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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.13 no.3 Juiz de Fora set./dez. 2019
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2019.v13.28647
ARTIGOS
Ironia, humor e sublimação: o papel dos chistes no laço social
Irony, humour and sublimation: the role of jokes in the social bond
Ironía, humor y sublimación: el papel de los chistes en el lazo social
Josiane Cristina BocchiI; Augusto Cesar JuntaII
IUniversidade Estadual Paulista. E-mail: b.josiane@gmail.com
IIUniversidade Estadual Paulista. E-mail: augusto.junta@gmail.com
RESUMO
O chiste é uma das formações do inconsciente que mais se insere socialmente, porque necessita de, pelo menos, duas pessoas do discurso para sua realização. Dentre as técnicas de produção do chiste, a ironia é a categoria compreendida como uma representação pelo oposto e pelo uso do duplo sentido. Este artigo propõe uma discussão sobre a ironia nos textos freudianos, para indagar seu papel nos processos humorísticos e na produção do laço social. Este trabalho apresenta algumas indicações teóricas que reencontram a ironia como portadora de um potencial para a indução de laço social e discute o papel do humor nos processos sociais e, em última instância, indica a natureza sublimatória presente no humor.
Palavras-chave: Ironia; Inconsciente; Humor; Psicanálise.
ABSTRACT
The joke is one of the most socially inserted unconscious formations, because it needs at least two persons of speech for its realization. Among all the joke production techniques, irony is the one created by the representation of its opposite and by the use of double meaning. This paper aims to discuss irony in the Freudian texts in order to question its role in the humoristic processes and in the production of the social bond. This work presents some theoretical notes that highlight the irony as a potential way of creating social bonds and puts into discussion the role of humour in social processes; ultimately, it indicates the very sublimatory nature in humour.
Keywords: Irony; Unconscious; Humour; Psychoanalysis.
RESUMEN
El chiste es una de las formaciones del inconsciente que más se inserta socialmente, porque necesita de al menos dos personas del discurso para su realización. Entre las técnicas de producción del chiste, la ironía es la categoría comprendida como una representación por lo opuesto y por el uso del doble sentido. Este artículo propone una discusión sobre la ironía en los textos freudianos, para indagar su papel en los procesos humorísticos y en la producción del lazo social. Se presentan algunas indicaciones teóricas que consideran a la ironía como potencial para la producción del lazo social; y discuten el papel del humor en los procesos sociales; finalmente, indican la naturaleza sublimatoria presente en el humor.
Palabras clave: Ironía; Inconsciente; Humor; Psicoanálisis.
O universo da questão do humor em Sigmund Freud se estende para além de uma concepção de mecanismo de defesa, algo semelhante à rejeição (Vewerfung) em que o alívio do cômico coincide com uma fuga da realidade. Encontramos em Freud o humor como portador de uma potência erótica e política singular, coincidindo com uma transgressão autorizada, já que não abre mão do reconhecimento do outro para se completar. O fenômeno dos chistes (Witz) e o problema do humor são as temáticas principais em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905/1996) e O humor (1927/1974). Constata-se que os mecanismos que levam ao riso comportam processos psíquicos sofisticados e vêm cumprir um papel decisivo na relação do ego com a realidade e na produção de formas criativas de afirmação do ego em relação ao superego. Este trabalho discute as relações entre o humor e o chiste irônico em Freud, na perspectiva de sua articulação ao campo social, conferindo um destaque à ironia como estratégia discursiva disruptiva e persuasiva, podendo estar na base de formas descentramento narcísico, suspensão do recalque e do desamparo (Hilflosigkeit).
Há trabalhos consolidados na literatura psicanalítica que vislumbram o humor como paradigma para compreensão dos processos de desidealização e sublimação - a exemplo de Daniel Kupermann (2017; 2003) -, assim como a relação estabelecida entre o riso, o humor e as formas de lidar com o mal estar, atrelada à dimensão estética e, sobretudo, ética de afirmação do sujeito desejante (Morais, 2008). Mas ao contrário do humor, a ironia não é um tema tradicionalmente trabalhado na psicanálise e nem mesmo explorado por Freud, que o aborda apenas como uma forma particular do chiste. Contudo, a breve descrição freudiana da ironia fornece elementos que, ao serem desdobrados, elucidam e confirmam o chiste como uma produção do inconsciente, contendo um forte traço comunicativo e um destino atrelado às formações sociais sancionadas pela cultura e que incluem a presença do outro.
Desde Aristóteles, a ironia se colocava como uma forma de dissimulação e modéstia. Ele distinguia eironeia e alazoneia, dissimulação autodepreciativa e dissimulação jactanciosa, respectivamente (Muecke, 1995). No romantismo alemão, ocorre uma renovação da ironia no campo filosófico e literário. A ironia se torna, então, uma forma literária na qual há uma irrupção do autor na obra, expondo suas reflexões ao escrutínio público e abrindo caminho para que o leitor possa adentrar o seu processo criativo (Loureiro, 2002). Arthur Nestrovski (1996) vislumbra na ironia romântica a consciência dos limites da linguagem, isto é, a impossibilidade da palavra de dizer a coisa, o hiato entre a linguagem e a experiência empírica, ideia que remete à filosofia crítica kantiana, mas que também pode ser útil para pensar a ironia como formação do inconsciente.
