo de pesquisar no qual os objetos são construídos, históricos, contingentes, vinculados a regimes de conhecimento, verdade e poder. A pesquisa cartográfica demanda que sejam tecidos vínculos de lateralidade, de modo que na produção e circulação de saberes não prevaleçam as hierarquias ou barreiras naturalizadas (Alvarez & Passos, 2009).

Em contraposição, as instituições podem ser descritas como sistemas de valores e modos de ação que, embora construídos sócio-historicamente, são admitidos como naturais, universais, absolutos, verdadeiros e necessários na vida cotidiana. Por sua vez, os regimes disciplinares definem categorias de objetos, sujeitos e limites tomados como naturais e pré-existentes ao ato de conhecer; nesse contexto, o regime carcerário consiste em pessoas-objeto naturalizadas como criminosas e inseridas em relações verticais de conhecimento e poder. O cárcere não é aquilo que se lhe atribui: um sistema de inserção social. Trata-se, antes, de uma estratégia de segregação, que classifica e ordena os sujeitos para fins de controle disciplinar, preservando aspectos de castigo, suplício e correção disciplinar (Foucault, 2004b). A organização carcerária atinge todos os envolvidos com o aprisionamento, dificultando a formação de vínculos lateralizados ao bloquear a circulação, o fluxo das pessoas, das informações, dos sentimentos, dos saberes e dos afetos, inibindo a produção de vida e a potência.

Relações de poder/saber predominantemente enrijecidas e verticais tendem a colocar a comunicação a serviço do controle, a propiciar atravessamentos e a prescrever modos de subjetivação mais cristalizados e individualizados. A ressocialização supostamente buscada pelo regime prisional nada mais seria do que o treinamento dos corpos que não se integraram a outras formas de doutrinamento, objetivando, para Foucault (2004b), a docilização a serviço da produção industrial. Já para Zaffaroni (1993) na América do Sul essa docilização por parte do sistema punitivo teria por objetivo manter os países deste Continente na periferia da industrialização. Este giro no ponto de vista do biopoder dá melhores condições para compreender algumas características do sistema penal brasileiro, como a superlotação, que em nada contribuiria com a indústria, mas seria muito útil para manter grandes parcelas da população à margem do acesso igualitário à fruição de direitos.

De acordo com Foucault (2004b) a pena privativa de liberdade dociliza mediante a visibilização intramuros do corpo e o controle do tempo. Quanto à visibilização intramuros do corpo cabe mencionar, por exemplo, o fato de que ao ser chamada por um agente penitenciário a mulher privada de liberdade deve sair da cela imediatamente, ainda que ele seja do sexo masculino e ela se sinta constrangida por estar usando pijama. Já o tempo enclausurado, prescrito para ser vazio, proscrito de invenção, suspenso, é apresentado num trecho escrito pelas participantes da pesquisa para falar sobre a sua rotina (Anônimas da B4 et al.):

A gente se acorda as 07h para a conferência (as agentes vêm conferir se ninguém fugiu ou se ninguém morreu), quem quer café com leite e pão deve sair com a caneca na mão para pegar, voltamos para a cela em menos que dois minutos e resta sentar na cama sem ter absolutamente nada para fazer. Assim passamos o tempo todo esperando o dia passar.

O cárcere também tentava aprisionar o meu corpo e o meu tempo: obter permissões e cicerone foram apenas os desafios iniciais para entrar e circular na prisão. Ao começar a frequentar a B4 configurou-se um fenômeno que Faltemara e eu denominamos "a novela da entrada", constituído por bloqueios nem sempre explícitos, mais ou menos sutis. O meu ingresso era demorado de várias formas. Por vezes a cópia da minha autorização, que devia permanecer no posto de guarda da entrada, se extraviava, sendo necessário apresentar o original e explicar novamente o trabalho. Além disso, com frequência os funcionários de guarda na entrada diziam que a minha acompanhante não se encontrava – embora sempre estivesse lá. Quando era obrigada a esperar antes do posto da guarda podia telefonar para a Faltemara com o meu celular. Mas quando permanecia junto à guarda devia esperar que alguém se dispusesse a chamá-la, ou que ela calculasse a minha chegada e fosse me buscar.

