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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.16 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2016
PSICOLOGIA SOCIAL
Adolescente em conflito com a lei: revisando as contribuições de variáveis sociais, familiares e individuais
Adolescents in conflict with the law: a review of the contributions of social, family and individual variables
Adolescente en conflitco con la ley: revisando las contribuiciones de variables sociales, familiares e individuales
Lizinara Pereira da Costa*; Samara Silva dos Santos**
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é reunir informações a partir da literatura PSI, a fim de aprofundar o conhecimento sobre os adolescentes em conflito com a lei, tomando como parâmetro o modelo teórico proposto por Shoemaker. O artigo foi dividido em seções de acordo com os três níveis de conceitualização de Shoemaker: nível estrutural, nível individual e nível sociopsicológico. Destacou-se que, para uma melhor compreensão do comportamento infrator, faz-se necessário uma articulação e interação com todos os níveis de compreensão propostos pelo modelo de Shoemaker. Enfatizou-se a importância de pesquisas com dados mais específicos da realidade brasileira.
Palavras-chave: violência, adolescentes, conflito, lei, infrator.
ABSTRACT
The purpose of this article is to gather information from the PSI literature and to increase knowledge about adolescents in conflict with the law from the theoretical model proposed by Shoemaker. The article was divided into sections according to three levels of conceptualizing by Shoemaker: structural, individual and socio-psychological levels. It is emphasized that, for a better understanding of the offender's behavior it is necessary articulation and interaction with all levels of understanding proposed by Shoemaker's model. It emphasizes the importance of researching more specific data of the Brazilian reality.
Keywords: violence, adolescents, conflict, law, delinquent.
RESUMEN
El propósito de este artículo es recopilar información de la literatura PSI y aumentar los conocimientos acerca de los adolescentes en conflicto con la ley a partir del modelo teórico propuesto por Shoemaker. El artículo fue dividido en secciones de acuerdo con los tres niveles de conceptualización de Shoemaker: nivel estructural, nivel individual y nivel socio-psicológico. Destacase que para una mejor comprensión del comportamiento infractor hace necesario una articulación y interacción con todos los niveles de comprensión propuestos por el modelo Shoemaker. También, enfatizase la importancia de pesquisas con datos más específicos de la realidad brasileña.
Palabras clave: violencia, adolescentes, conflicto, ley, infractor.
1 Introdução
A violência é considerada um sério problema de saúde pública, e é um dos problemas que mais angustia a sociedade, seja pelo cotidiano, seja pelos dados estatísticos, gerando insegurança. Os fatores responsáveis pela violência são derivados de comportamentos, atitudes, condições sociais, econômicas, políticas e culturais. Assim, institui-se um círculo vicioso no qual "a violência gera o medo, mas este gera igualmente a violência" (Chesnais, 1999). Além disso, o interesse no cuidado com os indivíduos, prevenir problema de saúde, levar segurança e cuidados para a população de modo geral, referem-se às políticas públicas.
A violência atinge a juventude de modo geral, e especialmente os jovens em conflito com a lei. É entre eles que se encontram os mais altos níveis de mortalidade por agressões, assim como são os jovens os mais apontados como autores de agressões, tanto no Brasil quanto na América Latina (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lozano, 2002). Cabe salientar que dados atuais indicam e argumentam que os atos infracionais cometidos por jovens não são considerados hediondos, porque, na maioria das vezes, não envolve atentado à vida (IPEA, 2015).
A mortalidade juvenil é um aspecto revelador desta situação, tendo em vista que a proporção de mortes por homicídios na população jovem é muito superior à da população não jovem. Segundo Waiselfisz (1998), a morte por causas externas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios) na população jovem é de 72%, e, dessas, 39,9% referem-se a homicídios praticados contra jovens. Já em relação à população não jovem, a taxa de óbitos por causas externas é de 9,8%, e, desses, os homicídios representam apenas 3,3%.