Ironia e Humor
Antes de abordar Freud, vale retomar os apontamentos de Henri Bergson, em O riso: ensaio sobre a significação do cômico, de 1899, sobre a diferença entre ironia e humor, que revela uma relação curiosa entre o imperativo (deveria ser) e algo da ordem de um ideal. E, ainda, quando se toma este "deveria ser" como o correlato de uma força que atua ativamente no aparelho psíquico, a fim de realizar o que se deve, possibilita uma compreensão de que a dissimulação na ironia serve como embuste lógico discursivo para que uma dada mensagem ultrapasse uma possível censura e alcance seu destinatário.
"(...) ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam ser. É o caso do humor. O humor assim definido é o inverso da ironia (...)" (Bergson, 1899/1983, p. 61).
No dito irônico em que se parabeniza alguém por uma ação deplorável, mais conhecido como blame-by-praise, tem-se o mecanismo de enunciar o que deveria ser, isto é, que o interlocutor realizasse sua tarefa de forma adequada, quando na verdade seria justamente o contrário. Assim, diante do ato reprovável, fingiríamos que isso teria sido de fato digno de receber um "Parabéns!". Todavia, há casos nos quais alguém é irônico ao enunciar o que não deveria ser e fingindo acreditar que é precisamente aquilo que diz: quando alguém diz "Que droga!", após ter conseguido algo que desejava e que seria, na verdade, digno de comemoração. É claro que se tomarmos a interjeição "Que droga!" como aquilo que deveria ser de fato, a explicação bergsoniana ainda se mostra consistente.
Compreender o sentido deste "deveria ser" enunciado em tal fórmula é crucial, porém o que nos interessa no exemplo de Bergson é que, por esta via, a ironia comporta o risco de diminuir as chances de comunicar o que deseja, mas tendo em vista a repreensão que receberia ao expressar literalmente o que se quer, então, o embuste se torna um elemento estratégico na comunicação intersubjetiva, uma tal eficácia que reencontraremos em Freud no chiste irônico.
Ainda sobre o contraponto ironia vs. humor, Clément Rosset (1989), traz uma figura da ironia a partir da qual é possível traçar um paralelo com uma dimensão inerente ao humor na psicanálise de modo aproximado à noção de conteúdo latente e sujeito do inconsciente. Para Rosset (1989), a ironia seria capaz de provocar um riso largo, que vai longe, enquanto a especialidade do humor seria a de causar um riso curto, que acaba rápido. O ironista desfere pequenos golpes, destruindo lentamente uma construção, porém oferecendo um substituto, como se estivesse guiado por uma razão que justifica sua desconstrução. O humor, por sua vez, dispensa uma razão para a destruição e, apoiando-se no absurdo e no acaso, encontra um terreno fértil para aquele "não crê na existência de territórios seguros onde alojar o sentido" (Rosset, 1989, p. 192). O agente da ironia aparece aqui como guiado por algum juízo e o transmite implicitamente ao interlocutor, mesmo que perdendo no ato criativo se comparado ao humor. Entretanto, quando comparamos esta distinção de Rosset à relação que Freud faz entre ironia e humor, surge um contrassenso, sobretudo devido a um caso de humor patibular que Freud se refere em seus escritos, cujo contraponto retomaremos mais adiante.
Os Chistes
Em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905/1996), Freud discute o papel do humor e das formas de produção do prazer que se manifestam no riso, designando o chiste (aproximadamente, um dito espirituoso ou um gracejo) como uma subespécie do cômico e como portador de um processo social mais complexo. O chiste é entendido como uma formação do inconsciente e, comparado a outras produções cômicas, recebe destaque por ser aquela que mais se insere socialmente. O impulso de passá-lo adiante, de comunicá-lo, faz com que a satisfação obtida ao contar uma piada nunca seja solitária, enquanto a atitude humorística pode ser dirigida unicamente para a própria pessoa, como rir de si mesmo (1905/1996). Freud define o cômico como o processo mais elementar na produção do riso, já que este é um fenômeno que se constata em outrem ou em si mesmo.
