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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.16 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2016

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Medicalização e governo da vida e subjetividades: o mercado da saúde

 

Medicalization and government of life and subjectivities: health market

 

La medicalizacion y de gobierno de la vida y subjetividades: mercado de salud

 

Dolores Cristina Gomes Galindo*, I; Flávia Cristina Silveira Lemos**, II; Renata Vilela***, I; Bruna Garcia****, II

I Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil
II Universidade Federal do Pará – UFPA, Belém, Pará, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma análise da literatura a respeito de medicalização, a partir da biopolítica no neoliberalismo. A construção do mercado da saúde coloca em cena um conjunto de tecnologias de governo de condutas que forja subjetividades saudáveis e controladas pelas prescrições de saúde e segurança. Os efeitos dessas práticas medicalizantes atravessam e fabricam corpos e populações, instrumentalizados pela gerência de risco e perigo, pela prevenção e controle do futuro, em nome da vida e da saúde, prolongadas ao extremo. Nesse aspecto, o objeto desse artigo é problematizar por meio de uma abordagem histórica, baseada em Foucault, a emergência do biocapital e da bioeconomia, como táticas de normalização e normatização das condutas pela biocidadania; e no âmbito das leis que reivindicam o direito à saúde, como estratégia.

Palavras-chave: Medicalização, biocapital, bioeconomia, biocidadania, saúde.


ABSTRACT

This paper presents a literature review about medicalization, from biopolitics, in neoliberalism. The construction of the healthcare market puts into play a set of government technology of pipelines, which forge healthy subjectivities and controlled by health and safety requirements. The effects of these medicalized practices cross and manufacture bodies and populations, exploited by the risk management and risk, the prevention and control of the future, in the name of life and health, extended to the extreme. In this respect, the object of this article is to discuss through a historical approach, based on Foucault the emergence of biocapital and the bioeconomy as standardization tactics and regulation of pipelines by biocitizenship as strategy, under the law to claim the right to health.

Keywords: Medicalization, biocapital, bioeconomy, biocitizenship, health.


RESUMEN

Este artículo presenta una revisión de la literatura sobre la medicalización, desde la biopolítica, en el neoliberalismo. La construcción del mercado de la salud pone en juego un conjunto de tecnología de gobierno de las tuberías, lo que forjar subjetividades sanos y controlada por los requisitos de salud y seguridad. Los efectos de estas prácticas medicalizadas se cruzan y se fabrican cuerpos y poblaciones, explotados por la gestión del riesgo y el riesgo, la prevención y el control del futuro, en nombre de la vida y la salud, extendidos hasta el extremo. En este sentido, el objeto de este artículo es discutir a través de un enfoque histórico, basado en la aparición de Foucault biocapital y la bioeconomía como la táctica y la regulación de las tuberías por biocitizenship como estrategia de normalización, en virtud de la ley para reclamar el derecho a la salud.

Palabras clave: Medicalización, biocapital, bioeconomía, biocitizenship, salude.


 

 

1 Introdução

Neste artigo, focalizamos parte de uma pesquisa maior, de caráter documental, sobre a problemática da medicalização dos corpos na sociedade contemporânea. As análises realizadas abordam interrogações de práticas medicalizantes, a partir de um levantamento sobre processos de medicalização da vida, na literatura PSI, baseada na história e na Psicologia Social, em especial nos estudos de Foucault sobre medicalização. Em linhas gerais, o termo medicalização é aqui entendido como a usual e hegemônica prática de tentar explicar o modo de ser, de viver, de sentir e agir, em uma relação majoritariamente causal biomédica, em detrimento de outros aspectos que compõem uma analítica da produção da saúde (Foucault, 1979).

A medicalização insere-se progressivamente na sociedade, de forma minuciosa. Em O nascimento da medicina social, Foucault (1979) nos aponta a emergência da medicalização, enquanto medicina de Estado na Alemanha do século XVIII, caracterizada pelos seguintes aspectos: normalização da prática e saber médicos; criação de um corpo administrativo para controlar as atividades médicas; nomeação de funcionários da Medicina, os quais ficavam incumbidos de inspecionar cada região do Estado.

Já na França, a medicalização, em fins do século XVIII, dá-se o nascimento de uma medicina urbana. Nesse período, havia um aglomerado de territórios a ser governado e prol da formação de uma unidade nacional, com o objetivo de utilizar a medicalização como tática de normalização social e constituição da força de um país moderno pela gestão da cidade medicalizada. Fazia-se importante a criação de estratégias que visassem à unificação do corpo urbano. Contudo, houve a emergência de certo medo nas pessoas, quando se depararam com imensos contingentes populacionais, os quais tinham potencial para crises epidêmicas. É criado, assim, "um modelo médico de quarentena" (Foucault, 1979, p. 155): diante de uma peste, cada pessoa deveria ficar em casa; a fim de garantir-se isso, designou-se um chefe de distrito para fazer essa inspeção, com relatórios diários, revistas nos moradores, desinfecção das casas. Retiraram-se da cidade potenciais geradores de doenças, como os cemitérios; controlou-se a circulação de água e ar (pois se acreditava que eram veiculadores de miasmas) e os esgotos e matadouros, de sorte a não contaminar fontes de água potável. Esta é a medicalização da cidade.

