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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.14 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2021

https://doi.org/10.4013/ctc.2021.142.11 

ARTIGOS

 

Organização da rede de atenção psicossocial em situação de desastre: experiência de psicólogas que atuaram após o incêndio da boate kiss

 

Organization of the psychosocial care network in disaster situation: experience of psychologists who worked after the kiss nightclub fire

 

 

Juliana da Rosa Marinho; Jana Gonçalves Zappe

Universidade Federal de Santa Maria

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou conhecer como se deu a organização da atenção psicossocial para o enfrentamento das demandas que surgiram a partir do incêndio da Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, com destaque para a criação de um novo serviço, o Acolhe Saúde. A pesquisa, de natureza exploratória e abordagem qualitativa, foi realizada com a aplicação de questionário sociodemográfico e entrevista individual semiestruturada. Participaram sete psicólogas que atuaram durante ou após o período emergencial de assistência às vítimas e familiares. Os relatos passaram por análise de conteúdo e resultaram na construção das categorias: 1) Primeiros passos para o cuidado; 2) Lacunas na rede e criação de um novo serviço; e 3) Desafios e potências quanto ao enfrentamento. Diante da produção dos dados, foi possível observar fragilidades na rede de atenção psicossocial do município, ao mesmo tempo em que ficou evidente o potencial de enfrentamento, de forma que foram realizadas ações pautadas nas políticas públicas já existentes. Ainda, observou-se a trajetória de criação de um novo dispositivo de acolhimento e cuidado. Acredita-se que esses dados podem auxiliar profissionais e pesquisadores no processo de compreender desafios e criar possibilidades na constituição de redes de cuidado e atendimento a populações vítimas de desastres.

Palavras-chave: emergências em desastres; intervenção psicossocial; acolhimento.


ABSTRACT

This study aimed to know how the psychosocial care network was organized to face the demands that appeared after the Kiss Nightclub fire, in the city of Santa Maria, Rio Grande do Sul, highlighting the creation of a new service, Acolhe Saúde. This research, that has an exploratory nature and a qualitative approach, was conducted by applying a sociodemographic questionnaire and a semi-structured individual interview. The participants were seven psychologists who worked in the field of psychosocial care during or after the emergency period of assistance to victims and family members. Data were submitted to content analysis, and they resulted in these categories: 1) First steps for care; 2) Gaps in the network and the creation of a new service; and 3) Challenges and powers regarding coping. It was possible to observe weaknesses in the psychosocial care network in the city, while the potential for responding to the demands was evident, so that actions based on existing public policies were carried out. Still, the trajectory of creating a new embracement and care device was observed. It is considered that these data can help professionals and researchers in the process of understanding challenges and creating possibilities in the constitution of care and assistance networks for populations that are victims of disasters.

Keywords: disaster emergencies; psychosocial intervention; user embracement.


 

 

Introdução

Diariamente, em algum lugar do mundo, ocorre ao menos um desastre, como enchentes, furacões, acidentes industriais e ataques terroristas. Esses eventos têm em comum o potencial de afetar um elevado número de pessoas simultaneamente e envolver uma diversidade de estressores (Norris et al., 2002). Além dos tipos já mencionados, destacam-se, na história contemporânea, incêndios de grandes proporções que geraram comoção por conta dos impactos provocados, mobilizando comunidades que se depararam com a imprevisibilidade e a fragilidade da vida. Alguns desses episódios aconteceram em contextos de celebração, como se observou em um clube de Luoyang, na China, em 2000; em uma casa de shows em Buenos Aires, Argentina, em 2004; e em uma boate de Perm, Rússia, no final de 2009, por exemplo (Atiyeh, 2012).

Esses incêndios em prédios e edificações, considerados desastres tecnológicos (Norris et al., 2002), têm recebido atenção na mídia mundial em função da gravidade e do número de vítimas, destacando-se os incêndios que aconteceram na boate Cocoanut Grove, em Boston (Estados Unidos - EUA), em 1942, quando foram contabilizados 492 mortos e centenas de feridos, e no Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, Rio de Janeiro, onde 503 pessoas foram vitimadas em 1961 (Pasqualoto et al., 2015). Mais recentemente, em 27 de janeiro de 2013, Santa Maria, localizada na região central do Rio Grande do Sul, Brasil, também passou para a lista de cidades que se tornaram conhecidas mundialmente devido a um incêndio, o qual aconteceu na Boate Kiss.

O município, que tem sua população estimada em 283.677 habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2017), conta com sete Instituições de Ensino Superior, conforme aponta a Agência de Desenvolvimento de Santa Maria - ADESM (n.d.). Assim, parte significativa de sua população é de estudantes, o que torna Santa Maria reconhecida regionalmente como "cidade universitária". É essa característica que marca também o ocorrido na referida noite em 2013, pois jovens universitários de diferentes cursos e instituições promoviam uma festa. Após um início de incêndio na boate, delinearam-se algumas circunstâncias que resultaram em 242 mortes, além de centenas de feridos.

