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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.10 no.2 Juiz de Fora dez. 2016
https://doi.org/10.24879/201600100020064
ARTIGO ORIGINAL
10.24879/201600100020064
Transtornos somatoformes (manifestações histéricas) em mulheres atendidas em hospital psiquiátrico de São Luís, Maranhão
Somatoform disorders (hysterical manifestations) in women served in the psychiatric hospital of são luís, maranhão
Ana Paula Rezzo Pires ReinertI; Rafisa Moscoso Lobato RêgoI; Rômulo Cesar Rezzo PiresII; Vanalda Costa SilvaIII
IUniversidade Ceuma, São Luís - Maranhão
IIFaculdade do Maranhão (FACAM), São Luís - Maranhão
IIICentro de Atenção Psicossocial - I, Viana - Maranhão
RESUMO
Os sintomas somáticos sem explicação médica ou manifestações histéricas são freqüentes, estando associados a sofrimento mental em vários contextos. Atualmente são classificados na psiquiatria como transtornos somatoformes (TS). Estudos prévios apontam que as populações latino-americanas são propensas à somatização. No entanto, existem poucos estudos nacionais e locais sobre estes transtornos. Desse modo, este estudo objetivou verificar a ocorrência de TS em mulheres atendidas em um hospital psiquiátrico em São Luis Maranhão. Realizou-se um estudo seccional de base documental a partir dos dados coletados dos prontuários médicos das pacientes atendidas no período de Agosto de 2012 a Janeiro de 2013. Estimou-se a prevalência de TS com base em um total de 1.220 atendimentos, o que resultou em 62 casos de sintomatologia compatível com TS (5,08%), dos quais, apenas 5 receberam diagnóstico conclusivo de TS (8,06%). Os TS diagnosticados pelo CID 10 foram: quatro casos de transtorno dissociativo conversivo e um de neurovegetativo somatoforme. Os transtornos ocorreram mais frequentemente entre mulheres pardas com idade média de 34,3 anos. Os sinais e sintomas mais freqüentes foram insônia, dor de cabeça e inapetência. Os resultados apontam a necessidade de investigações mais minuciosas com os pacientes e auxílio de outros profissionais na composição de uma equipe multidisciplinar na investigação e fechamento do diagnóstico clínico. Levando-se em consideração as reformulações pelo qual o Código Internacional de Doenças versão 10 para as modificações na 11ª edição, estudos sobre os TS contribuirão de forma significativa para o processo de revisão dos sistemas diagnósticos de transtornos mentais e de comportamento.
Palavras-chave: Transtorno Somatoforme, Somatização, Psicanálise, Mulheres, Hospital Psiquiátrico.
ABSTRACT
Unexplained somatic medical symptoms or hysterical symptoms are common and frequently associated with mental distress in various contexts, representing, in general, a quarter to half of visits in primary and secondary care. They are currently classified in psychiatry as somatoform disorders (SD). Previous studies suggest that the Latin American populations are susceptible to somatization. However, there are few national and local studies on these disorders. Thus, this study aimed at verifying the occurrence of SD women attended in one psychiatric hospital in São Luís Maranhão. It was conducted a cross-sectional study of documentary basis of data collected from the medical records of patients treated during the period August 2012 to January 2013. It was estimated the prevalence of SD based on a total of 1,220 calls, which resulted in 62 cases of symptoms compatible with SD (5.08%), of which only 5 received conclusive diagnosis of SD (8.06%). The SD diagnosed by ICD 10 were: four cases of dissociative conversive disorder and a somatoform autonomic. Disorders occurred more frequently among brown women with a mean age of 34.3 years. The most common signs and symptoms were insomnia, headache and loss of appetite. The results indicate the need for more detailed investigations with patients and aid of other professionals in the composition of a multidisciplinary team in research and clinical diagnosis closure. Taking into account the reformulations by which the International Classification of Diseases version 10 for modifications in its 11th edition, the SD studies will contribute significantly to the process of revising the diagnostic systems for mental and behavioral disorders.