"(...) uma pessoa nos parece cômica, em comparação com nós mesmos, se gasta energia demais em suas funções corporais e energia de menos em suas funções mentais; não se pode negar que em ambos os casos nosso riso exprime uma gratificante sensação de superioridade com relação à pessoa (que achamos cômica)". (Freud, 1905/1996, p. 183)
Freud coloca que uma das características comum aos chistes, ao cômico e ao humor é a extração do prazer, bem como a economia em alguma despesa libidinal. Diferentemente do cômico, os chistes e o humor são produzidos por um ato de fala ou um gesto do sujeito. Freud divide os chistes em três grandes grupos em relação à técnica: as técnicas que procedem por condensação; as que fazem múltiplos usos do mesmo material e as que procedem por duplo sentido, em que se insere a ironia. Estas categorias se diferem no que diz respeito à sua forma de elaboração, contudo atendem a um mesmo princípio: o da economia psíquica. Esta economia será, sobretudo, com mecanismos de defesa. No caso do chiste, ela se dá mais exatamente com a inibição de representações ameaçadoras ao ego. Desse modo, a produção do chiste substitui defesas, poupando o aparelho psíquico de gastos libidinais com o recalque e outras defesas.
A compreensão do chiste na economia psíquica fica mais clara quando Freud coloca em paralelo a elaboração dos chistes e a dos sonhos. Em ambas, está patente uma suspensão ou enfraquecimento da catexia inibitória, que resulta na deformação de algum conteúdo que deveria ser afastado da consciência, de tal modo que este conteúdo ameaçador chegue à consciência sem que o sujeito necessariamente se dê conta. Não obstante, a suspensão do recalque na elaboração dos chistes, a condensação e o deslocamento - também atuantes nos sonhos - parecem estar envolvidos na produção do chiste.
Freud distingue, ainda, pelo menos onze subcategorias de chiste, conforme a técnica utilizada, e, embora não tenha tratado sistematicamente da ironia - seja em seu sentido retórico ou romântico -, caracteriza-a no campo dos chistes como uma técnica de elaboração por duplo sentido e da representação pelo oposto: "A representação pelo oposto serve de vários modos à elaboração do chiste (...). A única técnica que caracteriza a ironia é a representação pelo oposto" (Freud, 1905/1996, p. 74-76). Como exemplo de piada irônica Freud cita O Grande Espírito, de Lichtenberg:
"Une em si mesmo as características dos maiores entre os homens. Tem o porte da cabeça torto como Alexandre: teve sempre que usar um toupet como César; podia beber café como Leibnitz; e desde que adequadamente instalado em sua poltrona, esquecia-se de comer e de beber como Newton, como este tendo que ser despertado; usava sua peruca como Dr. Johnson, e sempre deixava um dos botões da braguilha desabotoado como Cervantes". (Freud, 1905/1996, p. 74).
Como se quisesse elevar a figura do sujeito ao compará-lo com grandes homens, mas, ao contrário, refere-se apenas a aspectos negativos do personagem. Este recurso estilístico comporta um perspicaz trabalho de deslocamento: ali onde Alexandre, o Grande, deveria representar a figura magnânima que comumente é remetida à sua imagem, somos confrontados com a figura da cabeça torta. E assim prossegue, onde se espera uma qualidade, encontram-se apenas defeitos. É justamente nestes pequenos desvios que se entrevê a derrisão em ação. Imaginemos que tal figura retratada é alguém que não nos agrade. Este recurso permite que, ao invés de repudiar a atitude daquele que zomba, ou sentir culpa pela sua repulsa, possamos rir ao sermos pegos desprevenidos pela artimanha estilística. Em vez de lançar ofensas diretas, por meio dessa técnica, pode-se economizar um montante de energia de investimento inibitório e escoá-la como riso, tal é a fórmula freudiana apresentada em 1905.
A inversão semântica presente na ironia é crucial para compreender o seu efeito de alívio psíquico. O interlocutor pode facilmente repudiar uma atitude de escárnio se sua sentença soar ofensiva "de cara". Se logo no começo o autor dissesse: "Une em si mesmo as piores características dos homens", a frase perderia seu efeito libertador e não provocaria o riso, ou, pelo menos, uma parte deste, caso o leitor consiga, ainda, retirar prazer do escárnio per se. Parte disso se deve à técnica da ironia no chiste (a representação pelo oposto). O personagem une as características dos maiores entre os homens, no entanto, dentre essas, as piores. É precisamente nesta torção de sentido que a confusão e o esclarecimento seguido podem provocar o riso, como se a instância psíquica pronta para julgar estas ofensas e repudiá-las fosse driblada e, quando o sentido fosse finalmente decantado, já não fosse mais necessário reprimi-lo. Então, evitou-se um julgamento moral e, livre, este investimento defensivo poderá se converter em estrondosa risada. Contudo, o poder de provocar riso na ironia não está somente no elemento formal (técnica), mas também no propósito do chiste.
Quanto ao propósito, tem-se os chistes tendenciosos e os não-tendenciosos (ou inocentes). Inocentes são os chistes que possuem um objetivo em si mesmo, pelos quais a fruição estética se dá na contemplação da própria formação do chiste, do jogo de palavras em que consiste o gracejo. Para dar conta deste tipo de fruição estética da formalização do chiste, Freud recorrerá à ideia do prazer preliminar derivado das brincadeiras infantis, o qual consiste basicamente no reconhecimento do que é familiar. Na atividade lúdica estruturada como jogo, a liberação do nonsense se dá nas brincadeiras com palavras, na repetição de um determinado fonema ou pela similaridade do som das palavras.
