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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.8 no.2 Juiz de Fora dez. 2014
https://doi.org/10.5327/Z1982-1247201400020008
ARTIGOS
DOI: 10.5327/Z1982-1247201400020008
Silêncios e rearranjos na conjugalidade em situação de câncer em um dos cônjuges
Silence and rearrangements in conjugality when a spouse has cancer
Jeovana Scopel PichetiI; Elisa Kern de CastroII; Denise FalckeII
IFaculdade da
Serra Gaúcha (Caxias do Sul), Brasil
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (São
Leopoldo), Brasil
RESUMO
O presente artigo, embasado pela teoria sistêmica, refere-se a uma pesquisa qualitativa de estudos de casos múltiplos, cujo objetivo foi compreender a relação conjugal de casais nos quais um dos cônjuges estava em tratamento para o câncer. Quatro casais de meia-idade foram entrevistados (conjunta e individualmente) sobre o tema. Foram feitas análises transversais dos casos e síntese dos casos cruzados. Os principais resultados evidenciaram transformações no papel de marido/mulher para paciente/cuidador, dificuldades dos casais para falarem sobre as mudanças relacionadas à conjugalidade, em especial sobre o aspecto sexual, e sobre os medos referentes à possibilidade de morte.
Palavras-chave: neoplasias; família; relações conjugais.
ABSTRACT
The present paper, based on systemic theory, refers to a multiple-case qualitative research that aimed to understand the marital relationship of couples in which a spouse was undergoing cancer treatment. Four middle-aged couples were interviewed (collectively and individually) about the topic. Cross-case analysis and synthesis of crossed data were carried out. The main results exposed changes in the roles of husband/wife to patient/caregiver, the difficulties of couples in speaking about marital changes, especially those related to the sexual life, as well as the fear that arises with the possibility of dying.
Keywords: neoplasms; family; marital relations.
A teoria sistêmica concebe a família como um sistema complexo, composto por elementos em constante interação, com vínculos afetivos e consanguíneos, sendo suas principais características a influência mútua e a comunicação que se estabelece entre seus membros (Carter & McGoldrick, 2008). Quando um membro da família recebe o diagnóstico de câncer, considera-se que todo o núcleo familiar será afetado, uma vez que surgem mudanças na organização e na dinâmica familiar (Nichols & Schwartz, 2007). A demanda com relação às adaptações na rotina da família requerida por um membro doente constitui-se num dos maiores fatores de estresse familiar (Fraenkel & Wilson, 2002; Biffi & Mamede, 2004). O fato de que uma crise familiar pode ser causada em virtude do acometimento de um membro da família por câncer já foi apontado em alguns estudos (Almeida, 2006; Giarnodoli-Nascimento & Trindade, 2002). Essa crise pode desestabilizar a família, pois substitui uma determinada situação familiar já conhecida por outra, exigindo que os membros da família se adaptem à nova realidade (Picheti, 2008).
Levando em conta essas questões, o relacionamento conjugal inevitavelmente irá sofrer transformações quando um dos cônjuges adoece. Mudanças na vida conjugal já foram apontadas em uma série de estudos internacionais com pacientes com diferentes tipos de doenças crônicas (Badr & Taylor, 2009; Badr, Acitelli, & Taylor, 2008; Gilbert, Ussher, & Perz, 2010; Lindau, Surawska, Paice, & Baron, 2011; Manne & Badr, 2010; Manne, Badr, Zaider, Nelson, & Kissiane, 2010; Manne et al., 2004, 2006; Song et al., 2011). Contudo, as relações conjugais são atravessadas por uma série de questões culturais, como classe social, gênero e raça, e grande parte desses estudos tratam de forma homogênea essas relações, considerando pouco ou nada os aspectos culturais em questão. No Brasil, os poucos estudos sobre conjugalidade e câncer tratam basicamente das repercussões do câncer do filho para o casal, e não dos casos em que um dos cônjuges está adoecido.
A forma como o casal construiu sua relação conjugal antes da doença de um de seus membros tem papel significativo na forma como lida com o câncer, o que também influencia na possibilidade de manutenção desse relacionamento após o episódio da doença (Gradim, 2005). As mudanças trazidas pela doença podem ocasionar tanto consequências positivas como negativas, que ocorrem em maior ou menor medida em função da maneira como esse casal lida com essa nova conjuntura (Cole, 2002). Quando a estrutura familiar — e, nesse contexto, em especial, a conjugal — se constituiu de maneira funcional, baseada no diálogo e no respeito mútuo, os vínculos preestabelecidos contribuem para o aparecimento ou a retificação de sentimentos de carinho, atenção, cuidado, amor e respeito pelo cônjuge acometido pelo câncer (Hayashi, Chico, & Ferreira, 2006).
A comunicação entre o casal é um dos aspectos que possui importância significativa no relacionamento conjugal. Estudos internacionais apontaram para a importância de os casais manterem um diálogo franco sobre as mudanças que podem vir a ocorrer no relacionamento conjugal e na sexualidade devido à doença (Lindau et al., 2011; Manne et al., 2006, 2004, 2010). Em virtude de o tema conjugalidade e câncer ter sido pouco explorado no âmbito nacional, e menos ainda sob o enfoque da teoria sistêmica, a presente pesquisa objetivou analisar a relação de casal frente ao câncer de um dos cônjuges. Em particular, foram examinadas as percepções dos cônjuges individualmente e em conjunto a respeito da relação de casal.