Em comparação com os outros episódios já mencionados, observaram-se alguns elementos pontuais que desenharam o caráter traumático do desastre, como o fato de que tudo se deu em decorrência de ações humanas - desde os processos de avaliação do espaço e emissão de alvarás para funcionamento da boate, até o uso de artefatos pirotécnicos que deram início ao incêndio. Além disso, a situação teve alto impacto psicossocial, pois, além de ter ocorrido de forma agressiva, atingindo vítimas de vários municípios e regiões do país, também envolveu prioritariamente uma população particularmente jovem (Dassoler, 2014).

Naquele cenário, o primeiro desafio foi atender às pessoas afetadas direta ou indiretamente pelo incêndio, considerando as demandas mais emergenciais de cuidado. Entretanto, nesse período, a equipe responsável pela gestão de saúde em Santa Maria já reconhecia a existência de dificuldades na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que enfrentava problemáticas relacionadas a lacunas em relação à cobertura de atendimento, ao número de profissionais disponíveis e à articulação dos serviços (Noal et al., 2016). Diante disso, as demandas de atenção psicossocial decorrentes do incêndio, já por si só volumosas, se somaram a demandas pré-existentes que não vinham sendo suficientemente atendidas pela RAPS até então disponível, que era formada por quatro Centros de Atenção Psicossocial e um Ambulatório de Saúde Mental. Assim, tornou-se primordial construir estratégias criativas para dar conta de todas as necessidades avaliadas. Se iniciou, então, uma força-tarefa para enfrentar essa situação de calamidade pública, buscando organizar e reestabelecer uma rede de apoio e assistência em saúde.

Nesse ponto, a comoção popular foi muito importante, pois resultou na movimentação de profissionais, estudantes e voluntários que prestaram apoio. Essa aliança deu forças para que gestores e trabalhadores de entidades municipais, estaduais e federais desenvolvessem estratégias de cuidado frente aos impactos físicos e psíquicos que eram observados (Nied, Lüdtke, & Righi, 2016). De todo o suporte recebido, destaca-se o predomínio de profissionais locais no desenvolvimento das ações, especialmente psicólogos(as). Também é importante salientar que as intervenções foram baseadas nos pressupostos das políticas públicas existentes, bem como nas experiências de alguns profissionais que já haviam atuado em outras situações de crise (Gonçalves, Guareschi, & Roso, 2018) e que, naquele primeiro momento, contribuíram com seus conhecimentos.

A importância de atentar para estes aspectos que atravessam a organização de redes de cuidado se deve ao fato de que a população atingida por um desastre pode enfrentar muitas dificuldades em termos de sofrimento psíquico. Em revisão realizada por Norris et al. (2002), verificou-se a ocorrência de problemas psicológicos em diferentes contextos críticos, tais como: respostas dissociativas, conforme estudo feito por Koopman, Classen e Spiegel (1994) após a tempestade ígnea de 1991, em Oakland (EUA); ansiedade, transtornos de humor e transtorno do estresse pós-traumático, segundo apontamentos de Bolton, O'Ryan, Udwin, Boyle e Yule (2000), ao estudarem um desastre marítimo na Grécia; e transtorno do estresse agudo, como observado por Grieger et al. (2000), ao investigar a experiência dos envolvidos na recuperação e identificação de vítimas de um acidente aéreo em Pittsburgh (EUA), em 1994.

Tendo em vista o exposto, este estudo teve o objetivo de conhecer como se deu a organização da rede de cuidados para o enfrentamento das demandas psicossociais que surgiram a partir do incêndio da Boate Kiss, com destaque para a criação de um novo serviço, o Acolhe Saúde. Para isso, serão apresentados e discutidos relatos de psicólogas que atuaram no âmbito da atenção psicossocial durante e/ou após o período emergencial de assistência às vítimas e familiares. Acredita-se que seja possível, assim, conhecer a experiência profissional em meio a uma situação crítica, contribuindo para a produção do conhecimento sobre intervenções frente a desastres.

 

Método

Participantes

A amostragem, não probabilística, é composta por sete psicólogas (tabela 1), com idades entre 29 e 37 anos, que atuaram na rede de saúde mental na fase crítica imediatamente após o incêndio e/ou posteriormente. As participantes, identificadas pelas abreviações Psi1 até Psi7, foram acessadas através da metodologia Bola de Neve proposta por Vinuto (2014). Inicialmente, foram identificadas informantes-chave, que foram entrevistadas e convidadas a indicar outras pessoas. Neste processo, foram mencionados, ao todo, 20 nomes de profissionais, dos quais 13 não participaram da pesquisa (sendo que há registro de que 1 não respondeu ao convite; 1 marcou a entrevista, mas não compareceu; e 7 residiam fora de Santa Maria). A busca por novos participantes foi finalizada assim que se observou um ponto de saturação, ou seja, quando as indicações começaram a se repetir.

Instrumentos

Para a realização do estudo, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, com seções sobre dados demográficos, atuação no contexto do incêndio e atuação profissional atual. Para o presente trabalho, atentou-se especialmente à segunda seção, que envolveu, dentre outras, as seguintes perguntas: Quais atividades relacionadas ao incêndio da Kiss você desempenhou? Como você caracteriza a atuação da psicologia na equipe? Você considera que a formação em psicologia proporcionou algum diferencial para essa atuação? Como você descreveria a articulação interna da equipe na qual atuou? Você considera que houve uma articulação entre os diferentes serviços? Como você qualifica a organização da rede naquele momento? Como você avalia o investimento da gestão pública nos serviços de saúde mental relacionados ao incêndio?