Enquanto o chiste inocente é aquele no qual não há um problema moral na sua decodificação, os chistes tendenciosos são justamente aqueles nos quais existe um propósito que vai além da fruição da astuta criação chistosa, são chistes que possuem "substância e valor" (Freud, 1905/1996, p. 127). Porém para esses chistes, parafraseando Bergson, "é preciso ser da paróquia para rir" (1899/1983, p. 8). Dentre os chistes tendenciosos, encontraremos os hostis e os obscenos, isto é, os que servem a um propósito agressivo, satírico ou defensivo, e os que têm o propósito de desnudamento, ou seja, chistes que possuem teor sexual. O mais importante acerca dos chistes tendenciosos é que esses requerem três pessoas: "Além da que faz o chiste, deve haver uma segunda que é tomada como objeto da agressividade hostil ou sexual e uma terceira na qual se cumpre o objetivo do chiste de produzir prazer" (Freud, 1905/1996, p. 100).
Essa tríade é especialmente interessante para abordar a natureza social do processo de formação dos chistes. Primeiramente, porque ela indicará que a terceira pessoa, aquela na qual o chiste cumpre sua finalidade, é a testemunha de que a piada logrou êxito ao conseguir entrever uma verdade que é comum a esta pessoa e ao locutor. Todavia, vale salientar que o testemunho do sucesso do chiste está menos por encontrar sentido na terceira pessoa e mais em ultrapassar a censura e faculdade crítica do ouvinte.
Freud também supõe que a terceira pessoa serve ainda como um suporte imaginário de censor para a primeira pessoa, como se ocupasse o lugar de alguma autoridade perante a qual devesse prestar algum respeito, uma vez que não parece inteligente àquele que conta a piada fazê-lo de outro modo, tal como uma agressão direta ou uma cantada de conotação sexual, visto que a terceira pessoa poderia, com toda a razão, recriminá-lo por sua atitude. Na execução do chiste irônico, a terceira pessoa está desde sempre implicada, já que está presente no próprio processo de elaboração e no horizonte do chiste, como uma figura para a qual se dirige a verdade do enunciado, esta que fica mascarada quando a representação que vai ao público mostra justamente o oposto.
Ainda sobre a relação entre ironia, como um tipo de chiste, e humor, consideremos esta blague de humor patibular:
Um vagabundo que estava sendo levado à execução em uma segunda-feira, comentou: 'É, a semana está começando otimamente'. Este é efetivamente um chiste, já que o comentário é bem adequado em si mesmo, mas por outro lado está deslocado de maneira absurda, já que para o próprio sujeito não haveria eventos ulteriores naquela semana. Mas o humor está envolvido na confecção de tal chiste - isto é, ao desrespeitar o que distingue o início dessa semana de todas as outras, ao negar a distinção que podia originar-se, motiva emoções bastante especiais. (Freud, 1905/1996, p. 213)
Tal chiste, no qual o "humor está envolvido em sua confecção", poderá se mostrar bastante elucidativo a fim de compreender a íntima relação que o humor, o chiste e o cômico guardam entre si. Freud sintetizará, em termos econômicos, qual seja a natureza de cada uma destas operações:
O prazer nos chistes pareceu-nos proceder de uma economia na despesa com a inibição, o prazer no cômico de uma economia na despesa com a ideação (catexia) e o prazer no humor de uma economia na despesa com o sentimento. (Freud, 1905/1996, p. 218)
Seguindo as indicações de Freud, ao proferir seu chiste ("Bem, a semana está começando otimamente"), o condenado evita ao menos dois tipos de despesas no interlocutor: uma inibitória e outra ideativa. Além dessas, o fato de zombar de sua morte e de seus carrascos nos permite entrever que o sentenciado está recusando algum afeto penoso esperado para tal momento, característica fundamental do humor, o qual, substituindo a liberação de afetos dolorosos, "coloca-se no lugar deles" (Freud, 1905/1996, p. 212). Daí em diante a liberação desse afeto certamente concorre para a produção do riso no interlocutor, que mesmo à distância é capaz de desfrutar do chiste. Junto à liberação dos possíveis afetos amargos, existe ainda a suspensão de uma inibição, uma vez que a crueza da situação poderia também evocar no interlocutor sentimentos penosos diante da angústia do condenado.