Método
Delineamento
Este é um estudo de casos múltiplos (Yin, 2005), com o objetivo de compreender em profundidade a experiência dos casais em que um dos cônjuges tem diagnóstico de câncer.
Participantes
Participaram deste estudo 4 casais heterossexuais de meia-idade (entre 44 e 65 anos) que estavam no seu primeiro casamento e conviviam juntos há pelo menos 26 anos. Os participantes foram selecionados por conveniência, e o único critério de inclusão considerado foi que os casais convivessem há pelo menos dez anos juntos.
Os casais foram contatados quando um dos cônjuges estava hospitalizado em um hospital geral de uma cidade da Serra Gaúcha. Os pacientes em questão haviam recebido diagnóstico de câncer num período entre um ano e meio e nove anos. Tanto o paciente quanto o seu cônjuge tinham pleno conhecimento sobre o diagnóstico, o tratamento e a gravidade da doença. A Tabela 1 apresenta as características dos casais participantes do estudo.
Instrumentos
Foram realizadas três entrevistas semidirigidas (Minayo, 1996) com três casais participantes e uma entrevista semidirigida com um dos casais, pois, neste caso, o paciente faleceu no período de coleta de dados e antes da realização das outras entrevistas. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra, tendo sido programadas da seguinte forma:
• 1a entrevista: foi realizada com o casal, abordou questões sobre a história do relacionamento, seu cotidiano antes do aparecimento do câncer e a atual situação de vida do casal, percepções com relação ao impacto do câncer nas suas vidas e sobre a convivência após este evento;
• 2a e 3a entrevistas: foram realizadas com os cônjuges em separado e abordou questões sobre a percepção de cada um frente à doença, modificações que ocorreram nas suas vidas, medos e anseios. Na entrevista com o cônjuge, foram também abordadas questões sobre o reflexo da doença do parceiro na sua vida e sua contribuição no tratamento e expectativas para o futuro.
Procedimentos de Coleta de Dados
A pesquisadora fez contato com a equipe médica e de enfermagem do único hospital geral de uma pequena cidade da serra gaúcha (cerca de 13 mil habitantes) que atendia pacientes com câncer, solicitando o encaminhamento dos casais. O referido hospital possui apenas alguns leitos para o tratamento de pacientes oncológicos, sendo que, para procedimentos e tratamentos mais complexos, os pacientes são encaminhados para outro hospital de referência para a região. É de cunho público/privado, e a pesquisadora, na ocasião, trabalhava como psicóloga dessa instituição, o que facilitou o acesso aos pacientes e seus cônjuges. O local e a data das entrevistas foram agendados previamente e foram realizadas nas residências dos casais.
Considerações Éticas
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos sob o número 018/2011. Ao término da coleta, os dados foram guardados em ambiente seguro e serão destruídos após cinco anos da data das entrevistas (os arquivos de áudio das entrevistas serão apagados, e o material impresso será enviado para reciclagem).
Procedimentos de Análise dos Dados
Os dados foram analisados a partir da descrição abrangente de cada caso, organizada de forma cronológica (seguindo os eventos da história do casal e da história da doença no relacionamento conjugal) e temática (identificando os aspectos relevantes do relacionamento conjugal e da influência da doença no relacionamento de casal). A técnica de explanação de Yin (2005) foi utilizada com o objetivo de analisar exaustivamente os dados coletados de cada uma das entrevistas, para, assim, construir uma explanação sobre eles. Foi utilizada também a técnica de síntese de casos cruzados de Yin (2005), com o objetivo de confrontar os resultados obtidos através da análise de cada caso em particular, identificando convergências e divergências e buscando evidências que pudessem auxiliar na identificação ou não das mudanças provocadas na conjugalidade a partir do evento do câncer.
Resultados e Discussão
Inicialmente, são apresentados os principais dados da história e da relação conjugal da época da entrevista com os participantes do estudo (análise vertical). Em seguida é apresentada a síntese dos casos cruzados e a discussão dos achados (análise horizontal).
Apresentação dos Casos
Caso 1: Guilherme1 (62 anos, câncer de esôfago) e Carolina (65 anos).
História do casal: na época da entrevista, estavam casados há 37 anos. Tiveram 2 filhos homens (que tinham 36 e 35 anos) e 3 netos. Trabalhavam na roça; pouco tempo depois, numa cantina, onde Guilherme trabalhou por 32 anos, tendo parado apenas quando ficou doente, pois não tinha mais condições físicas para exercer suas funções.
Ambos os cônjuges referiram que sempre tiveram um bom relacionamento, mesmo tendo discordâncias com relação a alguns assuntos. Também contaram que sempre mantiveram bom relacionamento com os filhos.
História da doença: Guilherme relatou que a descoberta do câncer de esôfago havia ocorrido três anos antes da época da entrevista, quando apareceu uma "bolinha"2 no seu pescoço que começou a crescer. Referiu que foi ao médico depois de alguns dias da observação do nódulo, fez os exames e recebeu o diagnóstico de câncer. Guilherme relatou que sempre fez o tratamento conforme a orientação médica.
