SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número4Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceçãoNa polissemia do amor: ou figuras do secretário do alienado índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.4 Belo Horizonte abr. 2008

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Um herói solitário1

 

 

Equipe de Pesquisa CliniCAPS*

 

 

A conversação foi solicitada pelo serviço em razão de dificuldades relacionadas à condução do tratamento de Max, sendo este o nome fictício pelo qual nos referiremos ao paciente. Max, de 36 anos de idade, é solteiro, possui a 5ª. série do ensino médio, e é aposentado há alguns anos por invalidez atribuída a doença mental. Iniciou seu tratamento no CAPS em setembro de 2003, aonde foi levado pela polícia e por uma irmã, num momento em que andava armado com um facão pelas ruas da cidade, ameaçando agredir as pessoas. Nessa ocasião, apresentava-se delirante e sem crítica. Vestia-se de Batman e usava óculos escuros, dizendo que era para se proteger de seus inimigos. Sua fala revelava um pensamento de conteúdo místico e megalomaníaco, no qual era freqüente a temática de super-heróis de histórias em quadrinhos.

Antes de iniciar o tratamento na cidade onde vive atualmente, ele já havia passado por vários tratamentos psiquiátricos anteriores, sendo que a primeira internação psiquiátrica ocorrera por volta dos 20 anos de idade. A partir de então, várias outras internações se sucederam na cidade de Belo Horizonte, mais especificamente nos hospitais psiquiátricos Galba Veloso e Instituto Raul Soares. Também há informação de acompanhamento ambulatorial na cidade de Contagem (MG). No momento em que chegou pela primeira vez ao CAPS, apresentando o quadro descrito acima, havia abandonado a dois meses o tratamento psiquiátrico que vinha realizando em Contagem.

Segundo relato de sua psicóloga, as crises do paciente eram constantemente marcadas pela questão do abandono e da rejeição por parte de sua família, principalmente por parte de sua mãe, que também já passou por tratamento psiquiátrico. Embora sejam poucas as informações sobre sua infância, há relato de que a mãe abandonou os dois filhos (Max e a irmã) ainda pequenos; ela os deixou com o marido, homem extremamente violento que a espancava freqüentemente e ameaçava matá-la. A avó paterna foi quem que criou os netos. O pai, por sua vez, era alcoolista e teria abusado sexualmente de uma filha do primeiro casamento. O pai se casou novamente quando Max estava com oito anos e o levou para morar com eles. A esposa desse, a quem Max se referia como “a madrasta malvada”, maltratava-o e o deixa amarrado no terreiro. Para fugir da violência familiar, ele passava a maior parte do tempo a errar pelas ruas, tornando-se usuário de maconha desde os doze anos. Aos 17 anos de idade partiu para o Rio de Janeiro, ali ficando durante 3 anos. Segundo o relato da mãe, ele teria enlouquecido nesse período, pois voltou para cidade onde vive completamente estranho, quebrando objetos em casa e manifestando comportamento agressivo. Há indícios de que a primeira crise teria ocorrido aos 18 anos de idade, quando ainda estava no Rio. Aos 20 anos, ele voltou a morar com a mãe e, a partir de então, teve várias internações psiquiátricas.

A questão do abandono atrelada à crise foi delimitada e extraída a partir de algumas situações vivenciadas por Max. Na primeira vez que chegou ao CAPS, o desencadeamento da crise psicótica se deu em torno de sua tentativa frustrada de namorar aquela a quem se referia como sendo a Bat-girl, que o recusara. Naquela época, em 2003, Max havia deixado o tratamento na cidade de Contagem e estava morando com a mãe na atual cidade aonde ocorre seu tratamento. Ela o abandonou mudando-se para a casa da irmã dele, sob alegação de que ele tinha tentado agredi-la. Apesar de a irmã relatar que Max encontrava-se estável desde 1996, havia indícios do desencadeamento de uma nova crise: ele estava estranho, cismado com seus vizinhos e sua família. Relatava escutar não somente a voz do Espírito Santo de Deus que dizia para que ele ficasse forte e não desistisse, como também vozes contrárias à de Deus. Em seu delírio afirmava estar fazendo um trabalho voluntário para a polícia, “mostrando-lhes nova pistas e limpando a radiação das coisas ruins que vinham do espaço e dos espíritos ruins”.

