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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.14 no.1 São Leopoldo jan./abr. 2021
ARTIGOS
"Trigêmeos de idades diferentes": a experiência da maternidade por meio da adoção de irmãos
"Triplets of different ages": the experience of motherhood through the adoption of siblings
Roberta Stefanini Machemer; Giana Bitencourt Frizzo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
A experiência da maternidade por adoção de um grupo de irmãos pode se configurar como um desafio no pós-adoção, mas a literatura sobre o assunto é escassa. Pensando nisso, o objetivo do presente estudo foi compreender como se construiu a relação mãe-filhos, em um caso de adoção de grupo de irmãos, ao longo de dez sessões de psicoterapia de referencial teórico psicanalítico e da teoria do apego. Utilizou-se a Análise Temática nas transcrições das sessões para buscar aspectos específicos da adaptação mãe-três filhos e identificar padrões de temas e subtemas. Os resultados ressaltaram um período de idealização dos filhos mais novos, sustentado por dificuldades na adaptação com o filho mais velho. Essas dificuldades iniciais foram superadas na medida em que a mãe pode ver com os filhos mais novos de forma menos idealizada e pode construir uma identificação com o mais velho. Foi necessário um período de intensa disponibilidade emocional materna às necessidades individualizadas dos seus três filhos, como se fossem trigêmeos de idades diferentes. Ressaltou-se a importância prévia da preparação da família para a adoção de irmãos e a necessidade de um cuidado maior com o filho que desempenhou o papel parental com o grupo de irmãos antes da adoção.
Palavras-chave: adoção; irmãos; estudo de caso.
ABSTRACT
The experience of motherhood by adopting a group of biological siblings can be a challenge during the post-adoption, but the literature on the subject is scarce. The objective of the present study was to understand how to build a mother-child relationship in a case of adoption of a group of siblings during ten psychotherapy sessions with a psychoanalytic and attachment-based theoretical framework. Thematic Analysis was used in psychotherapy transcriptions to look for the effects of mother-three child adaptations and to identify patterns of themes and subthemes. The results highlighted a period of idealization of the youngest children, sustained by difficulties with the older child. These difficulties were overcome when the mother saw younger children as more accurate and identified herself with the older one. It took a period of intense maternal emotional availability for the individualized needs of her three children as if they were triplets of different ages. The results emphasized the importance of pre-adoption preparation for the family to adopt siblings. Also, it is essential to pay special attention to the child who played a parental role before the adoption.
Keywords: adoption; brothers; case study.
Introdução
As mudanças nos processos normativos das famílias têm gerado a necessidade de conhecimento teórico/científico acerca da experiência da maternidade em diferentes contextos, como a adoção (McGoldric & Shibusawa, 2018). A adoção é uma das formas de tornar-se mãe e, antes de conhecê-la profundamente, deve-se ter familiaridade com as perturbações e contratempos comuns da história humana e da experiência da maternidade (Winnicott, 1953/1997).
Tornar-se mãe é uma construção complexa que exige diversas acomodações intrapsíquicas (Zornig, 2010). Para Freud (1990/1914), o desejo de ter um filho muitas vezes corresponde a uma nova possibilidade dos pais de alcançarem seus ideais narcísicos, provenientes das suas pré-histórias infantis. Esses ideais envolvem desde o filho até o exercício da maternidade (Brazelton & Cramer, 1992), e a expectativa materna de alcançá-los é uma precursora do investimento no filho (Solis-Ponton, 2004).
Por outro lado, o filho só irá "vir a ser" alguém caso haja uma pessoa profundamente identificada com suas necessidades (Winnicott, 1956/2000), alguém capaz de acomodar os ideais provenientes do seu mundo infantil em prol da existência psíquica do filho. Para tal, o cuidador precisa perceber e agir de maneira extremamente sensível em relação à criança, acomodando-se às necessidades dela (Winnicott, 1956/2000).
A experiência da maternidade por meio da adoção vem sendo estudada nos últimos anos (Costa & Rossetti-Ferreira, 2007; Levinzon, 2006; Sonego & Lopes, 2009). Esses estudos apontam para uma série de diferenças da maternidade nesse contexto em relação à biológica, bem como a habilitação, o possível luto por uma infertilidade, o período longo e incerto de espera pelas crianças, a adoção de crianças maiores, adoções de irmãos, entre outros.
Um dos pormenores importantes do tornar-se mãe por adoção que tem sido estudado atualmente diz respeito às expectativas depositadas no filho, pois na adoção pode haver maior necessidade de adaptação a esses ideais (Levinzon, 2006; Resmini, 2018). A acomodação necessária entre os ideais infantis dos pais e o filho real pode ser dificultada nesse contexto pela falta de vínculo consanguíneo, diferenças de etnia, pelo período em que a criança não esteve sobre os cuidados dos pais adotivos, entre outros (Levinzon, 2006). Em alguns casos também pode haver um ideal muito romantizado, que se confronta de forma intensa com a criança real (Lévy-Soussan & Marinopoulos, 2010; Resmini, 2018; Silva & Benetti, 2015).
Outro pormenor diz respeito à possibilidade da adoção de um grupo de irmãos. Ou seja, quando junto do complexo processo de tornar-se mãe, e mãe por adoção, têm-se mais de um filho. A experiência da maternidade por adoção de irmãos tem ganhado destaque nos últimos tempos devido a um número significativo de crianças maiores de dois anos com pelo menos um irmão cadastrados para a adoção (Silva & Benetti, 2015). No entanto, ainda que haja um crescente nas adoções de irmãos, é bastante escassa a literatura teórica e científica sobre o tema, cabendo ao pesquisador interessado buscar conhecimento similar na experiência da maternidade biológica.