Guilherme comentou que encarou a doença como "coisas da vida". Referiu que não viu a doença de maneira negativa, mas, ao mesmo tempo, queixou-se da situação financeira, que piorou por não poder mais trabalhar. Além disso, demonstrou tristeza por não poder mais participar de atividades de lazer, como jogar futebol. Guilherme afirmou que a esposa e os filhos ficaram muito tristes com a notícia da doença e que sempre lhe prestaram apoio.
A conjugalidade frente à doença: após o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento, a vida do casal mudou. Na entrevista com o casal, ambos afirmaram que a doença acabou deixando-os mais próximos afetivamente, fortalecendo o relacionamento do ponto de vista da intimidade e da amizade. No entanto, não fizeram referências à sexualidade. Na entrevista individual, Carolina relatou que, desde a descoberta da doença do marido, eles não mantiveram relações sexuais e tampouco conversaram sobre esse assunto. Guilherme, na entrevista individual, também assumiu que a doença teve uma grande influência no relacionamento deles, mas não conseguiu falar mais sobre esse assunto. Guilherme relatou ainda que a esposa apresentava alterações no humor e que ela o tratava como se fosse uma criança, pedindo para que comesse ou para que se agasalhasse melhor por causa do frio.
Com relação à comunicação, observaram-se contradições nas falas do casal, pois, enquanto na entrevista em conjunto os dois afirmaram que falavam um para o outro o que sentiam, na entrevista individual, Guilherme disse que eles não costumavam falar sobre a doença em virtude de a esposa ter medo de perdê-lo e por esse ser um assunto difícil para ambos. Carolina também relatou que não falavam sobre a doença porque, quando comentavam sobre isso, Guilherme ficava mais triste. Segundo Carolina, antes da doença, eles conversavam mais, mas depois o marido ficou mais reservado. Carolina relatou que conversava sobre a doença do marido com os filhos, porém isso ocorria apenas quando ele não estava por perto. Quatro meses após a realização dessas entrevistas, Guilherme foi a óbito.
Caso 2: Edna (52 anos, câncer de mama) e Daniel (56 anos).
História do casal: Edna e Daniel, na data das entrevistas, estavam casados há 29 anos. Tinham um casal de filhos, de 27 e 22 anos, e 2 netos. O casal afirmou que mantinha um bom relacionamento e disseram que normalmente não discutiam. O casal relatou também que o relacionamento com os filhos era bom. O filho ainda morava com eles e trouxe junto para a residência sua esposa e seus dois filhos.
História da doença: Edna foi diagnosticada com câncer de mama pela primeira vez sete anos e meio antes da data da entrevista. Contou que começou a se sentir mal e muito cansada aproximadamente quatro meses antes de saber que estava doente. Relatou que sentiu dor e, ao passar a mão embaixo do braço esquerdo, percebeu que tinha um caroço. Ficou alguns dias sem comentar isso com ninguém até que o mostrou para sua cunhada. Na mesma semana, Edna procurou um médico, fez exames e teve o diagnóstico de câncer de mama.
Edna fez cirurgia na mama esquerda, quimioterapia e radioterapia. Relatou que ficou bem por cerca de três anos, mas depois o câncer se manifestou na glândula suprarrenal, nos ossos dos membros inferiores e, na época da entrevista, estava com metástases no pulmão e no outro rim. Teve uma perna amputada devido ao câncer, o que a tornou dependente das pessoas.
O casal referiu que a doença foi o momento mais difícil pelo qual já passaram. Afirmaram que, nesse momento de suas vidas, poderiam desfrutar um pouco mais, pois Daniel estava aposentado e ambos poderiam usufruir de uma melhor condição financeira, mas a doença não permitiu.
A conjugalidade frente à doença: o casal mencionou que o câncer mudou muitas coisas na rotina da casa e em suas vidas. Edna relatou que estava acostumada a fazer os serviços da casa e não podia mais fazê-los. Por esse motivo, Daniel acabou assumindo novas responsabilidades domésticas. Relataram que enfrentaram a doença juntos e que Daniel a apoiava, acompanhando-a nas consultas médicas e nas sessões de quimioterapia.
Ambos reconheceram que o relacionamento conjugal mudou muito depois do câncer. Edna verbalizou que não se sentia disposta e citou sua falta de desejo, pois pensava bastante na doença e, assim, não conseguia se concentrar e manter relações sexuais com o marido. Na entrevista individual, Edna confidenciou que, no início de sua doença, o marido se envolveu com outra mulher. Na época, os dois conversaram sobre a traição e ela referiu que "este assunto foi resolvido".
A vida sexual do casal não estava terminada, foi a frequência que diminuiu. Daniel relatou que compreendia essa situação e imaginava que, se tivesse acontecido com ele, ela também entenderia. Essas informações sobre a vida sexual do casal surgiram nas entrevistas individuais. A capacidade que ambos demonstraram de falar sobre sua intimidade juntos parece indicar que seguiam com um relacionamento emocionalmente próximo.