Keywords: Somatoform Disorder, Women, Psychiatry Hospital, Somatization, psychoanalysis.
Introdução
Os estudos sobre a histeria são considerados como ponto de partida da Psicanálise, tendo ganhado mais relevância no século XIX, quando o médico Sigmund Freud atendeu mulheres que apresentavam sintomas tais como paralisia, cegueira, dor de cabeça, paresia de músculos, rigidez, perturbações na visão entre outros.
A partir destes estudos, Freud concluiu que a histeria está ligada a conflitos relacionados à intimidade da vida psicossocial dos pacientes e que seus sintomas são a expressão dos mais secretos desejos recalcados. Esses desejos encontram-se no plano do inconsciente. Revelando - se sobre forma de sintomas que causam o adoecimento do corpo (Freud, 1996).
A histeria, classificada atualmente por transtorno somatoforme, tem como principais características a presença repetida de sintomas físicos associados à busca persistente de assistência médica. Esse transtorno, ainda hoje, é um enigma para a classe médica, pois estes profissionais nada encontram de anormal nos pacientes e afirmam que os sintomas não têm nenhuma base orgânica (ORGANIZAçÃO MUNDIAL DA SAÚDE [OMS], 1997).
O transtorno somatoforme (TS) é de difícil reconhecimento e tratamento, tanto pelo psiquiatra, quanto pelo não psiquiatra. Esse transtorno pode ser entendido no seu sentido mais amplo, que é a manifestação de sintomas físicos de origem exclusivamente psicogênica. Contudo, esta definição é prejudicial, pois pressupõe uma divisão entre "corpo" e "mente", e pode dar uma ideia de que os sintomas físicos são "simulados" ou "controlados" pelo paciente, além de não englobar situações em que há somatização associada com doença "orgânica" e, por outro lado, não distinguir casos em que a somatização é secundária a outros transtornos mentais (Elkis & Louza, 2007).
Verifica-se, em manuais de diagnóstico como o DSM - IV - TR e CID-10, que o diagnóstico de histeria foi rejeitado pela comunidade científica, dando lugar às novas classificações diagnósticas dos transtornos dissociativos, de personalidade, bipolar ou síndromes psicóticas. Porém, a mudança na classificação da histeria não impede que ela continue existindo. A diferença é que hoje a histeria apresenta. além dos antigos, novos sintomas como anorexia, bulimia, obesidade, pânico e doenças como depressão e mania (Maurano, 2010).
No Brasil, em um estudo epidemiológico realizado em 1997 em três capitais brasileiras (Brasília, São Paulo e Porto Alegre), observou-se que a prevalência ao longo da vida de transtornos psiquiátricos pode chegar a 50% conforme Almeida-Filho et al. (1997).
Em um estudo realizado na cidade de São Paulo, mostra que a prevalência de qualquer transtorno psiquiátrico ao longo da vida é de 45% - mesmo excluindo-se a dependência de nicotina, quase um terço da população apresentará algum diagnostico psiquiátrico ao longo da vida (Andrade,Walters, Gentil, & Laurenti, 2002).
A Revista Brasileira de Psiquiatria, em seu vol 33, afirma que como a classificação dos assim chamados transtornos somatoformes é altamente controversa, há sugestões de abolir esta categoria como um todo. Cada pequena porção de informação é extremamente importante para a revisão de um sistema de classificação global dos transtornos mentais que é o que propõe com a 11º versão da Classificação Internacional de Doenças (Mayou, Kirmayer, Simon, Kroenke, & Sharpe, 2005).
Os transtornos somatoformes constituem um campo amplo para estudos, tanto na área clínica, quanto aos seus aspectos epidemiológicos. Atualmente, sabe-se que no Brasil, os transtornos mentais não são de notificação compulsória e seu diagnóstico é muito complexo e específico, devendo este ser emitido por médico psiquiatra experiente na área de saúde mental. Uma vez que as populações latino-americanas, incluindo o Brasil, são susceptíveis à vulnerabilidade social e com isto aos transtornos somatoformes, a realização de estudos que estimem de forma pontual sua ocorrência e suas manifestações clínicas, certamente contribuiria para disseminação científica do conhecimento sobre esta classe de transtornos.
