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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.13 no.3 São Leopoldo set./dez. 2020
ARTIGOS
Razões para a manutenção do laço conjugal diante de eventos críticos em casamentos longevos
Reasons for maintaining the marital bond in the face of critical events in long-lived marriages
Talita Cristina GrizólioI; Manoel Antônio dos SantosII; Fabio Scorsolini-CominII
IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro
IIUniversidade de São Paulo
RESUMO
O objetivo deste estudo foi conhecer como cônjuges engajados em relacionamentos de longa duração enfrentaram eventuais situações de crise conjugal e suas repercussões sobre suas concepções acerca da separação. Foram entrevistados 25 casais unidos, em média, havia 39,48 anos, com variação de 32 a 53 anos. A média de idade dos cônjuges foi de 64,06 anos, variando de 51 a 82 anos, todos provenientes de cidades do interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Os participantes foram entrevistados individualmente e em díades por meio de dois roteiros distintos, totalizando 75 entrevistas. A análise temático-reflexiva resultou em três temas principais: 1) menções à possibilidade de divórcio; (2) eventos críticos deflagradores de reflexões sobre o divórcio; (3) justificativas para não se divorciar. A separação conjugal foi aventada em variados contextos, relacionada aos filhos, ao desgaste da relação, à rotina e aos conflitos inerentes à partilha da conjugalidade. A perspectiva de abandonar o casamento, contudo, na maioria dos casais entrevistados, foi superada por reflexões que envolviam aspectos socioculturais, a responsabilidade do casal para com a criação dos filhos e até mesmo os aspectos financeiros que poderiam impactar a vida de ambos os cônjuges pós-dissolução.
Palavras-chave: relações conjugais; divórcio; matrimônio.
ABSTRACT
The aim of this study was to find out how spouses engaged in long-term relationships faced possible situations of marital crisis and its repercussions on their conceptions about separation. We interviewed 25 couples engaged for 39.48 years average, ranging from 32 to 53 years. The average age of the spouses was 64.06 years, ranging from 51 to 82 years, all from cities in the interior of the states of São Paulo and Minas Gerais. Participants were interviewed individually and in dyads through two separate scripts, totaling 75 interviews. Thematic-reflective analysis resulted in three main themes: 1) mention of the possibility of divorce; (2) critical events that trigger reflections on divorce; (3) justifications for not getting divorced. Marital separation has been considered in various contexts, related to children, the wear and tear of the relationship, the routine and the conflicts inherent to the sharing of conjugality. The prospect of abandoning marriage, however, in most of the couples interviewed was overcome by reflections that involved socio-cultural aspects, the couple's responsibility for raising children and even the financial aspects that could impact the lives of both spouses after dissolution.
Keywords: conjugal relations; divorce; marriage.
Introdução
A literatura científica no campo da conjugalidade considera a possibilidade de dissolução do laço conjugal como um desfecho plausível diante dos conflitos vivenciados pelos cônjuges. As pesquisas sobre divórcio, embora já tenham ocupado um papel de maior destaque na literatura da ciência psicológica, sobretudo na segunda metade do século XX, continuam a ser relevantes no campo de estudos da família (Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010). Um exemplo da atualidade do tema tem emergido no contexto da pandemia do novo coronavírus deflagrada em 2020, mobilizando discussões não apenas sobre as taxas de divórcio, mas também sobre os desafios da convivência conjugal e familiar em um cenário de distanciamento social e confinamento doméstico (Silva, Lordello, Schimidt, & Mieto, 2020).
A maioria dos estudos produzidos sobre o divórcio dedica-se à investigação das crianças e dos adolescentes pós-divórcio dos pais, sobretudo em termos desenvolvimentais e emocionais (Gorin, Féres-Carneiro, & Machado, 2017; Mederos, Cernuda, & Peraza, 2017; Oliveira & Crepaldi, 2018). Poucos estudos se interessam por investigar as queixas dos casais em processo de dissolução da conjugalidade (Mohlatlole, Sithole, & Shirindi, 2018), bem como com o desenvolvimento dos ex-cônjuges após a concretização do divórcio (Hernáez, Ortiz-Tallo, Gallego, & Alarcón, 2018).
Outra lacuna é representada pelos programas interventivos com vistas ao manejo de conflitos no casal, em busca de uma conjugalidade considerada positiva e relacionada ao bem-estar na díade, promovendo habilidades interativas em casais tanto no Brasil (Neumann, Wagner, & Remor, 2019) quanto no exterior (Francisca & Gómez, 2020). Tais programas são associados a um contexto de proteção em relação ao divórcio. Esses programas partem do pressuposto de que os conflitos são inerentes a esses relacionamentos interpessoais, de modo que o divórcio não pode ser a única resposta possível nesse contexto (Wagner, Mosmann, Scheeren, & Levandowski, 2019). Ainda considerando os elementos que possam favorecer a manutenção do casamento, uma perspectiva ainda pouco explorada na literatura é a ótica de casais que mantêm relacionamentos de longa duração e que superaram eventuais períodos de crise conjugal sem recorrerem à separação. O presente estudo busca contribuir para responder especificamente a essa última lacuna.