Procedimentos éticos

No ano de 2018, o projeto guarda-chuva intitulado "Concepções de psicólogos sobre a Rede Municipal de Saúde Mental a partir do incêndio da Boate Kiss", vinculado ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD/Edital nº 071/2013), foi aprovado pelo Núcleo de Educação Permanente da Saúde (NEPeS), responsável por autorizar a realização de pesquisas junto à rede de saúde pública do município de Santa Maria/RS e foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSM, sendo aprovado sob parecer CAEE n° 45151815.4.1001.5346. Já na realização das entrevistas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi devidamente apresentado e entregue às profissionais que aceitaram participar voluntariamente, ficando disponível, em caso de necessidade, o atendimento psicológico destas através da inscrição na Clínica de Estudos e Intervenções em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Procedimento de coletas de dados

As entrevistas, individuais e semiestruturadas, foram realizadas entre julho e outubro de 2018, em locais escolhidos pelas participantes, como cafés da cidade, serviços e consultórios particulares. Cada encontro foi conduzido por dois integrantes da equipe do PROCAD, sendo estes estudantes de graduação ou pós-graduação em Psicologia, bem como uma pesquisadora voluntária. A duração média de cada entrevista foi de uma hora, e o conteúdo foi gravado em áudio.

Procedimento de análise de dados

Após transcrição dos áudios de forma manual, os conteúdos foram submetidos à análise de conteúdo temática, buscando-se a identificação de núcleos de sentido nas narrativas. A partir da pré-análise, exploração e criação de categorias, com base no que propõe Bardin (2010), foram elaboradas categorias temáticas de forma independente, seguindo o modelo aberto de Laville e Dionne (1999), conforme os elementos mais significativos observados a partir da perspectiva das autoras deste trabalho. Feita a análise, os resultados foram sintetizados em três categorias, apresentadas na seção seguinte.

 

Resultados e discussão

Os resultados obtidos estão organizados nas categorias: 1) Primeiros passos para o cuidado; 2) Lacunas na rede e criação de um novo serviço; e 3) Desafios e potências quanto ao enfrentamento. Em conjunto à apresentação dos resultados, será realizada uma discussão baseada no que a literatura aborda acerca do assunto.

Primeiros passos para o cuidado

Após o resgate das vítimas que estavam dentro da boate, buscou-se estruturar um espaço de acolhimento, atendimento, identificação das vítimas fatais e organização dos velórios coletivos. Este espaço, um ginásio do Centro Desportivo Municipal (CDM), pertencente ao município, centralizou as primeiras ações de resposta ao ocorrido. Frente ao referido contexto, foi necessário que os serviços já existentes e constituintes da rede de saúde do município se adaptassem para atender às demandas observadas.

Na trajetória relatada pelas entrevistadas Psi5 e Psi7, foi possível acompanhar como se deu essa mobilização inicial, ficando evidente o improviso para tentar dar conta da situação, sendo muito importante, então, a ampla movimentação espontânea por parte de pessoas que acreditaram que poderiam contribuir no suporte aos envolvidos na tragédia. Assim, os recursos humanos disponíveis "(...) no início eram só voluntários", de acordo com Psi7. Complementando essa informação, Psi5 lembra que as pessoas que prestaram ajuda eram "voluntários, uma grande maioria de voluntários, é, pessoas vinculadas ao município (...) estudantes, né, que também davam seu apoio da sua forma, tinha residentes também (...)".

Dentre esses voluntários, foi mencionada a presença de profissionais que atuavam especificamente no contexto de emergências e desastres, como é o caso da equipe Médicos Sem Fronteiras (MSF). Trata-se de uma organização que realiza intervenções em nível internacional, prestando cuidados em saúde a populações que enfrentam crises humanitárias (MSF, n.d.). Este apoio foi importante no sentido de dar um direcionamento inicial às ações que deveriam ser pensadas e executadas imediatamente, conforme observado por Psi5:

"(...) quando vieram as meninas do Médico Sem Fronteiras, (nome das profissionais), elas vieram e nos ensinaram a como trabalhar quando a demanda é dessa forma, né, e talvez apontando que já existe uma organização, a gente que tava, né, impactado com o que tava acontecendo" (Psi5).

Neste sentido, é possível pensar também no impacto sofrido pelos profissionais ao se depararem com circunstâncias desafiadoras, inesperadas e que exigem uma ação rápida. Ao mesmo tempo em que se reconhece a importância de prestar apoio, há uma incerteza quanto ao modo como esse suporte poderia efetivamente acontecer, como é o exemplo da Psi7:

"E eu fui numa ideia que eu tinha que estar lá, e eu fiquei vendo que eu podia fazer, eu ajudei as pessoas com informação, eu conversei com familiares, né. Teve uma hora assim que eu tava lá dentro que eu não sabia o que eu fazia, (...) então eu pensei, não, já que eu sei o que tá acontecendo aqui dentro então eu vou lá informar as pessoas (...)" (Psi7).