Durante sua permanência dia e noite no CAPS, inicialmente ele se comportava como um super-herói (Batman), estruturando seu delírio em torno desse tema: dependurava-se nos muros e subia nas arvores, permanecendo agachado e quieto em cima delas. Dizia aguardar as amazonas “que viriam para a guerrilha contra o mal e contra os alienígenas”, e mencionava a existência de uma nave celestial que só levaria as mulheres, as crianças, as plantas e os animais, assim como ele próprio. Já os homens não deveriam ser salvos, “pois não prestavam para nada”. É interessante observar o quanto as mulheres se apresentavam na fala de Max sob a forma de super-heroínas. Ele relatava colóquios constantes com a Super-girl, dizendo, em seus momentos de crise, que ela era “uma mulher que não sabe o que é certo, que só lhe falava sacanagem e precisava amadurecer muito”. Já em seus momentos de estabilização, ela era a mulher loira cuja voz sempre conversava com ele à noite. Sobre o conteúdo da conversa, ele dizia falar sobre amor, sobre desenho animado e sobre coisas de que gosta. Falava-lhe que ele era especial, já que tinha a missão de salvar a Terra no futuro.

Afora a Super-girl, Max referia-se também à Bat-girl, por quem se dizia apaixonado, como foi mencionado mais acima, quando teve a crise que o levou ao CAPS, em 2003. Dizia se tratar de uma moça que tentou namorar no bairro em que morava, namoro que o pai dessa não permitiu, fazendo-lhe devolver um par de sandálias que ele tinha comprado para ela. Sua crise decorreu do afastamento dela que, segundo Max, teria resultado da não permissão do pai. O tema sobre as mulheres e a solidão era constante nos atendimentos. Ele reclamava da falta de mulheres, da falta de relações sexuais, dizendo que sempre que adoecia, era “por causa de mulher”. Mostrava-se particularmente fixado em mulheres loiras, e se apaixonava sempre pelas estagiárias do Centro de Convivência onde fazia oficinas de música, coral e desenho. Ele desenhava muito bem e gostava de representar super-heróis. Sua tendência em se apaixonar pelas estagiárias era problemática, pois quando elas terminavam o estágio (que por vezes duravam seis meses), ele sentia-se deprimido, abandonado, até chegar outra estagiária por quem viria se apaixonar novamente. Queixava-se das mulheres que não lhe queriam, e afirmava que em certos momentos a super-girl deixava de falar com ele, havendo-lhe trocado por um outro. Explicava a dificuldade de namorar dizendo que as mulheres dele se afastavam porque “era doido e tomava remédio”, motivo pelo qual por várias vezes se recusava a usar a medicação.