Alcançar a B4 depois de entrar também se constituía num aspecto peculiar do desafio de circular na prisão. O motivo para a clausura específica da galeria de seguro seria a proteção da integridade física de seus ocupantes, ameaçada devido ao envolvimento com facções ou à intolerância, por parte dos outros prisioneiros, contra quem comete certos crimes – no caso das mulheres, abuso ou agressão contra crianças. Além do não acesso às atividades programadas na Penitenciária, esta forma de encarceramento envolve permanecer dentro das celas, 2 que, na B4, tinham paredes ao invés de grades, e portas metálicas com uma pequena vigia, dificultando o contato com o restante da galeria. A segurança da Penitenciária evitava ao máximo que mulheres envolvidas em delitos contra crianças compartilhassem a cela com outras sem essa acusação, mas de toda forma as agressões verbais atravessavam as vigias e, além disso, era possível o contato direto na hora do pátio... Desse modo, além da clausura de praticamente 24 horas diárias havia muita proximidade entre pessoas que cumpriam pena por um delito não tolerado e outras que podiam desejar agredi-las, já que estavam ali por outro motivo. Essa tensão era percebida como se fosse um problema ou uma característica das mulheres que estavam na B4. Assim, essa galeria carregava um estigma especial de clausura e preconceito, perceptível no tom de voz diferenciado com que era sempre mencionada. Essa marca peculiar atravessava o trabalho da pesquisa: quase toda semana era-me dito que não seria possível realizar o encontro – mas depois de algum tempo ele era permitido. E, por mais cedo que eu entrasse na prisão, nem uma única vez conseguimos chegar à B4 no horário estipulado. Estando lá, restava aguardar que as agentes penitenciárias abrissem a galeria, chamassem as participantes, abrissem e fechassem cada cela e tornassem a fechar a galeria.

A condição de seguro das mulheres que estavam na B4 impedia-nos de usar a sala normalmente destinada aos encontros grupais dentro da Penitenciária. A direção determinou que o trabalho fosse realizado num local de passagem do restante da PFMP ao interior da B4, entre a grade de ingresso e uma sala que, por sua vez, dava aceso a um corredor localizado em meio às celas. A frase "Aqui dentro até para conversar, se não aprender a separar, não consegue fazer nada" (Anônimas da B4 et al.) ilustra como toda privacidade é invadida sem pruridos pelo cárcere. O grupo teve o desafio de transformar esse local de passagem num espaço-tempo minimamente privativo:

Como uma vez que a gente estava fazendo o grupo e as agentes e as presas passavam pelo meio da roda, como se fosse uma avenida de mão dupla, e a gente conseguia continuar discutindo mesmo assim, como se não tivesse mais ninguém ali. Ou teve também outras vezes, quando a gente mudava de assunto ou parava de falar se alguém passasse pelo grupo (Anônimas da B4 et al.).

O tempo do grupo também era atravessado pela prisão: embora o projeto previsse encontros de uma hora e meia, as reuniões começavam pouco depois das nove, mas terminavam pontualmente às dez da manhã para conciliar a execução da pesquisa com o trabalho da Faltemara e com as rotinas da Penitenciária. O horário de início sofria percalços, mas o de encerramento era muito mais rigorosamente respeitado, já que às dez horas começava o horário de pátio das mulheres da B4; alterar ou atrasar sistematicamente essa rotina violaria esse direito. O tempo da prisão também atravessava a participação das integrantes do grupo. Ao longo do trabalho algumas mulheres concluíram o cumprimento da pena, ou foram enviadas para outras galerias ou para outros estabelecimentos prisionais. Além disso, eventualmente alguma das participantes era colocada no "castigo", uma galeria totalmente fechada e separada das outras, não podendo compartilhar o encontro. Esses foram alguns dos motivos para que, durante boa parte do trabalho, o grupo tenha permanecido aberto ao ingresso de novas participantes. 3

Conforme Zaffaroni (1993), a principal função do sistema penal – intensificado na B4 – é a destruição das relações horizontais. Mas o cartógrafo não deve aceitar como naturais as classificações objetivas, e sim posicionar-se lateralmente em relação de composição junto ao campo, como numa roda, de modo que todos os envolvidos possam manifestar as suas peculiaridades ao conviver no mesmo plano, tensionando ou desnaturalizando hierarquias (Alvarez e Passos, 2009). Por conseguinte, para cartografar na prisão, aos desafios de entrar, circular e criar um espaço-tempo privativo somou-se o de estabelecer – entre "pesquisadora", "funcionária" e "presas" – relações de cooperação, não hierárquicas. A lateralidade como relação, como ética e como política e economia do conhecimento foi propiciada mediante ferramentas e dispositivos tais como o grupo, a escrita, o caderno, o diário de campo e a análise da implicação.