Com relação à comunicação, relataram ser pessoas "fechadas" e que, depois da doença, isso não mudou. Edna, na entrevista individual, disse que preferia não ficar falando muito sobre a doença, que guardava os sentimentos para si. Comentou também que acreditava que esse seu jeito introvertido fez com que "explodisse", nas suas próprias palavras, atribuindo a isso à causa de sua doença.
Caso 3: Fernando (52 anos, câncer de pulmão) e Maria (44 anos).
História do casal: na época da entrevista, estavam casados há 23 anos e tinham uma única filha, que estava com 20 anos e não morava com o casal. Ambos disseram que a filha era muito atenciosa e que os ajudava bastante. Sobre o relacionamento conjugal, eles referiram que sempre se deram bem, apesar de, às vezes, terem alguma discussão. Ambos verbalizaram que eram discussões que logo passavam, sem maiores consequências, e que ocorriam em virtude de algum acontecimento do cotidiano.
História da doença: Fernando relatou que começou a sentir dores nas costas, mas achava que ocorriam em função do trabalho. Trabalhava na própria terra, principalmente com parreiral. Depois de aproximadamente seis meses, resolveu ir ao médico. Após vários exames, foi diagnosticado com câncer de pulmão, o que ocorreu cerca de um ano e meio antes da entrevista.
Fernando fez radioterapia e quimioterapia. Contou que, quando recebeu o diagnóstico, estava sozinho e ficou muito abalado. Maria disse que, logo que o marido lhe contou a notícia, não acreditou, mas que, com o passar do tempo e com as consequências do tratamento, ela se conscientizou do problema. Ambos referiram que a filha sempre demonstrou preocupação em virtude da doença do pai.
Fernando realizou novos exames pouco antes da entrevista individual com a esposa, que constaram que o câncer de pulmão estava ativo novamente, mas a família não lhe contou o resultado. Esse dado foi fornecido pela sua esposa na internação hospitalar, que ocorreu uma semana depois dessa entrevista.
A conjugalidade frente à doença: Fernando e Maria disseram que o aspecto do cotidiano que mais foi modificado em função do câncer foi a atividade laboral, pois ele precisou parar de trabalhar por não ter mais forças físicas. Maria também deixou de trabalhar para cuidar dele.
Durante a entrevista do casal, Maria fez algumas referencias, através de gestos com as mãos, sobre a questão da relação sexual, mas não falou a respeito. Fernando também não tocou no assunto e não deu abertura para que se falasse sobre isso.
Maria e Fernando relataram que havia outras dificuldades durante seus anos de convivência, especialmente problemas financeiros, mas que sempre encontraram alternativas. Com relação à doença, referiram que esse foi o momento mais difícil pelo qual passaram.
Maria contou que cuida do marido, da sua alimentação, dos seus remédios, e Fernando relatou que aceita esse cuidado da esposa. Percebeu-se que ele, por ter sido uma pessoa bastante ativa antes da doença, se ressente por ter que ser cuidado pela esposa, especialmente por precisar de auxílio na locomoção. Maria admitiu que sabe que isso o deixa incomodado, mas que é necessário. Dez dias após a entrevista, Fernando faleceu.
Caso 4: Ruth (57 anos, câncer de pele, rim e pulmão) e João (62 anos).
História do casal: na época da entrevista, estavam casados há 41 anos. Contaram que Ruth nunca conseguiu engravidar e, assim, haviam adotado uma menina que estava com 33 anos. Depois, tiveram 3 filhos biológicos, de 27, 23 e 22 anos. Os filhos ainda moravam com o casal, participavam ativamente dos cuidados e sempre demonstravam preocupação e atitudes de carinho com relação à doença da mãe. Referiram que sempre tiveram uma boa relação de casal, às vezes com discussões, mas que conversavam e acabavam se entendendo. Ruth, em alguns momentos, pareceu não concordar com o que o marido dizia, porém não explicitava sua opinião. Ruth sempre olhava para o marido antes de responder às perguntas, esperando sua orientação e aprovação para falar.
História da doença: a descoberta da doença ocorreu nove anos antes da época da entrevista, quando Ruth e João trabalhavam como agricultores. Em certa ocasião, Ruth sofreu um acidente que ocasionou fraturas múltiplas e, logo em seguida, percebeu que sua perna esquerda estava inchada. Foi ao médico, que diagnosticou um nódulo na região da virilha. Fez cirurgia e quimioterapia, mas relatou que não notou melhoras. Nesse período, teve diagnóstico de metástase pulmonar e passou por três cirurgias no pulmão. João, na entrevista individual, comentou que Ruth estava com outros nódulos espalhados pelo corpo.
Ruth declarou que sempre cuidou da casa, mas que, há alguns meses, essa tarefa ficou mais difícil. Contou que se sentia mais cansada, debilitada e, por causa disso, o marido e os filhos assumiram essas tarefas. João disse que todos entendiam a situação e realizavam os serviços domésticos. Ruth afirmou que sofria muito pelo fato de perceber que não conseguia dar conta das suas atribuições e também em virtude da doença, verbalizando que também percebia o sofrimento da sua família por toda essa situação.