Sabe-se que a experiência da maternidade de gêmeos pode se configurar como um desafio a mais, questão que permite levantar algumas questões de pesquisa acerca da adoção de irmãos. A maternidade de gêmeos vem sendo estudada teórica (Kancyper, 1991) e cientificamente (Andrade et al., 2014). Kancyper (1991) teorizou sobre questões comuns em irmãos e irmãos gêmeos. Conforme o autor, é possível encontrar uma encenação imaginária nos gêmeos em que há uma fantasia de existir apenas um espaço, apenas um tempo e uma possibilidade para os irmãos se encaixarem. Por exemplo, se um irmão gêmeo é inteligente, o outro comparativamente será o burro; se um é belo, o outro é feio. Essa dinâmica costuma se expressar mediante competições e rivalidades entre os irmãos, visto que só há um lugar para todos ocuparem. Existem famílias em que essa lógica é corroborada pelo ambiente, que também dispõe de um único lugar de investimento afetivo para os dois, três filhos (Kancyper, 1991).
O estudo de Andrade et al. (2014), foi uma revisão sistemática de estudos empíricos com famílias de gêmeos. A conclusão dos 19 estudos analisados foi de que as mães com filhos gêmeos tiveram escores mais baixos de bem-estar, aumentando o risco de estresse, exaustão e depressão. Os autores salientaram que a experiência dessas famílias foi diferente das famílias com um único bebê, sendo mais exigente e complexa e, consequentemente, aumentando a necessidade da participação de uma rede de apoio constante. Em comum nesses dois trabalhos, percebe-se a alta demanda operacional e intrapsíquica das mães, que realizaram todo processo de tronar-se mãe com mais de um filho no mesmo momento (Andrade et al., 2014; Kancyper, 1991). Nesse sentido, pode-se pensar que essa alta demanda no contexto biológico poderia se encontrar na adoção de irmãos.
Alguns poucos estudos encontrados contemplam indiretamente a adoção de irmãos (Riede & Sartori, 2013; Sampaio, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2018; Silva & Benetti, 2015; Tasker & Wood, 2016). O estudo de Silva e Benetti (2015), realizado com uma perspectiva qualitativa longitudinal, no Brasil, acompanhou, ao longo de 14 encontros, o processo de adaptação de uma família que adotou dois irmãos (três e dez anos). Os achados deste estudo indicaram uma necessidade das crianças ressignificarem o passado permeado por dificuldades através das novas relações familiares. Nesse sentido, cuidados sensíveis e individualizados da família oferecem um ambiente favorável ao processo em questão. Evidenciou-se um período de dificuldade dos pais em prover esses cuidados individualizados aos filhos, tendo em vista que cada filho necessitava de um tipo de atenção individualizada (Silva & Benetti, 2015).
O estudo de Tasker e Wood (2016), na Inglaterra, também incluiu a adoção de irmãos. Dos seis casais entrevistados, três adotaram grupo de irmãos. Cada grupo de irmãos foi composto por dois irmãos que estiveram juntos durante o período com a família de origem e no acolhimento institucional. Esses três casais precisaram lidar com "padrões de relacionamento pré-existentes". Os autores relacionaram tal questão à dinâmica existente na relação entre irmãos, que se impõe de forma mais forte por serem um "grupo unido". Percebeu-se um período em que os irmãos se autogeriam, cuidando uns dos outros e ignorando a existência dos pais, o que gerava estresse e sentimento de impotência nos mesmos.
Esse estudo de Tasker e Wood (2016) comparou, na sua discussão, a experiência dos casais que adotaram irmãos com a dos que adotaram apenas uma criança. Os casais que adotaram uma criança sentiam-se mais confiantes e sensíveis para compreender necessidades e afetos do seu filho quando comparados aos que adotaram mais de um filho. Dois casais que haviam adotado mais de um filho manifestaram um momento entre o casal em que se discutiu a possibilidade de uma dissolução da adoção devido ao estresse significativo com as crianças. Por fim, as autoras discutiram que os casais que adotaram irmãos talvez precisem de um tempo maior do que os que adotaram apenas uma criança para se sentirem seguros com seu papel parental e salientaram a necessidade de maiores estudos sobre o assunto.
O estudo brasileiro de Riede e Sartori (2013) analisou alguns processos de adoções de irmãos em que houve um fracasso da adoção, com retorno das crianças ao acolhimento. Em um dos casos, houve o desejo de abandonar somente o mais velho. Em outra família, o novo abandono das crianças foi atribuído ao comportamento do filho mais velho, não desejado inicialmente. Foi possível perceber que as crianças, em especial os filhos mais velhos, foram responsabilizadas pelo abandono, ficando como os representantes no imaginário parental, os bodes expiatórios, de todo fracasso da adoção.
A escassa literatura destaca que a adoção de irmãos pode se configurar como um desafio àqueles que desejam a parentalidade adotiva (Riede & Sartori 2013; Sampaio et al., 2018; Silva & Benetti, 2015; Tasker & Wood, 2016). Sabe-se que o processo de se tornar mãe é extremamente complexo por si só, soma-se a essa complexidade as questões singulares do contexto da adoção e do contexto da maternidade de mais de um filho no mesmo momento. Apesar do crescente incentivo para as adoções de grupos de irmãos e da importância e complexidade desse assunto, existem poucos estudos sobre a experiência da maternidade nesse contexto. Segundo Silva et al. (2018), seria importante maior investigação sobre a experiência de se tornar mãe por meio de uma adoção de irmãos, incluindo duas e até três fratrias. Diante do exposto, o presente estudo objetiva compreender como se construiu a relação mãe-filhos, a partir da perspectiva materna, em um caso de adoção de grupo de irmãos, ao longo de dez sessões de psicoterapia.