 

3 Como cartografar (n)a prisão? Dispositivos e ferramentas

Foucault (1979) define o dispositivo como um conjunto heterogêneo de elementos discursivos ou não (como normas morais, organizações arquitetônicas, enunciados científicos), a rede que se estabelece entre eles, os tipos de jogos e de mudanças nas suas posições devido ao processo de sobredeterminação funcional que lhe é característico – pois cada efeito produzido (quer tenha ou não sido previsto ou desejado) estabelece "uma relação de ressonância ou de contradição com os outros", levando a contínuos reajustamentos. O autor explica que esta formação num primeiro momento exerce uma função estratégica dominante, mas que concomitantemente à sobredeterminação funcional ocorre o preenchimento estratégico, isto é a utilização do efeito involuntário desse dispositivo em uma nova estratégia. Podemos entender o dispositivo como algo que, vinculado a uma situação, mobiliza e questiona o status quo, permite, facilita ou propicia a emergência de outra coisa. Pode ser criado ou colocado numa situação voluntariamente, ou pode constituir-se como dispositivo sem que tenha havido a intenção de alguém para tanto. Também pode se inserir alguma coisa para que funcione como dispositivo e acabar reproduzindo as relações de forças que estavam ali instaladas. Mas, uma vez que algo – quer alguém queira quer não – se coloca como dispositivo, a sua inserção é sempre estratégica, pelo modo como nos conectamos a ele. Podemos acompanhar as mudanças de fluxos que ele provoca ou tentar dirigir-lhe o curso, porque um dispositivo está sempre vinculado a condições de possibilidade.

O cartógrafo procura criar dispositivos ou acompanhar o fluxo daquilo que se dispositiva durante o processo. Nesse percurso os conceitos são ferramentas com as quais opera no campo de intervenção. Na B4 estávamos atravessadas pelo cárcere de várias formas, e ainda assim tentávamos fazer grupo. De acordo com Barros (2007) o grupo consiste, enquanto dispositivo, na montagem de uma situação que articula elementos heterogêneos, criando condições para movimentos inesperados, os quais não seriam produzidos sem o encontro. O grupo concebido dessa forma era uma ferramenta improvável e igualmente necessária. Barros (2007) lembra que o trabalho de grupo permite diluir a dicotomia social/individual 4 ao aproximar alteridades no tempo e no espaço; na B4 permitiu estabelecer relações em vários graus de confiança, dando abertura progressiva para que fossem colocadas na roda as discriminações ativas na B4 e os assuntos candentes nas vidas dessas mulheres. Os movimentos na B4 estiveram relacionados com estigmas e com modos peculiares de fazer grupo. A intolerância para com as "infanticidas" 5 era a linha de segregação que mais marcava todas as prisioneiras da B4. No início do nosso trabalho as mulheres que cumpriam pena por agressão contra crianças não tinham voz no grupo e sofriam agressões, nem sempre veladas. Foi necessário que Faltemara e eu sustássemos, repetidamente e com delicadeza, a voz destas mulheres para que, aos poucos, elas pudessem começar a falar. E o desconforto com as "infanticidas" aumentou consideravelmente quando elas assumiram vozes.

Nesse contexto as mulheres da B4 necessitaram testar a capacidade que Faltemara e eu tínhamos para administrar a tensão, e o fizeram observando atentamente as nossas reações enquanto relatavam cenas de agressão física entre elas, incluindo detalhes vívidos como rostos desfigurados com as unhas e água quente fervendo jogada na cabeça. Após o relato o grupo radicalizou a expressão do conflito entre as participantes. Faltemara e eu tivemos a nítida impressão de que elas poderiam se agredir fisicamente, mas sustentamos a tensão até que o preconceito emergiu com toda nitidez. Alguns corpos recuavam e outros avançavam, de modo que Faltemara e eu fomos colocadas como barreiras entre algumas agressoras e uma "infanticida". Quando chegaram muito perto da agressão física uma das acusadoras conteve a tensão do grupo. Alguns encontros depois uma das participantes perguntou: "vocês que são psicólogas, por que é que essa gente faz isso?" 6. Esta pergunta era o primeiro movimento grupal que nitidamente questionava o status de "infanticida" como essência ou natureza, posto que para perguntar "por que" era necessário pensar como foi que ela "se tornou" diferente de "nós" e que "esse algo diferente" podia ser compreendido. Perguntar era uma forma de permitir um espaço mínimo para escutar as participantes que cumpriam pena por esses delitos.