O divórcio pode ser compreendido como uma crise vital contemporânea, que impõe a necessidade de apoio profissional tanto em termos psicológicos como jurídicos (Zordan, Wagner, & Mosmann, 2012). Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, divulgados em 2018, a taxa geral de divórcio (número de divórcios em relação à população de 20 anos ou mais de idade) aumentou de 2,38 divórcios para cada mil pessoas, em 2016, para 2,48% em 2017. De 2017 a 2018 esse aumento foi da ordem de 3,2%, o que revela uma tendência de crescimento. O tempo médio de casamento, calculado considerando a data do casamento e a data da sentença ou escritura do divórcio, no Brasil, é de 14 anos (IBGE, 2019). Comparando este resultado com os anos anteriores, destaca-se que as uniões estão cada vez menos duradouras. A despeito das tendências sinalizadas por esses dados, é importante compreender qualitativamente o modo como o divórcio vem sendo compreendido e significado nas famílias contemporâneas.
A dissolução da conjugalidade faz-se cada vez mais comum nos dias de hoje e tem se destacado como uma das principais queixas no contexto clínico. Variadas situações podem levar um casal ao desejo de separação, como a infidelidade, o fato de o casal não ter seus objetivos de vida alinhados, bem como o acúmulo de dificuldades e tensões enfrentadas no dia a dia, que envolvem a partilha de determinadas responsabilidades, compromissos e atividades que acabam por gerar conflitos e discordâncias entre o casal, sobretudo quando está ausente a condição do diálogo (Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010; Rolim & Wendling, 2013). Além disso, a junção de vários fatores, como projeções que não foram correspondidas, interferências da família de origem, determinados comportamentos vistos como inaceitáveis pelo outro cônjuge, frustrações, angústias e conflitos não solucionados acabam por gerar uma convivência estressora e geradora de desgaste, culminando no sofrimento emocional e psicológico (Quissini & Coelho, 2014). A impossibilidade de dar um desfecho construtivo a tal sofrimento e elaborar as experiências que desencadeiam os conflitos originados a partir da relação conjugal pode culminar na ruptura definitiva do vínculo, levando ao divórcio.
Embora o divórcio seja um fenômeno mais comum nos primeiros anos de casamento, Linhares e Vianna (2015) analisaram a dissolução matrimonial na população idosa brasileira. Especificamente no período de 2002 a 2011, a quantidade de idosos que recorreu à dissolução conjugal, somada ao número de separações e divórcios, aumentou cerca de 136,1%, superando a taxa de crescimento da população idosa. Outro dado relevante apontado por Linhares e Vianna é que as separações vêm ocorrendo em todos os grupos etários de idosos. Esses achados revelam que, mesmo em uniões de longa duração, com mais de 20 anos, o divórcio vem se constituindo como uma possibilidade real. É uma constatação surpreendente porque, anteriormente, essa era uma "solução" negligenciada ou sequer aventada em função de diversos elementos socioculturais.
No contexto dos casamentos de longa duração, diversos fatores podem contribuir para que o casal cogite a possibilidade de se separar (Goulart, Oliveira, Santos, & Scorsolini-Comin, 2019), o que envolve não apenas questões emocionais e interativas, mas também contextuais (Mohlatlole et al., 2018). No entanto, esses estudos ainda podem ser considerados escassos e centralizados em determinados núcleos de pesquisa, notadamente no cenário nacional (Costa, Falcke, & Mosmann, 2015; Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt, & Sharlin, 2004; Silva, Scorsolini-Comin, & Santos, 2017, 2018).
Estudos produzidos na primeira década do século XXI asseveram o papel dos valores individuais nos casamentos contemporâneos, com maior espaço para a autonomia e para a consideração do divórcio como um desfecho (Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010). No entanto, há algumas décadas, na época em que os casais de longa duração de hoje constituíram sua união conjugal, a realidade era bem diferente no que tange ao divórcio (a lei que instituiu o divórcio no Brasil foi sancionada em 1977), que era compreendido com desconfiança e também sob forte carga de preconceitos, notadamente em contextos culturais mais tradicionais (Scorsolini-Comin, Alves-Silva, & Santos, 2018; Zordan et al., 2012). A conjugalidade era tida como um laço indissolúvel, de modo que o divórcio sequer era aventado como uma possibilidade pela maioria dos casais que se encontravam sob enormes tensões originadas em conflitos não resolvidos (Rolim & Wendling, 2013). Considerando que o espaço para se pensar o divórcio era mais restrito quando esses casais longevos se uniram, é importante conhecer como esses cônjuges manejavam possíveis conflitos que, atualmente, apresentam-se como fortemente associados ao desenlace. Considerar os possíveis marcadores desses casais, como o tempo de união, o contexto e a própria representação da conjugalidade mostra-se fundamental no campo de estudos da família, em sua constante transformação. A partir desse panorama, o objetivo deste estudo foi conhecer como os cônjuges engajados em relacionamentos de longa duração enfrentaram eventuais situações de crise conjugal e suas repercussões sobre suas concepções acerca da separação.
Método
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo descritivo amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, de corte transversal. A condução e o relato do estudo foram orientados pelos itens de verificação da pesquisa qualitativa propostos pelo COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research).