Método
Delineamento
Trata-se de um estudo de caso único, conforme o proposto por Stake (2006). Segundo este autor, é importante otimizar a compreensão aprofundada de um caso e não ter o foco em primeira mão na generalização para além dele. Tratou-se de um caso com grande riqueza de material, que fornece boas oportunidades de aprendizado (Stake, 2006). O caso também foi escolhido por retratar uma família formada através da adoção de irmãos, em fase de adaptação, após o início do estágio de convivência.
O Caso
A psicoterapia foi realizada com o casal de postulantes passando pelo período de adaptação aos seus primeiros filhos adotivos. Antônio, o pai, estava com 39 anos e Ana, a mãe, com 35 na época do atendimento, ambos com ensino superior completo. O casal possuía um relacionamento afetivo estável de 12 anos em coabitação e estava habilitado para adoção há dois anos. A motivação principal para a adoção era formar uma família e o não desejo materno de engravidar. Ana desejava ter um filho por vez, mas, após tomar conhecimento da quantidade de irmãos no abrigo, optou por mudar o perfil inscrito no cadastro para até duas crianças de zero a cinco anos. Ao ver pela primeira vez foto dos três filhos, referiu espanto, mas, apoiada no incentivo da assistente social e do marido, consentiu com a adoção dos três. A adoção que de fato aconteceu contemplou três irmãos de três (Arthur), cinco (Alexandre) e oito (André) anos no mesmo momento.
Antes da adoção as crianças viveram sob os cuidados de um avô da família biológica, tendo em vista que a mãe biológica fazia uso recorrente de drogas ilícitas. Muitas vezes não tinham o que comer e ficavam longos períodos sozinhos. Em um desses momentos, André se queimou, ocasionando um ferimento grave em uma das mãos. Esse foi o motivo da destituição do poder familiar da família biológica. As crianças ficaram nove meses em uma instituição de acolhimento antes da adoção.
A psicoterapia iniciou durante o final do primeiro mês de estágio de convivência e teve um total de dez sessões, com relativa frequência semanal até a sexta sessão e, após melhora observada clinicamente, quinzenal da sétima em diante. Algumas sessões precisaram ser remarcadas em função de férias das terapeutas ou em função dos pais, especialmente quando eles não conseguiam rede de apoio para cuidado das crianças.
O atendimento ocorreu em um serviço escola da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Todas as sessões foram de uma hora cada e contavam com as duas terapeutas, mãe e pai. O modelo da psicoterapia breve estruturou-se inspirado nas psicoterapias pais-bebê (Frizzo et al., 2016) e em um protocolo Holandês de intervenção para promover sensibilidade em pais adotivos cuja base teórica é a teoria do apego (Juffer et al., 2008). A intervenção visa atingir mudanças nas representações dos pais sobre os filhos e promover a sensibilidade parental (Frizzo et al., 2016; Machemer, 2020).
Considerações Éticas
O projeto "Transição para a parentalidade adotiva: pesquisa e intervenção" (Frizzo et al., 2016) foi aprovado pelo comitê de ética (CAAE 58061816.4.1001.5334) conforme a resolução 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. Todos os pressupostos éticos foram atendidos.
Análise de dados
As sessões foram gravadas em áudio e vídeo. Posteriormente, o áudio das sessões foi transcrito. A análise foi realizada por meio da Análise Temática - AT (Braun & Clarke, 2006) guiada por duas questões de pesquisa norteadoras baseadas na teoria psicanalítica acerca do tornar-se mãe e na literatura científica sobre adoção de irmãos. As questões norteadoras foram: "Como ocorreram as acomodações dos ideais maternos, esperados na maternidade, com esse grupo de irmãos?"; "Como a relação entre o grupo de irmãos perpassou experiência da maternidade de Ana?". Para a formação dos temas e subtemas foi analisado todo o contexto da transcrição das sessões da psicoterapia a partir do recurso do NVivo (QSR, 2012). Tendo em vista que o percurso da mãe e do pai em relação à adaptação com os três filhos foi muito individualizado, optou-se por focar a presente análise somente na experiência materna, buscando questões específicas da experiência da maternidade nesse contexto. A análise identificou três temas para ilustrar períodos de transições importantes na relação mãe-filhos e cinco subtemas para retratar questões inicialmente percebidas dentro desses períodos:
1. Incompatibilidades (Sessão 1 - 3): "Cola" com filhos mais novos (Sessão 1 - 3) e Filho mais velho representante dos aspectos indesejados dos mais novos (Sessão 1- 3)
2. Acomodações múltiplas (Sessão 4 - 10): Reconhecendo os filhos mais novos como reais (Sessão 5 - 10) e Trigêmeos de idades e necessidades diferentes (Sessão 4 - 10)
3. Adaptação (Sessão 8 - 10): Busca por apoio (Sessão 8 - 10) e Prazer no exercício da maternidade (Sessão 8 - 10)
Resultados e discussão
A seguir serão apresentados e discutidos os trechos da análise temática ao longo das sessões de psicoterapia.