Os resultados dessa associação – juventude e violência – são graves e abrangentes. Alguns autores apontam que "a dialética letal do matar e morrer abrevia a expectativa de vida, reduz o potencial produtivo da população, representa custos (diretos e indiretos) consideráveis para as famílias e para o sistema de saúde e compromete qualquer projeto de qualidade de vida" (Assis, Deslandes & Santos, 2005, p. 80). Diante dessa realidade os adolescentes, ao se envolverem com a violência, seja na condição de vítima, seja de perpetradores, acabam por sofrer alguma forma de exclusão.
A partir de tal perspectiva, a realidade dos jovens que são vítimas de violência não difere da realidade dos jovens que se tornam autores de violência (Priuli & Moraes, 2007). A temática dos adolescentes em conflito com a lei ainda tem sido pouco abordada e uma possível justificativa pode ser a carência na integração e funcionamento da rede com as políticas públicas. Embora não se tenha um expressivo número de publicações, os estudos e relatórios técnicos sobre a temática indicam o perfil de adolescentes brasileiros em conflito com a lei. Esses jovens são na sua maioria do sexo masculino, e os atos infracionais na sua maioria envolveram roubo, 010% cumprem medida socioeducativa de restrição e privação de liberdade e 0,41% cumprem medida socioeducativa em meio aberto, em comparação ao total de adolescentes no Brasil (Brasil, 2013).
A relação entre juventude e comportamento infrator é complexa e multifacetada, de forma que se torna necessário ponderar sobre a violência estrutural, social e de significativas formas de violência familiar, escolar e comunitária (Assis et al., 2005). A origem da delinquência juvenil tem sido foco de diversos estudos, com diferentes sistematizações teóricas as quais formulam explicações integradas ou multiteóricas (Shoemaker, 1996; Wolfe & Shoemaker, 1999.
Um modelo teórico que tem sido utilizado para compreender a questão do comportamento infrator na adolescência é a formulação proposta por Shoemaker (1996). O autor propõe três níveis de conceitualização: nível estrutural, nível individual e nível sociopsicológico. O nível estrutural refere-se às condições econômicas e sociais e abrange a teoria da desorganização social. Esta pode ser definida como a incapacidade de organizações nos grupos ou indivíduos, pode ser de uma mesma comunidade, na qual a resolução dos problemas comuns ocorre coletivamente. Nesse nível os fatores sociais exercem certo controle sobre a delinquência. Além disso, o modelo proposto por Shoemaker (1996) considera a influência de fatores pessoais e situacionais na delinquência. Esses três níveis de conceitualização serão discutidos nas seguintes seções desse artigo.
O objetivo deste trabalho foi reunir informações a partir da literatura e aprofundar os conhecimentos sobre adolescentes em conflito com a lei a partir do modelo teórico proposto por Shoemaker. E elaborar uma revisão teórica sobre adolescência e violência, que fornecerá subsídios para a pesquisa.
2 Infração Juvenil e Variáveis Sociais: Ampliando o Olhar Sobre o Fenômeno
O nível estrutural do modelo teórico de Shoemaker (1996) sobre a origem da delinquência propõe que sejam incorporadas nessa compreensão as condições sociais e econômicas, enfatizando a influência da organização social, sem desconsiderar, entretanto, a influência de fatores situacionais e pessoais. Esse nível de compreensão propõe uma ênfase na teoria da desorganização social e na teoria da anomia, nas quais a gênese da delinquência juvenil estaria associada a delitos praticados em grupos (gangues) e à falta de oportunidades de inserção no mercado de trabalho formal, que pudesse garantir reais condições de realização pessoal/profissional e crescimento, respectivamente (Assis, 1999; Assis & Souza, 1999).