Nesta perspectiva, os hospitais psiquiátricos de referência estaduais ou municipais constituiriam fonte imensurável de informação sobre os transtornos mentais, em especial os somatoformes, devido a uma maior qualidade e padronização do diagnóstico. Soma-se a isso, a ausência de instrumentos sensíveis para realização de triagem na atenção básica, o que poderia gerar estimativas equivocadas para os transtornos somatoformes na população.
A ausência de estudos no estado do Maranhão, aliada aos fatores citados anteriormente reforçam a realização deste estudo, cujo objetivo principal é estimar a incidência de TS em mulheres atendidas em um Hospital Psiquiátrico de São Luís (MA) e Além disso, este estudo se propõe a verificar as características sociodemográficas das pacientes com sintomatologia compatível com o Transtorno Somatoforme e elencar os diagnósticos (CID-10), identificados nos prontuários das pacientes com sintomatologia compatível com este tipo de transtorno.
A histeria e a evolução em sua definição
A histeria é uma neurose no mais estrito sentido da palavra, ou seja, essa doença apresenta alterações perceptíveis do sistema nervoso, porém não se espera que qualquer aperfeiçoamento das técnicas de anatomia venha a revelar alguma dessas alterações (Freud, 1996, p. 77).
Em relação à histeria, freud (1996, p.78) revela "que ela é um quadro clínico nitidamente circunscrito e bem definido, que pode ser reconhecido com bastante clareza nos casos extremos daquilo que se reconhece como "grande hystérie".
Os estudos sobre a histeria ganharam maior relevância no séc. XIX, quando Jean-Martin Charcot, médico francês, demonstrou que, usando o método sugestivo da hipnose, seria possível induzir e eliminar todas as formas de sintomas experimentados por pacientes do sexo feminino que sofriam do que, até então, era denominado histeria (Paim, & Ibertis, 2006). Sobre o surgimento da histeria, Freud (1996, p. 45), acrescenta:
A idade média estava familiarizada de modo preciso com os estigmas da histeria, seus sinais somáticos, e os interpretava e utilizava à sua própria maneira. Em seus estudos sobre histeria, Charcot partiu dos casos mais completamente desenvolvidos, que ele considerava como tipos perfeitos da doença.
Desde 1500 a.c, já eram realizados estudos sobre a histeria e pensava-se que essa patologia estava associada a um mau posicionamento do útero. Nos escritos gregos, encontrava-se descrição de mulheres com sintomas parecidos com que se manifestam transtorno de conversão, tais como cegueira, cefaléia e falta de apetite. Estas manifestações foram atribuídas ao fato do útero não ter sido sexualmente satisfeito. Acreditava-se que isso faria com que ele saísse vagando pelo corpo e neste vagar alojar-se-ia de tal modo a provocar os sintomas. Por exemplo, uma mulher que tinha um braço paralisado, supunha-se que o útero estava entalado entre ombro e cotovelo. O termo histeria origina-se da palavra grega que significa "útero" (Holmes, 1997, 142).
O médico Sigmund Freud, atendeu pacientes com sintomas de histeria e concluiu que a histeria está ligada a conflitos relacionados à sexualidade (Maurano, 2010).
A relação existente entre histeria e sexualidade, foi observada por Freud (1996, p. 87) admitindo que as condições funcionalmente relacionadas à vida sexual desempenham importante papel na etiologia da histeria, isto é, se dá em virtude de elevada significação psíquica dessa função, especialmente no sexo feminino".