Incompatibilidades (Sessão 1- 3)
O primeiro momento, intitulado "Incompatibilidades", foi muito marcado por uma "cola" com Alexandre e Arthur, e por atritos entre Ana e André. A incompatibilidade, geralmente relacionada ao filho André, ocorria principalmente quando Ana tinha dificuldades de compreender os comportamentos do filho, que a faziam se sentir recusada ou rejeitada: "Virava meio que a cara quando eu ia dar beijo... quando ele não me repulsava... Ele fazia assim, virava, e o beijo ele só passava a boca, não dava beijo, só encostava na gente (S2)". Em algumas situações, a mãe acabava por agir da mesma forma como o filho agia: recusando seus afetos, o que aumentava o atrito entre os dois. Percebe-se que Ana estava com dificuldades de receber e conter a agressividade do filho, tomando essas atitudes do filho como um ataque a sua maternidade.
Nesse sentido, esse momento também foi marcado por um sentimento de desautorização do exercício da sua maternidade incipiente. A influência de André sobre os filhos mais novos pareceu lhe despertar raiva e desconforto tanto por perceber que o filho mais velho despertava muita confiança em Arthur e Alexandre, quanto por se sentir desautorizada por ele, fazendo-a se sentir "menos mãe". Essa percepção aumentava a dificuldade de aproximação entre André e Ana: "O Arthur tem alguma segurança no André. O André manipula eles... Nem castigo dá pra dar pro André, tipo 'não vai ver TV', porque ele manipula os outros dois pra escolher o que ele quer ver na TV, né... (S1)". Outro exemplo: "(...) Então nem um castigo a gente consegue dar no André, porque ele pega e fica do lado dos outros e fica dizendo o que o outro tem que fazer... Desautorizando... (S2)".
A existência de "padrões de relacionamento pré-existentes" na adoção de irmãos já foi referida como um problema na adaptação pais-filhos em um outro estudo (Tasker & Wood, 2016). Para as autoras, a dinâmica de autogestão entre os irmãos pode fazer com que os pais se sintam impotentes. Para a mãe do presente estudo, essa dinâmica com o filho pareceu ter provocado uma ferida nos seus ideais com a sua maternidade, por essa atitude refletir suas incapacidades como um espelho (Brazelton & Cramer, 1992). No artigo de Tasker e Wood (2016), percebeu-se uma insegurança maior com os filhos formarem um grupo unido na hora dos cuidados diários. Já experiência de Ana, percebeu-se que esse padrão de relacionamento pré-existente à adoção, em que André desempenhava um papel parental, frustrava-lhe a instauração dos limites com os demais filhos.
Nesse sentido, percebe-se que a mãe não havia ainda um espaço psíquico prévio preparado para receber a dinâmica de grupo de três irmãos consanguíneos, que podem apresentar esse padrão em que um dos irmãos representa uma figura parental (Tasker & Wood, 2016). Esse fato também pode ter aumentado a insegurança materna nos laços de afetos a serem construídos, como se os laços consanguíneos entre os irmãos sempre fossem se sobrepor ou competir com os laços mãe-filhos (Resmini, 2018).
"Cola" com os filhos mais novos (Sessão 1 - 3)
Ao mesmo tempo, evidenciou-se uma "cola" (sic), ou uma profunda identificação imediata entre a mãe e o filho mais novo, referida como um "grude" (sic), e uma adaptação processual, mas crescente, com Alexandre. Os dois filhos mais novos vivenciaram um momento de maior aproximação inicial com Ana e permaneceram, durante esse período, em um lugar idealizado no imaginário materno. A seguinte vinheta ilustra a relação com o mais novo: "(...) Mais a questão do Arthur ser muito grudado em mim... é super carinhoso, ele dá beijo, dá abraço, agarra... Estamos sempre colados! (S1)". A próxima vinheta ilustra a idealização do filho do meio: "No início ele [filho do meio] era mais do pai... Só que daí agora, acho ele tem uma... inteligência, assim, uma sensibilidade bem avançada, eu fico impressionada. Aí desde aquele dia, assim, o Alexandre começou a se grudar em mim, na hora, ali, (...)". (S1).
Alguns estudos sobre adoção de crianças maiores indicam que pode haver um período de "Lua de Mel" entre pais e filhos mais intenso que no contexto biológico (Lévy-Soussan & Marinopoulos, 2010; Resmini, 2018; Silva & Benetti, 2015). Esse período retrata um momento em que as crianças permanecem mais idealizadas, parecendo não haver problemas ou desconfortos na relação. Para esse caso, diferente dos demais estudos que trataram da Lua-de Mel ou da "ligação imediata", percebeu-se que esse período ocorreu somente com os dois mais novos, podendo ser um aspecto único da adoção de irmãos.
Destaca-se a importância nestes primeiros momentos das expectativas e fantasias maternas prévias à adoção (Levinzon, 2016). Apenas os dois filhos menores fizeram parte do desejo materno prévio à adoção, questão que pode ter influenciado nessa cola inicial. A literatura ressalta a importância dos ideais maternos conscientes e inconscientes sobre o filho como uma forma de auxiliar a mãe no processo de construção de um espaço de desejo e investimento sobre o posterior filho real (Freud, 1914/1990; Solis-Ponton, 2004). No contexto da adoção, essas expectativas desempenham um papel importante inclusive na habilitação dos pretendentes, pois são uma forma de tentar minimizar ou prevenir problemas mais severos na adaptação pais-filho (Levinzon, 2006). Nesse sentido, é possível que essa "cola" tenha sido facilitada por Ana ter desejado e idealizado filhos com as características mais próximas dos dois filhos mais novos. Pode-se dizer que havia um espaço psíquico prévio, precursor do investimento materno nos filhos (Solis-Ponton, 2004), que possivelmente influenciou nessa cola inicial.