A esse respeito, é necessário compreender que, para a atuação voluntária de profissionais em emergências e desastres, não basta que o psicólogo se sustente apenas no desejo de ajudar, nem mesmo no senso comum. Pelo contrário, quando observada a necessidade imediata de atendimento diante de uma situação crítica, cabe ao profissional reconhecer de quais conhecimentos dispõe para intervir a partir de técnicas e métodos reconhecidos pela profissão, observando atentamente quais procedimentos são possíveis de serem executados naquela situação (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2013, p. 19).

A urgência em discutir essa pauta de maneira mais diretiva resultou no desenvolvimento de um material sobre primeiros cuidados psicológicos, organizado pela Organização Mundial da Saúde (2015). Este guia sinaliza quais as possíveis maneiras de prestar suporte a quem está em sofrimento diante de situações críticas, e ressalta a importância de atuar de forma responsável e adequada, levando em consideração as instruções das autoridades locais, os aspectos culturais daquele contexto e os direitos das pessoas atendidas. Além disso, o material destaca que a prestação de cuidados psicológicos em desastres envolve informar-se sobre a situação, conhecer a rede, os serviços disponíveis, e atentar-se quanto aos aspectos de segurança e proteção.

Também é fundamental falar sobre a compreensão do profissional quanto às possibilidades de atuação, a qual é definida diretamente pela sua formação. Acredita-se na importância da constante reflexão do psicólogo quanto aos processos de trabalho, identificando possíveis lacunas na sua trajetória acadêmica, buscando formação complementar ou o acompanhamento de outros trabalhadores da área. Gonçalves, Guareschi e Roso (2018) ressaltaram esse aspecto quando apresentaram narrativas de profissionais que, após "congelarem" e questionarem sobre como deveriam agir, identificando fragilidades na sua formação, foram capazes de ativar saberes relacionados à alteridade e à solidariedade. E, no caso da situação apresentada neste trabalho, o suporte externo apareceu pontualmente como um fator relevante, como mostrou Psi6 ao mencionar que "eles (MSF) ajudavam bastante, isso tudo em 2013, a gente teve muito apoio, roda de conversa, capacitação, ajuda". Outra instituição mencionada pela mesma participante como suporte neste momento inicial foi o Conselho Regional de Psicologia (CRP), que contribuiu na coordenação das intervenções. A psicóloga lembra que ficou "na reunião do CRP, onde teve toda essa definição do que a gente iria, o que a gente ia fazer, o que a gente não ia fazer". A reunião mencionada aconteceu no sentido de organizar o voluntariado e trocar informações importantes, como foi observado no trecho seguinte:

"(...) CRP também se fez presente (...) eu pertencia a esse grupo, que tinha alguma notícia do que estava acontecendo, recrutando psicólogos de outros lugares ou dizendo pros outros psicólogos não virem mais, né (...)" (Psi5).

De modo geral, contar com a assistência de representantes, gestores e trabalhadores de outros lugares pareceu um ponto chave na constituição da rede de cuidado em Santa Maria. A partir do suporte recebido, foram delineadas as atividades e divididas as tarefas entre todos os voluntários e trabalhadores locais. De acordo com Franco (2013), o funcionamento da equipe de acolhimento se deu a partir de plantões com seis horas de duração, enquanto os grupos envolveram trabalho de gestão, regulação em saúde mental, apoio aos familiares, apoio às unidades de pronto-atendimento, articulação com a Atenção Básica e suporte quanto aos ritos de despedida.

Nos dias que se seguiram ao incêndio, o trabalho aconteceu em uma casa onde funcionava um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Município. No local, foram realizadas ações que objetivavam o acolhimento de familiares das vítimas e sobreviventes. Para isso, o funcionamento do serviço ocorreu de forma contínua. Conforme apontou Psi7, "na época se chamava de 'acolhimento 24 horas', foi feito no serviço onde eu atuava na residência, era uma casa de dois andares e no andar de cima ficou o acolhimento 24 horas, e o CAPS funcionava no andar de baixo". A participante Psi5 complementa que "(...) tinha todo um grupo de colegas, e, numa frente que ficou ali no service ali de acolhimento, onde se faziam plantões, faziam-se escutas, é, faziam-se visitas domiciliares (...)".

As visitas domiciliares, anteriormente citadas, mostraram-se necessárias diante do que era observado pela equipe de voluntários que atuaram na época, conforme foi possível compreender por meio do relato de Psi7:

"(...) foram criados os grupos de trabalho, tinha de tudo que era tipo, e um desses grupos de trabalho era da atenção básica (...) a gente mapeou de onde eram, de que bairro e que ruas estavam os familiares dos sobreviventes e das vítimas, e os sobreviventes inclusive. Pra que a gente pudesse ir até, então, as unidades de saúde (...) pra levar esses nomes né, ver primeiro como a equipe estava se organizando, porque tinham pessoas que procuravam os serviços de acolhimento e tinha outras que não procuravam (...)" (Psi7).

Diante dessa organização e das definições quanto às ações desenvolvidas, começaram a ser evidenciadas algumas questões quanto ao número de trabalhadores que efetivamente seguiriam realizando intervenções no município, considerando os serviços da rede de saúde mental. Psi5 observa o fato de que, a partir de certo ponto, a presença de voluntários passou a ser conveniente para que se "escondesse" as lacunas existentes nos serviços do município, especialmente quanto ao quadro de pessoal.