Participantes
Foram entrevistados 25 casais heterossexuais, unidos consensualmente (união civil ou estável) havia, no mínimo, 30 anos, sem terem se separado e sem estarem em processo de separação conjugal e com pelo menos um filho. Esses casais, selecionados por conveniência, são provenientes de cidades do interior dos Estados de Minas Gerais e São Paulo. A definição das 25 díades ocorreu pelo critério de saturação, de modo que a busca por casais foi interrompida no momento em que os objetivos da investigação foram atendidos e que as respostas dos participantes passaram a evidenciar aspectos repetitivos, sem a agregação de novas informações sobre o fenômeno investigado, no caso, dos casamentos longevos.
Quanto ao perfil dos participantes, os casais provenientes de cidades do interior dos Estados de Minas Gerais e São Paulo. Esses casais estavam unidos havia 39,48 anos em média (DP = 6,76), com média de idade de 64,06 anos (DP = 13,26) e com 3,48 filhos aproximadamente (DP = 1,58). A idade mínima dos participantes foi de 51 e a máxima de 82 anos, e o menor tempo de união observado foi de 32 anos e o maior de 53 anos. A maioria dos respondentes eram adeptos das religiões católica, evangélica e espírita.
Instrumentos
Foram empregados dois roteiros de entrevista, um dirigido a cada cônjuge para a coleta de informações pessoais e das percepções individuais sobre o casamento, e outro que foi aplicado junto ao casal e que continha perguntas semelhantes sobre o casamento, mas buscando acessar o modo como os questionamentos eram respondidos pelo par, em interação. Esses dois roteiros foram desenvolvidos pela equipe de pesquisadores que também foi responsável pela coleta e posterior análise de dados.
Procedimentos
Primeiramente o projeto que deu origem a este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem da primeira autora (Protocolo 1936/2011). Todo o processo de recrutamento só foi iniciado após essa aprovação. Os possíveis participantes foram abordados a partir de contatos da rede social dos pesquisadores. Os primeiros respondentes, a partir da técnica snowball, foram indicando novos participantes em potencial. Com cada casal, após os esclarecimentos sobre o estudo, foi apresentado, lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A partir disso deu-se início às entrevistas, realizadas uma única vez com cada casal. Inicialmente entrevistou-se cada cônjuge separadamente e, em seguida, realizou-se a entrevista com ambos, resultando em um total de três entrevistas por casal, totalizando 75 entrevistas. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e literalmente para a composição do corpus deste estudo. As entrevistas ocorreram nas casas dos participantes e tiveram duração média de duas horas com cada díade (tempo dedicado à realização das três abordagens, ou seja, com o esposo, com a esposa e com o casal). Os casais foram orientados a permanecerem em cômodos distintos para as entrevistas individuais. A fim de diminuir os possíveis desconfortos em relação à espera para a realização da entrevista individual, foi reafirmado que ambos teriam um momento de serem entrevistas juntos, o que foi considerado importante para que eles também pudessem falar e ouvir um ao outro sobre o casamento.
Todo o processo analítico foi realizado pela mesma equipe de pesquisadores responsáveis pela coleta e validado por dois pesquisadores orientadores da pesquisa. Para a realização das análises a equipe recebeu treinamentos promovidos pelo grupo de pesquisa no que concerne à pesquisa qualitativa. A análise dos dados das entrevistas dividiu-se em dois momentos. No primeiro, foi realizado um recorte das entrevistas individuais e de casal, identificando-se os fragmentos de discursos concernentes às menções à questão do divórcio e às situações nas quais cogitaram a possibilidade de separação ou em que quase se divorciaram. Também foram localizados os trechos nos quais o divórcio emergiu como um interdito ou mesmo como uma resposta que jamais fora aventada pelos cônjuges. Esse procedimento foi realizado em função de a presente investigação ser parte de um estudo maior que teve por objetivo compreender a dinâmica dos relacionamentos de longa duração. Assim, o foco do presente recorte repousa nas menções ao divórcio nessa amostra. Em um segundo momento, esses trechos foram lidos minuciosamente, a fim de compreender os sentidos atribuídos à eventual separação presentes nas menções ao divórcio identificadas no material analisado. Essas menções foram organizadas em categorias temáticas de acordo com o sentido predominante e mais recorrente nas falas dos participantes. Essas categorias temáticas foram inicialmente produzidas pelos pesquisadores que realizaram a coleta de dados e depois validadas pelos orientadores do estudo segundo os procedimentos da análise temática reflexiva (Braun & Clarke, 2019). Posteriormente, tais categorias foram interpretadas a partir dos estudos disponíveis na área da conjugalidade e do divórcio.
Resultados e Discussão
As categorias temáticas originadas a partir do processo de análise descrito na seção anterior foram: (1) Menções à possibilidade de divórcio; (2) Eventos críticos deflagradores de reflexões sobre o divórcio; (3) Justificativas para não se divorciarem. Destaca-se que esses temas foram produzidos a posteriori e tendo como recorte específico a questão do divórcio, como detalhado na seção do Método. A seguir, essas categorias serão explicitadas e discutidas, em diálogo com a literatura consultada
1 - Menções à possibilidade de separação conjugal
Nesse eixo temático os casais mencionaram diversos fatores, eventos e momentos que os fizeram pensar na possibilidade de se divorciarem. Segundo os relatos, esses fatores poderiam ter desencadeado uma separação. Embora não tenham optado por tal desfecho, essa possibilidade foi aventada por eles em alguns momentos. A separação não se efetivou, entre outros motivos, pela existência de fatores positivos que, segundo eles, acabaram por "balancear" as relações conflituosas que poderiam justificar ou desencadear a dissolução da conjugalidade.