A histeria representa mais do que uma doença circunscrita, representa uma anomalia constitucional. Normalmente, os primeiros sinais aparecem na adolescência. A sintomatologia histérica tem uma série de características gerais e conhecê-las é de suma importância para diagnóstico e tratamento (Freud, 1998, 46)
Entre 1915 e 1993, a histeria se adaptou às transformações diagnósticas e aos avanços científicos da neurologia e da psiquiatria. Hoje se pode dizer que a histeria mudou apenas o rótulo, pois o CID-10 adotou a categoria de transtorno somatoforme classificado com o código F45 para definir esta neurose que imita quase todas as doenças que ocorrem no gênero humano.
Sobre as características da histeria, Dalgalorrondo (2008, p. 322), afirma:
as síndromes histéricas caracterizam-se por apresentar manifestações clínicas tanto referentes ao corpo como à mente e ao comportamento. No corpo, predominam as alterações das funções sensoriais e motoras e, na mente, aquelas relacionadas à consciência vígil, a memória e a percepção.
Sobre o transtorno somatoforme e suas manifestações, Holmes (1997, p. 144) acrescenta: "os transtornos somatoformes consistem em sintomas físicos para os quais não há causa demonstrável, mas a falha em demonstrar causa física poderia ser devido ao fato que não a encontramos ainda".
Para Holmes (1997, p. 144) o comportamento dos pacientes histéricos é caracteristicamente dramático, teatral, infantil, sedutor e, eventualmente, manipulativo:
com certeza há casos nos quais as pessoas simulam doenças somáticas com tentativa deliberada de obter simpatia, benefícios ou evitar responsabilidade.
Embora as simulações possam ocorrer, os sintomas dos transtornos somatoformes podem ser reais e existem sem causa física subjacente e sem comprovação clínica.
Na sintomatologia histérica há expressão não de uma doença, ou de uma disfunção, mas de uma função a ser decifrada. O sintoma que faz sofrer o neurótico se coloca como um enigma no qual em sua decifração surge a evidência de um saber que não se sabe, que escapa da consciência (Maurano, 2010).
Sob uma perspectiva nosológica, os transtornos somatoformes foram agrupados pela primeira vez em 1980, na terceira edição do manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSMIII), como transtornos em que sensações ou funções corporais, com enfoque predominante de pacientes, são influenciadas por perturbação da mente. Indivíduos com transtorno somatoformes estão convencidos de que seu sofrimento vem de algum tipo de distúrbio corporal presumivelmente não detectado e não tratado (Sadock, Kaplan, & Sadock, 2007).
A revisão do texto da quarta edição do DSM (DSM III - IV-TR) reconhece cinco transtornos somatoformes específicos:
- transtorno de somatização, caracterizado por várias queixas físicas, afetando vários sistemas de órgãos;
- transtorno conversivo, caracterizado por uma ou duas queixas neurológicas;
- hipocondria; caracterizada menos pelo enfoque em sintomas do que pela crença do paciente de ter uma doença especifica;
- transtorno disfórmico corporal, caracterizado por uma doença falsa ou por uma percepção exagerada de que uma parte do corpo é defeituosa;
- transtorno doloroso, caracterizado por sintomas de dor que são exclusivamente relatados ou exacerbados por fatores psicológicos.
O DSM - VI - TR também apresenta duas categorias diagnósticas residuais para o transtorno somatoforme: 1 - transtorno somatoforme indiferenciado, que inclui os subtipos não descritos de outra forma, que tenham estado presentes por seis meses ou mais, e 2 - transtorno somatoforme sem outras especificações, que é a categoria para sintomas somatoformes que não satisfazem quaisquer outro diagnóstico de tratamento somatoforme mencionados (Sadock ei al., 2007).
A incidência dos diferentes tipos de transtornos somatoformes pode variar em função do gênero, da idade, classe social entre outros fatores psicossociais. O transtorno de somatização ocorre em 0,2 a 2,0% das mulheres durante toda a vida, sendo que mulheres com a condição excedem os homens em 05 a 20 vezes (Sadock ei al., 2007).