A violência estrutural caracteriza a violência suscitada por estruturas organizadas e institucionalizadas, naturalizada e oculta em estruturas sociais (Minayo, 1994). Os sujeitos sociais sofrem os efeitos da violência estrutural em todos os níveis e poderes, a partir de mecanismos do Estado, que limita o acesso de direitos básicos a maioria da população, gerando um quadro de exclusão social (Minayo, 1994). A violência estrutural constitui-se de diferentes formas de respostas aos grupos, classes e indivíduos oprimidos. Essa violência se aplica tanto as estruturas organizadas e instituições (como família), sistemas econômicos, culturais e políticos, os quais conduzem a opressão de grupos e indivíduos, pelos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis. Nesse sentido, as estruturas influenciam e levam os indivíduos a aceitar ou infligir sofrimentos através dessa prática de socialização (Boulding, 1981).
Na sociedade Brasileira, com tantas desigualdades, a delinquência juvenil necessita destaque, de forma a ser avaliada a associação entre a violência estrutural e a infração juvenil, uma vez que a grande maioria dos jovens que cumprem medida socioeducativa é formada por meninos e meninas pobres (Brasil, 2006). Diante desse fato, percebe-se que a violência estrutural, infligida por instituições clássicas da sociedade, expressa o esquema de dominação de classe, de grupos, de Estado.
Estudos indicam que o envolvimento de jovens em práticas violentas ou perigosas, tem sido objeto de pesquisas a nível mundial (Zaluar, 1996). Cabe ressaltar, que a desigualdade social em nosso país é uma das maiores do mundo, marcando o cotidiano dos jovens nas práticas de riscos. O aumento dos problemas sociais e o avanço dos índices de atos infracionais praticado por adolescentes revelam uma necessidade de programas de prevenção à violência juvenil. Na busca pela identidade, o adolescente precisa ser reconhecido como um protagonista e não como um problema.
Nesse contexto, destacam-se as instituições como a que detém o maior controle quanto à aplicação e execução da medida socioeducativa. Pois, elas são adotadas como colaboradoras para prevenção das condutas delitivas, em todos os tipos de medidas adotadas, sejam em regime fechado ou aberto. No que tange o sentido social, educacional das medidas, formação profissional e infraestrutura das instalações das instituições sociais, que se torna decisiva para a ressocialização do adolescente em conflito com a lei.
O enfoque dado às condições sociais para à explicação da delinquência juvenil pode conduzir ao entendimento superficial de que a pobreza seria a causa direta desse comportamento (Assis, 1999). Pesquisas conduzidas pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, unidade da Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ), no final da década de 90, no Brasil (Assis, 1999; Assis & Souza, 1999), alertavam para o risco de adotar esse viés para a compreensão da infração juvenil. Não é a pobreza, mas as condições estruturais, visíveis pela desigualdade social, pela falta de oportunidades e expectativas sociais e pelas dificuldades que uma parcela da população tem de acessar as políticas públicas sociais e de proteção de forma efetiva que podem ser considerados fatores que, em conjunto com outros, contribuem para a manifestação da delinquência (Assis, 1999; Assis & Souza, 1999). Assis (1999) enfatizou que a influência desses fatores deve ser compreendida na articulação e interação com outros elementos, que compões os demais níveis de compreensão do modelo de Shoemaker (1996).
3 Infração juvenil e Instituições de Controle: Família, Escola e Grupos de Pares
O nível sociopsicologico do modelo teórico de Shoemaker (2000) se refere à influência dos grupos e dos sistemas de controle, como a família e escola, por exemplo, e a autoestima, uma vez que essa é desenvolvida na interação com o outo. Nessa perspectiva do controle social, a vinculação social do jovem à família, escola e grupos é que proporcionaria à adaptação as normas sociais (Assis, 1999). Isto é, o problema da delinquência estaria na falta ou no controle superficial exercido pelos pais, escola ou outras instituições sobre o comportamento do indivíduo (Assis, 1999). Os sistemas de controle podem ser divididos em pessoal e social. O sistema de controle pessoal envolve fatores individuais, principalmente os psicológicos. Já o sistema de controle social envolve instituições como a escola, a igreja e a família, essa última com a possibilidade de exercer maior controle (Assis, 1999; Shoemaker, 2000).