Após iniciar o tratamento no CAPS em 2003, Max permaneceu estabilizado durante três anos, vindo a morar com a mãe, apesar da grande resistência por parte dela e de sua irmã em o aceitarem. Nesse período havia sido organizada uma rede que o sustentava minimamente, composta pelo centro de convivência e pelos atendimentos psicoterápicos e psiquiátricos ambulatoriais no CAPS. Embora sua fala delirante se organizasse em torno do sonho de ser um super-herói para salvar as pessoas e viajar pelo cosmos, ele já percebia que essas idéias estavam enfraquecendo. Isso o angustiava, e ele se esforçava em desenhar para que os super-heróis não morressem. A angústia estava associada também às vozes que começavam a sumir. Como ele considerava as vozes como companhias, ele continuava a desenhar para que não morressem dentro dele. Em alguns momentos ficava mais deprimido, dizia ter vontade de morrer naturalmente, mas sem se matar. Ficava assim com um grande vazio quando as vozes se afastavam, vazio na alma, segundo seus termos. Sobre as vozes que ouvia, relatava que sentia muita falta quando estas se afastavam; ele só as ouvia quando fazia alguma pergunta a elas. Ficava triste porque gostava da presença das vozes que lhe serviam de companhia, pois se sentia muito solitário e sozinho. A relação que estabelecia a essas vozes nos conduziram a questionar se de fato tratava-se de alucinações, a considerar que as vozes, nos fenômenos alucinatórios verdadeiros, são em geral depreciativas e sempre invasivas, mas jamais amigáveis. Essa reflexão nos levou a questionar o diagnóstico, estabelecido pela equipe do caso, de esquizofrenia paranóide. Afora o caráter não invasivo das supostas alucinações, Max apresentava-se bastante preservado e capaz de constituir laços sociais, situação que não condiz com o que se observa nos casos de esquizofrenia de início precoce, a considerar que seu problema psiquiátrico se iniciou quando ele contava com 18 anos. Em relação ao diagnóstico psiquiátrico não chegou-se a um consenso durante a conversação. Alguns membros da equipe preferiam se referir a uma parafrenia em razão do caráter imaginativo de seu pensamento delirante e do grau de preservação do paciente. Por outro lado, a equipe que o acompanhava continuava a sustentar o diagnóstico de esquizofrenia, uma vez que, durante as crises, Max apresentava-se com o pensamento muito fragmentado e com comportamento bizarro. Optamos por deixar provisoriamente em suspenso a definição do diagnóstico psiquiátrico, e sugerimos conduzir a discussão para o que seria o diagnóstico de discurso. Interessava-nos a partir daí diagnosticar o tipo de movimento que Max mantém com relação ao Outro social no qual se constitui o mundo de relações em que ele habita.

Foi lembrado então que, num outro momento, o desencadeamento da crise, ocorrido em fevereiro de 2006, deu-se num contexto em que Max contraiu uma doença venérea após manter relações sexuais com uma prostituta. Ele teve que se tratar e estava muito contrariado por finalmente saber que não era o Batman, que de fato não tinha super poderes. Pouco tempo depois, sentiu-se rejeitado pela família, numa situação em que a condição de abandono teria desencadeado uma outra crise mais grave do que a primeira. Referia-se à privação de comida que sofria em casa num momento em que a irmã, por dificuldades financeiras, convidava somente a mãe para comer na casa dela, deixando-o sem refeição. Disse que então teve vontade de morrer e pensou em enfiar a faca no peito, mas faltou-lhe coragem, sob alegação de que sua família e as demais pessoas não gostavam dele.

Reaparece no CAPS em maio de 2006, de óculos escuros e comportamento estranho. Para sua psicóloga, essa apresentação de óculos escuros indicava que uma crise se anunciava, que algo não ia bem. Ele falava que não podia tirar os óculos para se proteger contra o mau. Na semana seguinte, ele chegou ao CAPS levado pela policia, manifestando um comportamento persecutório com relação à mãe, a quem queria matar, sob alegação de que ela estaria envenenando sua comida. Estava sem medicação há alguns dias e se dizia curado por Deus, numa situação similar à da crise anterior. Apresentava-se num estado deplorável, totalmente desorganizado, hostil, agressivo e delirante (a se observar que o comportamento agressivo, o negativismo e a hostilidade não haviam se manifestado na primeira crise). Recusava-se a falar com a psicóloga e reagia de modo persecutório em relação à equipe também. Não aceitava tomar banho e permanecia com a mesma roupa por muitos dias, afirmando agora que a roupa era a sua proteção. Embora destruísse os objetos do CAPS, não chegava a agredir as pessoas que ali trabalhavam, à exceção de seu psiquiatra. Quebrou espelho e lâmpadas, dizendo que eram bombas ou coisas do diabo, e arremessava os bancos de madeira para demonstrar sua força. Em seu delírio voltava ao tema dos super-heróis, ora era o Heman, ora era o Thundercats, continuando a afirmar que sua missão era salvar o mundo com a ordem de Deus, de quem coordenava a equipe. Dizia ver satanás, que queria seu mal, como também via o morcego, seu amigo, que era o radar lhe avisando de quem se aproximava.