Alguns sintomas do transtorno conversivo grave podem ocorrer em até um terço da população geral em algum momento de suas vidas. Vários estudos relatam que de 5,0 a 15% das consultas psiquiátricas em um hospital geral tem relação com esta sintomatologia. Já a prevalência de hipocondria em seis meses varia de 4 a 6% em populações clínicas, mas pode ser de até 15% (Starcevic, & Lipsitt, 2001).
O transtorno dismórfico corporal é uma condição pouco estudada. Um estudo com um grupo de estudantes verificou que mais de 50% tinham pelo menos alguma preocupação com um aspecto particular de sua aparência e em cerca de 25% deles, a preocupação apresentava algum efeito significativo sobre seus sentimentos e desempenho (Carrol, Scahill, & Phillips, 2002).
Embora a medicina tenha evoluído bastante ao longo dos anos, a histeria, ainda hoje, é de difícil de diagnóstico porque apresenta sintomatologia semelhante a várias outras patologias. No entanto, o tratamento da disposição histérica proporciona ao médico certa liberdade na escolha dos métodos.
O tratamento psíquico direto dos sintomas histéricos é uma possibilidade para o tratamento destes pacientes e será ainda melhor no dia em que esta neurose tiver sido completamente entendida e aceita pelos médicos. Considerando-se os temas acima descritos, buscou-se desenvolver um trabalho que informe sobre as características dos pacientes que tenham necessitado de algum tipo de atendimento
Metodologia
Delineamento e amostra
O presente trabalho teve como delineamento a pesquisa documental, por tratar-se de um estudo baseado nos dados registrados nos prontuários. De acordo com Jung (2004) citado por Gil (2010, p.54), este tipo de estudo visa à pesquisa em documentos, com o objetivo de formular uma base consistente de conhecimentos ao pesquisador, fornecendo esta fonte subsidiária para importantes interpretações.
Os objetivos da pesquisa documental geralmente são mais específicos. Eles quase sempre visam à obtenção de dados em resposta a determinado problema, e geralmente não envolvem o teste de hipóteses e, com frequência, conduzem a uma análise quantitativa. Sendo assim, a amostra deste estudo foi composta por 62 prontuários, do pronto atendimento pertencente à ala Psiquiátrica do Hospital Nina Rodrigues, de pacientes do sexo feminino que apresentam o CID F. 45, que caracteriza o transtorno somatoforme e pacientes com sintomatologia característica deste transtorno, no período que compreende de agosto de 2012 a janeiro de 2013, ou seja, no período de seis meses, pois esses eram os prontuários disponíveis na unidade.
Instrumentos para coleta de dados
Os autores da pesquisa desenvolveram um instrumento de coleta de dados (ficha de coleta de dados) baseado nas informações disponíveis nos prontuários médicos das mulheres admitidas na ala de psiquiatria. Desse modo, após a inclusão da paciente no estudo, as informações contidas em seu prontuário eram transcritas para a ficha de coleta de dados para posterior analise estatística dos dados. Neste sentido, as variáveis analisadas foram: raça/cor, faixa etária, código do CID-10 e sintomatologia apresentada.
Procedimentos para a coleta de dados
No primeiro momento, foi solicitado ao hospital a seleção dos prontuários de pacientes pertencentes ao pronto atendimento da Ala Psiquiátrica, durante o período de agosto de 2012 até janeiro de 2013. No segundo momento, foram escolhidos os dias para a coleta de dados nos prontuários. Realizou-se a triagem de amostra de um total de 1.220 prontuários, sendo selecionados apenas os pertinentes ao fenômeno a ser estudado, ou seja, os 62 prontuários de pacientes que apresentam transtorno somatoforme ou sintomas característicos desse transtorno. Ressalta-se que a amostra do estudo foi composta apenas pelos prontuários dos pacientes do Hospital e, por isso, não foi necessário o termo de consentimento livre esclarecido.r
Em seguida, foi efetuada a coleta de dados, utilizando-se a ficha criada pelo pesquisador. Cabe ressaltar que as fichas foram preenchidas de acordo com os dados presentes nos prontuários, sendo cada ficha correspondente a um paciente. Por questões éticas, o nome dos pacientes não será divulgado.