É muito complicado conviver. Precisa muita aceitação, precisa ter muita tolerância, paciência. Então, nem sempre a gente tem tudo isso, né? Às vezes tem momentos que você não está bem, mas é consigo mesmo, né? Mas você está compartilhando a existência, e tem momentos que ficam mais complicados, mas passam, né? Passam... (Esposa 13)
Nestes excertos nota-se a questão da convivência como um dificultador da manutenção da relação conjugal, o que, muitas vezes, acaba culminando em um desgaste que pode favorecer a separação. Como as relações interpessoais na sociedade em que vivemos têm sido marcadas cada vez mais por valores como imediatismo e individualismo, questões como a tolerância aos conflitos e a capacidade de convivência em uma relação afetiva de longa duração estão cada vez mais desafiadoras, ao passo que se nota um número expressivo de divórcios em nosso país. De acordo com Zordan et al. (2012), atualmente as relações conjugais são marcadas pelo imediatismo, pela pouca durabilidade e menor tolerância aos conflitos, além de pouca paciência. Esses marcadores também têm sido potencializados na contemporaneidade por situações contextuais específicas, como a pandemia da COVID-19 (Silva et al., 2020), que têm permitido a emergência de conflitos familiares que, anteriormente, permaneciam interditos e invisibilizados em função de diversos atravessamentos. A necessidade de se estar junto em tempo integral, de alguma forma, potencializou a emergência desses processos. No estudo em tela, realizado anteriormente à pandemia, a necessidade de estar sozinho é apresentada como uma necessidade dentro da relação:
Às vezes, a gente divide o dia a dia, a correria da gente, você sabe que o estresse, quando vem, a gente, né... Porque não é tão fácil, como eu te falei, não é tão fácil a gente batalhar o dia a dia. A gente só tem, como se diz, um tempo pra descansar [...] então, eu acho que o dia a dia é que faz muitas vezes a gente pensar, entendeu? Querer até ficar sozinho, isolado num canto. (Marido 16)
Neste excerto de fala evidenciam-se as dificuldades e desafios enfrentados no dia a dia, instituindo uma rotina mortificante a ser encarada pelos cônjuges e, mais uma vez, os desafios da convivência como fatores responsáveis pela abertura a uma ideia de separação com possível resolução dos problemas. Além disso, nota-se cada vez mais a necessidade de se contar com um espaço individual, não compartilhado, no qual cada pessoa sinta que pode exercitar sua singularidade e fazer coisas que dizem respeito só a ela. Mesmo sendo duradouro, um casamento não é necessariamente satisfatório e, com isso, mesmo com anos de convivência, uma relação a dois marcada por uma rotina desgastante e por trocas não mais prazerosas pode culminar em um desejo de separação (Scorsolini-Comin et al., 2018). Há que se considerar, ainda, que a fala do Marido 16 significa o momento de isolamento como algo ruim, resultado de um processo de desgaste no relacionamento. No entanto, essa possibilidade de recolhimento e de reavaliação individual pode ser um recurso para a manutenção do relacionamento.
A possibilidade de separação, aventada pelos participantes, está associada a um "cansaço" que não diz respeito apenas à relação em si, mas também às diversas rotinas experienciadas pelos cônjuges. Assim, observa-se um movimento no qual o potencial criativo da conjugalidade acaba sendo tragado. O vínculo conjugal, ao invés de permitir a expressão individual do cônjuge, acaba proporcionando seu aprisionamento a uma estrutura rígida e fixa, com pouca flexibilidade e pouco espaço para a expansão. Essa rigidez, aliada à ausência de espaços para a expressão da individualidade, parecem desgastar o cotidiano conjugal. Há que se considerar que o conceito psicodinâmico de conjugalidade aqui empregado (Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010) considera a importância da manifestação da individualidade, embora recupere, fundamentalmente, a necessidade de construção de um locus próprio para o casal, habitado e alimentado constantemente pelo mesmo. Esse processo de construção, no entanto, não se dá sem conflitos, mesmo em se tratando de uma relação longeva e rica em experiências acumuladas ao longo do tempo e dos desafios enquanto casal e família (Costa et al., 2015).
Depois de 30 anos [de união] eu acho assim, que parece assim, que não... Eu não sei, parece que fica faltando alguma coisa... Tem hora assim que a gente não combina. Umas coisas que a gente quer combinar quando a gente é mais jovem, aí a gente, assim... já não é mais aquele tempo que quando a gente se conheceu. Parece que vai esfriando mais, sei lá, vai desligando... Minha mãe falava isso pra mim e eu não acreditava, mas agora eu vejo. É por isso que tem muitos casais que, quando chega aos 20, 30 anos, vai se separando. (Esposa 16)
Nesta fala podemos notar claramente que as mudanças são processuais, isto é, vão acontecendo ao longo da relação conjugal, tanto em nível individual quanto relacional. Ao longo do tempo as pessoas vão se transformando e todas essas mudanças podem culminar em um enfraquecimento da identificação dos cônjuges e possível separação. Tendo isso em vista, Norgren et al. (2004) afirmam que, no contexto dos casamentos de longa duração, os casais já passaram por diversas transformações conjugais e familiares, e geralmente se encontram na meia idade, fator que oportuniza novas experiências, mas também a revisão de tudo que já se viveu, como conquistas e sucessos, mas também fracassos e perdas, além de sonhos desmoronados e projetos abandonados. O balanço entre perdas e ganhos torna-se decisivo, podendo redirecionar o futuro e até mesmo redefinir os rumos do casamento.