Tal situação de tensão com a psicóloga e o psiquiatra perdurou por mais ou menos um mês, tempo em que ficou em permanência noite e dia no CAPS. Durante esse período, a psicóloga observava a dificuldade que se colocava, nesses casos, de ocupar o lugar de técnico de referência: segundo se discutiu, o endereçamento massivo para o técnico de referência impedia que se diluísse a situação transferencial entre os membros da equipe, tornado ainda mais acirrada a relação persecutória. Às vezes, o próprio Max demonstrava ter mais critica desse aspecto, pois parecia entender que era necessário preservar sua psicóloga ao solicitar à equipe que a mantivesse afastada dele. Conforme se observou, a ausência de um compartilhamento conduzido de forma unificada, por parte da equipe, levou a um desfecho infeliz e danoso para o caso.

Destacou-se então ali um problema a ser enfrentado no modo de funcionamento do CAPS, pois muito embora se trate de uma equipe multiprofissional, a presença, em horários diversos, dos profissionais que se revezam conforme os dias de plantão, impedia a participação de todos nas reuniões semanais. As dificuldades na evolução clínica de Max vinham assim demonstrar os efeitos dessa dispersão. Max estava melhorando, já pernoitava em casa, mas ainda necessitava ficar em permanência-dia durante toda semana no CAPS. Durante um final de semana, a equipe de plantão do dia resolveu deixar o paciente em casa no domingo, apesar de não ter sido essa a indicação da técnica de referência, já que não era o momento propício para sua permanência em casa por longos períodos sem intercalação com o CAPS. Parece que isso levou a uma piora do paciente e também a complicações que envolveram a família e a comunidade onde morava. De fato, Max passou o dia em casa na companhia de um sobrinho cujo comportamento era extremamente invasivo para ele, pois insistia em dar-lhe “passes espirituais”. Max chegou a pedir para o sobrinho se distanciar, pois seu olhar constante o perturbava muito. Porém, quando o sobrinho se foi, Max sentiu fortes dores de cabeça e saiu correndo pela rua, como se estivesse possuído. Na rua, ele despiu-se de sua calça, dela fazendo uma capa para se transformar no Batmam, e saiu correndo semi-nu atrás de duas transeuntes. O pai dessas, junto com o tio, saíram no seu encalço e o espancaram violentamente. Em seguida a polícia chegou, mas Max a enfrentou com golpes, o que o levou a cair num córrego que serve de esgoto. A polícia, após contê-lo, espancou-o, conduzindo-o em seguida ao CAPS. Max chegou a ser ameaçado de linchamento pela comunidade do bairro em que habitava. Foi necessário que a assistente social visitasse as pessoas de sua comunidade, para enfim conseguir que Max fosse novamente aceito. Isso foi aliás um ponto de grande importância na constituição da rede social em seu tratamento, pois Max era sempre percebido pelos vizinhos como uma pessoa perigosa, conforme uma imagem que era reforçada principalmente por sua família.

Esse episódio evidencia novamente o risco de surgimento de uma crise se Max for colocado em posição de abandono, sobre a qual aliás se erige a relação que ele estabelece com o Outro. Em posse dessa constatação, retomou-se o problema de seu diagnóstico, lembrando a importância de estabelecer, para além do diagnóstico fenomenológico e estrutural, o diagnóstico de sua posição no discurso. Considerando, assim, que o paciente estava medicado, e que respondia tanto à medicação quanto aos cuidados do serviço, algumas questões foram colocadas: por que ele desencadeava uma crise e que motivo fazia com que esse desencadeamento fosse tão grave quanto se apresentava? O que poderia a equipe diante disso e qual seria a perspectiva de tratamento desse caso? Qual seria o lugar da Instituição e que tipo de efeito ela poderia produzir sobre o caso? Que lugar caberia ocupar o profissional da equipe na condução desse caso?