Filho mais velho representante dos aspectos indesejados dos mais novos (Sessão 1 - 3)
Evidenciou-se que, em paralelo a essa "cola", o filho mais velho ficou como um portador ou um representante dos aspectos indesejados dos outros dois filhos, daquilo que não correspondia aos ideais maternos. Como se todos os comportamentos que pudessem destruir a "cola" com os filhos mais novos ficassem projetados no mais velho. Algo similar foi discutido no artigo de Riede e Sartori (2013), em que o comportamento dos filhos, muitas vezes do mais velho, foram os representantes no imaginário parental do fracasso da adoção, como um bode expiatório.
"É, aí os outros dois imitam o André... tipo, o Arthur começou a sentir ciúme porque eu tava com o Alexandre e aí começa a dizer que vai fazer alguma coisa errada e ele começa a dizer 'Eu vou deixar de te amar' não era de te amar, ele disse 'Eu não vou dar beijo em mais ninguém'. Tipo, eles nem sabem o que tão fazendo, mas copiam os mesmos comportamentos de birra do André" (S2). Percebe-se que nessa vinheta a mãe atribuiu os comportamentos indesejados do filho mais novo a uma imitação dos comportamentos do mais velho. Diante do exposto, é possível inferir que, ao evitar dar-se conta que filho ideal também sentia ciúmes, raiva ou que ele poderia lhe recusar, ela tenha atribuído esses comportamentos a uma imitação dos comportamentos do mais velho e não a uma conflitiva individual e própria do mais novo.
Segundo Zornig (2010), um filho constrói e parentaliza seus pais ao mesmo tempo em que se constitui no lugar de filho. E parte desse processo ocorre por meio da acomodação desse desejo narcísico materno frente à convivência com os filhos reais. Nesse sentido, pareceu ter havido uma "recusa" materna inconsciente de aceitar os aspectos indesejados dos filhos mais novos e, consequentemente, de dar início a esse processo de acomodação. Por isso, é possível que, nesse momento, o filho mais velho tenha "segurado" ou postergado a adaptação das expectativas maternas em relação aos filhos mais novos, tornando-se um representante dos aspectos indesejados dos filhos mais novos. Essa dinâmica entre a Ana e seus filhos possivelmente evitou a acomodação esperada da maternidade entre os filhos que estavam idealizados (Alexandre e André) e os filhos reais, que também teriam aspectos fora dos seus ideias, como qualquer criança.
Enlaçado nessa dinâmica, é possível que os filhos tenham sido pensados com uma lógica de haver apenas um espaço de investimento psíquico materno para cada filho: "o filho desinvestido (mau) e os filhos investidos (bons). Kancyper (1991), ao tratar da relação entre irmãos, abordou uma situação similar dentro da dinâmica entre irmãos biológicos, que pode ser trasposto ao contexto desse caso. Percebe-se, nesse caso, em acordo com o autor, que havia uma lógica implícita de existir apenas um lugar para os três, ou seja, apenas um deles tem espaço para encantar a mãe enquanto ao outro cabe o espaço de desagradado.
Acomodações múltiplas (Sessão 4 - 10)
Esse segundo momento, denominado "Acomodações múltiplas", comportou um período em que Ana começou a acomodar a idealização dos filhos mais novos. Esse tema ilustrou o momento em que a mãe passou a ver os filhos de uma maneira geral de forma mais real e começou a compreender a demanda individual de cada um. Esse tema esteve presente da quarta até a décima sessão.
Nesse momento, Ana passou a compreender de forma mais clara as suas dificuldades com o filho mais velho, passando a compreendê-lo melhor a partir de uma identificação gradual. Conforme mencionado anteriormente, essa acomodação é uma tarefa esperada em qualquer forma de maternidade, mas, devido à adoção de três irmãos, percebeu-se que Ana precisou realizar múltiplas acomodações simultâneas, exigindo-lhe intensa disponibilidade emocional, como houve no estudo de Silva e Benetti (2015).
A partir disso, Ana passou a compreender melhor alguns comportamentos de André. Destaca-se que, durante o período de "Incompatibilidades", tais comportamentos não eram compreendidos enquanto necessidade, contribuindo com a lógica de haver apenas um lugar de investimento para os três (Kancyper, 1991). No entanto, a partir do período de "Múltiplas acomodações", houve muitos momentos em que Ana se conectou com essa necessidade e pode reconhecê-la: "É, às vezes ele quer tomar banho sozinho e ele toma, né. Outras ele diz que não sabe e pede ajuda. Que nem ele não querer amarrar o tênis... Na verdade não é que ele não quer, ele precisa que a gente faça..." (S4). A identificação materna com André foi sendo construída com base no reconhecimento mais acurado dessas necessidades.
Posteriormente, o mesmo aconteceu com os demais filhos: "É, eles todos pedem, né, que enrole de coisa, querem que leve enrolado pro quarto, do banheiro pro quarto, às vezes do banho, né... Quem mais me pede, todas as vezes, é o Alexandre, que também... às vezes, raramente, assim, mas gosta que seque ele" (S6). Essas necessidades comunicadas pelos filhos de Ana, muitas vezes entendidas como regressões no desenvolvimento infantil, pois são atividades que crianças já têm condições de fazer sozinhas, já foram amplamente discutidos na literatura da adoção como uma tentativa de ressignificar o passado não suficientemente bom a partir de uma família sensível (Silva & Benetti, 2015; Winnicott, 1997).