"(...) as coisas estavam se organizando e nós voluntários começamos entre nós conversar do quão também tinha algo de gravidade na gente permanecer naquele lugar, porque oferecia um conforto pro serviço (...) se dá conta de um monte de demandas ali, mas também não deixava um buraco importante aparecer (...) foi um pouco do que fez com os voluntários fossem aos pouquinhos saindo." (Psi5).

De acordo com o CRP-RS (2013), um Núcleo de Atenção Psicossocial foi instituído a partir do apoio conjunto de profissionais voluntários ou vinculados à Prefeitura Municipal e Secretaria Estadual de Saúde, Associação Brasileira da Psicologia em Emergências e Desastres, Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, dentre outros. Segundo Franco (2013), com a contribuição de tantos agentes, tornou-se possível executar ações importantes, como atendimentos individuais e em grupos, presenciais ou por telefone, visitas domiciliares e encaminhamentos para outros serviços. Ressalta-se que, passado o período emergencial, todos esses técnicos e trabalhadores deixariam de estar disponíveis para dar continuidade às intervenções, sendo fundamental que a gestão municipal construísse estratégias que, em médio e longo prazo, pudessem responder aos novos desafios que iriam surgir.

Assim sendo, no que concerne à rede psicossocial, foi necessária uma mobilização mais voltada para a constituição de um novo dispositivo que atendesse às necessidades observadas, visto que até aquele momento nenhuma estratégia diretamente relacionada às emergências e desastres era contemplada pela RAPS no município.

Lacunas na rede e criação de um novo serviço

Após a assistência imediatamente prestada, o dispositivo de acolhimento 24 horas foi se transformando em um serviço, o "Acolhe Saúde", que se tornou o elemento central na oferta de cuidados no âmbito da saúde mental aos sobreviventes, familiares e pessoas que se sentissem, de algum modo, afetadas pela tragédia. Conforme Psi3, "ele (Acolhe) (...) foi formado ali, né, um dia depois, foi se organizando, se estruturando, e a casa que ele tava quando eu entrei em 2014, eles tavam desde um ano antes (...)". Sua organização partiu dos próprios trabalhadores que atuaram prestando os cuidados iniciais e se mobilizaram para dar continuidade às ações que consideraram necessárias, como foi apontado por Psi4 no relato a seguir:

"Então... nós criamos praticamente o serviço, né. A gente montou. Não tinha nada. Desde a estrutura física, fomos nós que fizemos a mudança, né. (...) Então assim, a urgência, a necessidade de se criar um serviço específico pra atender aquela demanda enorme, que a rede naquele momento não tinha condições de dar conta" (Psi4).

A partir dessa movimentação que levou à criação do novo local de acolhimento, foram definidas algumas especificidades, tais como público-alvo, intervenções e perspectivas quanto ao funcionamento e manutenção do serviço. Neste sentido, Psi2 informou que "(...) o nosso público eram todas as pessoas que se sentiram afetadas pelo incêndio. Todas as pessoas. De Santa Maria, né, a ideia inicial. Embora num primeiro momento foram atendidas pessoas de fora". A proposta de manter o funcionamento do serviço como uma estratégia de enfrentamento às necessidades mais imediatas da população foi retomada também por Psi4, quando disse que "(...) a ideia, desde o início a ideia do serviço era junto com essas outras instituições diminuindo os atendimentos, e que essas pessoas fossem encaminhadas pra rede (...)". O Acolhe teria, dessa forma, uma característica dinâmica, de prestar uma escuta inicial, por isso a equipe "(...) tentou sempre legitimar no serviço, era esse espaço (...) num primeiro momento era 'chega e é atendido'", conforme disse a participante Psi2.

Apesar desta proposta inicial, o que se observou desde sua criação foi a consolidação do local como parte importante da rede municipal. Na estruturação da equipe, por exemplo, observa-se um processo de transição do voluntariado para a contratação de pessoal, sendo que estes contratos foram renovados nos anos seguintes, como Psi1 aponta quando lembra que "(...) Foi um contrato de 2 anos, que foi renovado por mais 2 (...)", da mesma forma que Psi2 afirma, reforçando que "o mesmo contrato de 2014 a 2016, de 2016 foi renovado e ficava até 2018 (...). No nosso serviço nós não chegamos a receber nem residentes nem estagiários". A equipe básica que formou o serviço e foi mantida através desses contratos era constituída, inicialmente, por:

"Psicólogos... não me lembro se sete ou oito; duas, três assistentes sociais; enfermeiras, umas duas ou três também; tinha técnicos de enfermagem (...) E aí médico psiquiatra, além deste que estava na gestão, tinha mais um; e médico clínico tinham dois ou três" (Psi2).

"Se eu não me engano era uma equipe de umas 22 pessoas, não tenho bem certeza agora. Todo mundo a princípio era 40 horas. O contrato era emergencial, de 40 horas (...) na primeira semana foi mais um treinamento, assim, pra saber como que eram os processos de trabalho (...)" (Psi3).