Por fim, já no século XIX, a medicalização, na Inglaterra, emerge a medicina dos pobres (Foucault, 1979), também denominada de governo da saúde do trabalhador medicalizado. Até então, essa parcela da população não havia sido alvo de políticas médicas tão intensivas. No entanto, em decorrência da Revolução Francesa, esse contingente populacional mostrou-se forte e revolucionário, passando a ser visto como um problema. Os pobres, até esse momento, tinham poucas funções sociais na cidade a serem alvo de medicalização. É muito interessante como Foucault assinala as minúcias do advento do cuidado com as populações mais pobres. Salienta ele que, ao assegurar a saúde e higiene dos pobres, protegem-se os ricos, uma vez que estes últimos não serão vítimas de epidemias vindas dos primeiros. Outra nuance estava em tornar a classe pobre mais apta ao trabalho, torná-la útil à industrialização, à educação escolarizada nascente e dócil à exploração do capitalismo sem adoecer.

Ainda nessa mesma discussão, em A política de saúde do século XVIII, Foucault (1979) aborda como a medicina social e individual se desenvolvem juntas. Assim, foi preciso tornar a pobreza útil, torná-la força de trabalho e, por isso passou-se a higienizá-la, não apenas um contingente populacional, mas, também, cada indivíduo. A partir dessas observações, o autor nos leva a algumas importantes intervenções medicalizantes da época. Primeiramente, alude à emergência da valorização da infância, em que apresenta como foi produzido um imperativo de resolver o problema da mortalidade infantil e garantir a sobrevivência dessas crianças, por meio de mecanismos que as tornassem adultos úteis. Assim, era necessário adentrar o universo familiar, fazendo deste um espaço de formação de um ser humano maduro e sadio. É dessa maneira que a saúde passa a ser o centro das atenções e a família "o agente mais constante da medicalização" (Foucault, 1979, p. 306).

Outro fator de suma importância que Foucault aborda é sobre a autoridade que a medicina assume. Na cidade, havia espaços de maior propensão à proliferação de epidemias. Eram locais de aglomeração de pessoas, tais como: prisões, navios e hospitais. Os médicos, além de cuidar das doenças e suas curas, passam a ser incumbidos de ensinar às pessoas regras básicas de higiene, para benefícios delas próprias e de quem as cercava (e, de certo modo ou mesmo prioritariamente, para controle social). O médico torna-se, por conseguinte, um grande conselheiro e perito do corpo. Sua função é higienista, o que faz desse agente um destaque político nessa sociedade, de modo que podemos sustentar tranquilamente que esse status permanece e se intensifica até os dias atuais. Consideramos também importante, para pensar sobre a medicalização do social, levantar a discussão que Foucault realizou sobre o hospital. No século XVIII, o hospital apresentava-se somente como um lugar de aglomeração de doentes, sem efetivas intervenções terapêuticas, o que fazia deste um disseminador de toda sorte de epidemias.

Em O nascimento do hospital, Foucault (1979) bem nos explica o que era esse espaço e o que se tornou. O autor demonstra que hospital e medicina eram organizações que atuavam de modo independente, até meados do século XVIII. A medicina fazia prognósticos, observava a doença e seu percurso, previa sua evolução e buscava também prever seu final. Em contrapartida, o hospital era um lugar para morrer. Não se pensava em cura, mas em dar as últimas assistências - materiais e espirituais. Foucault ressalta que, ao dar essa assistência aos moribundos, pensava-se garantir a salvação de sua alma, assim como da alma de seu cuidador. Quem frequentava o hospital eram os pobres, pois não tinham recursos para cuidar de si próprios, ao contrário dos ricos, que, nas mesmas condições, ficavam em casa sendo velados. O hospital servia ainda como um lugar para depositar toda a classe tida como ameaçadora: "doentes, loucos, devassos, prostitutas etc. [...] uma espécie de instrumento misto de exclusão, assistência e transformação espiritual, em que a função médica não aparece" (Foucault, 1979, p. 175).

Percebemos, dessa maneira, como a medicalização está inserida nos mais diversos e múltiplos âmbitos de nosso cotidiano e ações, há séculos. Seria ingênuo pensá-la como um impacto completamente negativo, porque os importantes avanços da Medicina, em seus aspectos genéticos e farmacêuticos, contribuíram para o aumento da qualidade de vida e longevidade das populações, com acesso a esses recursos. Saliente-se, porém, que estamos cada vez mais propensos a pensar a vida e suas nuances de modo extremamente reducionista. No entanto, vale mencionar que a produção da saúde se dá também pela medicalização da política, da cidade, das famílias e das subjetividades, porque sem um assujeitamento às normas medicalizantes não se cultiva saúde nem se pensa em regular os atos em busca do cuidado da gestão da vida. Assim, há não apenas uma negatividade no poder medicalizante sobre os corpos, cidades, Estados e subjetividades. Um paradoxo se instala, na medida em que medicalização e produção de saúde se tornam correlatos e podem, em algum momento, se afastarem, dependendo da intensidade do processo de medicalização da sociedade.