A conjugalidade frente à doença: na entrevista de casal, Ruth inicialmente negou alguma alteração na relação conjugal, mas depois disse que a sexualidade do casal havia mudado. Ela admitiu que o casal já não tinha relações sexuais há algum tempo (não determinou quanto tempo) e associou esse fato à fraqueza e ao desânimo que sentia. João ressaltou que entendia a situação da esposa e que não se incomodava com isso. Isso também foi referido por Ruth na sua entrevista individual.
Na entrevista individual, Ruth ressaltou que o marido estava mais atencioso e prestativo. João, na entrevista individual, comentou que a esposa era uma pessoa mais disposta e alegre antes da doença. Ambos disseram que sempre conversaram, apesar de Ruth haver comentado que ultimamente não sentia disposição de conversar sobre nenhum assunto. Apesar disso, Ruth disse que conseguia expressar seus sentimentos. Todavia, segundo Ruth, eles não estavam conversando sobre sua vida sexual, dado confirmado por João na entrevista individual. João ressaltou ainda que, depois que a esposa ficou doente, ele acabou concordando mais com ela, para que a mesma se sentisse melhor. Um mês após as entrevistas individuais, Ruth foi a óbito.
Análise Horizontal dos Casos
Tendo em vista a análise dos casos da presente pesquisa, foi possível levantar três eixos temáticos:
(1) características da fase do ciclo vital dos casais;
(2) intimidade/sexualidade e
(3) comunicação.
Esses eixos temáticos são apresentados a seguir.
Com relação ao eixo características da fase do ciclo vital dos casais, dos casos analisados, verificou-se que dois casais já vivenciaram a fase do ninho vazio, pois todos os filhos saíram de casa. Um casal (Edna e Daniel) ainda residia com o filho, e apenas um casal (Ruth e João) ainda possuía todos os filhos residindo com eles. Quanto à aposentadoria, verificou-se que seis participantes haviam vivenciado essa etapa de vida. Somente um casal (Fernando e Maria) ainda exerciam atividade laboral.
Como os relacionamentos eram de longa duração, esses casais, ao longo de sua convivência, passaram por várias transformações no que diz respeito tanto às famílias de origem (perdas de outros membros da família, mudanças de papéis familiares) quanto ao seu relacionamento conjugal (dificuldades financeiras, mudanças do sistema conjugal de casal para o parental, entre outros), adaptando-se às diferentes etapas do ciclo vital (Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt, & Shlomo, 2004). Essa questão foi extensamente observada nos casos apresentados, pois os casais referiram que passaram por dificuldades, sejam financeiras, na divisão de papéis ou na educação dos filhos, ao longo de sua convivência.
Todo relacionamento conjugal possui um contrato secreto que é estabelecido pelos cônjuges através de aspectos conscientes e inconscientes. Esse contrato traz aspectos que cada um dos cônjuges considera importante, com relação a questões como fidelidade, companheirismo, desejos e anseios quanto ao relacionamento estabelecido por esse casal (Anton, 2000). Ao longo do convívio do casal, o contrato sofre modificações, sendo necessário o recontrato (Aguiar, 2005). Com relação à etapa de transição do ciclo vital da meia-idade para a velhice, qualquer casal que a estiver vivenciando terá que recontratar o desejo sexual e o vínculo amoroso, pois os indivíduos não possuem mais as mesmas características físicas e emocionais do início do relacionamento. Nos casos apresentados, os casais, além de estarem passando por esse recontrato em virtude dessa etapa de transição vital, tiveram que reavaliar seu relacionamento devido à doença.
Pode-se observar também nesses casos a questão do apoio mútuo entre os membros do casal. O apoio mútuo está relacionado ao fato de um dos cônjuges auxiliarem o outro nas tarefas da vida diária, como nos cuidados da casa, e ao fato de os cônjuges demonstrarem preocupação e cuidado com os pacientes. Essa questão foi referida por Osório e do Valle (2004), os quais ressaltam que um convívio há muito estabelecido pode contribuir para uma maior cumplicidade entre o casal, a qual, ao mesmo tempo em que pode aprimorar seus recursos emocionais, pode conseguir tornar os cônjuges figuras de apoio mútuo.
Relevante destacar que, nos casos apresentados, os pacientes estavam em estágio avançado da doença, em cuidados paliativos. A proximidade do fim da vida, como acabou acontecendo para três dos quatros enfermos entrevistados, não foi uma realidade percebida ou pelo menos verbalizada nas entrevistas por eles ou seus cônjuges. A morte ainda é um tema tabu na sociedade e pode ser difícil de ser verbalizada, mesmo para casais que convivem juntos há muitos anos, como nos casos apresentados aqui. Rolland (2008) aponta que, com a proximidade da morte, o sofrimento acaba por dominar toda a vida familiar, o que pode dificultar o diálogo. Porém, apesar da dor total (física, emocional e espiritual) que o paciente em cuidados paliativos apresenta, é importante criar um espaço para que ele e as pessoas próximas possam expressar seus sentimentos e desejos com relação ao fim da vida e o que poderá acontecer após a morte (Menna Barreto & Castro, no prelo). Nesse sentido, além de auxiliá-lo no processo de adoecimento e morte, é importante que todos estejam trabalhando em prol da qualidade de vida do paciente. Portanto, poderia ser uma boa estratégia de enfrentamento se tanto o paciente como sua família conseguissem, apesar da doença, manter as atividades que já realizavam antes dela e conversar mais abertamente sobre a morte (Picheti, 2008). Ao mesmo tempo, é necessário que ocorra a redistribuição das responsabilidades e dos papéis desempenhados pela família antes da morte da pessoa adoecida (Fonseca, 2004). Com relação a essa questão, todas as famílias, de alguma maneira, tentavam seguir sua rotina normalmente, apesar das limitações impostas pela doença e da dificuldade ressaltada em continuar com as atividades laborais.