Outro aspecto trazido por Psi3 quanto à equipe, foi a alta rotatividade de profissionais, que gerou mobilização por parte das pessoas atendidas. Sobre essa questão, destaca-se o relato a seguir:

"Primeiro, na época do voluntariado trocava muito de gente. Então a pessoa era atendida por uma pessoa na segunda, na outra semana era outra pessoa, enfim... porque era o jeito que dava (...) Aí depois quando teve o contrato acontecia isso também. Porque o primeiro contrato durou um ano. E aí as pessoas tavam se... né, engatando no processo terapêutico ali, né. Porque justamente... é muito difícil, porque tu tá trabalhando a quebra de um vínculo muito abrupta (...)" (Psi3).

Neste sentido, percebe-se que o vínculo usuário-profissional aparece como uma problemática diante do modo como se estabeleceu o funcionamento do serviço e a constituição da equipe, demandando que fossem pensadas estratégias que fortalecessem as relações entre os envolvidos. Resgata-se, então, a concepção de vínculo que é apresentada pelo Ministério da Saúde, a qual se refere à construção de relações de afetividade e confiança entre o trabalhador e o sujeito atendido, o que potencializa a corresponsabilização pela saúde e carrega, ainda, uma capacidade terapêutica (Brasil, 2012).

Além destes assuntos internos que influenciavam nos processos de trabalho, outro aspecto relevante acerca do Acolhe é que, nesse serviço, as ações não se resumiam aos acolhimentos e atendimentos. Como ficou evidenciado nos relatos de Psi6 e Psi7, lacunas nos demais serviços da rede do município trouxeram à tona a necessidade de que os profissionais da equipe atuassem também dando suporte a outros trabalhadores:

"Foi visto que a rede de atenção psicossocial tava muito, muito desorganizada e desarticulada, por exemplo, quem poderia absorver naquele momento essa demanda, era o ambulatório de saúde mental, só que o ambulatório de saúde mental ele tava muito fora da política porque, não havia articulação com a rede, e tava se fazendo só terapia, não tinha grupos, não tinha outras coisas" (Psi6).

"As equipes de atenção básica não se sentiam preparadas, e de fato não estavam preparadas pra atuar em saúde mental, a gente dava esse suporte. Então as vezes a gente fazia visitas junto, nas casas, a gente conversava com eles, então de tempos em, e a gente visitou todas as unidades, né" (Psi7).

"Teve muito esse trabalho de matriciamento, (...) pra gente ver quem eram essas pessoas, onde é que elas tavam. Foi pegar o mapa de Santa Maria e colocar os alfinetezinhos pra ver onde tinham vítimas e onde tinham sobreviventes. (...) saber de quais eram as unidades básicas que tavam próximas, o que eu poderia então trabalhar com essas unidades básicas (...)" (Psi6).

Nota-se, então, que a equipe passou a desenvolver práticas diversas que eram fundamentadas na valorização do cuidado no território, visto que muitas demandas eram observadas neste sentido. O papel desempenhado pelo Acolhe Saúde foi, evidentemente, muito importante para a articulação da RAPS, porém, ao mesmo tempo, cabe relembrar que o serviço não consta como um dispositivo psicossocial que compõe, oficialmente, a rede. Por isso, o serviço tinha os recursos financeiros dispensados integralmente pelo próprio município (Prefeitura Municipal de Santa Maria, 2016).

Ainda, destaca-se que, apesar da ideia de que o Acolhe existiria para prestar a assistência necessária em consequência do incêndio, ele foi ganhando uma dimensão que, com o passar do tempo, ampliou seu público-alvo, pois "(...) desde 2014 (...) se entendia que aos poucos esse público (da Kiss) estava diminuindo" (Psi1). Nota-se, então, uma transformação do serviço conforme novas demandas:

"(...) Com o passar do tempo ele foi passando a atender outras situações relacionadas a morte, a luto e a perdas, como por exemplo, afogamentos, acidentes de trânsito, caracterizados como situações traumáticas" (Psi1).

Tal mudança de foco quanto à atuação profissional dentro deste espaço, aparentemente, se deteve muito mais às questões de suicídio, como observou Psi7, quando pontuou que "mais pro final, no segundo ano que eu tava, se abriu a demanda do Acolhe pra atender os casos de suicídios, de tentativas de suicídio". Acredita-se que esse movimento tenha acontecido "(...) talvez por essa relação com a questão da morte", conforme afirmou Psi2, no sentido de que o local se tornou, espontaneamente, serviço de referência para atendimento em situações envolvendo perda. Ao identificarem que essas demandas estavam chegando para a equipe, os profissionais buscaram repensar os objetivos do Acolhe:

"Seria o serviço que faria o acolhimento de pessoas com tentativa de suicídio, com ideação suicida, que passaram por pronto atendimento e que precisariam de atendimento logo após, não terem como ficar esperando por um acompanhamento (...)" (Psi1).

Esse redirecionamento quanto ao foco dos acolhimentos para questões associadas especialmente ao suicídio, aponta novamente para algumas lacunas presentes na rede de atenção psicossocial, agora no que se refere às possibilidades de trabalho com pessoas em sofrimento ou crise que apresentam algum risco, como é possível perceber a seguir:

"Que o serviço sirva como esse espaço que as pessoas hoje não têm o lugar, a não ser o pronto atendimento, mas que depois para dar continuidade a esse cuidado tem esse espaço, que não tem que esperar por esse acompanhamento (...) Ou seja, pessoas que estão em crise subjetiva não podem esperar esse tempo que pessoas que hoje tem outras questões podem esperar um pouquinho mais. Então, o Acolhe vai ser esse espaço (...)" (Psi1).