O dispositivo-grupo da B4 operou com características que guardam relação com o tipo peculiar de tensão presente nessa galeria. No início o grupo aparentava estar cindido em subgrupos que compareciam aos encontros alternadamente. Enamoramentos, ciúmes, rivalidades e conflitos por roubos ou denúncias ocorrem com freqüência entre seres humanos, mas eram acentuados pela combinação entre enclausuramento e preconceito sofrida na B4. Por causa dessa intensidade os afetos podiam derivar em agressão física – o que, por sua vez, faria com que a Direção da Penitenciária interrompesse o nosso trabalho. Nestas condições, sentar-se em círculo e conversar foi impossível no início; para conseguir continuar, o grupo necessitou organizar-se de modo tal que, quando algumas participantes fossem ao encontro, as outras não o fizessem. As mulheres que não compareciam precisavam confiar em que o grupo continuaria com "as outras", e que o faria justamente porque elas não haviam ido. Não estar era não encontrar-se e, ao mesmo tempo, uma cisão enquanto condição de possibilidade. Tratava-se de um acerto de dissensão apresentando-se como um fenômeno de composição, e vice-versa, que não podia ser explicitado, porque ao fazê-lo seria necessário enfrentar a dificuldade para tolerar. Esse peculiar funcionamento cindido estava relacionado com o instituído da prisão e da própria galeria e consistiu, por um lado, em não se encontrar para proteger a possibilidade do encontro e, por outro, em continuar o encontro apesar do atravessamento da prisão, que jamais cessou de funcionar. Era diferente de tudo o que eu conhecia, por isso passei a chamá-lo de "modo B4 de proteger o encontro". Nesse processo o grupo realizou diferenciações, deslocamentos, abalou individualidades pelo contato com a alteridade e com o próprio devir, propiciando modos de subjetivação menos segregadores.

O caderno foi um dispositivo tão potente quanto o grupo; ao chegar às mãos de cada mulher produziu agitações inesperadas que o mostraram como vigoroso espaço de invenção. Um evento ilustra essas implicações: uma das participantes estava partilhando sua escrita com o grupo quando alguém lembrou que ela também havia desenhado. A mulher tentou se justificar no olhar que me dirigiu, parecia estar pedindo perdão por ter usado o caderno para desenhar e não para escrever. Respondi também com o olhar, apreciando sua autonomia para dispor do seu caderno, e então ela mostrou o desenho que continha uma prisão e um helicóptero, no qual ela chegava para resgatar as suas amigas. Em meio à nossa empolgação com a liberdade Faltemara foi obrigada a lembrar o risco de que esse caderno fosse confiscado. Após alguns segundos de silêncio todas concordaram e lembraram outras ocasiões em que aconteceu algo semelhante. Eu questionei se iríamos deixar a lógica da prisão, do controle, entrar nos nossos cadernos, e elas responderam veementemente que não. O caderno era uma fresta arriscada que dava espaço a linhas de fuga, que nos conectaram com o imprevisto e foram possíveis onde a prescrição foi deixada de lado ou não encontrou lugar; era um espaço de intimidade e também de confiança, de compartilhamento.

Ao mesmo tempo em que o grupo atualizava e aprofundava as discussões dedicamo-nos a organizar grupalmente a escrita como práxis coletiva, o que se constituiu num duplo desafio. Como construir coletivamente dentro de uma instituição que produz segregação e controle?  E como se produz coletivamente uma escrita? Inicialmente as participantes mantiveram os cadernos fechados aos encontros de grupo. Elas também pensavam que deveriam me entregar suas escritas, ao que Faltemara e eu respondíamos insistindo na proposta de trabalharmos juntas, esclarecendo que o caderno era um espaço de privacidade e autonomia. Enquanto criávamos uma forma de trabalhar elas começaram a compartilhar espontaneamente algo do que escreviam. Mas o processo da escrita e o do grupo constituíam-se praticamente no mesmo, o que transparecia na dificuldade para fazer acordos ao elaborar o texto. Após algumas discussões pactuamos – dadas as condições em que trabalhávamos – que ao longo da semana elas selecionariam trechos de suas escritas, os quais seriam compartilhados, discutidos e integrados num texto durante os encontros. Eu assumi a tarefa de passar a limpo essas montagens, podendo eventualmente acrescentar algo da minha lavra. Essa escrita era revisada no grupo, que por sua vez havia selecionado mais alguns trechos, e assim sucessivamente. Era como se eu terminasse de costurar os alinhavos do grupo; resolvi atender esse pedido porque senti que, naquele momento, o desafio de escrever coletivamente estava sendo impedido pela angústia de não saber como.