Assim, todas as famílias estavam em estágio de luto antecipatório, pois conviviam com a doença há algum tempo, o estado de saúde dos enfermos era grave e tanto eles quanto seus familiares, de alguma forma, estavam a par da situação sem perder esperanças de alguma melhora. O luto antecipatório consiste num fenômeno adaptativo que permite que pacientes e familiares se preparem, tanto cognitiva quanto emocionalmente, para a morte (Fonseca, 2004). Caracteriza-se pelo fato de a família ter que dar conta de conviver entre a esperança da melhora do familiar e a possibilidade da morte deste (Rolland, 2008).
Bowen (1976/1998) trouxe contribuições importantes sobre esse tema, referindo que a vivência psicológica da morte precisa ser contextualizada e analisada a partir de diferentes ângulos. Para tanto, seria preciso compreender o papel desempenhado pela pessoa que morre, a fase do ciclo de vida em que ela estava e as reestruturações pelas quais a família precisa passar em virtude desse acontecimento. Mudanças significativas foram observadas nas funções desempenhadas pelos pacientes e por seus cônjuges, mesmo na situação de adoecimento, ou seja, anterior à perda do cônjuge. Com relação aos cônjuges homens, Worden (1998) refere que a perda da esposa costuma impactar seriamente a rotina de afazeres, pois os cônjuges percebem maiores efeitos no seu cotidiano, tendo que se adaptar a desempenhar papéis comumente femininos, como cuidar da casa. Apesar de poder ser considerada uma visão sexista dos papéis de marido e mulher, o impacto do adoecimento da esposa nos afazeres domésticos tradicionalmente destinados às mulheres esteve presente nos casos de Daniel e João, o que demonstra que, em alguns casais de meia-idade e de cidades pequenas, os casais ainda podem funcionar desempenhando papéis tradicionais e confirmando a maior dificuldade de perda feminina pelo seu desempenho no âmbito doméstico.
Sobre a perda dos papéis desempenhados, os pacientes Guilherme e Fernando aparentaram ser os que mais sentiram essas mudanças, pois tinham uma atividade laboral e eram provedores de suas famílias. Aqui fica evidenciada mais uma vez a divisão tradicional dos papéis de homem como provedor da família e da mulher como cuidadora do lar. Questões financeiras presentes na situação de doença, bem como a perda de papéis sociais desempenhados pelo doente e o consequente declínio da saúde, acabaram gerando sofrimento (Reis & Silva, 2009). Tendo em mente essas questões, os pacientes, além de não poderem mais prover suas famílias, ainda acabaram por ficar dependentes de suas esposas.
Outro eixo estruturante da pesquisa referiu-se à intimidade/sexualidade. O aspecto que ficou mais evidente diz respeito ao fato de esses casais estarem desempenhando menos o papel de esposo(a) e muito mais de cuidador(a)/paciente, o que pode causar prejuízos para a conjugalidade. Em todos os casos apresentados, os cônjuges exerceram o papel de cuidador primário, mesmo que outros membros da família, em especial os filhos, tenham contribuído nos cuidados aos pacientes. Esse novo vínculo, de paciente versus cuidador, pode causar interferências na conjugalidade, pois, se antes da doença, ambos estavam no mesmo patamar de poder (Minuchin, 1990), nessa nova posição hierárquica, um está cuidando do outro. Quando a alteração ocorre de forma transitória, logo se restabelecem as posições originais e não são observadas maiores consequências. No entanto, no caso de uma doença crônica e grave como é o câncer, as posições de paciente e de cuidador podem manter-se solidificadas por um tempo maior, podendo comprometer a simetria do casal.
Em contraponto, assumir os papéis de cuidado e cuidador também possui um aspecto positivo. Os casais Carolina e Guilherme, Edna e Daniel e Ruth e João mencionaram que perceberam uma mudança positiva na sua relação conjugal, de maior proximidade afetiva. Edna e Ruth, além disso, ressaltaram que os cônjuges demonstravam mais atenção e carinho para com elas. Talvez essa proximidade afetiva referida pelos participantes esteja relacionada a passar mais tempo juntos, o que nem sempre significa aumento da intimidade. Essas questões foram encontradas também em estudos internacionais que relacionaram os efeitos positivos da intimidade, levando à maior proximidade física, demonstrada através de beijos e abraços, e o aumento da intimidade emocional gerado pela questão do apoio mútuo, do cuidado dispensado ao paciente e da valorização mútua (Norton & Manne, 2007; Lindau et al., 2011; Baine et al., 2011).