Diante dos relatos expostos nesta categoria, é possível pensar, primeiramente, que em situações de desastres o impacto é diretamente proporcional à rede de atenção preexistente. Neste sentido, foi possível identificar a insuficiência da rede para dar conta das demandas do incêndio, visto que foi necessária a constituição de um novo serviço, o Acolhe. Em segundo lugar, considerando a evolução do referido serviço, bem como suas adaptações, fica evidente a necessidade de maior investimento na rede de saúde, com o entendimento de que potencializar os dispositivos de cuidado significa responder de forma mais efetiva às necessidades da população.

Pensar esses aspectos é fundamental pelo fato de que, conforme já se consolidou na literatura, alguns problemas de saúde mental são comumente observados ou relatados em grupos de pessoas que vivenciaram alguma situação de desastre. E, mais do que isso, sabe-se que o contexto em que acontece o evento, também é um fator importante, pois os prejuízos geralmente se mostram mais severos em locais mais pobres, como foi possível observar em comparação feita entre países em desenvolvimento e países desenvolvidos (Norris et al., 2002). Isso indica que as consequências de uma tragédia dependem também da possibilidade de reação diante do evento, dos recursos e dispositivos acessíveis às pessoas que precisam receber ajuda. No contexto brasileiro, isso reforça a importância do investimento e manutenção das políticas públicas.

Desafios e potências quanto ao enfrentamento

Dada toda a trajetória de assistência e cuidado diante das consequências observadas desde o incêndio na boate, acredita-se que muitos foram os desafios vivenciados, especialmente por se tratar de uma situação inesperada, de urgência e de caráter peculiar, que exigia respostas rápidas para minimizar os possíveis danos.

Como primeiro ponto, destaca-se a dificuldade de fortalecer e ampliar o cuidado no território, apesar das tentativas de prestar suporte e realizar apoio matricial desde a criação do serviço "Acolhe", pois observou-se uma tendência ao trabalho de caráter clínico:

"Eu acho que o trabalho da saúde mental na atenção básica ainda tá muito desorganizado (...) quando fechou o ambulatório e resolveram então fazer esses postos (...) que eles falam ambulatórios dentro da atenção básica a gente sabe que tão ainda fazendo clínica, não é esse o trabalho do SUS (...)" (Psi6).

Considera-se que algumas estratégias poderiam contribuir na ampliação das concepções sobre cuidado em saúde mental, como por exemplo, o apoio matricial, que tem por objetivo oferecer suporte técnico às equipes responsáveis pelas ações na Atenção Primária, pressupondo o compartilhamento de casos, a qualificação profissional, a corresponsabilização frente às condições de saúde, dentre outros fatores. Entende-se que este apoio é importante para quebrar com a lógica do encaminhamento, o que contribuiria, consequentemente, para a melhor resolutividade das situações em um nível local (Souza & Rivera, 2010).

Assim, promove-se uma ampliação em termos de intervenção no próprio território onde os usuários transitam. Porém, para contemplar as demandas observadas na Atenção Básica, é necessário pensar além das práticas individuais e tradicionais. Adotando o conceito ampliado de saúde e de integralidade do cuidado, as intervenções devem também se basear no trabalho com grupos e na extensão ou no estabelecimento de uma rede de suporte social (Brasil, 2013). Dessa forma, a crítica levantada pela Psi6, no relato exposto acima, traz à tona, de certa forma, a dificuldade de efetivação das diretrizes e propostas já existentes nas políticas de saúde construídas no país.

Outro aspecto se refere ao trabalho em rede, tanto quanto aos encaminhamentos, ao acompanhamento e à comunicação entre equipes de diferentes locais:

"Olha, era muito difícil no sentido da resistência dos outros serviços. (...) Os outros serviços já estavam na rede, funcionando, enfim, aí acontece um incêndio, ninguém dá conta, surge o Acolhe. E com toda aquela coisa 'seus problemas acabaram'. A rede, de modo geral, a prefeitura vendia essa ideia, de que o Acolhe ia resolver tudo. Então os outros serviços ficavam 'como assim? Esses aí tão chegando agora e...'. Então no início foi bem difícil assim essas tratativas, essas ligações, esses contatos... 'ah não, eu já atendo ela aqui, tá tudo bem, não precisa...' né, às vezes tu queria saber como é que tava o atendimento da pessoa (...) Então foi muito difícil nesse sentido, assim" (Psi3).

O trabalho em rede, que apresentava falhas pela percepção desta participante, pode ser concebido como um processo de troca de saberes entre trabalhadores da saúde e uma maior articulação entre diferentes serviços, visando ao cuidado integral dos usuários (Moreira & Onocko-Campos, 2017). Observa-se, assim, um contraponto, pois ao mesmo tempo em que a articulação da rede aparece como uma dificuldade, também é vista a partir de uma outra perspectiva, conforme trazido por Psi3: "Os pontos positivos foi poder integrar de certa forma a rede, né. Claro que ainda tem muito a ser feito, muito, muito, muito. Mas, poder integrar a rede, poder promover diálogos sobre isso."