Outra ferramenta importante é o diário de campo, que cartograficamente pode ser descrito como uma tela impressionista onde podemos colocar aquilo que parece não caber na alma. No caso da prisão se torna imprescindível: como narrar o inenarrável? Tudo é demasiadamente intenso no cárcere, e as marcas, se não forem (d)escritas, podem passar inadvertidas enquanto atingem níveis muito profundos. O diário de campo também permite preservar algo de organismo (Deleuze & Guattari, 1996) ao perambular na prisão, o suficiente para poder reconhecer-se na mudança e estranhar-se na fixidez. As "impre-cisões" vertidas no diário permitiram analisar o vivido, mas ao escrever o diário a vivência se tornava realmente vivível. Por vezes parecia estar dirigido a um grupo de leitores, como uma fresta para ventilar, abrir, fazer escapar algo da prisão. Alguns fragmentos eram de fato compartilhados com a orientadora, colegas do grupo de pesquisa e amigos, em busca de suporte para a intensidade da vivência e, também, para desterritorializar a invisibilidade do que é contido no cárcere. Também foi partilhado integralmente com Faltemara, como uma oferta e um pedido de confiança, e como a chance de uma leitura atenta e comentada que me ajudava a compreender melhor o que era vivido.

A análise da implicação, numa releitura de Passos e Barros (2000), pode ser entendida como a apreciação vivencial dos lugares e relações já configurados no campo de ação, bem como dos lugares do pesquisador: os que ele deseja, os que lhe são designados e os que consegue sustar. Mediante essa análise procura-se colocar em evidência as diversas tramas e processos constituídos, instituídos e instituintes entre todos os envolvidos no campo de análise, incluindo o pesquisador. Por exemplo, certa vez uma agente penitenciária deixou aberta uma grade do lugar onde o grupo se reunia. Eu quis fechá-la, mas Faltemara explicou que somente os agentes podiam manusear as fechaduras, como se eles fossem grades vivas, ou a parte viva das grades. Eu fui tomada pelo efeito "grade viva" quando vi uma das participantes saindo da galeria. Senti-me angustiada e perguntei-lhe para onde estava indo; sem se deter, respondeu qualquer coisa que não entendi. Eu não podia sair sem a Faltemara, que perguntou – de um jeito simpático e penetrante – se eu estava assumindo o papel de agente penitenciário. Respondi veementemente que não, mas senti um grande alivio quando aquela mulher retornou. Posteriormente ponderei que por uns instantes eu havia realmente me tornado grade viva, e que só havia percebido isso com ajuda da Faltemara.

 

4 Como cartografar (n)a prisão? A estrangeira-camaleoa

Para Foucault (2004b, 1979) os estereótipos de delinquência são categorias de pessoas que as sociedades disciplinares criam, rejeitam e isolam para justificar a existência da vigilância policial organizada, sendo a prisão o lugar naturalizado para as pessoas caracterizadas como delinquentes, rejeitadas ou não reconhecidas como parte da sociedade. Desse modo, entrar nela era a aventura de lançar-se num estranho mundo, ou de lançar-se como estranho num mundo demasiadamente naturalizado. Num único dia fui tomada como "presa" por uma mulher privada de liberdade e como trabalhadora da Susepe por um funcionário. Essa forma de estar ali, pela qual aparentava pertencer a um grupo ou ao outro, me valeu o apelido de "camaleoa". Mas, a rigor, não sendo "presa" e nem "funcionária" eu era uma estrangeira naquele mundo. Na B4 resistimos à prisão constituindo relações não hierárquicas lentamente, avançando na medida em que crescia a confiança das mulheres do grupo para fazer denúncias, relatos comprometedores, perguntas íntimas, e para conversar sobre trabalho, família, amor e sonhos. Esse processo demandou um jogo de "igual-e-diverso", ilustrado pelos apelidos que recebi sucessivamente. As mulheres da B4 tiveram dificuldades para aprender o meu nome, e buscavam formas de chamar-me que considerassem respeitosas: "funcionária", "dona psicóloga", "doutora", "professora" ou "a senhora". Depois passei a ser "tu" e "a mulher do grupo", expressão que causava constrangimento entre as outras cada vez que alguém a utilizava. Finalmente contaram, rindo, que me haviam apelidado de "mulher sem fim" e uma delas declarou que o apelido fazia referência a que eu falava muito. Esta explicação mostrava, mais do que o apelido em si, uma dissolução de hierarquias instituídas tais como "psicóloga", "doutora", "funcionária" ou "presa".

 

5 Política e economia do conhecimento

Para construir relações de confiança e lateralidade (Alvarez & Passos, 2009,) foi necessária uma economia política do conhecimento na qual todas nós envolvidas no trabalho fossemos reconhecidas como igualmente capazes de produzi-lo.7 De acordo com Maturana (2001, 2006,) e Maturana e Varela (2004, pp. 109-12), todo ser vivo, ao fazer o seu viver, produz conhecimento de acordo com o seu campo atualizado de possibilidades. Por sua vez Kastrup (1999) reformula o conceito de invenção como um processo ontológico de composição e recomposição incessante que não se opõe ao passado nem marca cortes no tempo. Nesse contexto, a cognição inventiva é inerente ao vivo, e não um evento destacado na vida ou uma prerrogativa de mentes privilegiadas.