No Brasil, há uma situação diferente porque, se há, desde o final do século XIX, preocupações de medicalização da cidade, do Estado e dos trabalhadores, há também resistências e lacunas, em parte pela difusão variada das racionalidades liberais em toda a extensão do país; além de baixa cobertura de muitas políticas de saúde, tais como: as de saneamento básico, de alimentação, de habitação, de acesso ao pré-natal e a da lógica hospitalocêntrica, presente mais em alguns espaços do que em outros. As disparidades na construção da política pública de saúde, no Brasil, apontam para quadros de baixa à extrema medicalização, dependendo da cidade, da região, das classes sociais, do acesso ao conhecimento e aos direitos fundamentais.

O perigo da medicalização, em geral, está no modo simplista que muito se tem buscado para explicar acontecimentos da tão complexa vida humana. Desconsideram-se, pois, as múltiplas facetas culturais, socioeconômicas, históricas e políticas, ao se justificar o adoecimento do indivíduo. Assim, o objetivo deste trabalho é pensar criticamente sobre esse movimento chamado medicalização, com o levantamento e uma análise criteriosa da literatura pertinente. Logo, percebemos a relevância do tema, o qual "passeia" nos mais variados campos os quais convergem para a medicalização do social com seus olhares singulares. São modos diferentes, mas não díspares. Estas diferentes áreas de pensamento são complementares, neste estudo, mostrando diversas nuances da medicalização do social, minuciosas formas de se exercer e complexas maneiras de enfrentamento.

 

2 Medicalização e farmacologização da vida

A medicalização está entre os processos de uma transformação nas práticas de atualização da medicina, da psiquiatria organicista, de algumas vertentes da clínica psicológica, enfim, do uso de técnicas de gestão da vida das populações através de discursos e tecnologias que, de alguma maneira, fazem parte do escopo medicalizante e se misturam de forma sutil ao cotidiano das pessoas. Ao controle social médico foi adicionado o consumo de medicamentos que conformam o que nomeamos como farmacologização, composto por componentes heterogêneos, tais como: o marketing, as empresas biotecnológicas, as universidades, os usuários, dentre outros.

A farmacologização dá-se pelo consumo de: um kit subjetivo adicto; baseado em uso de pílulas rápidas de produtos como chás, sucos, adoçantes, exames, vitaminas, dietas, medicamentos, estilos de vida e tratamentos variados. Com efeito, a farmacologização concebe tecnologias que operam nos corpos e na vida, como estratégias de controle legitimadas política e socialmente, por estarem acopladas aos modos de subjetivação (Galindo, Lemos, & Rodrigues, 2014 Ignácio & Nardi, 2007; Lopes,2004. Os medicamentos antidepressivos e analgésicos, por exemplo, são indicados para muitas condições de mal-estar ou que configuram uma "anormalidade"; além do mais, são os fármacos mais receitados pelos ambulatórios médicos e psiquiátricos (Staub & Hoch, 2012). Por meio do marketing das empresas farmacêuticas, os medicamentos prometem uma estabilização de sentimentos, humores, pensamentos e ações, em um contexto de social e político-econômico de encomendas voltadas a uma constante aceleração de cada ato e de cada pensamento, com vistas ao mercado do investimento subjetivo como uma empresa a gerir a saúde.

Operando por meio das tecnologias prevencionistas e por uma capilarização na vida cotidiana, o mercado farmacológico e sua publicidade, a todo instante, criam situações as quais atrelam problemas e apresentam suas soluções instantâneas. As corporações farmacêuticas, as pesquisas científicas, a biomedicina e o marketing articulam densas redes de saber-poder que atravessam nossos corpos, nosso pensar e sentir, nossas subjetividades (Palma & Vilaça, 2012).

Canguilhem (2009) enfatiza que o normal refere-se à norma, ao que segue uma regra, àquilo que está na média; ou melhor, a média revela e define o normal. Assim, normalidade tem a ver com a estatística e a anormalidade não se refere diretamente ao patológico, mas ao desvio da norma. Já, para medicalizar, além de normas são usadas as leis também por meio de uma prática de normatização. Normatizar é criar leis para regular no âmbito jurídico determinadas práticas sociais e normalizar é inventar normas para vigiar e controlar comportamentos sem tipificar penalmente os desvios de modelos padronizados (Foucault, 1979; 1999). O direito à saúde ganha nova dimensão nessa relação entre gestão do povo, ajustamento de condutas disciplinarmente e gerência da população em nome da vida. Medicalizar condutas assinala o campo normalizador do direito à saúde, porém, ainda possibilita a normalização disciplinar pelo controle individual.

Nesse aspecto, a saúde parece ser uma religião, pois, segundo Foucault (2008a) uma tecnologia de poder, definida como poder pastoral foi apropriada pelo Estado moderno e transformada em governo das condutas para salvar a saúde não mais as almas como ocorria anteriormente, na pastoral religiosa cristã. Ou seja, a saúde passa a ser um ideário crucial nos modos de vida contemporâneos, ganhando dimensão de dogma e doutrina religiosa, na medida em que as prescrições de produzir corpos saudáveis parecem ser mandamentos invioláveis.