Procedimentos para análise dos dados
De posse dos dados, estes foram analisados através do pacote estatístico SPSS for Windows (Statistical Package for the Social Sciences). Foi adotado p<0.05 como índice de significância estatística, valor obtido da prova não-paramétrica de aderência do qui-quadrado (c2). Através do programa, efetuaram-se análises descritivas, utilizando-se as seguintes medidas: freqüência absoluta e relativa, e prevalência com intervalo de confiança de 95%.
Aspectos éticos
A presente pesquisa seguiu todos os aspectos salientados na Resolução CNS nº 196/1996, que dispõe sobre pesquisa com seres humanos, respeitando as questões éticas. Conforme esta Resolução, toda pesquisa realizada com seres humanos, deve ser enviada a um Comitê de Ética em Pesquisa, devidamente reconhecido pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução CNS nº 196, 1996). Desta forma, este projeto de pesquisa, após ser avaliado em pré-banca de qualificação, passou pelo Conselho de Ética em Pesquisa do Centro Universitário do Maranhão no dia 25/02/2013 sendo aprovado com parecer 205.554.
Em relação ao sigilo da pesquisa, a Resolução CFP nº 016/2000 afirma que todos os membros da equipe de pesquisa estarão obrigados a manter as informações obtidas em sigilo, protegendo os participantes, (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2000). Da mesma forma, o Código de Ética do Psicólogo, Art. 16, alínea c, menciona que cabe ao pesquisador garantir o anonimato das pessoas, grupos ou organizações, salvo interesse manifesto destes, (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005). Portanto, nesta pesquisa, o nome dos pacientes não será citado.
Resultados e discussão
Dados disponíveis sobre somatização são escassos na literatura. Entretanto, alguns estudos epidemiológicos têm demonstrado diferenças de gênero na incidência, prevalência e curso dos transtornos mentais e do comportamento. Este estudo analisou as características de pacientes atendidos no pronto atendimento da Ala psiquiátrica de um hospital de referência em saúde mental na cidade de São Luis - MA.
Foram analisados todos os prontuários médicos referentes ao período de agosto de 2012 a janeiro de 2013 de mulheres atendidas na emergência do Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, o que totalizou 1.220 fichas.
Os prontuários com sinais e sintomas compatíveis com os de transtorno somatoforme resultaram em 62 casos, correspondendo a uma incidência de 5,08%. Dos 62 casos analisados, 5 foram diagnosticados como transtorno somatoforme (8,06%), correspondendo a 0,41% do total de fichas.
Entre os casos de transtorno somatoforme, identificou-se quatro casos de transtorno dissociativo conversivo e um de neurovegetativo somatoforme.
Segundo Andrade et al. (2002), uma das poucas pesquisas que avaliou a prevalência de morbidade psiquiátrica em nível populacional, revelou a ocorrência de somatização da ordem de 6,9% para mulheres e 4,7% para homens em uma amostra probabilística de 1.464 pessoas da cidade de São Paulo. Nesta cidade, os diagnósticos psiquiátricos mais comuns foram: dependência de nicotina (25,0%), qualquer transtorno do humor (18,5%), qualquer transtorno ansioso (12,5%), transtornos somatoformes (6,0%) e dependência de álcool (5,5%).
Por outro lado, estudos internacionais sobre morbidade psiquiátrica nas populações americana, holandesa, inglesa, escocesa e do país de Gales não foram descritos casos de transtornos de somatização. (Kessler, 1994; Bijl,1998; Meltzer, 1995)
Alguns pesquisadores acreditam que as populações latino-americanas são mais suscetíveis à somatização (Goldberg, Gask &Oâdowd, 1989; Gureje, Simon, Usturn, & Goldeberg1997; Isaac et al., 1995). A presença de somatização em latino-americanos não parece impedir ou substituir a manifestação de sintomas evidentes de ansiedade e depressão (Angel, 1989). Um grande estudo internacional multicêntrico mostrou maiores tendências para a somatização nos seus dois centros sul-americanos (Usturn &Sartorius, 1995; Gureje, Simon, Usturn, & Goldeberg 1997).