No mesmo sentido, de acordo com Foucault (1979, 2004; 2006), as sociedades produzem historicamente conjuntos de regras a partir dos quais aquilo que é dito pode ou não tornar-se verdadeiro. Por conseguinte, as verdades são produzidas em relações de poder dentro das quais, por sua vez, têm efeitos específicos, tecendo regimes que consistem nos discursos considerados como verdadeiros, nos critérios para defini-los, nos procedimentos e técnicas aceitos para obtê-los, e na hierarquização das pessoas a quem se atribui o poder de dizer o que é verdadeiro. Maturana e Varela (2004) afirmam que o conhecimento científico não faz referência a realidades objetivas – ou verdades – absolutas, mas é validado como tal mediante coerências operacionais em domínios de relação. Para que as mulheres da B4 aceitassem que podiam produzir conhecimento válido cientificamente foi preciso reconhecer-lhes explícita e reiteradamente seu saber sobre o sistema punitivo como validável enquanto conhecimento científico. Uma das estratégias para tanto foi colocar lado a lado suas produções com as acadêmicas. Por exemplo, em relação aos fatores para a criminalidade feminina, as mulheres da B4 concordaram quanto ao uso da atividade criminal para sustentar os filhos, mas problematizaram a baixa escolaridade, a situação econômica, a educação ou a convivência conturbada na família de origem e a obediência ou fidelidade aos parceiros enquanto motivos para o seu envolvimento com atividades criminalizadas. Ao invés disso, surpreendentemente falaram sobre a sensação estimulante produzida ao burlar a lei e a vigilância ou ao ganhar rapidamente grandes quantias de dinheiro. Também sinalizávamos os pontos coincidentes entre seus conhecimentos e os daqueles produzidos por não encarcerados, a modo de contextualização ou localização no ambiente acadêmico; por exemplo, quando afirmaram que o sistema carcerário servia à exclusão e à discriminação, Faltemara e eu apresentamos a elas algumas produções de autores como Foucault o Zaffaroni.

Ainda tomando a lateralidade como política do conhecimento, propor uma escrita grupal não se constituía como tarefa e sim como dispositivo capaz de criar condições nas quais as mulheres da B4 pudessem, nos termos de Foucault (1979) falar por si próprias. O mesmo pensador (2001, pp. 87-111) analisa os modos pelos quais se estabeleceu o conceito de autor, tomado enquanto uma função por meio da qual um sujeito não necessariamente individual pode aparecer na ordem dos discursos. Cabe aqui acontecimentalizar um evento (Foucault, 1990). Nos primeiros encontros Faltemara e eu nos referimos à produção escrita do grupo usando a palavra "livro". Logo percebemos que havíamos criado a falsa expectativa de que o texto produzido coletivamente estaria disponível para além do ambiente acadêmico e da Internet – os quais resultavam igualmente inacessíveis para as participantes. Na medida em que o grupo foi se apropriando de sua capacidade autoral para a produção de conhecimento percebemos que as mulheres da B4 desejavam divulgar o material em circuitos de seu interesse – tais como pessoas presas em outros estabelecimentos. Com o tempo percebemos, na fala das participantes, que o uso da palavra livro não havia sido inadequado, pois nesse termo elas se reconheciam como produtoras de um saber válido: escrever um "livro" deslocava a situação dessas mulheres na ordem do discurso, colocando-as como detentoras de um saber com efeitos reconhecíveis de verdade e de poder. Ao final do trabalho encontramos uma forma de concretizar esse desejo, e quando entregamos ao grupo os exemplares Faltemara e eu percebemos que a materialidade do produto fazia parte, para essas mulheres, do processo de se reconhecerem como autoras do conhecimento produzido.

Relações de poder predominantemente desnaturalizadas tenderão a propiciar a lateralidade e a autonomia no compartilhamento e a potencializar modos de subjetivação bifurcantes, divergentes, multiplicando as possibilidades para a produção de conhecimento enquanto aspecto da invenção de si. Nessa perspectiva, o respeito pela alteridade configura-se como o respeito pela capacidade que o outro tem de produzir saber. Assim, a produção transversal e assumidamente coletiva de conhecimento seria a postura ética e a economia do poder/saber que propiciaria a invenção de si como cuidado de si (Foucault, 2005). Dessa forma, não haveria um arcabouço ou uma realidade anterior às relações que historicamente possam ser tecidas, e sim conexões e nós de redes produzidas ou reproduzidas em cada prática de conhecimento. Por sua vez, conhecer seria fluir e fazer fluxos nessas redes. Concomitantemente, como, a partir dos estudos de Kastrup (1999), sujeito e objeto deixam de ser entidades previamente existentes ao ato cognitivo, todo processo de inventar ou de conhecer é realizado nos laços, nos vínculos, no espaço relacional.