Aqui também emerge como um marcador importante o discurso transgeracional acerca do casamento, de modo que as concepções sobre o matrimônio não são construídas apenas nas relações entre os cônjuges, mas a partir dos elementos que circulam nas suas famílias de origem e na socialização (Ziviani, Féres-Carneiro, Scorsolini-Comin, & Santos, 2015). Assim, o discurso que trata de um certo esfacelamento do relacionamento ao longo do tempo parece atravessar as gerações e também se concretizar na experiência desses casais longevos, processo que também é vivenciado por seus pais. Essa experiência de cansaço diante da relação emerge como um fenômeno que se repete de geração, marcando a consolidação de como a conjugalidade tem se apresentado na família.
Em que pesem as mudanças possivelmente observadas de uma geração a outra no modo de se construir a conjugalidade (Ziviani et al., 2015), esses casais revelam formas de responder aos conflitos experienciados. Essas respostas podem variar desde a postergação do conflito como a consideração de que a manutenção do relacionamento é um dos objetivos do par ou, ainda, que esses conflitos são transitórios, como consta na fala da Esposa 13. O modo como esses conflitos são manejados não necessariamente revelam movimentos mais adaptativos, uma vez que podem ser postergados em função de dificuldades de entrar em contato com o outro e mesmo por uma rejeição à ideia de divórcio, haja vista o longo período de convivência, as crenças religiosas e as diversas experiências acumuladas ao longo do convívio do casal.
2 - Eventos críticos deflagradores de reflexões sobre o divórcio
Neste eixo são evidenciados momentos críticos vivenciados pelos casais longevos e que os fizeram pensar na possibilidade concreta de separação, em razão de a situação em específico ter sido bastante difícil de ser suportada por um dos cônjuges, ou pelo par. Nesse sentido, há certos fatores que são considerados como inaceitáveis por vários casais e isso acaba gerando muitos conflitos que acendem a conjectura de se divorciarem.
Na época que ele bebia, então eu falei pra ele que eu ia esperar as crianças crescerem, que quando as crianças tivessem um... pegassem um... crescessem um pouquinho, eu ia largar. Aí depois as crianças cresceram e ele parou de beber, acho que ele ficou com medo [risos]. Na época que eu já pensei em separar, eu não era feliz. Porque ele só bebia, entendeu? Não dava atenção pra mim, não dava atenção para as crianças... Mas agora ele é outra pessoa. (Esposa 2)
Neste excerto de fala pode-se identificar uma situação geradora de permanente tensão na vida doméstica, que envolve o problema do abuso de álcool por parte do marido. Esse tipo de realidade, muitas vezes, faz-se presente nos casamentos, gerando insatisfação conjugal. Em termos dos comportamentos individuais mais relacionados ao divórcio, a adição emerge como uma característica importante (Zordan et al., 2012). No entanto, a partir dos relatos do presente estudo, nota-se uma postura de maior aceitação, compreensão ou mesmo de tolerância desse comportamento. O maior empoderamento feminino na contemporaneidade pode ser um fator que diminua essa tolerância, ampliando as possibilidades de a mulher se posicionar contra tais comportamentos. Assim, a postura não mais seria de evitação, mas de enfrentamento. No entanto, na presente amostra, com cônjuges longevos, esse movimento de ruptura mostra-se tímido, com pouca possibilidade de manejo por parte da mulher. Essa dificuldade de reescrever os scripts de gênero parece ser um componente das relações longevas (Oliveira, Leônidas, & Scorsolini-Comin, 2020).
Outro elemento que emerge nas entrevistas é a tolerância à rotina. Muitas vezes, o simples fato de se ter uma rotina faz com que os casais desanimem e deixem de investir na melhoria da relação, o que acaba por acarretar muitas incertezas, transformando o matrimônio em oscilantes momentos de dificuldades, que vão exigir doses crescentes de paciência, empatia, reflexão e compreensão, que exigem a capacidade de aprender com a experiência e ajustar a própria conduta. A vida conjugal carrega diversas responsabilidades que podem culminar em divergências e conflitos que, muitas vezes, o casal não consegue ou mesmo não deseja superar (Costa et al., 2015; Wagner et al., 2019). No excerto a seguir a Esposa 9 trata do relacionamento com a família do companheiro.
Eu tive muito, assim, problema com a família dele, até não gosto de tocar nesse assunto porque ela já faleceu... Mas eu tive muito problema com a irmã dele, porque ela se instalava dentro da minha casa e queria dar as ordens. Eu não podia falar nada porque ele não sabia o que se passava, até que passou a ver, mas até ele passar a ver ele não me apoiava. (Esposa 9)
Neste caso, a relação com a família do parceiro trouxe desgaste para a conjugalidade. Lidar com as diferenças familiares, seus costumes e rotinas é mais um desafio para a convivência saudável de um casal. A família de origem e do meio social podem agir de maneira a corromper os laços conjugais, em meio a conflitos e divergências (Wagner et al., 2019; Ziviani et al., 2015). A família de origem pode dificultar a convivência do casal quando seus membros participam de modo mais direto da rotina da díade, oferecendo opiniões e orientações, por exemplo. É importante destacar que a conjugalidade expressa não apenas a união de duas individualidades, mas também a atualização de conflitos, traumas e não-ditos acerca do matrimônio, que atravessam as famílias de origem (Ziviani et al., 2015). Na união dessas famílias, com experiências e bagagens distintas, podem ocorrer discordâncias e conflitos que se atualizam na dinâmica do casal. A capacidade de gerir esses conflitos de forma respeitosa e criativa passa a ser fundamental tanto para a manutenção da relação quanto de uma convivência harmônica com as duas famílias de origem.