Esta variação quanto ao modo como as entrevistadas interpretam como positivos ou negativos certos aspectos dessa organização da rede de atenção psicossocial, também pode ser observada no que se refere à maneira como o Acolhe foi se delineando com o passar do tempo.

"O que acabou acontecendo - que é uma coisa ruim que acabou virando de certa forma uma coisa positiva - foi que o serviço acabou virando referência para tentativas de suicídio, pra situações traumáticas (...). E a gente não tava conseguindo atender as pessoas da Kiss mesmo. Então teve que ter feito... fazer uns critérios assim, então foi só pra situação traumática no sentido de tentativa de suicídio ou familiar após a tentativa, após o suicídio também (...) esse público, esse contexto acabou tendo um certo amparo (...)" (Psi3).

Outro fator sinalizado como positivo se refere ao suporte inicial e à importância de poder contar com as políticas já existentes no âmbito da saúde, como a Política Nacional de Humanização (PNH), conforme citado a seguir:

"No início nós tivemos muito apoio, né, pra dar conta... supervisão da equipe dos Médicos sem Fronteiras... principalmente também da PNH...ajudou muito a gente nessa parte de supervisão. E vinha outros profissionais do Estado também, que faziam o que a gente chama de supervisão institucional, apoio institucional, que é fazer a supervisão com a equipe. Então a equipe se direciona, atende os pacientes, fazem reunião de equipe, e os outros profissionais supervisionam (...)" (Psi4).

Sendo assim, percebe-se que as políticas que fundamentam as ações de cuidado em saúde no Brasil são muito potentes quando resgatadas e colocadas em prática, visto que propõem um cuidado humanizado e integral envolvendo aspectos físicos e psicossociais no estabelecimento de uma linha de acompanhamento. Contudo, é preocupante a diminuição do investimento público para o setor social, o que pode resultar na precarização das políticas e em movimentos de privatização (Yamamoto, 2007), ameaçando a qualidade da atenção direcionada à saúde da população.

Por essa razão, defende-se a importância de aprender com os aspectos referentes às dificuldades e potencialidades presentes no contexto do incêndio em Santa Maria, no sentido de que essas informações poderão contribuir para que, em situações futuras, as intervenções psicossociais realizadas sirvam de inspiração e as limitações tornem possível a criação de outras estratégias e dispositivos de atenção à saúde mental. Mas, mais do que isso, acredita-se na necessidade de apontar as fragilidades e forças que atravessam as práticas dos trabalhadores de saúde, para reforçar a necessidade do investimento na saúde pública, o qual já está consolidado nas legislações, mas que, na prática, ainda enfrenta obstáculos para efetivação.

 

Considerações finais

Esse trabalho apresentou os resultados da pesquisa que buscou conhecer como se deu a organização da atenção psicossocial para o enfrentamento das demandas que surgiram a partir do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, com destaque para a criação de um novo serviço, o Acolhe Saúde, ponto de articulação da rede de cuidados. Diante da tragédia, ficou evidente a necessidade de se organizar e fortalecer a rede de atenção psicossocial, a qual apresentava lacunas, mas que, no contexto de emergência, mostrou-se potente na tentativa de articulação. Também foi observado que se buscou sustentar muitas das ações a partir dos princípios das políticas preconizadas pelo SUS. Por outro lado, em decorrência do precário cenário observado nos serviços de saúde do município, compreende-se que houve dificuldades quanto ao estabelecimento e manutenção dos processos de trabalho, sendo necessária uma ampla mobilização de profissionais, gestores, estudantes e agentes da sociedade civil de diversas partes do país, a fim de que as práticas de saúde mental em Santa Maria fossem reorganizadas.

Como pontos fortes da pesquisa, destaca-se que esta investigação possibilitou conhecer a trajetória de criação e transformação de um serviço que se mostrou essencial para atender às necessidades da população no âmbito da atenção psicossocial. Ainda, foi possível verificar que, apesar de ser evidente que o Acolhe Saúde foi criado para atendimento às vítimas e familiares da Kiss, o serviço passou a atender outras demandas, ponto este que indica que existiam lacunas quanto à oferta de dispositivos na rede do município para o acolhimento de pessoas em situação de crise que não apresentavam sofrimento psíquico decorrente, necessariamente, de transtornos mentais. Ademais, a partir da observação das condições dos serviços que executam as políticas de atenção psicossocial no contexto apresentado, torna-se possível refletir acerca de mudanças e melhorias nas instituições e nas intervenções de um modo geral.

Por fim, reconhece-se que, pelo fato deste estudo ter proposto a análise de um cenário específico e particular, não é possível fazer generalizações, e nem é essa a intenção. A imprevisibilidade e a multiplicidade de possibilidades quanto ao modo como um desastre pode acontecer nos coloca diante da dificuldade de construir preditores, mas, de qualquer forma, entende-se que o compartilhamento de experiências poderá contribuir para a compreensão de desafios e possibilidades quanto à constituição de redes de cuidado e atendimento a populações vítimas de desastres.

 

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Correspondência para:
Juliana da Rosa Marinho
Av. Roraima nº 1000 Cidade Universitária Bairro - Camobi
Santa Maria - RS, 97105-900
E-mail: julianamarinhopsi@gmail.com

Submetido em: 03.12.2020
Aceito em: 10.07.2021

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