O conhecimento produzido na lateralidade ultrapassa em muito o escopo da razão, tão bem defendido pela perspectiva iluminista que dá sustentação ao positivismo e à economia capitalista do conhecimento. Em relações pautadas pela lateralidade, a leitura de qualquer situação é muito mais do que a sua avaliação racional ou sua interpretação; pode-se pensá-la como a experimentação e a criação de sentidos. A interpretação remete a signos e representações, que são estruturas dadas, embora naturalizáveis e desnaturalizáveis. A ideia de interpretação do oculto, desenvolvida em práticas como a hermenêutica, a psicanálise ou a dinâmica de grupos, é correlata à de que sempre existe algo não apreensível. Uma estratégia coerente com a ética da lateralidade seria pensar o que escapa como imanente às linhas de fuga, sendo desejável se deixar escapar nesses fluxos daquilo que é imponderável para a razão, tomando esse movimento como ato de conhecer válido e evitando a dicotomia entre razão e sensibilidade ou a identificação entre conhecimento e consciência. Nem todo conhecimento é racional, nem toda consciência é conhecedora.

Amador e Fonseca (2009) tratam o exercício cognitivo do cartógrafo a partir do conceito de intuição elaborado sucessivamente por Bergson e Deleuze. A intuição como processo cognitivo ou como método permite trabalhar com a diferença, a criação de problemas e o tempo como duração na transformação – e não como sucessão de instantes em relações causais. Por exemplo, pode-se dizer que, ao acompanhar uma linha de fuga quando as participantes estiveram perto de se agredir fisicamente, foi realizada intuitivamente uma avaliação ou leitura, já que, ao escrever o diário de campo, lembrava-me de haver compreendido detalhes dos corpos e das vozes, de haver sido escutada, de haver estado em relação com o grupo. Muito embora o que finalmente aconteceu não tenha sido imaginado ou calculado previamente por nenhuma de nós ali presentes, foram criados sentidos para o que era experimentado. No sentido bergsoniano (Deleuze, 1999) a intuição como método seria a vivência de mundo em fluidez e na qual a relação com o tempo se dá pelo movimento nos fluxos do mundo. Esta forma de entender a intuição permite validar formas de acesso ao conhecimento que não dependem de processos racionais, já que ela se opõe a uma noção de inteligência enquanto identificação de permanências, verdades ou leis universais, onde as transformações ocorreriam entre realidades objetivas e como relações de causa e efeito.

No mesmo sentido, Kastrup (2009) descreve a atenção cartográfica como flutuante e presente ao mesmo tempo, alimentando-se das pequenas coisas sem se pautar por objetivos. A prisão limita a circulação do corpo, mas não os movimentos da atenção. No cárcere o cartógrafo necessita um nomadismo que não se mova e que consista numa forma de ser e estar no espaço (Deleuze & Guattari, 1997). A atenção cartográfica no cárcere é necessária contra as limitações de circulação no espaço, mas também como resistência à visão estreita, limitada e focalizada que o aprisionamento tenta impor. Ela permite estar disponível afeto-cognitivamente aos estranhamentos, surpresas, variações e pequenas ondas no território que tenta habitar, para encontrar o que não se procura, questionando o que parece natural.

Esta disponibilidade afeto-cognitiva teve como um dos seus efeitos a "pele camaleônica", que me permitia sentir, a cada passo e com a maior intensidade e clareza possível, as lufadas de ar, as pressões, as ondas, as vibrações, as ressonâncias de dentro-e-fora do peito. Uma de suas manifestações foi peculiarmente interessante. Quando algum trabalhador da Penitenciária causava-me uma incompreensível antipatia, com frequência grupo relatava, depois, arbitrariedades evidentemente propositais por parte desse trabalhador. Este fenômeno pode ser compreendido à luz e à sombra das noções de desejo apresentadas pela esquizoanálise: o movimento de afetos gerado no encontro dos corpos (Rolnik, 2006). Esses afetos que coincidiam eram como uma sintonia ou ressonância entre as pessoas que nos encontrávamos ali na B4, um produto do próprio encontro. O que eu "camaleoa cartógrafa" sentia estando imersa no campo não era apenas meu, e sim a minha participação ao mergulhar nos fluxos e bloqueios de forças ali presentes. Como escrevi no diário de campo: "Eu não fui para ver o que lá estava, e sim para viver o que aconteceria estando lá".