Reconhecendo os filhos mais novos como reais (Sessão 5 -10)
A partir do quinto e sexto encontros, evidenciou-se um começo da adaptação da idealização dos filhos mais novos. Na medida em que em que o filho mais velho foi deixando de ser o representante dos aspectos indesejados, os menores foram representados por Ana de modo mais realista. Essa acomodação pareceu ter desempenhado um papel importante da mãe poder reconhecer os conflitos e as necessidades dos filhos mais novos, que até então estavam mais idealizados na fase de "Lua-de-Mel" (Lévy-Soussan & Marinopoulos, 2010), e "sem conflitos".
Bem como relatado no caso de Silva e Benetti (2015), houve um momento de ruptura na narrativa materna, em que o foco deixou de ser o filho mais velho, questão que lhe permitiu uma abertura para reconhecer melhor outros filhos, que começaram a ser mais presentes no seu relato dentro da psicoterapia. Ana estava principalmente temerosa com uma possível superficialidade nos vínculos. Como se a "cola" instantânea lhe tivesse envolto em um ar de insegurança, temendo a artificialidade desses vínculos. Ana se perguntou em alguns momentos "Até que ponto eu estou entrando na vida deles?" (sic), insegura sobre como os filhos mais novos valorizavam o vínculo mãe-filho.
No estudo de Resmini (2018), houve alguns participantes que referiram temer a artificialidade da "cola" inicial com os filhos mais novos, sentindo-se inseguros ao longo da adaptação, o que foi superado com a convivência. Esse parece ter sido um movimento importante para uma real consolidação dos vínculos, pois havia mais segurança na relação de Ana com os filhos, o que permitiu abrir espaços à ambivalência esperada da maternidade (Zornig, 2010). É possível que esse momento tenha comportado um período de acomodação entre os filhos ideais e os filhos reais e, por isso, naturalmente surgiram dúvidas e inseguranças. Essas inseguranças tomaram o período da quinta e sexta sessões, já tendo sido superada no relato parental a partir da sétima sessão.
Trigêmeos de idades e necessidades diferentes (Sessão 4 - 10)
Durante o período do tema "múltiplas acomodações" e do próximo tema "adaptação", percebeu-se que as mudanças na relação entre os quatro foram tornando a mãe mais sensível às necessidades gerais dos seus filhos. Pode-se dizer que a mãe construiu no seu psiquismo um lugar individualizado para cada um dos seus filhos. Ana passou a perceber que os filhos requisitavam e precisavam de muita atenção individualizada, como se cada criança quisesse ter uma mãe: "As crianças demandam, né. É como se cada uma quisesse um pai e uma mãe exclusivo pra eles, assim, é bem... estão... eles são bem... apegados, demandam essa atenção (S6)". Muitas vezes, eles requisitavam incisivamente esses cuidados: "As duas fotos que ele [Alexandre] tinha colocado, queria foto só dele, porque tem muita foto de todos juntos. Aí tinha ele colocou num porta retratos duas fotos só dele, né, aí ele rasgou as com os outros (S6)". Esses achados apoiam os resultados do estudo de Silva e Benetti (2015), que apontou para a dificuldade dos pais em poder prover essas necessidades individualizadas devido à adoção de irmãos.
Nesse caso, percebeu-se uma culpa materna em torno de não conseguir suprir essas necessidades individualizadas dos três filhos, o que lhe gerava muita ansiedade e sensação de impotência. Desse modo, houve um período de grande estresse relacionado à alta demanda de ter três filhos, de reconhecer suas necessidades de cuidados individualizados, mas de não poder operacionalizá-las pela alta demanda de dar conta de um grupo. Ela chegou a dar um exemplo de um momento em que se sentiu desesperançosa e exausta após um dia intenso tentando corresponder às necessidades dos três filhos ao mesmo tempo "...por exemplo, eu penso 'Que que eu tô fazendo?' Eu tenho um receio da gente não conseguir" (S7). Ou, ainda, "É, e aí eu fico estressada, tipo 'Ah, eu queria fazer tal coisa', daqui a pouco vejo que 'são três' eu já nem planejo o que quero fazer, porque acho que vai dar errado, já não faço e fico esgotada" (S6). Em acordo com os participantes do estudo de Tasker e Wood (2016), percebeu-se que muitas vezes Ana, que ficava ocupada o tempo todo com a demanda tripla, não referia nas sessões prazer com o exercício da maternidade, pois ela estava constantemente esgotada, sem espaço físico e mental para aproveitar o momento com os filhos.
Ao longo da sétima sessão, a mãe trouxe o relato de se sentir com uma demanda de "trigêmeos de idades diferentes" (sic). Apesar de ser comum em qualquer forma de parentalidade e na parentalidade adotiva a experiência de se sentir despreparado, houve um período de intenso sentimento de impotência por parte dessa mãe por essa tripla demanda. Mesmo pais de gêmeos biológicos referem dificuldades no período de adaptação pais-filhos que vão ao encontro do estresse e da demanda exposta por Ana.