Também é importante analisar a evidência que descreva a presença e as características, em pacientes sul-americanos, das síndromes somáticas funcionais - como a fibromialgia e a síndrome da fadiga crônica, que são aproximadas pela literatura aos fenômenos de somatização e dos transtornos somatoforme (Kanaan,Lepine, & Wessely, 2007; Henningsen, Zimmermann, & Sattel, 2003; Maj, Akiskal, Mezzich, & Okasha, 2007).
Os estudos epidemiológicos realizados na atenção básica demonstraram a presença de transtornos somatoformes nessa clientela: dois no Brasil (Fortes, 2004; Fortes, Villano, & Lopes, 2008) e um no Chile (Florenzano, Acunã, Fullerton, & Castro, 1997). Dois destes trabalhos fizeram parte de um estudo multicêntrico da Organização Mundial da Saúde, revelando prevalências mais altas de depressão e/ou ansiedade, uma presença significativa de transtornos dissociativo-conversivos e transtornos somatoformes de dor nessas populações, e uma alta comorbidade desses quadros com transtornos ansiosos e depressivos (Florenzano, Acunã, Fullerton, & Castro, 1997; Villano,1998).
Neste estudo foi encontrada uma paciente de 17 anos, negra com quadro de comorbidade (transtorno dissociativo de conversão e ansiedade).
Pesquisas de base hospitalar, similares a esta, são pouco realizadas, merecendo destaque, um estudo descritivo que foi conduzido no setor de emergência psiquiátrica da Irmandade da Santa Casa Misericórdia de São Paulo. As informações foram obtidas através das fichas de atendimento do hospital, após serem avaliadas pela equipe plantonista, esta constituída por um residente de psiquiatria e um instrutor. Durante 3 meses foram atendidos 492 pacientes, o que correspondeu a uma incidência de 16,3% para transtornos somatoformes (Castro, Laranjeira & Dunn, 2005).
A distribuição dos sinais e sintomas dos casos analisados no presente trabalho encontra-se na Figura 1. Os resultados mostraram maior prevalência de insônia (20%), dor de cabeça (13,10%), inapetência (8,28%), desmaios (6,9%), mutismo (6,9%), choro fácil e sem motivação (6,9%) e dificuldade em movimentar-se (6,9%). Ressalta-se ainda frequência significativa de sinais e sintomas de baixa frequência que foram agrupados em uma única categoria, que correspondeu a 45 casos (31,03%).
A presença de somatizações não exclui o diagnóstico de outras doenças psiquiátricas e pode ser uma pista para o diagnóstico. Depressão e ansiedade estão frequentemente associadas com somatização. Pacientes com transtorno de somatização comumente têm depressão coexistente (até 60%), transtornos ansiosos, como transtorno do pânico ou o transtorno obsessivo compulsivo (até 50%), transtornos de personalidade (até 60%) ou transtorno por abuso de substâncias psicoativas (Kroenke et al., 1994).Em uma amostra de 90.000 consultas ao clínico geral, 72% dos pacientes que receberam diagnósticos psiquiátricos tinham um ou mais sintomas físicos entre as queixas principais (Schurman, Kramer & Mitchell, 1985).
Os autores afirmam que duas condições são necessárias para se estabelecer o diagnóstico de somatização: a primeira é a presença de mais de três sintomas vagos ou exagerados em sistemas orgânicos diferentes e a segunda é que essas queixas tenham uma evolução crônica de mais de dois anos (Righter, & Sansone, 2003; Schreiber, Kolb, & Tabas; 2003; Spitzer et al., 1994).