 

6 A prisão cartografada

Diante de tudo o exposto é possível colocar a cartografia como um método de pesquisa cujas ferramentas o tornam simultaneamente possível e necessário na prisão. Possível porque, se viver é conhecer e se cartografar é um modo fazê-lo, então onde houver vida será possível a cartografia, já que as ferramentas cartográficas permitem circular e inventar apesar das barreiras e hierarquias. Necessário porque essas ferramentas propiciam o respeito à alteridade e a invenção de modos de subjetivação mais solidários. O cárcere é formado principalmente por linhas duras, que cortam dicotomizando: expor ou esconder o caderno, presas ou funcionários, infanticidas ou outras mulheres, e assim indefinidamente. Contudo, invisibilizada pelas grades a vida ainda (r)existe e desafia a ser cartografada. Nesta pesquisa que tomamos como caso, a lateralidade como atitude ética e como política do conhecimento, essencial ao exercício da cartografia, propiciou a formação de vínculos menos segregadores dentro do grupo. Cartografar (n)a prisão produziu efeitos instituintes, tornando o cárcere menos aprisionador ao criar espaços-tempos de não prescrição, não proscrição e não-previsão, que se constituíram no grupo, nos cadernos, no diário de campo e na escrita coletiva.

A cartografia produziu ondas para muito além do círculo restrito da B4, apesar do sigilo profissional e das grades e muros da prisão. Um dos efeitos do grupo como dispositivo foi a diminuição do estigma dessa galeria, facilitando algumas mudanças que já haviam sido buscadas anteriormente, como a autorização para que as mulheres dessa galeria trabalhassem.8 Da mesma forma, outras iniciativas foram bem acolhidas, tal como a apresentação de uma peça de teatro para as prisioneiras da galeria.9 A pesquisa também reverberava para além da Penitenciária: por exemplo, as pessoas com quem eu já mantinha algum tipo de relação antes da pesquisa conversavam com outras e comigo, coletando estórias e comentários sobre a prisão, o aprisionamento, a história desse estabelecimento. Finalmente, a "camaleoa" também se desconstruiu, fez mutações: deixou um pedaço de cauda preso em alguma fresta e levou consigo o modo B4 de proteger o encontro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maynar Patricia Vorga Leite
Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE
Divisão de Saúde do Departamento de Tratamento Penal
Rua Voluntários da Pátria, 1358 sala 308, CEP 90.230-010, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço eletrônico: mayamiga1000@yahoo.com.br

Recebido em: 30/04/2014
Reformulado em: 09/09/2014
Aceito para publicação em: 09/09/2014

 

 

Notas

* Psicóloga e Mestre em Psicologia Social e Institucional.
1 Este trecho pertence ao texto produzido coletivamente pelo grupo que participou da pesquisa. A autoria consta do modo escolhido por cada uma das participantes, com exceção de "Anônimas da B4", nome escolhido pelo grupo para designar o conjunto daquelas que não desejavam ser identificadas ou que, por motivos alheios ao grupo, tiveram a participação interrompida antes que fosse possível discutir a autoria.
2 Nos outros espaços do cárcere as pessoas podem circular dentro da respectiva galeria.
3 Condicionado à concordância das presentes na reunião em que ocorresse a consulta.
4 Também Escóssia e Kastrup (2005) abordam a dissolução da dicotomia individual/social mediante o conceito de coletivo, tomado como o coengendramento de subjetividades em redes onde é mantida a heterogeneidade.
5 Assim eram chamadas as mulheres que cumpriam pena por abuso ou agressão contra crianças.
6 Trecho do diário de campo escrito na pesquisa.
7 A propósito, um dos desafios para defender a realização de um trabalho autoral junto a pessoas privadas de liberdade era a representação – sustentada em dados sobre escolaridade – da população carcerária como pouco instruída.
8 Mediante Protocolo de Ação Conjunta – PAC, uma parceria entre um empregador e a Superintendência de Serviços Penitenciários-SUSEPE, a qual representa legalmente o trabalhador privado de liberdade.
9 Tratou-se nada menos do que da peça intitulada "A Decisão", de Bertolt Brecht. O clímax ocorreu na cena em que um guarda é morto pelos outros personagens; uma das mulheres da B4 gritou: "Eles mataram a polícia!". Cabe ressaltar, ainda, que esta peça é apresentada em palco circular e sem diferença de nível entre a platéia e os atores, e que, como parte do espetáculo, é realizada uma discussão com o público após a encenação.