Um aspecto interessante de um dos artigos contemplados na revisão de Andrade et al. (2014) foi que as mães de gêmeos referiam seus filhos com mais dificuldades de comportamento (Taubman-Ben-Ari et al., 2008), em que qualquer comportamento era representado com uma conotação excepcionalmente pejorativa. Nesse caso, para além do processo de tornar-se mãe de mais de um filho no mesmo momento, bem como na maternidade de gêmeos, houve o fato de as crianças terem faixas etárias diferentes, provocando a necessidade de adaptações específicas às necessidades de cada um dos três filhos.
Essa mesma situação pode ser extrapolada para a necessidade de falar sobre o passado, que não foi igual com todos os filhos. Essa questão exigiu muita flexibilidade e sensibilidade materna para não deixar de acolher a necessidade de um filho, mas sem agir intrusivamente, forçando aos outros tratar de assuntos que ainda não estavam prontos. Já mais adaptados, Alexandre falava muito do passado: "Ele o foi o primeiro que falou do vô e ele disse que não gostava, a gente achava que tinha maus tratos também, assim, né. Eu acho que eles [André e Arthur] não simpatizaram nesse sentimento, mas ele continuou... (s7)" . Evidenciou-se que às vezes um irmão trazia um fato sobre o passado que os outros não estavam confortáveis ou não desejavam verbalizar e mãe foi sensível a essa necessidade. Isso provocou algumas dúvidas em Ana, que percebia uma relutância especialmente do maior e do filho mais novo em reconhecer ou lidar com o passado.
Adaptação (8-10)
Durante esse período, destacou-se que a adaptação pais-filhos seguiu numa constante, mas os laços de afeto já se apresentavam mais consolidados. Ele foi caracterizado como "adaptação", tendo em vista que os principais problemas da construção dos vínculos incipientes haviam sido superadas, o que não significa que não tenham se seguido momentos de constante adaptação. Essa família já fechava sete meses com os filhos e começava a se organizar para dar seguimento à adaptação: "Muita coisa melhorou, assim. Melhorou mais... Melhorou bastante as rotinas" (S10). A adaptação pais-filhos na adoção é extremamente particular, variando desde poucos meses até anos (Resmini, 2018). Em consonância com os resultados do presente estudo, Tasker e Wood (2016) salientaram que os pais que adotaram mais de um filho precisaram de um tempo maior do que seis meses, período que comportou a investigação do estudo, para se sentirem adaptados. As demais famílias que haviam adotado somente um filho já haviam se adaptado dentro desse período.
Busca por apoio (Sessão 8 - 10)
Houve um período importante em que a mãe, apoiada pelo pai e pelas terapeutas, buscou ajuda na sua rede de apoio para seguir a adaptação de forma menos turbulenta. Pensando nisso, destacou-se a nona sessão como um período importante, em que Ana buscou mais ajuda na família extensa, que parece tê-la auxiliado com a rotina de casa: "Houve um engajamento também das famílias, porque a minha sogra que tava meio longe já tá bem dentro, tá sempre interagindo com eles, antes ela interagia pouco... Aceitamos essa ajuda. Não tem mais essa de dar conta sozinhos" (S9).
Percebendo essa alta demanda e identificada com as necessidades individualizadas dos três filhos, Ana conseguiu buscar formas de potencializar a sua capacidade psíquica de acomodação aos filhos por meio de uma rede de apoio. No presente estudo, a capacidade de Ana de pedir e receber ajuda pareceu ter sido um aspecto protetivo importante frente à possibilidade de fracasso da adoção, caso o período de "incompatibilidades" perdurasse. A literatura aponta que as intervenções no pós-adoção nem sempre são aceitas pelos pais, apesar de haver uma demanda recorrente (McKay, Ross, & Goldberg, 2010). Segundo Levinzon (2014), isso ocorre pelo temor que esses pais têm de expressar livremente seus anseios e alguém lhes tirar o filho e por haver uma exigência de "perfeição" dos pais adotivos que os inibem de buscar ajuda. Ainda, a literatura enfatiza que certas famílias não possuem a capacidade de pedir ajuda, desejando acabar imediatamente com o "problema" e evitando uma responsabilização pelos desafios suscitados na adaptação pais-filhos (Levinzon, 2006). Por isso, essa família mostrou um diferencial em relação ao apontado na literatura, assegurando para si um espaço de escuta qualificado, uma forma de proteger todos de um possível fracasso real da adoção. Ainda, o casal pode recorrer à família extensa como uma forma de dar conta no dia-a-dia dos desafios de ter três filhos. Por isso, Ana pôde abrir mão da sua expectativa inicial da sua própria maternidade, que incluía dar conta dos filhos somente entre o casal, para priorizar a proteção da relação entre todos.
Prazer no exercício da maternidade (Sessão 8 - 10)
Por fim, junto dos momentos de adaptação, houve momentos em que se evidenciou muito prazer no exercício da maternidade, o que é considerado um prognóstico favorável da relação mãe-filhos no pós-adoção (Tasker e Wood, 2016). A mãe, na última sessão, disse que nada era como "carinho de mãe" (sic) ou "carinho de mãe nos filhos" (sic) e que não existia sensação melhor do que escutar "mãe, tu é linda!" (sic).
Ao mesmo tempo em que se tornou claro o desafio de dar conta de três filhos, nos momentos em que conseguia dar-lhes a atenção necessária ou quando as coisas "fluíam" (sic), tudo lhe gerava muito prazer e um sentimento de completude com a maternidade. Pensando nisso, destaca-se ainda mais a importância da participação ativa e constante de uma rede de apoio materna para a maternidade no contexto da adoção de irmãos.