Foi uma época aí que eu ia pros bailes, que eu arrumei uma companheira aí, sabe? Pra dormir e tudo e aí... eu não ia largar não, eu queria navegar em duas barcas [risos]. Mas o amor falou mais, certo? Aí eu larguei a outra e fiquei com ela aqui. Mas não teve briga nem nada, foi tudo conversado, tudo. (Marido 22)
Nesta fala fica evidente a importância da reflexão do marido, que estava mantendo um caso extraconjugal, encontrar receptividade na abertura da esposa ao diálogo. A relação conjugal pôde ser restaurada e a necessidade de ter uma amante deixou de ser premente. Como afirmam Rolim e Wedling (2013), a infidelidade conjugal e a traição masculina são apontadas como principal causa das separações. Nesse sentido, é válido reiterar a ideia de Féres-Carneiro e Diniz Neto (2010) de que os casais não se divorciam por desmerecerem o casamento, mas por dar-lhe uma importância muito grande: quando não há uma correspondência das expectativas, não conseguem resistir, e aí se pode entender a relação extraconjugal a partir de um viés de que, muitas vezes, elas podem aparecer como uma tentativa de não culminar no divórcio por meio da busca de experiências de gratificação sexual e emocional fora do casamento.
O [Esposo 22], na verdade, eu acho que ele não nasceu pro casamento. Ele é um pouco assim, sabe, quando vê um tropeço, uma coisa assim, ele desnorteia, sabe? Agora a parte financeira está mais equilibrada, mas antes era tudo eu... Mas, desde quando eu casei, a responsabilidade é toda minha mesmo. Então, quando eu vi que a carga era toda minha mesmo, eu tive sim [desejo de se separar]. Eu vi que ia ser muito duro pra mim, né? Mas, ao mesmo tempo, se eu separo, aí que vai triplicar... Mas eu já tive vontade sim. (Esposa 22)
O medo de não saber lidar com o que é diferente, o que é novo, muitas vezes é o que impede a consumação de uma separação. Não saber quais serão as dificuldades no futuro e estar em dúvida sobre qual decisão tomar acabam por desmotivar o processo de dissolução do casamento. Com isso, devemos considerar que, antes mesmo do casamento ocorrer, muitas projeções com relação ao parceiro podem existir, trazendo frustrações e conflitos quando os cônjuges se aproximam da realidade, o que é bastante relevante quando a decisão em pauta é continuar ou não com o parceiro (Quissini & Coelho, 2014).
Apesar das mudanças produzidas pela inserção da mulher no mercado de trabalho e do avanço do movimento feminista, o Brasil ainda carrega estereótipos que padronizam e cristalizam bastante o papel de homens e mulheres nas tarefas domésticas, havendo uma considerável disparidade entre as atividades exercidas pelo casal, sendo que as mulheres permanecem como protagonistas de tais atividades (Jablonski, 2010). Essa análise nos permite pensar sobre o desgaste causado pelas atividades diárias, que recaem principalmente sobre a mulher, e o quanto isso poderia influenciar na manutenção do casamento, levando até mesmo à conjectura do divórcio. As questões de gênero, desse modo, atravessam de modo significativo os casamentos de longa duração, sobretudo consolidando o interdito do divórcio, haja vista que recuperam e promovem a manutenção das posições de homens e mulheres em uma sociedade machista e patriarcal (Oliveira et al., 2020). Com essa manutenção, pouco ou nenhum espaço para discussão sobre o divórcio pode emergir.
3 - Justificativas para não romper o vínculo conjugal
Neste eixo temático são explicitados diversos argumentos utilizados pelos casais entrevistados para não se divorciarem. As causas são bastante variadas e refletem, principalmente, o contexto em que os casais foram criados e o que aprenderam em relação ao matrimônio, além das influências socioculturais que também atuam marcadamente nesse tipo de decisão.
Mas, no caso, eu penso em não separar por causa que tem as... dos bens para deixar para as crianças, no caso, né, porque se nós separar, no caso, ele vai acabar com tudo... porque ele sofreu demais pra ter o que nós temos hoje e depois, se nós sairmos no caso com uma separação, vai destruir tudo de repente, né. (Esposa 1)
Nesse recorte de fala a questão financeira acaba pesando na decisão de não se separar, tanto em razão da ameaça de se desfazer o patrimônio construído juntos, quanto pela questão de providência parental, isto é, uma preocupação com os recursos que deverão ser destinados aos filhos. As questões financeiras, do mesmo modo que podem justificar a manutenção do relacionamento, também podem estar envolvidas na decisão pelo divórcio (Mohlatlole et al., 2018). Mais uma vez reafirma-se a ideia de que a permanência de um matrimônio por um longo período não significa, necessariamente, que os cônjuges desfrutam de um bom relacionamento. Nesse sentido, Norgren et al. (2004) diferenciam a questão da satisfação e estabilidade conjugal, por meio de argumentos que revelam que os casais têm inúmeros motivos para tentarem se manter, dentre eles, a abominação da ideia do divórcio, medo da solidão e até mesmo por não quererem dividir o patrimônio construído ao longo dos anos.