Situações de maus-tratos, perpetrada pelos pais ou experimentadas diretamente, inclusive originadas dos irmãos (Linares, 2006), são apontadas como fator de risco para a reprodução de comportamentos que envolvam violência e estas podem ser passadas de uma geração a outra (Falcke, Oiveira, Rosa & Bentancur, 2009). Alguns estudos destacam a ocorrência de um ciclo de violência, marcado por maus-tratos, abuso sexual, uso de drogas, repetência escolar e desemprego presente na trajetória de adolescentes do sexo feminino, antes da prática do ato infracional (Dell'Aglio, Benetti, Deretti, D'incão & Leon, 2005Dell'Aglio, Santos & Borges, 2004. Para algumas jovens a entrada na vida infracional pode ter sido antecedida por comportamentos desadaptativos e pela presença de várias rupturas nas relações estabelecidas junto aos seus cuidadores (Dell'Aglio, et. al., 2004).
Um estudo sobre práticas educativas parentais com adolescentes em conflito com a lei e seus genitores destacou que as práticas educativas exercidas pelos pais não se mostraram favoráveis ao desenvolvimento de comportamentos pró-sociais e/ou adaptativos, na medida em que foi possível identificar a predominância de práticas educativas negativas, como por exemplo: a negligência, a monitoria negativa, a disciplina relaxada1, a punição inconsistente e o abuso físico (Carvalho, Gomide, 2005).
A família tem sido um foco privilegiado nos estudos que investigam a situação do adolescente em conflito com a lei (Assis, 1999; Carvalho & Gomide, 2005; Feijó & Assis, 2004; Zappe & Dias, 2012). Se por um lado, uma boa parte dos estudos enfatiza a existência de fragilidades nas composições familiares de adolescentes que cometem atos infracionais. Por outro lado, esses mesmos estudos apontam para as potencialidades da família como um elemento importante para recuperação dos jovens, inclusive a apontando como um fator de proteção à reincidência do jovem em delitos (Arpini, 2003; Branco, Wagner & Demarchi, 2008; Carvalho & Gomide, 2005; Feijó & Assis, 2004; Zappe & Dias, 2012).
As relações interpessoais estabelecidas em outros contextos de desenvolvimento, além da família, também contribuem para a modelação do comportamento e podem atuar como fatores de proteção no sentido de modificar, melhor ou alterar a resposta do indivíduo a ambientes hostis, os quais predispõem consequências mal adaptativas (Reppold & Hutz, 2002). A escola e outras instituições presentes no contexto comunitário, assim como as relações de amizade estabelecida com os pares, são exemplos de outros contextos de desenvolvimento, no qual ocorrem relações interpessoais proximais, que tem oferecido informações para compreender melhor o comportamento infrator (Branco et. al.2008; Bauman & Ennett, 1996; Dishion, Bulllock & Granic, 2002).
Para compreender a realidade que envolve a escola e os adolescentes em conflito com a lei no Brasil foi realizado um estudo em 2010 (IBGE, 2010). Nesse estudo, 6,3% dos jovens que cumpriam medida socioeducativa haviam abandonado os estudos no 5º ano do Ensino Fundamental, 12,5% no 1º ano do Ensino Médio. A desvinculação com a escola, refletida pelos índices de evasão tem sido apontada como um dos principais preditores para o cometimento de atos infracionais (Hirschfield, 2009). Em um estudo nacional realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2012), em unidade de internação 57% dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de privação de liberdade se encontra evadidos da escola antes da apreensão. A evasão escolar, comum na trajetória de vida de jovens que cumprem medida socioeducativa, associada a dificuldade de oportunidades de trabalho e a vinculação com pares desviante pode contribuir para o engajamento em atos infracionais.