Outro aspecto fundamental no eixo se refere à sexualidade. Esse assunto foi trazido pelos casais Edna e Daniel e Ruth e João, que apontaram a existência de mudanças significativas em suas relações sexuais, especialmente quanto à diminuição da frequência. Carolina, cônjuge de Guilherme, disse que, depois que o esposo ficou doente, não tiveram mais relações sexuais. O casal Fernando e Maria não falou sobre essa questão. Edna e Ruth consideraram que a diminuição nas relações sexuais estava ligada à doença e ao tratamento, pois se sentiam mais cansadas e menos dispostas. Estudos internacionais confirmam que as mudanças que ocorrem na sexualidade dos casais em virtude do câncer estão relacionadas aos aspectos da saúde física dos pacientes, dentre os quais se destacam a fadiga e as dores (Badr & Taylor, 2009; Hodgsog, Shields, & Rosseau, 2003; Lindau et al., 2011; Gilbert et al., 2010; Bohemer & Clark, 2001).
Todos os casais participantes disseram que se relacionavam bem antes da doença e que isso se manteve após o adoecimento do cônjuge. Entretanto, com as mudanças na vida desses casais, incluindo um caso de traição após a doença da esposa, parece evidente que os percalços atingiram a vida do casal. É possível que eles não tenham se dado conta de forma explícita dessas dificuldades, ou então não tenham se sentido à vontade para mencioná-las nas entrevistas com a pesquisadora. Gradim (2005) ressaltou que a qualidade da relação conjugal que foi estabelecida antes da doença influencia na manutenção ou não do relacionamento depois do acometimento desta. Assim, pode-se questionar se os casais realmente tinham um relacionamento satisfatório antes da doença ou se acabaram trazendo isso à tona, como uma maneira de protegerem a si e aos cônjuges, já que então precisavam se unir para enfrentar a doença.
No eixo comunicação, percebe-se que os casais apresentaram dificuldade em falar sobre os medos e as angústias relacionadas às suas vivências conjugais, em especial sobre a sexualidade e o prognóstico da doença. Edna e Daniel e Ruth e João conseguiram, durante as entrevistas de casal, falar sobre a sexualidade nos seus relacionamentos, mas admitiram que não conversavam entre si sobre isso. A evitação do diálogo sobre sexualidade pode, em muitos casos, ser considerada um mecanismo protetivo, tanto individual quanto do casal, por se entender que o(a) parceiro(a) pode sofrer ao tocar nesse assunto delicado (Lindau et al., 2011; Gilbert et al., 2010; Bohemer & Clark, 2001; Manne et al., 2010). Carolina, esposa de Guilherme, ao relatar que já não tinha relações sexuais com o marido, disse não ter vontade de falar sobre o assunto. O paciente Guilherme não mencionou o tema, mesmo quando questionado. O comportamento de evitação desse casal também foi contemplado em estudos internacionais que ressaltam que o assunto sexualidade tende a ser evitado pelo paciente principalmente se este for do sexo masculino e a doença e/ou o tratamento impactar a sexualidade. Ao mesmo tempo, a esposa parece perceber que esse tema é fonte de sofrimento para seu marido e acaba por não falar com ele sobre isso (Bohemer & Clark, 2001; Manne et al., 2010). Por fim, o casal Maria e Fernando não falou sobre essa questão, o que pode ter ocorrido em razão de não terem sido realizadas as entrevistas individuais, devido ao estado de saúde do paciente. Considerando o tema da sexualidade, constatou-se que os casais optam pela evitação do assunto, como forma de proteção. Todavia, há que se considerar também que a sexualidade é um tema ainda considerado tabu em nossa sociedade, especialmente para casais de meia-idade, que muitas vezes não possuem o hábito de conversar sobre sexo. Todavia, considera-se importante ressaltar que estudos internacionais, ainda que evidenciem essa estratégia como sendo comum, salientam a importância de um diálogo franco sobre sexualidade como forma de incremento da qualidade conjugal (Lindau et al., 2011; Manne et al., 2006, 2010).
Outro assunto considerado tabu pelos participantes foi a possibilidade de morte. Ressalta-se que tanto os pacientes quanto seus cônjuges tinham conhecimento a respeito do estado de saúde e da gravidade da doença, mas os mesmos evitavam falar um com o outro sobre isso. Esse comportamento de evitação, conhecido como conspiração do silêncio, configura uma tentativa de proteção mútua que demonstra o quanto é difícil falar sobre essa vivência (Kovás, 2008). Carolina, esposa de Guilherme, referiu que conversava sobre a doença do marido com os filhos, porém isso ocorria apenas quando ele não estava por perto. O agravamento da doença e a proximidade da morte podem perturbar seriamente a comunicação entre o paciente e a família. A falta de diálogo sobre a morte pode ser considerada uma tentativa de proteção frente ao sofrimento, porém também denuncia fragilidades na comunicação familiar (Kovás, 2008), podendo gerar desentendimentos entre os envolvidos (Walsh, 2008). Essa conspiração do silêncio também pode ser constatada no caso dos pacientes Fernando e Ruth, que haviam feito novos exames pouco antes das entrevistas, os quais mostravam o agravamento do estado de saúde, mas as famílias optaram por não lhes contar o resultado dos exames abertamente. Assim, a dificuldade de diálogo, incluindo especialmente encobrir a verdade a respeito da doença, pode gerar ainda mais sofrimento ao paciente, que sente que seu estado de saúde não está bom, porém não sabe exatamente o que enfrentar. Dessa forma, ainda que se fale constantemente da importância de se falar abertamente sobre a doença, também é importante saber os limites que cada membro da família tem em aguentar o sofrimento e a verdade, para poder auxiliá-los a enfrentar esse período de uma forma mais tranquila e com qualidade de vida para ambos.