Entretanto, há algo na forma do chiste que parece evocar certa atitude irônica por parte de seu autor: sua semana está longe de começar bem. De fato, compreende-se que a semana do vagabundo está terminando, assim como sua vida. É claro que do ponto de vista da noção de realidade psíquica, pode-se imaginar que para o condenado sua semana está começando, de fato, bem. Com efeito, estando o sujeito dividido entre o temor da morte e a possibilidade de gozar de seus carrascos, bem como da própria vida que teve, então, através do dito humorístico, o ego é poupado de um afeto penoso - afeto que representa o medo da morte que, por sua vez, evoca a figura da castração e o desamparo do sujeito frente à violência da realidade e seus limites. Perante esta concepção invertida do que a realidade da morte própria apresenta de angustiante, o condenado expressa algo da ordem de uma representação pelo oposto, exatamente a característica que demarca o chiste irônico para Freud. Parece justo pensar, então, que se economizamos em relação à inibição, é, sem dúvida, pelo sucesso na elaboração irônica do chiste. Surpreendendo-nos, somos mais facilmente tensionados a rir.
Por esta ótica, há pontos de aproximação e também de afastamento do pensamento de Clément Rosset acerca do humor e da ironia em relação ao de Freud. Se, para Rosset, o humorista não encontra terreno seguro para alojar o sentido, em Freud, o humorista é aquele capaz de se libertar de algum afeto doloroso, ao passo que contesta a figura de autoridade, fazendo jus aqui à afirmação de que o humor não é resignado, mas rebelde (Freud, 1927/1974). Assim, o humorista em Rosset é lúcido o suficiente para compreender a impossibilidade de ajustar o sentido ao que acontece na realidade, podendo, por isso mesmo, debochar desta. Tal explicação não possui a mesma extensão que a questão do humor tem para Freud. Todavia, temos de reconhecer que a rebeldia do humorista é comum a ambos. É no repúdio ao princípio da realidade, na afirmação triunfante do narcisismo diante da dimensão traumática ou arbitrária dos fatos; nesta "pequena loucura" que se produz por alguns instantes no humorista, que esse pode extrair algum prazer de sua situação.
Ainda que ironia e humor em Rosset sejam categorias distintas, em Freud há espaço para uma aproximação de ambas, já que se admite a presença do humor na confecção do chiste, no que se pode chamar de chiste humorístico (Freud, 1905/19969). Em Clément Rosset, há uma incompatibilidade entre humor e ironia. Se o ironista procura um território seguro para justificar a razão que o guia, o sentido mais plausível para a natureza da situação supracitada é o de que sua morte seja assustadora. Ao inverter a representação sobre a morte dizendo que se trata de algo ótimo, vemos a razão na qual a ironia repousa e também extrai seu efeito subversivo, ao mesmo tempo em que o sujeito desafia o sentido habitual de que a morte seja um perigo real. Assim, conforme os argumentos de Rosset, a ironia estaria guiada por um princípio, enquanto o humor se apoiaria no absurdo do acaso. Mas, encarando a morte assim de frente não está o ironista a celebrar o acaso, a tragicidade da própria existência, tal como seria ao humorista na visão de Rosset? Neste caso, podemos ter a figura do humorista que perdeu tudo e aprendeu a rir com a vida, também presente em Freud.
De qualquer forma, não é possível esgotar a problemática colocada pelo humor que se apoia no trágico, na arbitrariedade e no nonsense da existência, como forma de garantir sua risada exterminadora, ou da ironia que estabelece um fundo racional estável sobre o qual seu argumento irônico vem a ganhar sua força, como Rosset coloca. Nesse momento da teorização freudiana sobre a questão do humor, já é possível entrever o papel disruptivo e transgressor do dito humorístico, pois onde se esperava o retorno da angústia de castração, tanto no condenado do nosso exemplo, como no interlocutor para quem se conta a blague, vemos emergir a irreverência desarticuladora do riso.
Chistes e Instâncias Ideais
É bem sabido que a teoria da sublimação na obra freudiana e na psicanálise, de modo geral, nunca chegou a se constituir como uma teoria sólida e unívoca (Laplanche & Pontalis, 2001). Para Ana Loffredo (2015), o problema da sublimação foi mais enunciado do que propriamente desenvolvido no discurso freudiano. Todavia, ainda que carente de uma sistematização metapsicológica, o conceito de sublimação recebe uma definição formal já em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1997b): sublimação como dessexualização do alvo das pulsões sexuais, a qual será trabalhada mais detalhadamente, em 1908, em seu ensaio Moral sexual "civilizada" e doença nervosa moderna (Kupermann, 2003; Loffredo, 2015). Basicamente, o que está em jogo nesta noção é que somente através da renúncia pulsional é que se estabelece a ordem civilizatória, assentando-se dessa maneira na oposição entre as exigências civilizatórias e a natureza humana. Assim, é necessário o recalque dos impulsos sexuais infantis para que haja a edificação da cultura a expensas da própria libido extraída do processo repressivo.