Outra explicação para o fato de não terem se divorciado diz respeito à experiência da parentalidade. De modo similar, a parentalidade é apontada como um dos elementos fundamentais para a manutenção do casamento longevo (Grizólio, Scorsolini-Comin, & Santos, 2015). Percebe-se a influência contextual de que é preciso dar "exemplos bons" para os filhos, o que involucra a noção de que a separação conjugal é lesiva ao desenvolvimento das crianças. Além disso, a ideia de separação não era vista como algo aceitável até décadas atrás, desse modo, o contexto sociocultural acaba por determinar as decisões sobre a separação desse casal. É importante perceber que o modelo de criação que um casal recebeu, bem como as influências socioculturais, vão influenciar diretamente no modo como vão criar e educar os seus filhos (Ziviani et al., 2015). Nesse processo, a questão moral de "dar o exemplo" é muito valorizada, já que compreende quase que uma missão a ser repassada para seus filhos, como podemos observar na fala seguinte.
Eu sempre pensei de ter meus filhos e eu criar, não deixar meus filhos pra outro homem criar, e não queria que outra mulher fosse criar também. Porque, se eu me separasse, eu teria que correr atrás de outra mulher... Aí eu não acho certo. (Marido 15)
Há algumas décadas o casamento era visto como um compromisso que exigia muita responsabilidade e formalidade, já que o divórcio ainda não era legalizado. Dessa maneira, pensar sobre separação poderia indicar uma falta de comprometimento e consideração com algo que é tão sério. A fala trazida pela Esposa 3, a seguir, reflete o contexto sócio-histórico de sua época de início matrimonial, já que se casou em 1972 e, oficialmente, o direito ao divórcio no Brasil só foi reconhecido em 1977 (IBGE, 2013): "Eu nunca pensei, não. Porque eu acho que eu levei bem a sério o casamento, viu? Casamento não é uma brincadeirinha, eu levei muito a sério. É uma responsabilidade muito grande que você assume".
Tradicionalmente, o divórcio não era concebido como uma possibilidade desejável, até mesmo porque estava fora da legalidade jurídica, portanto, não era parte da conjugalidade. Esse aspecto estava fortemente presente em determinadas culturas consideradas mais tradicionais, nas quais o divórcio era visto com preconceito, como uma fraqueza, um déficit dos cônjuges, não como uma questão de direito. Além dos aspectos sociais, culturais e religiosos envolvidos na percepção social desse fenômeno, também os exemplos familiares acabam por determinar as decisões de muitos casais, que não se veem no direito de quebrar a tradição da união irreversível. Essa herança aprendida de que o casamento não deve ser desfeito. Nesse sentido, é válido considerar que a relação de conjugalidade dos pais pode refletir diretamente na vida dos filhos, influenciando o modo como estes vão estabelecer seus vínculos conjugais no futuro (Ziviani et al., 2015). A impossibilidade de ruptura dos laços conjugais em decorrência da necessidade de obediência cega a uma tradição herdada fica clara no trecho: "Na minha família não tem nenhum separado, tá tudo... Não tem motivo assim de pensar em separação, eu não penso isso não. Eu acho assim, se Deus deu aquela cruz pra você, você tem que carregar até o fim" (Esposa 6).
Percebe-se que a indissolubilidade do matrimônio é vista, por alguns dos participantes, como um dogma que não pode ser questionado. Ainda que o casamento seja explicitado como "uma cruz a ser carregada", alusão à ideia de castigo e penitência da ascese de matriz católica, o divórcio, que poderia pôr fim a esse sofrimento, é encarado como algo que não se pode cogitar. Permanecer junto do parceiro parece ser uma missão a ser cumprida de modo devotado, ainda que esse exercício de entrega a um relacionamento insatisfatório envolva sofrimento e frustração. Isso equivale a dizer que nem sempre um casamento longevo é sinônimo de satisfação conjugal (Landis, Peter-Wight, Martin, & Bodenmann, 2013). O anseio de satisfação pessoal é sacrificado e substituído pelo ideal de manutenção de uma unidade familiar, que é identificada como a base de sustentação do coletivo social.
Em outro movimento que emergiu nas falas, alguns casais apresentam a conjugalidade como algo satisfatório. Nesse cenário, o divórcio não é aventado. O convívio contínuo por tantos anos e a dedicação a uma relação podem fazer com que a ideia de separação seja quase que totalmente eliminada, já que os laços e vínculos podem estar firmemente estabelecidos, dificultando a possibilidade desses casais se verem de outra forma que não juntos. Esse movimento pode ser observado nas falas a seguir: "Quando eu penso que um vai e o outro vai ficar... 53 anos juntos e nós nunca discutimos isso: "Se eu for, o que você vai fazer?". Então, estamos na dependência um do outro" (Esposa 8) e "Eu acho a solidão muito triste, tenho medo de ficar sozinha. Solidão é muito triste... A pessoa que perde o marido e fica sozinha dia e noite, e sabe que não vai chegar ninguém, é muito triste" (Esposa 11).