A partir dos três eixos de análise dos resultados apresentados, constatou-se o impacto do adoecimento por câncer na vivência da conjugalidade. Foram priorizados os aspectos da fase do ciclo vital, da intimidade/sexualidade e da comunicação, mas entende-se que, sistemicamente, o diagnóstico e o tratamento do câncer provocam transformações globais no relacionamento, que serão enfrentadas conforme os recursos prévios que os casais dispunham e as características do vínculo conjugal. Podem ser identificadas quais estratégias que os casais utilizam para lidar com o sofrimento a fim de fomentar a comunicação e diminuir a evitação frente ao problema, que é um ponto a ser trabalhado intensamente pelos profissionais de saúde e terapeutas em especial. Apesar de parecer protetiva, a estratégia de evitação do diálogo e da real situação de saúde da pessoa adoecida pode gerar dificuldades em enfrentar a doença, sentimentos de tristeza e/ou culpa, isolamento, entre outros, que, ao serem compartilhados, podem ser minimizados e inclusive promover maior qualidade conjugal.
Considerações Finais
Este estudo foi realizado com a intenção de compreender a relação conjugal de casais nos quais um dos cônjuges estava em tratamento em virtude do acometimento por algum tipo de câncer. O diferencial do presente estudo recaiu sobre o foco do aspecto conjugal associado ao câncer, assunto que foi pouco explorado na realidade brasileira.
A partir da discussão realizada, foi possível identificar questões relevantes relacionadas às mudanças na vida conjugal, destacando-se as mudanças nos papéis desempenhados e a dependência do paciente em relação ao seu cônjuge. Os cônjuges, nos casos estudados, desempenharam menos o papel de marido/mulher e mais o papel de cuidador(a)/paciente, o que parece ter dificultado a vivência da conjugalidade, por um desequilíbrio de poder, mas também favorecido uma maior aproximação física e afetiva, gerando maior sentimento de companheirismo. Também foram identificadas dificuldades relacionadas à comunicação entre os casais quanto à sexualidade, bem como alterações importantes, como a diminuição e até mesmo o encerramento da atividade sexual. Os casais entendiam como um fato protetor ao cônjuge não abordar a questão da sexualidade, ainda que estudos revelem o quanto um diálogo aberto sobre o tema pode incrementar a qualidade conjugal.
Tendo em vista o que foi exposto, evidenciam-se mudanças importantes nos papéis desempenhados pelos cônjuges, quando um deles está com câncer, e verifica-se que essas mudanças nem sempre são conversadas pelo casal. O sofrimento causado pela doença e pelas limitações na vida das pessoas envolvidas, assim como a perda da saúde e do seu papel desempenhado até então, gera sentimentos que nem sempre são expressos e até mesmo são evitados. Pode ser parte do trabalho do terapeuta de casais fortalecer a compreensão dos cônjuges de que o compartilhamento de suas dores, medos e anseios sobre o futuro em comum favorecerá maior aproximação afetiva e diminuirá o isolamento que a dor e o sofrimento causados pela doença provocam em suas vidas, proporcionando uma melhor qualidade de vida a todos, especialmente ao paciente que está em situação de cuidados paliativos.
Os apontamentos aqui realizados mostram-se relevantes para a compreensão da vivência da conjugalidade em situação de câncer, mas não podem ser generalizados. O estudo foi exploratório e contemplou apenas quatro casos para entender o fenômeno; portanto, revelou possivelmente um tipo de vivência específica de casais que se relacionam há muito tempo, em primeiro casamento, em uma dada cultura de uma cidade do interior do Brasil. Outra limitação se refere ao fato de que, ao serem coletados os dados da história do casal em situação de adoecimento, as percepções dos participantes de uma realidade que não mais vivenciavam talvez acabou por ficar idealizada, já que todos referiram bom relacionamento conjugal anteriormente à doença. Nesse sentido, pode-se pensar que o impacto do adoecimento na conjugalidade contribuiu, por um lado, para encobrir aspectos negativos do relacionamento anteriores à doença e que ficaram colocados em um segundo plano, ou, por outro, para potencializar os aspectos positivos associados às novas formas de vivenciar a intimidade e a proximidade física entre os parceiros, o que pode ter contribuído para um incremento do vínculo conjugal anteriormente estabelecido.
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Endereço para correspondência:
Elisa
Kern de Castro
Universidade
do Vale do Rio dos Sinos
Centro
de Ciências da Saúde
Avenida
Unisinos, 950 – Cristo Rei
CEP:
93022-000 – São Leopoldo/RS
E-mail: elisakc@unisinos.br
Recebido
em 01/07/2013
Revisto
em 20/02/2014
Aceito
em 10/05/2014
1 Os nomes utilizados
são fictícios.
2 As palavras entre
aspas referem-se aos termos usados pelos participantes da pesquisa.