Retomando então a perspectiva do diagnóstico de discurso, conseguimos localizar o que desencadeia as crises de Max na forma da articulação binária abandono-violência. Toda vez que Max se vê diante de uma situação que interpreta como abandono, a realidade se torna insustentável para ele. É como se houvesse uma codificação na relação dele com o Outro estruturada por esse termo, o que faz com que cada um possa virtualmente ser por ele concebido como aquele que o abandona. Sabemos, aliás, que a matriz dessa interpretação se encontrava dada desde sua infância: sua mãe literalmente o abandonou. Articulado a isso, temos um pai a quem ele é deixado pela mãe, cujo traço marcante é seu comportamento extremamente violento. Ao ser abandonado ao pai, ele se torna objeto de violência. Eis porque ele ocupa, em sua relação com o Outro, a posição de objeto abandonado e maltratado, a ponto de dizer que as próprias vozes a que se refere o abandonam.

Foi lembrado então que o sujeito psicótico vem ocupar ora a posição de objeto do Outro, ora a posição de quem elabora um saber delirante sobre o Outro, com o intuito de indicar uma estratégia possível para a condução clínica. Sabíamos que era necessário ofertar a Max um meio de se deslocar da posição de objeto de abandono e de violência que ele constantemente reproduz em sua relação com a equipe. Verificou-se claramente que a equipe estava atenta a não constituir o Outro que o abandona e o maltrata, mas que era preciso ir além do simples zelo para possibilitar a Max uma certa autonomia. Seria preciso criar condições simbólicas para que ele pudesse se haver com a questão do abandono, sem ficar estritamente dependente da ação institucional. A estratégia da equipe, naquele momento, consistia em elidir qualquer possibilidade de interpretação de abandono, mediante uma operação concreta de cuidados constantes: não se deixava Max desacompanhado, resolvia-se os problemas que ele trazia, colocava-se, enfim, à sua disposição. Mas essa forma de lidar com o abandono logo se revelou ineficaz, não somente porque exauria o técnico de referência com uma sobrecarga intensa de trabalho, mas também porque acomodava Max numa situação assistencialista que o impedia de criar por si mesmo soluções simbólicas para prescindir do CAPS.

Ao se tratar do problema da re-inserção social do paciente, foi retomada a proposta de Carlo Viganó, quando ele nos convoca a transformar os muros da instituição numa relação simbólica em que a contenção se dá pela via da palavra, propiciando, assim, uma substituição dos muros de concreto por um certo arcabouço simbólico de reorganização subjetiva. Do momento em que essa relação depende da ação da equipe, enfatizou-se a necessidade de se determinar o lugar transferencial que ela ocupa para o paciente, uma vez que Max efetivamente mantém uma relação de confiança para com a instituição. Ficou exposto, nessa situação transferencial, a dificuldade recorrente que Max apresenta com relação às mulheres, numa situação que se repetia com cada assistente que ele ali conhecia. Foi então proposta a possibilidade de um cálculo sobre o vínculo frouxo na psicose, de modo a impedir que o vínculo transferencial de Max se intensifique na forma da erotomania ou da relação persecutória.