Na atualidade, há um crescente investimento, altamente lucrativo da prevenção, da gestão de riscos, do aumento de desempenhos e capacidades pelo uso de medicamentos, exercícios, psicoterapias, treinamentos, cursos, cirurgias, boutiques de bem-estar, receitas de sucessos de relacionamentos e dietas pautadas na rentabilidade das performances, a governar e comercializar. Prescrever e incitar esses estilos de vida passam a ser um negócio no empreendedorismo atual, na oferta de práticas de governar pelo medo, pelo investimento e pela tentativa de ampliar docilidades, aumentar produtividades, criar subjetividades flexíveis à modulação do mercado das performances de saúde e de kits de existências, alvo das novas tecnologias da gestão de afetos, corpos, comportamentos e pensamentos em prol da economia política neoliberal da segurança estilizada como empreendedorismo de si.

 

3 Biopolítica e medicalização

Inscritos em tecnologias de governo da vida e das condutas, por meio da aplicação de uma variedade de técnicas de vigilância, regulações biopolíticas e produções de vida, dos corpos e das subjetividades, vivemos imersos numa sociedade capitalista, científico-tecnológica e urbana, cujo problema político e econômico concerne ao governo "do todo e de cada um" como organismos vivos (Prado-Filho, 2010). Na biopolítica, o poder tem como função fazer viver e deixar morrer, através da criação de estratégias de regulação para intervir no aumento da longevidade, controlar acidentes e eventualidades, melhorar a deficiência genética humana, gerir os usos de drogas e políticas para regular os usos, punir a venda e tratar os que as usam em excesso (Foucault, 1999).

Contemporaneamente, uma faceta da biopolítica, traçada por Michel Foucault, na década de 1970, pode ser visualizada no surgimento dos debates sobre bioeconomia. Estes vêm tratando a articulação da medicalização com o trabalho das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas na criação e na organização de novas patologias, punições e tratamentos (Rose, 2013). Para Hamilton (2008), bioeconomia é usada para dizer de uma série de processos que vêm acontecendo nas últimas décadas, em que elementos ditos da natureza adquirem valor e são estruturados em termos econômicos. Tal terminologia chama nossa atenção, também, por seu caráter dúbio, já que passou a ser adotada tanto como uma ferramenta de crítica à comercialização da vida pelas bioindústrias pelos teóricos da Ciência, Tecnologia e Sociedade, quanto pelas organizações econômicas que dela se valem para cálculos biopolíticos.

A própria emergência do termo está ligada ao mercado transnacional de capital biológico da saúde, e apenas num momento posterior migrou como crítica a esse próprio movimento do qual surge, como mostram González et al. (2014). Segundo os autores, a palavra bioeconomia aparece pela primeira vez na literatura científica em 1913. No Brasil, segundo Ortega e Zorzanelli (2010), há uma entrada dessa racionalidade por volta da década de noventa, mais especificamente com o projeto Genoma, no mapeamento do código genético; no surgimento das graduações em biotecnologias e aplicações desse conhecimento na saúde e na educação.

Trata-se de uma lógica de empresarial de investimentos preventivos e precaucionários, de uma biopolítica do fazer viver pelo governo do risco/perigo, no campo da seguridade como mercado de direitos (Cardoso e Castiel, 2003). Atualmente, o poder penetrou em todas as esferas da existência humana: desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação e a criatividade. O poder nunca chegou tão longe no cerne da subjetividade e da própria vida, de sorte que já não sabemos "[...] onde está o poder e onde estamos nós, o que ele nos dita e o que queremos" (Pelbart, 2008, p. 01). A biopolítica é definida por Foucault (2008a) como a maneira pela qual, desde o século XVIII, foram ampliadas as racionalidades dos problemas da vida postos à prática governamental de regulação das condutas dos viventes, constituídos enquanto uma população a gerir. A preocupação jurídica da soberania do Estado Moderno, à qual estava assentada em: vigiar, disciplinar e punir os corpos é rearticulada, na sociedade biopolítica, com o acréscimo da regulação biológica de uma população, se estendendo não apenas aos corpos individuais, mas à gestão da vida, no âmbito de uma totalidade (Foucault, 1988).

Foucault (2008a), em O Nascimento da Biopolítica, aponta que a lógica neoliberal de governar evidenciou uma economia de mercado que capitaliza todos os aspectos da vitalidade: educação, formação, alimentação, aspectos genéticos, o número de horas que os pais gastam com seu filho para a constituição de um capital humano, cujo lucro é direcionado para o futuro. A arte liberal de governar o Estado assume a característica de uma tecnologia humana que gere a conduta dos outros: governar é agir sobre as pessoas que devem ser consideradas como livres. A liberdade torna-se também exigência da própria governamentalidade, na medida em que a arte de governar a população requer que se respeitem algumas liberdades (Tótora, 2011). Foucault (2008a) mostra que as sociedades liberais surgem quando problemas relativos à saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças não podem ser dissociados do âmbito da racionalidade política e da normalidade, no interior da qual eles aparecem e adquirem importância e intensidade.