Pode-se pensar que essa é mais uma característica saliente de alguns casais longevos. Como ressaltam Féres-Carneiro e Diniz Neto (2010), as relações humanas são cada vez mais marcadas pelo individualismo, com ênfase na autonomia e na satisfação pessoal. A despeito dessa tendência, alguns desses casais revelam movimentos de dependência do parceiro e até mesmo certa estabilidade diante das normas e das estruturas construídas para a relação. Isso nos coloca diante da necessidade permanente de compreendermos os movimentos de ruptura, mas também de permanência na conjugalidade, questionando até que ponto os casamentos longevos representam inovações para a família contemporânea ou modelos expostos, no futuro, à desconstrução.
Considerações finais
A partir dos dados analisados pode-se perceber que a ideia de separação conjugal ocupa um lugar relevante na vida de alguns casais longevos, surgindo nos mais variados contextos, relacionada aos filhos, ao desgaste da relação, à rotina e aos conflitos inerentes ao estar juntos. A perspectiva de abandonar o casamento, contudo, na maioria dos casais entrevistados foi superada por reflexões que envolviam aspectos socioculturais, a responsabilidade do casal para com a criação dos filhos e até mesmo os aspectos financeiros que poderiam impactar a vida de ambos os cônjuges pós dissolução. Nesses casais, percebeu-se que a falta de paciência, a convivência diária por longos anos, o "esfriamento" da relação, a falta de colaboração no desempenho das tarefas diárias e a crescente valorização da individualidade têm dificultado que casais levem adiante suas uniões. Assim, quando surgem impasses no convívio, o divórcio acaba se impondo como uma tentativa cada vez mais comum de solução para os conflitos.
Quanto aos principais fatores que parecem ser críticos para a evocação do desejo de divórcio destacaram-se: alcoolismo do marido, falta de preparação de um dos cônjuges para a vida a dois, relações extraconjugais, principalmente do marido, rotina diária e suas complicações, conflitos com a família de origem de um dos cônjuges e sobrecarga de trabalho, principalmente da mulher. Tais fatores podem refletir o padrão característico da época em que a maioria desses casais se uniram, na qual era bastante valorizado o papel de homem provedor e detentor de maior poder e liberdade, e de mulher que se restringe aos cuidados da casa e dos filhos. No entanto, esse modelo vem sofrendo transformações e, atualmente, os papéis tendem a ser bem mais equitativos, apesar de ainda haver resquícios do modelo anterior. Essas mudanças podem evocar o desejo de transformação, principalmente das mulheres, afinal, o desejo de separação é apontado por Féres-Carneiro e Diniz Neto (2010) como predominantemente feminino.
Além disso, entre as justificativas para a não menção ao divórcio aparecem elementos relacionados à parentalidade (como a necessidade de "ser exemplo" para os filhos e temor de que os filhos possam ser cuidados por outra pessoa) e à individualidade (medo de ficar sozinho e não saber lidar com uma vida diferente). Esses elementos individuais também estão relacionados à conjugalidade, uma vez que envolvem a construção de vinculações e modos de ser que se cristalizam a partir do apego a certos valores que se inscrevem na tradição familiar.
Pode-se concluir que os casais de longa duração significam a separação conjugal como uma alternativa no horizonte de possibilidades, mas dificilmente como uma perspectiva exequível e desejável frente às discordâncias e frustrações vivenciadas no casamento. Há que se considerar que este estudo investigou apenas casais longevos que nunca se separaram, de modo que o divórcio, concretamente, encontra-se distanciado do repertório de possíveis estratégias e recursos passíveis de serem eventualmente acionados para a solução de problemas conjugais.
Em relação às particularidades do estudo, destaca-se que a presente amostra faz parte de uma região específica composta por cidades interioranas do sudeste brasileiro. Assim, produz-se um determinado retrato que, obviamente, não se compromete com quaisquer generalizações, mas que pode ser explicado por determinados marcadores sociais que são emergentes nesse contexto, como a valorização e circulação de valores tradicionais em relação à família e mesmo a forte presença da religiosidade cristã e seus possíveis atravessamentos em relação à possibilidade de divórcio como um desfecho para o itinerário do casamento. Em que pesem esses circunscritores, que podem ser melhor contemplados em estudos futuros, considera-se que a presente investigação contribui para a solidificação dos estudos sobre a conjugalidade de longa duração no Brasil pelo modo como tensiona o divórcio como variável que também emerge nessas configurações. Isso significa que os casamentos longevos não se sustentam sobre a negação do divórcio, mas pela existência de fatores que manejam essa possibilidade, apresentando outras respostas assumidas por esses casais diante dos conflitos ou do desafio da vida a dois.
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Correspondência para:
Fabio Scorsolini-Comin
Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre
Ribeirão Preto-SP, CEP: 14040-902
Email: fabio.scorsolini@usp.br
Submetido em: 18.08.2020
Aceito em: 19.01.2021
Agradecimento: Este estudo foi financiado pela CAPES. A primeira autora recebeu bolsa de demanda social da CAPES para a realização do mestrado junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. O segundo e o terceiro autores são bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, 1A e 2, respectivamente.