A respeito, por outro lado, da construção delirante realizada por Max, em sua identificação aos super-heróis, tudo que por ora podemos dizer é que ela é visivelmente precária e que ainda permanece para nós obscura. Mas já sabemos, todavia, que não é com qualquer super-herói que Max se identifica. Sua preferência por Batman, e pela Batgirl, indica, entre outras coisas, que a função de radar da qual se vale o morcego tem para ele um papel estruturante. Se considerarmos, além disso, que o homem morcego representação da solução heróica do personagem solitário, que se viu quando criança abandonada pela família, pode-se supor que Max dali extrai, diante de sua própria condição de abandono, uma tentativa de construir para si a sua autonomia. Tal hipótese aliás se verifica nos efeitos devastadores de seu contágio por uma doença venérea, ao fazer vacilar a posição de onipotência do superherói: Max se viu tomado por uma grave crise depressiva que culminou, ao ser reforçada por uma outra situação de abandono, em novo surto psicótico.

Ao fim da conversação, foi reafirmada a importância de se manter, junto à equipe, uma lógica de trabalho em comum partilhada pela rede, lógica essa extraída da observação dos tipos de vínculo que o próprio paciente estabeleceu. No caso de Max, observou-se que se esse vínculo se constrói a partir do binômio abandono-violência, é possível ajudá-lo a compor de outra forma esse laço na medida em que a instituição se desloca dessa cena, intermediando, através da palavra, uma solução que vá além do assistencialismo concreto.

 

Retorno do caso (2ª. Conversação)

O retorno do caso Max teve início com o relato do compilado referente à primeira conversação, seguido de informações quanto à evolução clínica subseqüente. A psicóloga iniciou dizendo que observou desdobramentos importantes no caso, acrescentando que Max continuava no CAPS, já que ainda não lhe era possível prescindir do serviço. A novidade, que ela relata, diz respeito ao surgimento de comportamentos obsessivos que ainda não se conseguiu entender, os quais levam Max a um estado de angústia intenso que o desorganiza, mas que, no entanto, dissipa-se rapidamente.

Segundo a psicóloga, esse quadro se seguiu ao momento em que ele soube, pela televisão, que mudariam os dias de recebimento do INSS, alegando que desde então não mais saberia o dia que iria receber seus proventos. Outro fato curioso, ela acrescenta, é que tais sintomas surgiram num momento em que as supostas alucinações cessaram: “Ele não quer saber das vozes e quando elas começam a aparecer, ele não dá bola pra elas”. Todavia, foi alegado que certos comportamentos de natureza obsessiva já teriam se manifestado em outros momentos anteriores, ao longo de seu tratamento, sobretudo em sua relação com a música, através da compra e de acúmulo, em demasia, de cds, aparelhos de mídia, tênis e relógios.

Outra mudança, por ela observada, deu-se no campo do trabalho do CAPS com a família. A intensificação da intervenção familiar realizada pela assistente social apresentou efeitos.

Fomos informados também que Max não somente está retomando a prática de desenhar, como também começou um curso de desenho na Fundação Artística da cidade, atividade que parece exercer uma importante função em sua estabilização. A presença da mulher permanece um constante nesses trabalhos. Sabemos, aliás, que se sua última crise esteve relacionada a um encontro sexual seguido de contágio, Max parece encontrar, nas representações heróicas de personagens femininos (Batgirl, supergirl, heroínas), um elemento apaziguador, e que, desde então, não teve mais contato com mulheres.

Sabe-se que Max tem uma identificação muito grande com super-heróis e consegue localizar quando isso começou. Ele tinha oito anos de idade e viu um livro que contava a história de um menino alado, capaz de voar. Foi lembrado, durante a conversação, que se esse tipo de literatura serve para estimular a fantasia da criança, a ausência de um princípio de regulação simbólica, na psicose, faz com que a fantasia verse para o delírio. Salientou-se também o gosto de Max pela música, e que essa paixão teria tido uma função estabilizadora em seu caso.