Ávila and Terra (2012) descrevem uma listagem completa de sintomas e síndromes comumente relatados por pacientes com somatização, sendo que todos os sinais e sintomas descritos neste estudo estão elencados nesta publicação.
Quanto à variável raça/cor, o presente estudo observou predomínio de mulheres pardas (58,06%, c2=36,97, p<0,0001). Entre os fatores de risco descritos na literatura para a ocorrência de transtorno somatoforme, encontram-se fatores psicossociais, como educação e renda. Estudos qualitativos como o de Silva e Queiroz (2006) demonstraram uma relação entre queixas físicas, migração e problemas econômicos e sociais no Sudeste do Brasil. Raças hispânicas são frequentemente associadas a prevalência de somatização, porém estudos confrontam essa relação e sugerem que a incidência de somatização é relativa ao nível socioeconômico e devido a diferença de prevalência da raça latino-americana nas classes sociais mais baixas, pode surgir essa falsa relação (Tófoli, Andrade & Fortes, 2011). Desse modo, as diferenças encontradas na ocorrência de transtorno somatoforme podem ser explicadas pelas características de raça/cor encontradas na capital maranhense, onde ocorre predomínio de pardos nas classes sociais mais baixas (IBGE, 2010).
A idade das pacientes variou de 14 a 66 anos, com média de 34,3 anos e desvio-padrão de 13,8 anos, sendo que a maior freqüência ocorreu entre 15 e 36 anos (c2=28,19, p=0,0001) (Tabela 1)
Um estudo realizado com uma série histórica de 30 anos de atendimento no Serviço de Interconsulta em Saúde Mental do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRB-SP) mostrou que entre as mulheres, a idade média de manifestação dos sintomas foi de 39,4 anos, concentrando maior parte dos casos nas faixas etárias de 20 a 40 anos de idade (Nakabayashi, 2012).
Em geral, os transtornos somatoformes ocorrem entre os 15 e os 30 anos de idade, sendo que cada tipo de transtorno possui suas especificidades. Por exemplo, o transtorno de somatização é definido como se iniciando antes dos 30 anos. Já a hipocondria pode apresentar suas manifestações em qualquer idade, porém a maior frequência dos casos ocorre entre 20 e 30 anos. Dados disponíveis para o transtorno disfórmico corporal mostram que a idade mais comum de início é entre 15 e 30 anos. O transtorno doloroso possui picos de idade de início na quarta e quinta décadas da vida, fato explicado pela diminuição da tolerância com a idade (Sadock et al., 2007).
Após a revisão sistemática dos prontuários e inclusão dos casos na pesquisa, foram elencados todos os CID diagnosticados. A frequência de cada CID-10 pode ser vista na Tabela 2.
Os diagnósticos mais frequentes foram: ansiedade generalizada (14,93%), transtorno misto ansioso-depressivo (11,94%), outros transtornos ansiosos (8,96%) e transtorno dissociativo de conversão (8,96%). Resultados similares foram encontrados por Nakabayashi (2012), nos quais, entre os atendimentos psiquiátricos do Hospital das Clínicas da USP (SP), os transtornos neuróticos, somatoformes e relacionados ao stress foram os diagnósticos mais comuns em mulheres e homens.
Conclusão
Neste estudo, de um total de 62 casos com sintomatologia compatível com transtorno somatoforme, apenas 5 foram diagnosticados com este tipo de transtorno (8,06%). Entretanto, estes resultados podem ser conflitantes, uma vez que o paciente pode receber outro diagnóstico, devido ao pouco conhecimento e os poucos estudos sobre o tema abordado.
Os resultados apontam a necessidade de investigações mais minuciosas dos pacientes com sintomas que poderiam ser identificados sofrendo de transtorno somatoforme, pois o correto diagnóstico permitiria um melhor plano de tratamento ao paciente em sua neurose.
Referências
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Recebido em 20/04/2016
Aceito em 18/10/2016
Endereço para correspondência:
Ana Paula Rezzo Pires Reinert
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