Lazzarato (2004), ao discorrer sobre o modo contemporâneo de produção do capital, argumenta que o capitalismo produz sujeitos e objetos em variação contínua, modulada por tecnologias de gestão da vida. As discrepâncias na concorrência neoliberal hoje ocorrem pela disputa de tecnologias na gerência da vida, às quais entram em cena no governo da saúde por meio: da estética corporal, da nutrição, dos exercícios físicos, da informação sobre dietas, da aquisição de tecnologias da medicina personalizada, do acesso aos alimentos orgânicos. O neoliberalismo, na vertente empresarial de formação dos modos de pensar, sentir e agir lança mão da saúde e da educação enquanto parte da maquinaria capitalista da disputa de cargos, concursos, oportunidades de trabalho, estudo e relacionamentos amorosos (Foucault, 2008b).

 

4 Medicalização do social e neoliberalismo: bioeconomia e a gestão da saúde

Waldby (2000; 2006) propôs o termo biovalor, para referir-se a um capital que surge quando a produtividade gerativa e transformativa das entidades vivas pode ser instrumentada de forma útil para projetos humanos em ciência, indústria, medicina e outras arenas da cultura técnica. Biovalor pode ser utilizado para aludir aos modos pelos quais a própria vitalidade tem se tornado uma fonte de valor. A noção de capital vivo, desenvolvida por Haraway (2008) para discorrer sobre o encontro entre cães e humanos, na economia neoliberal contemporânea, realça uma estrutura tripartite que nos parece interessante, por sua caracterização não antropocêntrica: valor de uso e de troca, tal qual descrito pela teoria do capital de Marx, ao qual se agrega o valor de encontro, que consiste nas "[...] relações entre um conjunto heterogêneo de seres animados, em que o comércio e a evolução da consciência, da bioengenharia, da ética e de utilitários estão todos em jogo" (Haraway, 2008, p.46, tradução nossa).

Para Pelbart (2008), as sociedades neoliberais não precisam apenas de músculos e disciplinas, mas de imaginação, de inventividade e da própria vitalidade. Ou seja, a fonte de riqueza é a inteligência das pessoas, sua criatividade, sua afetividade e, principalmente, seu corpo e o seu desenvolvimento saudável. É assim que, de acordo com Lazzarato (2013), os investimentos na criança, mensuráveis em tempo, constituirão uma renda salarial, quando ela se tornar adulta, de sorte que, para os pais que investiram tempo na educação do seu filho, haverá uma satisfação, um benefício psicológico pela formação de um adulto produtivo e dócil.

Abordando as estratégias biopolíticas contemporâneas, Rose (2011) enfatiza que, na economia neoliberal, se acentua a emergência de uma bioeconomia que traz à tona um novo espaço de companhias trabalhando com potenciais terapêuticos, no qual o termo constitutivo, dentro dessa bioeconomia, é o biocapital. Vidas-investimento se transformam em uma modalidade de subjetivação prevalente e dirigida, persecutoriamente, ao futuro. É a esperança que está em jogo, e esta supõe uma interação entre o presente e o futuro, porque ter esperança significa realizar ações direcionadas à construção de possíveis futuros desejáveis (Novas, 2006).

Uma política permeada por práticas de valores de saúde intensivos, as quais mobilizam socialidades articuladas a discursos de afetividade, esperanças e precauções nos são dirigidas de forma contundente. Nossas subjetividades estão cada vez mais marcadas pela interiorização, tal qual aquela que marcou o nascimento da clínica e a instauração de um novo olhar médico sobre os sinais do corpo, bem como a interiorização de nossas impressões digitais pelas expertises forenses. Contudo, voltada, também, aos nossos genes, predisposições, riscos, afecções possíveis diante das encomendas de securitização pautadas por uma saúde, cada vez mais persecutória (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007a).

Hoje, os biotécnicos dizem, em grande parte, quem somos e quais responsabilidades e direitos temos; são novos oráculos, nos quais somos devorados pelas encomendas de novas formas de vida criadas através da afetação de tecnologias médicas sobre o corpo, que estabelecem normas de uma boa saúde. Conforme Anderson (2012), aprendemos com as políticas voltadas para a própria vida que, para proteger, cuidar e manter as vidas, é preciso investir e prever os danos. Novas tecnologias de saúde são organizadas na imanência, ou seja, na correlação ao acaso de forças com as mutações do mercado, com as transformações das famílias, com os efeitos ecológicos dos impactos ambientais, com as alterações da política e como atualização das relações sociais e culturais. As forças dos agenciamentos subjetivos são compostas por subjetivações, processos ininterruptos que não cessam de fazer vibrar e atravessar a dobra provisória da subjetividade, fazendo-a estremecer e pedindo passagem em atualizações as quais materializem os efeitos das afetações sofridas, conforme pensou Gilles Deleuze (1992), a propósito das sociedades de controle. As modulações de subjetivação se organizam como forças em agenciamentos coletivos, que operam por correlações sem causalidade e sem linearidade, na esfera dos acontecimentos que se cruzam e se conectam, como teias sem privilégio de entradas e saídas das suas linhas de composição.