Freud também apresenta outra concepção da sublimação, uma na qual o recalque não tem um papel determinante e que, portanto, não implica uma renúncia pulsional, mas sobretudo promove a "criação de objetos para a satisfação erótica do sujeito, que pudessem ser, ao mesmo tempo, compartilhados culturalmente" (Kupermann, 2003, p. 68). Assim, Freud teria também uma concepção de sublimação que coincide com uma sexualização de objetos, não-sexuais de início, e não se trata apenas de um processo autoerótico, cuja satisfação se encerra no próprio sujeito, mas antes, trata-se da produção de objetos que possam ser compartilhados socialmente. Ora, os objetos passíveis de serem partilhados são as realizações culturais, tais como as obras artísticas (pinturas, esculturas, a literatura), a ciência e, por seu turno, o humor e os chistes, posto que são transmissíveis do ponto de vista simbólico. A respeito dessa alusão, trata-se da criação e da transmissão de valor social aos objetos pulsionais, aos representantes da pulsão e das fantasias inconscientes. Este parece ser o aspecto crucial que Freud tenta imprimir naquilo que chama de processo sublimatório, o que o diferencia radicalmente da satisfação inconsciente encarcerada no sintoma.
O que está posto nesta segunda leitura da sublimação em Freud é que não há necessidade do recalque para vincular a libido a um objetivo não-sexual, desfaz-se a oposição entre sexualidade e sublimação (Birman, 2007). Mesmo a satisfação sexual pode servir como impulsionadora para o movimento de sublimação, tal como discute Daniel Kupermann (2003), ao retomar a noção de caminhos de influência mútua que Freud já indicara nos Três ensaios (1905b/1997), e também Joel Birman (2007), ao destacar que o erotismo vinculado ao trabalho sublimatório de criação possibilita a gestão do desamparo.
Kupermann (2003), por sua vez, identifica na regressão ao infantil a chave para uma melhor compreensão dos processos sublimatórios e sua relação com o humor, uma vez que sua meta fundamental não é fazer graça, mas convencer o ego de que a realidade é tolerável. É a partir do brincar da criança (Spiel, no original), que consiste essencialmente em "brincar de adulto", que se desenvolverá a fantasia a partir do devaneio. O adulto, em vez de brincar, agora fantasia, como dirá Freud: "Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios" (Freud, 1908/1996, p. 136). No entanto, não somente o devaneio consistirá no sub-rogado do brincar infantil, outrossim, o humor também vem ocupar o mesmo papel no adulto.
Quanto à relação entre o humor e a sublimação, notemos que "no humor é possível recuperar algo do que foi primitivamente uma ilusão de onipotência, mediante o resgate da essência desse vínculo primordial em que o indivíduo se supõe amparado e amado por uma instância superior (superego)" (Costa, 2010, p. 256). Ao contrário de Freud, que usa ideal do ego e superego como sinônimos em muitos momentos, Kupermann lembra que Lacan propõe instâncias distintas, de modo que "a que recalca se chama o supereu, a que sublima, o ideal do eu" (Kupermann, 2003, p. 113-114). Na visão deste autor, o ideal do eu opera como mediador da sublimação, uma vez que incitaria o sujeito a lidar com suas frustrações e persistir em seu devir, na busca de realizações. Tal visão está em harmonia com a concepção do ideal do eu apresentada por Freud em Introdução ao narcisismo (1914/2004): "Assim, o que o ser humano projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, durante a qual ele mesmo era seu próprio ideal" (Freud, 1914/2004, p. 112. Grifos nossos). Freud diz que aquilo que a criança renuncia em termos de ilusão narcísica será recuperado como identificação com os pais e com a promessa de que a criança mesma se torne, um dia, a realização dos ideais imaginados. Desse modo, o ideal do eu vincula-se à prospecção de um porvir, à capacidade de sonhar e de viabilizar para si a criação de meios e objetos que atendam aos ideais da infância.
Retomemos o primeiro modelo freudiano da sublimação (como desvio da meta sexual para uma não-sexual), agora, à luz da ideia da dessexualização como sendo operada pelo trabalho silencioso da pulsão de morte. O problema pode ser abordado na aproximação que Freud realiza do trabalho de sublimação ao trabalho de luto em O ego e o id (1923/1996):
A transformação da libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização - uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo. (Freud, 1923/1996, p. 43)
Em suma, estando a libido objetal desfusionada e convertida em libido egóica, abre-se uma via para sublimação, indo ao encontro do ideal do eu a fim de que o sujeito, uma vez mais, possa brincar de adulto, como colocado por Freud em Escritores criativos e devaneio (1908/1996). O que se passa no chiste humorístico, bem como na brincadeira infantil com os jogos de palavras, é o identificar-se até certo ponto com o pai: "Assim, o humorista adquiriria sua superioridade por assumir o papel do adulto, identificar-se até certo ponto com o pai, e reduzir as outras pessoas a crianças" (Freud, 1927/1974, p. 191).