Considerações finais
Os resultados deste estudo permitiram compreender como se construiu a relação mãe-filhos, em um caso de adoção de grupo de irmãos, ao longo de dez sessões de psicoterapia. Observou-se que a construção da maternidade de Ana atravessou momentos de estranhamento e identificação com seus filhos que são próprios da maternidade. Evidenciaram-se três períodos ao longo da psicoterapia, relacionados a momentos de transição na relação entre a mãe e seus filhos. Inicialmente houve uma "cola" com os filhos mais novos, que ficaram durante o período de "incompatibilidades", idealizados. Para manter essa idealização, nesse momento inicial, percebeu-se que coube ao filho mais velho carregar os aspectos indesejados dos dois mais novos. Em um segundo momento, houve uma ruptura desse padrão inicial, em que os filhos mais novos passaram a ser vistos como mais "reais" e foi possível construir uma maior identificação com o mais velho. A partir disso, a mãe conseguiu se identificar com as necessidades individualizadas dos seus três filhos, o que lhe gerou uma intensa demanda emocional. Evidenciou-se um desejo dos filhos de terem uma mãe só para si e diversos comportamentos regressivos que ocorriam alternada ou simultaneamente. Ou seja, houve uma inversão da lógica dos três filhos ocuparem um mesmo "lugar" no imaginário materno, por uma lógica em que a mãe precisou construir três espaços mentais individualizados para cada filho. A partir disso, foi possível destacar um diferencial dessa mãe, que foi a capacidade de pedir ajuda terapêutica e, no período de adaptação, da família extensa. Por fim, a mãe oscilou entre momentos em que se sentia incapaz e sobrecarregada com a maternidade "triplicada" e momentos de prazer no exercício da maternidade.
Destacou-se a alta demanda materna com a adoção de irmãos, questão que foi comparada à maternidade de gêmeos de idades diferentes. O processo de adaptação entre a mãe e os três filhos foi bastante único com cada criança, mas foi possível perceber que a forma como a mãe se relacionou com cada filho em cada momento influenciou direta ou indiretamente a relação com os outros. Por exemplo, no momento em que os mais novos ficaram idealizados, o mais velho foi um bode expiatório das dificuldades. Na medida em que houve uma maior identificação com os filhos reais, as crianças passaram a ser vistas de forma mais integrada, aumentando a capacidade materna de acolher e reconhecer as necessidades reais de cada um dos três filhos. A partir disso, houve um período em que Ana sentiu-se constantemente esgotada pela alta demanda, não havendo espaço para prazer na relação com os filhos.
Ana e sua família viveram um desafio complexo, que lhes exigiu muita disponibilidade emocional, no entanto os piores momentos foram superados e a família pôde seguir se adaptando de forma gradual. Nesse sentido, questões específicas da adoção de mais de um filho podem se configurar como um desafio no pós-adoção, que, para esse caso, foram superados em sua intensidade a partir do sétimo mês de convivência. A maior participação da rede de apoio pareceu ter contribuído positivamente para a superação das maiores dificuldades, tendo em vista que, a partir de uma maior participação nos cuidados operativos diários, houve relatos importantes de prazer com o exercício da maternidade.
Esses resultados não devem ser considerados separados das suas limitações. Dentre elas, destaca-se a impossibilidade de realizar generalizações a partir desses achados. Por outro lado, foi possível compreender a complexidade desse fenômeno para essa família, que pode auxiliar a construir novas hipóteses ou questões de pesquisa em estudos futuros, bem como algumas possíveis implicações clínicas. Em paralelo às questões específicas da adoção de irmãos, ressalta-se que comumente esta modalidade ocorre atravessada pela adoção de crianças maiores, que também pode ter influenciado no estranhamento inicial com o filho mais velho, afirmação que extrapola os limites deste estudo. Para estudos futuros, sugere-se investigar fatores comuns às adoções de irmãos em casos de sucesso e em casos de fracasso da adoção. Ainda, sugere-se investigar de que formas a psicoterapia pode contemplar os desafios da adoção de irmãos e como a participação do pai na psicoterapia pode ter contribuído com a adaptação, bem como ver de forma mais integrada como esses processos de cada um se afetam mutuamente.
Dentre as principais possíveis implicações práticas a serem consideradas criticamente pelo leitor, destacam-se alguns aspectos que foram importantes para o caso em questão. Na avaliação dos pretendentes, por exemplo, pode-se perguntar regularmente sobre a disponibilidade dos pais de buscar ajuda qualificada, na rede ou por profissionais, no momento da espera e/ou da adaptação pais-filhos, caso sintam a necessidade. Esse aspecto costuma ser frequentemente abordado pelas técnicas do judiciário, mas os achados do presente estudo apoiam a importância dessa prática. Ainda, pode-se cuidar especialmente do filho que desempenhou a função parental antes da adoção, ajudando os pais a inaugurarem nele um lugar de filho, sem competições e através de cuidados sensíveis. Desse modo, seria interessante instrumentalizar os pais sobre os desafios comuns e específicos da adoção de irmãos para proteger as crianças de novos abandonos por meio do fracasso da adoção. Esta preparação específica para receber irmãos pode auxiliar os pretendentes a construir expectativas reais sobre as crianças, evitando que os futuros pais aceitem grupos de irmãos por acharem que ficarão menos tempo na fila de espera, por incentivo de terceiros, etc. Para além disso, ressalta-se a importância do acompanhamento profissional qualificado dos pais pós-adoção.
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Submetido em: 14.08.2020
Aceito em: 18.06.2021