Discursos esperançosos quanto a um futuro imune de patologias e a expectativa do aumento da longevidade são alguns dos motivos que impulsionam e movimentam grande parte das atividades da bioeconomia atual. A esperança pode ser pensada com base no que Foucault (2008b) denominou segurança. Nessa demanda de asseguramento, a vida afetiva das pessoas é alvo e condição para novas formas contemporâneas de governamentalidade (Anderson, 2012), nas quais relações de afeto e amor são ferramentas de poder e controle dos corpos e arregimentam a capitalização da vida. Sentimentos de esperança, amor e segurança são invocados para convencer pais amedrontados a recorrerem às técnicas médicas em medicina molecular como estratégias de proteção aos seus filhos, tais como: manipulação genética durante a inseminação artificial para evitar doenças; guarda das células-tronco do cordão umbilical de bebês, em bancos; acompanhamento do desenvolvimento da criança por uma nova vertente da medicina, chamada de personalizada.

E nós, enquanto consumidores de seus serviços, estamos cada vez mais envolvidos em retóricas salvacionistas (Haraway, 1995). As biomedicinas e suas técnicas desempenham, neste tempo, um papel importante na modelação das subjetividades (Rose, 2013) caracterizadas principalmente pelo seu caráter amedrontador e precaucionário (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007b). Nos processos neoliberais, o Estado e a sociedade têm por função regular a vida e a saúde para administrar as condutas das pessoas, sem destruir a sua existência e autonomia, o que é possível por meio da proliferação de especialistas – médicos, cientistas, pais que estudam manuais de saúde, agentes sociais – e da criação de alianças entre cidadãos livres e mercados internacionais (Miller & Rose, 2012). O surgimento do governamentalidade neoliberal, "[...] na reflexão de Foucault, indica significativas transformações nas práticas de governo de pessoas, populações e da circulação de coisas" (Rodrigues, 2013 p. 136). Prever e admitir riscos, estabelecer limites e regulamentar as práticas para evitar futuras doenças são como retóricas salvacionistas fixadas pelos médicos e pela lógica preventivista em saúde, no cotidiano das pessoas. A biomedicina repete a retórica da salvação da modernidade, que enfatiza o desenvolvimento de medidas tecnológicas, econômicas e políticas como condição para a salvação da civilização (Mignolo, 2008).

Foucault (2008a) já apontava que, sendo a principal característica da biopolítica sua visão voltada para o futuro, estratégias de regulação são criadas para possibilitar intervenções na direção de reformatar o futuro da saúde humana, atuando no presente vital. Como nos lembra Ortega (2004), aliados às estratégias biopolítica, os ideários de autoconsciência de ser saudável e a saúde perfeita são novos paradigmas. Passa-se a gerenciar e comercializar a si como empresa e centro biomédico, visando a melhorar sua saúde e, consequentemente, a aumentar longevidade e o empreendedorismo como estilo de vida, no campo dos processos de subjetivação. O empreendedorismo de si tem lugar numa cultura marcada pela família medicalizada e medicalizante, em que prevenir doenças e garantir práticas de lidar com elas impulsiona um mercado modulado por investimentos na relação pais e filhos. Castiel e Álvarez-Dardet (2007b, p. 59) ressaltam que permanecemos no regime dos riscos, característico da biopolítica (Castel, 1987), mas, soma-se também o regime da hiperprevenção, no qual cálculos probabilísticos futurológicos indicam que ameaças nos rondam e devemos nos precaver contra elas. Está-se em risco ainda que não se "[...] apresentem sinais evidentes de adoecimento, mas por indícios propiciados pelos muitos dispositivos médicos de prospecção e vigilância disponíveis".

 

5 Práticas de prevenção e hiperprevenção na medicalização da vida

Nas práticas de medicalização, que adquiriram vigor ao longo do século XX, a prevenção se mostrou um instrumento bastante efetivo, haja vista possibilitar a medicalização do inexistente, ou seja, da probabilidade futurológica do desenvolvimento de alguma patologia. Em outras palavras, não parece mais haver a "exigência" da constatação de uma doença, para que os tratamentos sejam iniciados. O discurso deixa de visar a "doença" para focar a possibilidade de "doença". Nessa discussão, é imprescindível pensar sobre o lugar que os medicamentos têm ocupado nas nossas vidas e os seus significados em nossas subjetividades, quando os aceitamos como única e inevitável opção de combate às dificuldades de viver.

Prevenção é um conceito que se refere às práticas de higiene, imunizações e controle de estilo de vida das populações, hábitos alimentares, de exercícios físicos, por exemplo. (Tesser, 2006a; 2006b). Abrange também o mercado promissor dos exames diagnósticos, com vistas à identificação de pré-patologias, a exemplo da hipertensão e diabetes (Caponi, 2009) Destaquemos, aqui, que a prevenção não é uma prática tão recente. Segundo Foucault (1999), desde o final do século XIX, a psiquiatria vem abrangendo seu campo de atuação, patologizando desvios de ordem moral, social e política. Qualquer comportamento, portanto, torna-se passível de ser alvo da psiquiatria, do mesmo modo que muitos sinais orgânicos estão se tornando alvo de práticas medicamentosas e terapêuticas, antes da emergência da patologia.