No chiste irônico, por sua vez, esta identificação parcial com o pai permitiria que, diante de um afeto penoso, houvesse escoamento da libido antes represada pelo recalque e seu conseguinte extravasamento através da risada. Assim, a característica dos chistes de terem de ser "contados a alguém mais" aponta para a dimensão de sua construção atrelada a um valor social, à maneira de um bem que pode ser partilhado e transmitido culturalmente. Também concorre para a criação desse valor social do chiste um aspecto formal, que devido à dimensão estética presente no humor, não por acaso, o aproxima da arte. Trata-se do agradável sentimento do engraçado, necessário para a descarga de tensão através da risada.
Kupermann (2003) discute a colocação freudiana de que o humor seria a "[...] contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego" (Freud,1927/1974, p. 194), em que fica demarcado o papel crucial das instâncias ideais para a consecução do humor e de seus efeitos reguladores na economia psíquica: "Obteremos uma explicação dinâmica da atitude humorística, portanto, se supusermos que ela consiste em ter o humorista retirado a ênfase psíquica de seu ego, transpondo-a para o superego" (Freud, 1927/1974, p. 192). E, assim, uma vez que o superego se encontra hiperinvestido, os interesses e as exigências egóicas, assim como suas angústias, lhes parecerá como triviais ou insignificantes. Agora talvez se possa compreender o que Freud (1927/1974) coloca quanto ao fato de que no humor o superego se mostra condescendente ao ego. Pensemos o humor como forma de transgressão autorizada (pelo próprio superego) por uma identificação já existente com a figura paterna da qual emana a noção de autoridade: "E finalmente, se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno" (Freud, 1927/1974, p.194).
Discussão
Com efeito, uma concepção central em Daniel Kupermann (2003) coloca o humor como uma categoria política, e podendo gerar uma via potencial para formar laços sociais menos aglutinantes e massivos. Assim, parece-nos renovada a pertinência do problema do humor no momento atual em face da ascensão de modos de governos autoritários e da hegemonia econômica e instrumental do modo de vida neoliberal. Aquele autor discute duas formas de criação de laço social (uma homogeneizante e outra não homogeneizante), em que os processos humorísticos teriam um papel central. Os modos homogeneizantes de estar com o outro correspondem às situações de sujeição ao desejo do outro - característico da covardia moral -, o equivalente às categorias de masoquismo feminino e moral, que encontram expressões nos fenômenos grupais e na alienação do sujeito na ilusão de um amor equânime pelo líder e "não é preciso ao sujeito abolir a sua singularidade pulsional e desejante em nome de uma causa comum sustentada no narcisismo das pequenas diferenças" (Kupermann, 2003, p. 147).
Não pertence ao escopo do presente artigo desenvolver esta última acepção, mas este trabalho traçou um caminho de leitura em que é possível reencontrar nos chistes a emergência de uma valência política e transformadora, porque estes, além de satisfazer tendências sexuais e agressivas, ainda podem ter como alvo normas, leis ou contratos arbitrários, podendo dar suporte a um modo de gestão do desamparo.
Este trabalho colocou em discussão a natureza sociocultural na construção do chiste e da ironia, destacando uma de suas características fundamentais, qual seja, exprimir-se sem acionar a censura psíquica e, certamente, sem ferir a moral instituída e a censura demasiadamente instalada. Discutiu-se o papel da ironia no processo humorístico e uma possível origem sublimatória para ambos. Parece não ser sem razão que Freud nos fala da necessidade de que "um chiste deve ser contado a alguém mais" (Freud, 1905/1996, p. 138). O capítulo V dessa obra tem como título "Os Motivos dos chistes - chistes como processo social", o qual se detém em discutir a psicogênese do prazer na produção da piada, assim como na recepção da mesma por um ouvinte adequado, expondo elementos que imprimem um caráter social aos afetos presentes nos chistes. Evidentemente, há moções intersubjetivas mobilizadas na criação e transmissão do chiste e das piadas. Aquele que a realiza já ouviu de alguém e a está repassando a outrem, em um evidente mecanismo de transmissão. Sabemos também da importância do terceiro para quem se conta o chiste e sobre o qual se completa o dito espirituoso. Uma das funções do receptor do chiste é o efeito de reciprocidade gerado e que se devolve ao seu autor: "Por que é então que não me rio de meu próprio chiste? Que parte nele é desempenhada pela outra pessoa?" (Freud, 1905/1996, p. 138). A função do terceiro (o público) é certificar que o chiste foi bem-sucedido em sua montagem, além de operar como um censor deslocado e instalar a triangularidade em vínculos de natureza especular ou excessivamente narcísicos.