Branco et. al.(2008) avaliaram qualitativamente a rede social de cinco adolescentes infratores e verificaram que esses jovens não contavam com figuras de apoio no contexto escolar ou de trabalho. Além disso, a rede de amigos encontrava-se associada à prática de atos infracionais. O jovem autor de ato infracional geralmente age em conjunto com outros pares e mesmo quando age sozinho seu comportamento pode ser influenciado pela interação que estabelece com os pares e pelos contextos nos quais interage.
O contexto em que as amizades se formam, ou desenvolvem-se, influenciam nas características e na dinâmica das relações (Asher, Parker & Walker, 1998. Na formação e manutenção das relações de amizade o investimento de tempo é um fator importante (Asher et. al., 1998. Como destaca Fehr (1996) que o relacionamento de amizade busca articulação entre: os fatores ambientais, individuais e situacionais. Os fatores ambientais referem-se à proximidade residencial, local frequentado na maior parte do dia e as formas de comunicação com a rede social. Os fatores individuais abordam os critérios de exclusão e inclusão para o círculo de amigos. E finalmente os fatores situacionais detêm a probabilidade de interação, disponibilidade e a frequência de contato.
As relações de amizade podem ser consideradas tanto um recurso protetivo, diante de experiências negativas, uma vez que implica em apoio social ao jovem (Adams, Santo & Bukowski, 2011); quanto se constituir num fator de risco, quando o grupo apresenta identificação com a criminalidade e valoriza condutas antissociais, como a prática de atos infracionais (Gardner, Dishion & Connell, 2008; Selosse, 1997). A influência das relações de amizades sobre o comportamento transgressor pode ser percebida de forma qualitativa e quantitativa, no entanto, os vínculos e suas intensidades parecem ser um aspecto mais importante do que a quantidade de amigos (Davoglio & Gauer, 2011).
A autoestima no modelo de Shoemaker (2000) é classificada no nível sociopsicológico porque é desenvolvida na interação que o indivíduo estabelece com outros significativos. Alguns estudos investigaram a autoestima nesse grupo de jovens e verificaram que parece haver uma relação entre sentimento de poder, dominação e de impor sua vontade ao outro e níveis mais alto em escalas de autoestima (López, Ferrer & Ochoa, 2006). Esse comportamento pode ser percebido pelos demais membros como um modelo a ser seguida pelo grupo. Tanto a autoestima, como a baixa estima podem se constituírem em fator de risco e, portanto, podem colocar o jovem em vulnerabilidade.
O nível sociopsicológico destacou a influência das instituições de controle, como a família, escola e grupos de pares, que representam as normas sociais, como um elemento central para a compreensão do comportamento infrator. Entretanto, o modelo de Shoemaker (2000) também enfatiza outros níveis de compreensão e chama atenção para a necessária compreensão articulada e integrada entre os esses níveis como uma ferramenta para abordar esse fenômeno.
4 Infração Juvenil e Variáveis Individuais
O nível individual proposto por Shoemaker (1996) relaciona a manifestação da delinquência juvenil a mecanismos internos do indivíduo, tanto biológicos, quanto psicológicos, sem negar a influência de fatores ambientais. Do ponto de vista biológico, aspectos como a maturação cerebral e do próprio sistema cognitivo podem influenciar na conduta dos jovens (Steinberg, 2009). Alguns estudos trabalham com a hipótese de que o engajamento em atividades infracionais ou em comportamentos antissociais por parte de adolescentes pode ser resultado de um processo de tomada de decisão que privilegia o risco e a busca por recompensas imediatas, em detrimento de recompensas em longo prazo e menos gratificante, porém mais seguras (Steinberg, 2009; Smith, Chein & Steinberg, 2013; Albert, Chein & Steinberg, 2013). A tendência para o engajamento em comportamentos de risco no início da adolescência parece ocorrer por conta de um sistema de controle cognitivo ainda imaturo, tais comportamentos tendem a diminuir nos anos finais da adolescência (Steinberg, 2009).