No Brasil, como bem destacam Caponi (2009) e Mai e Angerami (2006), a prevenção foi um instrumento biopolítico fundamental para a medicalização do social. A proposta de aperfeiçoamento da humanidade se aliou aos projetos desenvolvimentistas, discurso este que permanece presente fortemente nos projetos de mapeamento genético, porém, pouco visível no marketing farmacológico que se volta à resolução individualizada dos males da vida. Nascimento (2007) ressalta que, para o marketing farmacológico, não interessa quais motivos permeiam cada caso, o importante é que sempre haverá um medicamento ao dispor e medos subjacentes de doenças por vir.

Voltando-se ao contexto da promoção de saúde, Castiel, Vallero e Silva (2011) introduzem a ideia de hiperprevenção, para indicar tanto na lógica preventiva baseada nos cálculos de riscos quanto na lógica preventiva pautada por medos de ameaças que sequer chegam ao que viria a ser a precaução. Hoje, há modulações de comportamentos que antecedem às doenças e suspeitas de seu possível desenvolvimento. Trata-se de uma gestão de riscos pela ação sobre probabilidades. Porém, muito mais que gerência de possibilidades, alude-se à promoção de performances, ampliação de rendimentos disciplinares e de produção de saúde pelo governo das condutas como empresariamento de si. As técnicas medicalizantes de modulação dos desempenhos com o uso de drogas variadas e exercícios diversos, enquanto tecnologias de si objetivam aumentar a produção econômica e a ampliação da vida.

Nesse caso da prevenção exacerbada, o medicamento passa a atuar de modo a transformar o sujeito em objeto de poder e saber, por isso, é um processo de objetivação sempre incompleto, porque novas doenças, que também são maneiras de resistir, emergem. Le Breton (2003) indica que as tecnologias não mais nos cercam, contudo, habitam nossos corpos e entrelaçam-se às nossas subjetividades, configurando bioidentidades. Aqui estamos próximos do prevencionismo, hipérbole da prevenção que já não é comedida e baseada no cálculo dos riscos. As fronteiras entre natural e artificial, entre o humano e a máquina estão, cada vez mais turvas, mais diluídas, culminando na fabricação do ciborgue – ser híbrido de realidade e ficção, organismo e máquina (Haraway, 2004).

Ao tratar dessa composição, em que natureza e máquina se misturam, a autora não se refere a implantes ou a estar atado às tecnologias. Sua discussão alcança o âmbito das subjetividades contemporâneas, moduladas pela farmacologização, as quais são constituídas, sustentadas e nutridas pelas tênues relações de confiança com os especialistas médicos, com a aposta no consumo dos produtos que o marketing veicula e, principalmente, nas promessas de felicidade e saúde perfeitas. A expansão do marketing farmacêutico, a circulação de novas tecnologias e dispositivos médicos e a crescente mercantilização da doença, nos dispositivos de medicalização do social, levou a que alguns autores reavaliassem o processo de medicalização. Passaram a argumentar que, embora o centro de sua definição continue com os médicos, a medicalização atualmente pertence também ao consumismo de técnicas de salvação da saúde como arte de governar e fazer investimentos com base na lógica do cálculo entre custos e benefícios (Lopes, 2004; 2007; Moynihan, 2002; Moynihan & Henry, 2006; Moynihan, Health, & Henry, 2002).

Nesses novos parâmetros medicalizantes do social, os médicos ainda são agentes importantes na atualização higienista e terapêutica, mas seu papel se tornou menor, já que é compartilhado com as empresas farmacêuticas. Medicalização, contemporaneamente, estende-se à relação entre empresas farmacêuticas, médicos e consumidores, ou seja, na crescente preocupação da indústria farmacêutica em convencer o consumidor de que seus produtos são os mais eficientes e eficazes, generalizando-os e potencializando-os para fins que se estendem muito além dos domínios da medicina ou da saúde de forma estrita (Conrad & Leiter, 2004).

Atentando para a crescente expansão da medicalização na vida das pessoas, por meio da inserção na prática e nos discursos cotidianos sobre fármacos, Lopes (2004) propõe que, paralelamente à medicalização, desenvolveu-se, atualmente, o processo de farmacologização, em consequência da crescente expansão da medicalização pelo uso de medicamentos na vida das pessoas. Farmacologização é um acontecimento em que os medicamentos são dominantes nas opções terapêuticas, isto é, a gestão do corpo e da saúde tornaram-se problemas farmacológicos e não mais médicos. Expectativas de cura e/ou alívio recaem sobre os medicamentos. De fato, o recurso aos fármacos vem se constituindo a primeira opção das pessoas, na gestão da vida e das problemáticas que são fabricadas no decorrer do lidar cotidiano com os inesperados, trágicos e frustrações. As outras possibilidades de cuidados médicos são procuradas como alternativas secundárias, e essa procura tem sido orientada pela expectativa de que outros medicamentos mais eficazes sejam prescritos (Lopes, 2007).

 

6 Considerações finais

A medicalização, atravessada por tantos desejos e promessas de eficácia, passa a assumir o status de mito, seja com a crença nos milagres tecnológicos, genéticos, científicos (Guarido & Voltolini, 2009), seja porque tem sido usada como artifício que dá sentido à vida dos seus infiéis seguidores (Dantas, 2009). É nessa direção que Rose (2013) argumenta que nossos desejos, humores e descontentamentos estão sendo mapeados e esquadrinhados em nossos cérebros, constituindo-nos enquanto selves neurológicos. Acredita-se que, ao visualizar as atividades do cérebro vivo, como ele deseja, pensa, se sente feliz ou triste, ama, tem medos, isto é, ao distinguir através de imagens a normalidade da anormalidade, no nível das atividades cerebrais, pode-se modular e manipular medicamentos que controlem as variações neuroquímicas subjacentes ao pensamento, humor e comportamento (Rose, 2013).

A partir dos entrelaçamentos de forças mútuas, heterogêneas e intensas, subjetividades são pulverizadas e padronizadas, em um ideal de estabilidade plena e de analgesia constante. Promessa analgésica vendida em literatura e terapias de autoajuda que são, também, higiomania (Nogueira, 2003), concorrendo para uma busca compulsiva por saúde ou alívio, numa toxicomania generalizada (Rolnik, 1997).

Enfrentar a dor pelo único caminho dos psicofármacos e analgésicos incapacita aos indivíduos serem "[...] falantes, autores e atores de suas tragédias"? (Canabarro & Alves, 2009, p. 860). É certo que, para proteger-nos das forças das relações e dos afetos, mergulhamos em um mercado das drogas lícitas, "[...] promovendo uma espécie de toxicomania generalizada" (Rolnik, 1997, p. 02), que é, também, uma toxicomania por identidades que nos ofereçam garantias subjetivas de estabilização. É certo, igualmente, que mesmo impregnados de medicamentos, narramos histórias de nossas dores, contamos histórias com nossos fármacos, cantamos nossos medicamentos, a exemplo dos blogs e das comunidades de compartilhamento biocidadãs, nas redes sociais, nas quais são partilhadas as experiências boas e ruins com os medicamentos.

O medicamento (já) não remedia a incerteza, nem alivia do incômodo que se tornou o fato de que nos convertemos em consumidores ávidos em busca de nós mesmos e que, para isso, não poupamos esforços na procura de um medicamento mais ou menos potente, com maiores ou menores efeitos colaterais. A prescrição de um medicamento parece nos colocar num jogo de capturas e de fugas. Atualiza-se uma busca pelo alívio imediato, a todo custo e a preços, preferencialmente, módicos. Ao mesmo tempo, instaura-se um alívio que nunca vem, porque medicamentos novos surgem, medicamentos outros são usados por conhecidos e por toda a rede de especialistas que os prescrevem. Páginas e páginas de internet são dedicadas a pacientes em busca de respostas, algumas delas sob a forma de biocidadania, isto é, em grupos mobilizados por patologias ou predisposições definidas (Rabinow, 1999) . Outras inúmeras páginas de internet parecem colocar em cena o desespero diante de uma prescrição recebida, da experimentação de algum fármaco – perguntas e respostas curtas, ranqueadas por sua utilidade, que não chegam a configurar laços, como ocorre com as biocidadanias.

Nem todos os corpos entorpecidos pelas drogas atuais são usuários especialistas todo o tempo, quando buscam medicamentos para diminuir as mazelas cotidianas da vida. Vale notar que a iatrogenia é resultado do uso de fármacos e de técnicas variadas de promoção, tratamento e diagnósticos, em nome da saúde. Os efeitos negativos do uso de tecnologias medicalizantes em nome da vida, do aumento de rendimento dos comportamentos e da disciplina dos corpos, operam com suas positividades, ao incitar a normalidade, agenciando-a simultaneamente aos efeitos colaterais da utilização desses mecanismos de poder e saber. O direito à saúde entrou no mercado da prevenção e gestão de riscos, pelo que tentamos afirmar, nestas linhas escritas de problematização da atualidade, em que os seus intoleráveis ganharam expressão máxima da indústria da segurança erigida ao extremo de produção da vida saudável e dopada como subjetividade contemporânea. Pudemos perceber os mais variados "terrenos" pelos quais pisa a medicalização.

 

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Endereço para correspondência
Dolores Cristina Gomes Galindo
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Linguagens / ECCO
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367, sala 44/IL, Boa Esperança, CEP 78060-900, Cuiabá – MT, Brasil
Endereço eletrônico: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará
Departamento de Psicologia - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá, CEP 66075-110, Belém – PA, Brasil
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Renata Vilela
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Bruna Garcia
Universidade Federal do Pará
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Recebido em: 17/12/2014
Reformulado em: 25/03/2016
Aceito para publicação em: 31/03/2016

 

 

Notas

* Profa. de Psicologia Social/UFMT.Psicóloga/UFPE. Mestre e Doutora em Psicologia Social/PUC-SP. Profa. de Psicologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Cultura Contemporânea/UFMT.
** Profa. de Psicologia Social/UFPA. Psicóloga/UNESP. Mestrado em Psicologia e Sociedade/UNESP. Doutorado em História/UNESP. Profa. adjunta IV em Psicologia Social/UFPA. Bolsista de produtividade em pesquisa CNPQ-2.
*** Mestre em estudos da cultura contemporânea/UFMT. Psicóloga. Mestranda em Estudos da Cultura Contemporânea/UFMT.
**** Psicóloga do CRAS-Castanhal/PA.

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