A fantasia e o humor derivam da função originária do fantasiar infantil, e, ainda que temporariamente, relativizam qualquer oposição rígida entre princípio do prazer e princípio de realidade, pondo em suspenso a oposição entre o brincar e a realidade. Sendo assim, propomos que duas dimensões sejam levadas em conta para compreender a fruição estética implicada no gesto humorístico/chistoso: uma, de natureza econômica - como discutido, evita-se despesas com a inibição, afeto e ideação - e; a outra, na dimensão do jogo (Spiel), como uma fonte primária do mecanismo de inversão do desprazer em prazer, como elucidado na formação dos chistes. Se, em seu jogo, a criança brinca de adulto e, por meio da razão lúdica, antecipa um vir a ser, no adulto, são o devaneio e o humor que substituem o brincar, ao mesmo tempo em que impulsionam a potência erótica do sujeito desejante e, consequentemente, a escolha e a criação de objetos aptos à sua satisfação pulsional. Tal acepção nos parece estar de acordo com algumas das operações pelas quais os processos de desidealização e de natureza sublimatória podem ser compreendidos no discurso freudiano.
Ressaltamos o papel regulador do chiste, que vale também para o humor, na relação entre ego, superego e ideal do ego, exercendo um efeito liberador em relação às instâncias interditoras e que colocam em xeque a própria construção do sentido de realidade. Freud atribui ao ato humorístico um traço que não pode deixar de ser notado em relação ao desamparo e à precariedade da vida humana: "Essa grandeza [do humor] reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego" (Freud, 1927/1974, p. 190). Freud insiste na reflexão sobre o que pode fazer uma pessoa se recusar a sofrer e, ainda assim, sustentar o princípio do prazer, de tal modo que, a nosso ver, o humor não incorre na negação do estado de desamparo, mas sim no seu afrouxamento ou suspensão temporária.
Considerações finais
Esse trabalho vem reforçar a ideia de um parentesco entre o ato criativo contido no humor, nos chistes, e o engendramento de objetos pulsionais, com reordenação na economia afetiva. Algumas das formas de afetação produzida por eles contêm uma valência sociopolítica, como o desamparo, a coragem, o prazer, a dor, entre outros. Tal fenômeno estaria em consonância com a teimosia que Freud atribui à atitude humorística com a qual, por exemplo, o condenado à morte zomba de sua situação ou como o próprio Freud, quando detido pela Gestapo, exigindo-lhe que assinasse um documento atestando que não sofrera maus-tratos, ainda ousa dizer ao final: "posso recomendar altamente a Gestapo a todos" (Gay, 1989, p. 567).
Ao se produzir uma tal ironia, realiza-se, ao mesmo tempo, uma crítica a alguma vaidade própria ou, então, poderíamos dizer que ali se inicia um processo que vai ao encontro da formação de vínculos menos totalitários, na medida em que se promove uma diferença nas pessoas do discurso. Mas lembremos da característica dos chistes que, tanto Freud quanto Bergson reconheceram, a saber: que nos chistes "é preciso ser da paróquia para rir", o que denota que não se reconhece a alteridade tão bem assim nestes fenômenos oriundos da comicidade. Antes, ri-se devido a uma identificação já instalada no interlocutor da piada que se faz emergir pelo eco de sua risada.
Mas quanto a esse aspecto haveria um diferencial na ironia e mesmo na sua variante do humor negro: ela opera de modo formal (técnico) e como propósito, via pensamento nos chistes tendenciosos. Diferentemente da piada que conta com uma pré-identificação para que proporcione prazer a um terceiro, o ato de denunciar alguém através da ironia, tal como Sócrates praticava, leva o sujeito a se dar conta das representações estabelecidas como verdadeiras, sem impor diretamente um juízo como o correto ao interlocutor. Ao passo que a ironia incita um deslizamento entre níveis semânticos contrários ou com duplicidade de sentidos, como entre o real e a aparência de realidade, aquilo que se constata e o que deveria ser, explícito e implícito, podendo inverter, duplicar ou indeterminar o sinal da mensagem entre emissor e receptor no campo da linguagem. Talvez a ironia constitua uma via que possa ser indagada como mais alteritária do que o humor na sua acepção geral.
Visando novos trabalhos sobre as articulações entre humor, ironia e o campo social, sugerimos considerar a dimensão sociopolítica dessas duas técnicas de afetação do outro (o humor e a ironia) que, enquanto operações significantes, incorrem em atos de fala e na retomada do prazer que se conjuga com mais alguém na produção do riso. Como se procurou demonstrar neste trabalho, elas são fontes potenciais de subversão de sentidos constituídos, se não engendrando diretamente a transformação da dor ou do mal estar, mas aliviando o peso da realidade e, assim, poder prover condições para alternativas mais criativas. Quem sabe, o humor e a técnica da ironia, em particular, poderiam dinamizar um redimensionamento da experiência de identidades conformadas às estratégias persuasivas de opressão e às injunções normativas disciplinares, que se revelam atuantes no mundo contemporâneo, bem como na sociedade brasileira.
Referências
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Endereço para correspondência:
Josiane Cristina Bocchi
b.josiane@gmail.com
Recebido em: 12/10/2019
Aceito em: 27/10/2019