De acordo com Steinberg (2009) durante a adolescência há o desenvolvimento gradual do sistema de autorregulação, que é responsável pelo controle dos impulsos, planejamento e previsão de riscos e aumento de interesse por busca de sensações, levando os jovens a se tornarem mais sensíveis aos estímulos emocionais e a tomar decisões de risco. Além disso, a companhia e a suscetibilidade à influência de outro adolescente parecem alterar fundamentalmente o cálculo de risco (Albert et al., 2013). Cabe enfatizar que Albert et al. (2013), diferenciam atitudes de risco de comportamentos de risco. A atitude de risco sofre a influência de aspectos neurológicos e envolve processos de tomada de decisão de risco, já comportamentos de risco são os comportamentos propriamente ditos e que são prejudiciais (Smith, et al., 2013).
Para compreender os casos de adolescentes que cometem atos infracionais considera-se pertinente abordar a questão do temperamento, que é definido como um padrão inato e estável de humor e reação, associados a aspectos constitucionais (Sanson, Hemphill & Smart, 2004). O temperamento difere um adolescente de outro na reatividade emocional, motora e atencional, presentes desde o início da vida (Sanson et al., 2004). No entanto, acredita-se que o temperamento pode ser modificado pela influência maturacional e ambiental (Rothbart, Ahadi Hershey & Fisher, 2001), e constitui-se em um componente emocional para a formação e expressão da personalidade (Kernberg, Weiner & Bardenstein, 2003). No que tange aos aspectos de personalidade, como um mecanismo psicológico, que influencia o comportamento de um indivíduo, características como impulsividade, imediatismo, inabilidade em lidar com os outros e de aprender com a própria experiência de vida, por exemplo, tem sido associada a jovens transgressores (Assis, 1999; Pacheco, Alvarenga, Reppold, Piccini, & Hutz, 2005).
É possível que boa parte dos adolescentes em conflito com a lei apresente déficits no processamento de informações afetivas e sociais (Steinberg, 2009; Smith, et al., 2013; Albert et al., 2013). No entanto, não é possível determinar o quanto esses se devem a fatores biológicos de fundo constitucional e/ou fatores psíquicos decorrentes da interação relacional.
Não é incomum identificar na trajetória de adolescente com comportamentos antissociais e/ou infratores uso de substâncias psicoativas. A associação entre o uso de drogas e o comportamento infrator está diretamente ligada a um histórico de exposição a fatores de riscos e podem ocasionar comportamentos infrator (Arpini, 2003; Oliveira, 2001).
Os comportamentos infratores ou delinquentes podem estar relacionados aos mecanismos internos do indivíduo (biológico e sócio psicológico) e as estruturas e conjunturas socioculturais. Os estudos revisados possibilitaram uma visão geral da produção científica sobre este tema, sendo possível identificar a necessidade de uma compreensão que integre e pondere sobre a influência, desses níveis de compreensão sobre a infração juvenil.
A título de conclusão, esta revisão possibilitou compreender e reunir informações a partir da literatura e discutir o conhecimento produzido sobre a questão da infração juvenil, explorando estudos com adolescentes em conflito com a lei, que cumpriram medidas socioeducativas. Assim, salienta-se a necessidade de investigar melhor a compreensão do comportamento infrator, considerando o contexto psicossocial que os jovens se desenvolvem tanto no espaço intra quanto extra institucional.
Os estudos analisados nesse trabalho, tanto como empíricos, quanto teóricos, possibilitaram compreender os diversos contextos de desenvolvimento presentes na vida desses jovens. Diante da necessidade e importância de compreender os processos vivenciados pelos adolescentes em conflito com a lei, assim como, de compreender a delinquência juvenil, esse artigo baseou–se no modelo teórico de Shoemaker (2000), o qual propõe explicações multiteóricas e integradas e que tem sido utilizado para compreender o comportamento infrator na adolescência, a partir dos três níveis de conceitualização: estrutural, sociopsicológico e individual.
Tendo em vista os estudos, salienta-se que a sociedade brasileira é permeada por violência estrutural, entre as quais destacamos: injustiças sociais, disparidades econômicas, exclusão e a falta de oportunidade para inserção no mercado de trabalho formal. Além das condições macrossociais, o problema do comportamento infrator sofre a influência das instituições de controle (família, escola), grupos de pares e de aspectos individuais (características biológicas e de personalidade). As dificuldades metodológicas e empíricas para distinção do que é decorrente de aspectos constitucionais e de influências de experiências ambientais na transmissão familiar e/ou manifestação de comportamentos violentos e/ou infratores contribuem para que as pesquisas sobre essas questões permaneçam escassas.
Entretanto, ressalta-se que pesquisas recentes sugerem fatores biológicos, individuais interagem com fatores familiares, culturais e fatores externos, o que complexifica o entendimento do problema da infração juvenil. Conforme o modelo teórico apresentado, esses fatores precisam ser compreendidos de forma dinâmica e integrada, de modo que não são todos os adolescentes expostos a fatores de risco para o comportamento infrator que apresentam problemas de desenvolvimento. Dessa forma, destaca-se a necessidade de estudos que enfoquem a trajetória desses adolescentes, a dinâmica de funcionamento individual, de grupos e de suas famílias.
De fato, torna-se essencial a consolidação das políticas públicas no atendimento a adolescentes autores de ato infracional, sua elaboração e readequação, serão possíveis após ampla aceitação social. Evidencia-se a necessidade de que medidas prevenção e promoção da saúde devem ser pensadas em um nível primário e não terciário; de que a prática de atendimento contemple tanto a família, como o adolescente e ações voltadas à promoção de ambientes protetivos, ao fortalecimento dos vínculos familiares.
Tendo em vista os aspectos apresentados, consideram-se possíveis explicações para o engajamento de adolescente em atos infracionais tem despertado o interesse de pesquisadores e resultados de estudos tem colaborado para subsidiar políticas públicas e programa de tratamento e prevenção a esse fenômeno. Entretanto, ainda evidencia-se a necessidade da realização de mais estudos, os quais possibilitem a obtenção de dados mais específicos da realidade brasileira.
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Endereço para correspondência
Lizinara Pereira da Costa
Universidade Federal de Santa Maria
Av. Roraima, 1000, Prédio 74B, terceira sala, 3210, Camobi, CEP 97105–900, Santa Maria - RS, Brasil
Endereço eletrônico: lizinara.costa@gmail.com
Samara Silva dos Santos
Universidade Federal de Santa Maria
Av. Roraima, 1000, Prédio 74B, terceira sala, 3210, Camobi, CEP 97105–900, Santa Maria - RS, Brasil
Endereço eletrônico: silvadossantos.samara@gmail.com
Recebido em: 16/06/2016
Aceito para publicação em: 25/09/2016
Notas
* Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA -2013). Licenciada pela UFSM no Programa Especial de Formação de Professores (PEG-2014). Mestra do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde (UFSM-2016). Atua como Psicóloga Clínica em Clínica particular com abordagem TCC, Psicóloga com Formação em Coach Pessoal e Profissional, pela Sociedade Gaúcha de Coaching (SGC-2015), Psicóloga com Formação Clássica em Programação Neurolinguística, Practitioner em PNL (Escola Livre-2016). Atuou e tem experiência de 2 anos em uma ONG, como Psicóloga e Orientadora Judiciária, com ênfase no atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco.
** Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003), mestrado (2007) e Doutorado (2011) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase no desenvolvimento de crianças, adolescentes e famílias em situação de risco. Atuando principalmente nos seguintes temas: violência intrafamiliar, avaliação psicológica e intervenção clínica.
1 Termo utilizado pelas autoras para se referirem a: "disciplina flácida, caracteriza-se pelo fato de os pais evitarem colocar limites e estabelecer contingências para comportamentos inadequados e anti-sociais, relaxando o cumprimento das normas e regras estabelecidas em função do comportamento coercitivo dos filhos" (Carvalho & Gomide, 2005, p. 266).