Um outro ganho importante, mencionado pela psicóloga, foi o trabalho realizado junto à comunidade após o episódio, antes mencionado, em que Max fora duramente espancado após perseguir duas transeuntes numa atitude delirante. A equipe obteve êxito ao esclarecer a condição de Max, criando uma situação de maior tolerância. Soube-se, além disso, que Max produzira uma outra crise, há uns dois ou três meses, no momento em que sua família teve que se mudar, numa situação que já se repetiu por duas vezes no bairro devido ao medo dos proprietários fazerem algo contra alguém da família. Ao considerar a importância de provê-lo de uma casa própria, a equipe propôs construir uma residência para ele no terreno que é da família. Ele gostou da idéia, embora duvide que isso possa resolver sua situação na comunidade. A equipe propôs fazer um trabalho intensivo para possibilitar sua inserção nas ruas de seu bairro novamente, pois na região do CAPS sua circulação é tranqüila. Por outro lado a irmã, que até então se colocava como um empecilho ao progresso do caso, agora ocupa-se de sua própria vida e parou de interferir. A equipe considera que essa foi uma mudança essencial para o caso.

Ao longo da conversação foi enfatizado o valor do pacto de tolerância estabelecido junto à comunidade, na evolução clínica de Max. Ao considerar a ausência de uma mediação discursiva eficaz com o Outro, na psicose, que expõe o sujeito a um Outro que invade, salientou-se a importância de conduzir a equipe a operar como mediador, ainda que provisório, dessa relação a comunidade. A ida à comunidade e o esclarecimento quanto à situação, no sentido de desmistificar a concepção imaginária da periculosidade do doente mental surtiu efeitos relevantes.

Foi necessário, por outro lado, indicar o risco de se fazer dessa mediação uma proteção excessiva. Se de fato Max é um sujeito que talvez permaneça institucionalizado pela vida inteira, “institucionalizado” aqui significa que ele precisa de uma instituição parceira que faça o papel de embaixador ou mediador na relação com o Outro, sem que seja preciso que ele esteja no CAPS necessariamente. Essa mediação pode muito bem ser realizada por um acompanhante terapêutico, por exemplo. Evocou-se a importância de tornar a instituição o mais prescindível possível, mas não mais do que o possível, ajudando-o a encontrar, por si só, essas estratégias de mediação.

Quanto aos sintomas obsessivos descritos por sua psicóloga, indicou-se que esses fenômenos, longe de corresponderem a uma estrutura neurótica, devem ser entendidos como um mecanismo de proteção contra os fenômenos invasivos da psicose. Controlar o relógio é controlar, de certa forma, a invasão do Outro; o que o angustia é justamente a impossibilidade de controlar integralmente essa invasão.

Discutiu-se, finalmente, a dificuldade que encontra Max em dar um tratamento à questão sexual, lembrando que, na ausência de uma regulação simbólica colocada como terceiro termo, ele permanece preso na dimensão especular. Por não dispor do Outro simbólico, para além da relação com a imagem, a experiência da separação se coloca insuportável para ele. Por isso Max necessita colocar, em par com suas identificações imaginárias ao personagem ideal das histórias em quadrinhos, a mulher na forma igualmente imaginária do parceiro ideal. Disso se explica a crise desencadeada pela experiência do contágio sexual, que coloca em causa a sustentação imaginária do parceiro ideal em sua relação ao sexo.

Quanto à questão do abandono, cuja relevância foi indicada desde a primeira conversação como forma de demarcação de sua relação com o Outro, não interessa saber, do ponto de vista prático, se sua mãe teve ou não teve a intenção de abandoná-lo. Importa saber que ele interpreta todo distanciamento como uma situação de abandono e que, diante da incapacidade de dar um manejo simbólico à condição de falta, essa situação desencadeia invariavelmente uma crise. Em consideração a esse aspecto, foi proposto que se estabeleça um contrato com ele, anterior à introdução de operadores que realizam trabalhos temporários, tal como o acompanhante terapêutico (A.T.), informando-lhe previamente quanto à permanência temporária destes acompanhantes (estagiários), ou outros operadores. Foi assim possível esclarecer melhor o que se passa com Max, orientando a equipe na construção de estratégias que minimizem a ocorrência de crises e ou que possibilitem a manutenção dos períodos de estabilidade.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons