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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.13 no.2 Florianópolis ago. 2013
A interseção entre os trabalhos marinheiros e o alcoolismo
The connection between sailors' duties and alcoholism
Elizabeth Espindola HalpernI; Ligia Maria Costa LeiteII
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
O estudo sobre a interseção entre os trabalhos marinheiros e o alcoolismo dos militares da Marinha do Brasil (MB) que são pacientes do Centro de Dependência Química (CEDEQ) se propõe a entender quais são os aspectos peculiares da instituição naval que participam na constituição desse transtorno. A partir de 2005, uma pesquisa qualitativa foi feita por meio do método etnográfico no CEDEQ. Adiante, ao longo do ano de 2011, realizou-se uma observação participante em dois grupos terapêuticos que correspondem à primeira fase do tratamento, durante 24 sessões. Os resultados sugerem que o alcoolismo desses pacientes foi construído pela influência de determinados fatores do ambiente laboral naval. Conclui-se que determinadas condições, a organização e alguns processos do trabalho naval produzem desgaste mental e sofrimento psíquico, acentuando a experiência de exclusão e facilitando a manifestação do alcoolismo.
Palavras-chave: Alcoolismo, Saúde Ocupacional, Condições de Trabalho.
ABSTRACT
The study concerning the intersection between the sailors' duties and the alcohoolism of the military personnel from Brazilian Navy (MB), who are treated at the Center for Chemical Dependency (CEDEQ), intends to understand the factors that are peculiar to the Navy military institution, that take part in the creation of this disorder. Since 2005, a qualitative study was carried out using the ethnographic method in CEDEQ. Later, during the year 2011, a participant observation took place in two therapeutic groups during 24 sessions. The results suggest that the alcoholism of the patients of this outpatient clinic was constructed under the influence of certain factors of the work environment naval. In conclusion, naval work conditions, organization, and processes produce mental strain and psychological distress, emphasizing the exclusion experience and facilitating the manifestation of alcoholism.
Keywords: Alcoholism, Occupational Health, Working Conditions.
O Ministro de Estado Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas aprovou, em 1986, as Instruções Preliminares para a Detecção e Prevenção do Uso Indevido de Drogas a serem empregadas pelas Forças Armadas brasileiras, fruto da constatação da magnitude do problema do uso indevido de drogas entre militares. A despeito da carência de dados estatísticos, esse documento alertava sobre a possibilidade de agravamento do problema em razão das dezenas de expulsões de usuários de drogas que vinham ocorrendo nas Forças Armadas (Brasil, Portaria do Estado-Maior das Forças Armadas, 1986). Porém, naquela época, o álcool não estava incluído no rol das preocupações.
Mais tarde, o Diretor-Geral do Pessoal da Marinha instituiu a Sistemática para a Abordagem da Dependência Química na Marinha (Brasil, Portaria do Ministério da Marinha, 1997), aprovando as Normas Complementares para Educação, Prevenção, Orientação, Tratamento e Reabilitação em Dependência Química na Marinha. Como resultado, a Marinha do Brasil (MB) criou o Centro de Dependência Química (CEDEQ), um ambulatório especializado no tratamento da dependência química. Essa foi uma iniciativa pioneira nas Forças Armadas.
Embora a MB tenha ampliado o emprego de outras abordagens terapêuticas em âmbito primário e terciário nos anos subsequentes, realizadas por outras unidades da MB, os efeitos perniciosos advindos do uso de álcool no ambiente laboral ao trabalhador e à organização naval não foram avaliados. Os estudos inaugurais sobre esse tema foram feitos apenas recentemente no universo do CEDEQ, frutos da pesquisa que gerou o presente artigo (Halpern, Ferreira & Silva Filho, 2008; Halpern, Leite & Silva Filho, 2010; Halpern & Leite, 2010; Halpern & Leite, 2011; Halpern & Leite, 2012a; Halpern & Leite, 2012b; Halpern & Leite, 2012c). Por essa razão, os militares alcoolistas assistidos no CEDEQ representam uma fonte privilegiada de análise, permitindo examinar a correlação entre o consumo do álcool e a execução de atividades que são peculiares à organização naval brasileira: os trabalhos marinheiros.
CONTEXTO
Atualmente sediado no Hospital Central da Marinha (HCM), o CEDEQ atende militares da ativa e inativos a partir dos 18 anos. A totalidade dos pacientes faz parte da carreira das Praças: Marinheiros, Soldados, Cabos, Sargentos e Suboficiais, sendo que os Oficiais raramente comparecem, optando por consultas particulares.
A investigação sobre a provável existência de interseção entre os trabalhos marinheiros e o alcoolismo foi motivada pelo fato de a maioria dos pacientes, Praças, ser usuária abusiva do álcool e, ao mesmo tempo, fazer constante referência à presença dessa substância no trabalho naval.
O termo Praças (usado no feminino) deriva historicamente dos militares que, no passado, eram recrutados à força, em geral nas praças públicas, localizando-as linguisticamente na rua (Beattie, 2004). Na atualidade, elas compõem uma maioria numérica da organização naval situada na base da pirâmide da cadeia de comando, cujas atribuições relacionam-se à execução das tarefas necessárias à manutenção e à operação dos equipamentos e à conservação de compartimentos de suas unidades militares; elas são distribuídas conforme as habilitações correspondentes às suas graduações e especialidades (Brasil, Lei nº 6.880, 1980).
O tratamento no CEDEQ progride ao longo de cinco etapas: grupo Motivacional, Fases I, II e III e grupo de Consolidação, privilegiando o tratamento em grupo, duas vezes por semana, cada qual com duas horas de duração. As etapas duram cerca de quatro meses e possuem um número mínimo de sessões e atividades a serem realizadas. A terapêutica baseia-se nas técnicas comportamentais, nos 12 Passos e nas 12 Tradições dos Alcoólicos Anônimos, utilizando-se filmes e livros relacionados ao tema da dependência química, seguidos de debates e palestras informativas visando não apenas informar, mas também criar vínculos para que a adesão seja intensificada. Espera-se que, ao longo do tratamento, o indivíduo alcance progressivamente a abstinência e experimente mudanças nas suas formas de agir e pensar. Com efeito, a duração total do tratamento varia conforme a evolução individual.
As observações participantes ocorreram em dois grupos da fase inicial do tratamento: o grupo Motivacional, que corresponde à primeira etapa do programa e tem por objetivo estimular o paciente a aderir ao tratamento, lutar pela abstinência e pela recuperação. Não obstante os esforços da equipe para que permaneçam em tratamento, faltas regulares e abandonos fazem parte do cotidiano. Apesar de os pacientes assinarem um contrato que estabelece critérios para a sua inclusão e desligamento, eles entram e saem diversas vezes. Há relatos de que as pressões sofridas no trabalho servem de obstáculos à sua participação, sobretudo as críticas dos colegas e superiores por ficarem afastados das atividades profissionais enquanto estão nas sessões. Apesar da autorização formal para irem às consultas, costuma haver um clima de desconfiança sobre a real necessidade do tratamento. Em razão de mitos e desinformações, predomina a visão de que o alcoolista seria tão somente um "sem vergonha".
Nesse diapasão, constatou-se que a equipe acaba sendo pressionada para reabilitar o paciente o mais rápido possível para que ele retome suas funções, tanto pela chefia do militar quanto pelo próprio sujeito. Muitos pacientes não têm interesse em perder as oportunidades na carreira por estarem em tratamento e com restrições laborativas, especialmente pelo uso de medicação psiquiátrica que contraindica a sua participação em manobras, serviços com porte de armas, embarques em navios, dentre outros afazeres. Assim, invariavelmente solicitam o seu desligamento.
Vale esclarecer que, apesar de a pesquisa ter ocorrido em um ambulatório, ele é experimentado pelos pacientes como parte da Marinha por se encontrar dentro de uma unidade militar, uma extensão de seu espaço laboral. Na prática, eles compartilham a mesma realidade, estão submetidos aos mesmos códigos, normas, estrutura e linguagem, enfim, são "colegas de farda"; além disso, a equipe de profissionais do CEDEQ é predominantemente constituída de militares.
REVISÃO DA LITERATURA
Considerando que o CEDEQ é o principal ambulatório das Forças Armadas do Brasil, responsável pelo atendimento, em nível secundário, a dependentes químicos, sendo pioneiro em desempenhar essa atribuição, os achados e as publicações que derivaram da pesquisa das autoras deste artigo são os primeiros realizados nessa seara no território nacional. Esses estudos não apenas inauguraram as investigações sobre a dependência química dos militares como também deram partida às discussões a respeito do uso de álcool no ambiente de trabalho militar.
Pesquisas conduzidas nas Forças Armadas norte-americanas serviram de parâmetro para entender melhor a questão do uso de álcool e drogas entre militares e civis. Desde a década de 1970, Cahalan, Cisin, Gardner e Smith (1973) já apontavam que a vida militar estimulava o consumo de bebidas alcoólicas. De fato, Bray, Marsden e Peterson (1991) verificaram que esses militares eram mais vulneráveis do que os civis ao consumo do álcool, bem como ao consumo pesado. Por isso, a redução do beber pesado, segundo Bachman, Freedman-Doan, O'Malley, Johnston e Segal(1999), passou a ser um desafio para as Forças Armadas norte-americanas, que precisou tentar reverter o estereótipo do Soldado que precisa "ser forte" e que deve "saber beber".
Procurando entender a influência do ambiente no consumo de bebidas, Ames, Baraban, Cunradi e Moore (2004) sinalizaram que a disponibilidade do álcool pode influenciar os jovens militares norte-americanos a beber de forma pesada e abusiva. Ao serem entrevistados, confirmaram a existência da disponibilidade de bebidas e de oportunidades para beber nas bases militares, nos quartéis, nos bares e nos hotéis próximos às unidades militares. Ademais, as pesquisas conduzidas por Ames e Cunradi (2004/2005) com Marinheiros norte-americanos indicaram que o ato de beber com colegas durante a jornada de trabalho semanal era uma forma de lidar com o estresse, o tédio, a solidão e a ausência de lazer. Informaram que fazia parte da tradição cultural naval o consumo pesado de bebidas alcoólicas no licenciamento, desde que a intoxicação não os impedisse de retornar ao navio na hora estipulada.
Moore, Ames e Cunradi (2007) apontaram que a disponibilidade física e social do álcool para jovens militares da Marinha norte-americana incluíam: a existência de preços baixos nas lojas das bases navais (Navy Exchange base stores); as frequentes festas nos quartéis; as vendas promocionais nos bares em torno das bases; e, por fim, as múltiplas oportunidades para os militares menores de idade, a despeito das limitações de idade estabelecidas na compra de álcool e dos esforços oficiais para desestimular o seu uso na Marinha norte-americana.
Um estudo mais recente realizado por Ames, Cunradi, Moore e Duke (2009) revelou que a natureza do ambiente de trabalho da Marinha norte-americana conduz ao beber mais pesado para os militares do que para os civis. Muitos aspectos específicos dessa organização militar contribuem para problemas com bebidas, incluindo os jovens recrutas que alternam períodos de esforço e tédio. Além disso, esse estudo apontou que há uma cultura que enfatiza o beber como um mecanismo de alianças, recreação e alívio de estresse.
Esses dados relativos ao consumo de álcool nas organizações militares dos Estados Unidos contribuíram para justificar a relevância do estudo em pauta, sobretudo considerando que o beber no trabalho impõe um risco ao trabalhador e à organização, o que exige a tomada de medidas preventivas.
Na MB, os episódios de embriaguez a bordo costumam ser incorporados à rotina diária sem que se proceda a uma maior problematização da questão, fazendo-se "vista grossa". Somente quando eles comprometem de modo mais visível a administração de sua unidade militar é que os instrumentos administrativo-disciplinares pertinentes passam a ser acionados. Em última instância, opta-se pelo encaminhamento para orientação especializada ou para o tratamento no CEDEQ. Geralmente, não é feita uma reflexão ou discussão sobre as razões da embriaguez ou das recidivas. A administração militar se envolve na questão dos padrões de consumo de álcool de sua tripulação quando eclodem manifestações palpáveis que alteram a rotina laboral e a produtividade, desde o absenteísmo até os graves problemas financeiros resultantes. As chefias tendem a ser mais condescendentes com os bebedores leves e moderados que não dão mostras de descontrole. Esse fato se coaduna com o fenômeno assinalado por Kreitman (1986) denominado paradoxo da prevenção. Faz-se necessário, portanto, que as estratégias preventivas e de redução dos problemas decorrentes da ingestão do álcool contemplem os bebedores moderados e que fazem uso abusivo eventual, ou seja, aqueles que são mais suscetíveis de provocar danos em razão do consumo de etílicos, e não ater-se apenas àqueles que são dependentes.
Instituições como a MB devem se conscientizar sobre a gravidade desse problema e se alinhar às diretrizes estabelecidas pelo Decreto Presidencial nº 6.117 do Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (Brasil, 2007), que trata da Política Nacional sobre o Álcool. É de interesse particular a diretriz nº 18, que se refere às iniciativas de prevenção ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas no ambiente de trabalho.
MÉTODO
O método pautou-se no desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa, com base no trabalho etnográfico, por meio da observação participante (Malinowski, 1984; Minayo, 2006; Minayo, Deslandes & Gomes, 2007). Isso possibilitou o desenvolvimento de uma aprendizagem reflexiva alicerçada na perspectiva interacionista (Whyte, 2005), considerando que os indivíduos são produto da interação social (Mead, 1982; Blumer, 1986) e que a realidade é socialmente construída (Berger & Luckmann, 1985).
O emprego do método etnográfico como ferramenta viabilizou a compreensão da realidade dos pacientes, incluindo questões como opressão, conflito, luta e poder (Spradley, 1979). O uso da etnografia crítica (Schwandt, 1997), por sua vez, permitiu a inspeção de organizações como a Marinha, examinando seus contextos histórico, social, cultural e político (Fossey, Harvey, McDermott & Davidson, 2002).
O estudo de cunho etnográfico legitimou a longa imersão nessa realidade, iniciada em 2005, desde que a pesquisadora se tornou psicóloga clínica dos grupos terapêuticos e chefe do CEDEQ. A partir de então, sem definições rígidas ou apriorísticas, ela deu início às observações e reflexões sobre os significados do alcoolismo no trabalho naval. Isso se fez a partir de um mergulho no universo, nos códigos e na linguagem do outro, de modo a apreender as regras, os costumes e as convenções que governam a vida do grupo estudado.
Inferências e reflexões oriundas da observação direta foram feitas com o registro permanente em um caderno de campo (Malinowski, 1984) após as sessões terapêuticas, sem interromper o fluxo da terapia grupal.
Mais tarde, como aluna de doutorado e pesquisadora, após a autorização do Comitê de Ética e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deferida pelo Comitê de Ética em Pesquisa, cadastro FR nº 306557 e CAAE nº 0021.0.221.000.09, uma observação participante mais aprofundada para investigar os objetivos em questão foi realizada em dois grupos da fase Motivacional, durante 24 sessões, ao longo do ano de 2011. Tendo em vista que os grupos são abertos, a composição dos dois grupos observados se alterou ao longo do período de estudo. Em geral, eles tinham cerca de 10 integrantes, com idades entre 21 e 62 anos, do gênero masculino, de Marinheiros a Suboficiais. Esse movimento de voltar ao campo para adensar o estudo ilustra o caráter circular do processo de coleta e interpretação de dados.
Cabe ressaltar que a amostragem, a coleta, a análise e a interpretação dos dados ocorreram de forma interativa (circular), não sequencial (Tesch, 1990; Maxwell, 1996; Fossey et al., 2002; Whitley & Crawford, 2005), admitindo a realização de feedback loops (retroalimentação) (Whitley & Crawford, 2005) . Em outras palavras, as etapas fluíram de modo dinâmico em vez de cumprirem um roteiro estanque. Assim, a pesquisa buscou apreender o significado subjetivo das experiências dos entrevistados.
Outro aspecto metodológico refere-se à posição da pesquisadora que é, ao mesmo tempo, chefe do CEDEQ, Oficial da Marinha e uma das psicólogas dos grupos terapêuticos nos quais os entrevistados estão inseridos (cada grupo é acompanhado por duas terapeutas, em um trabalho de coterapia). Houve uma atenção especial quanto à questão do comportamento padronizado e desempenho de papéis, tanto da pesquisadora quanto dos pacientes, durante a pesquisa (Berreman, 1962/1980; Garcia, 2004). Nesse percurso, ocorreu uma interação social envolvendo o controle e a interpretação de impressões, acionados pela primeira autora na qualidade de psicóloga e pesquisadora, e pelos pacientes nas observações de campo, pois sempre há algum grau de dissimulação:
As impressões decorrem de um complexo de observações e inferências, construídas a partir do que os indivíduos fazem, assim como do que dizem, tanto em público, isto é, quando sabem que estão sendo observados, quanto privadamente, isto é, quando pensam que não estão sendo observados (Berreman, 1980, p. 125).
A disposição da pesquisadora nesse universo permitiu o estudo do ponto de vista de alguém de "dentro", mais íntimo, que trabalha como membro da organização, o que facilitou a obtenção da autorização para a condução da pesquisa, por desfrutar de uma oportunidade singular de coleta dos dados.
Ademais, foi feita a análise das categorias que emergiram no discurso dos sujeitos, permitindo compreender como se deu a construção de significados em relação estreita com a análise da trajetória. Esta, por sua vez, procurou investigar como cada um significou o seu processo de adoecimento, bem como cada sujeito construiu representações sobre si mesmo em torno do envolvimento com a substância etílica e do labor. Da análise emergiu a noção de trabalhos marinheiros e sua correlação com a produção do fenômeno do alcoolismo desses pacientes.
Quanto ao referencial teórico, o olhar central alinhou-se à visão de que a "doença do alcoolismo" é uma experiência que emerge de um processo sociocultural e, tal como o próprio conceito de cultura, é dinâmica e heterogênea. Conforme o contexto cultural, fenômenos distintos tornam-se inteligíveis, sobretudo amparando-se na visão da antropologia interpretativa de Geertz (2008).
Além disso, houve a influência da antropologia médica que historicamente procura levar em conta a pluralidade cultural, intentando compreender os mecanismos por meio dos quais a cultura influencia a saúde e a doença, assim como a forma na qual a experiência da doença se constrói em resposta a um determinado contexto. Assim sendo, a partir dessa perspectiva, deu-se destaque ao significado da experiência do adoecimento e ao valor da narrativa (Good, 1994 citado por Iriart & Caprara, 2011). Com efeito, buscou-se compreender a dependência química, e em especial o alcoolismo, como fenômenos capazes de dar relevo à dimensão da pessoa em seu meio cultural, dissociados do saber hegemônico médico contemporâneo ocidental.
De forma mais específica, este estudo teve como base a antropologia da saúde/doença, especialização que vem alcançando maior visibilidade e legitimidade acadêmica (Canesqui, 2003). Ela corresponde a uma estratégia mais holística que se preocupa em estudar a construção das pessoas, incluindo seus corpos e os decorrentes fenômenos do adoecimento ou de suas perturbações (Duarte, 2003), conferindo destaque aos processos não biológicos das enfermidades.
Trabalho e álcool
A fim de compreender o significado dos trabalhos marinheiros, cabe destacar que ele está estreitamente relacionado à noção de trabalho que passou a ter primazia no mundo contemporâneo ocidental, sendo, por um lado, fonte de realização, satisfação e riqueza e, por outro, ligado a escravidão, exploração, sofrimento, doença e morte (Seligmann-Silva, 1990). Imersos nessa realidade, esses trabalhadores teriam um ethos marcado por um estilo de vida metódico e disciplinado, tal qual o que alavanca o capitalismo, amplamente disseminado nas formas de ser e de se comportar do homem contemporâneo (Weber, 2004). Um ethos que criou novos hábitos, subjetividades e sociabilidades da população urbana, operando uma transformação completa na estrutura da sociedade (Polanyi, 1980).
No seio do capitalismo emergente no mundo moderno, essa forma de conceber o trabalho tendeu a socializar e domesticar o corpo do trabalhador enquanto força de trabalho, dando partida ao controle da organização social sobre os indivíduos, no corpo e pelo corpo (Foucault, 1979). Critérios passaram a demarcar a possibilidade ou impossibilidade de trabalhar ao passo que novos padrões de normalidade na sociedade moderna ocidental foram definidos, compelindo os indivíduos ao ritmo do trabalho fabril mecanizado, vinculado às necessidades de produção (Santos, 2006). Um mapa de horários esquadrinhou o tempo para o cumprimento das tarefas, à semelhança da lógica disciplinar dos monastérios. "A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)" (Foucault, 2007, p. 127).
Paralelamente, um saber médico voltado à manutenção da força produtiva foi estruturado, comprometido com a preservação da higidez do emergente trabalhador assalariado, sobretudo no que tange ao difícil equilíbrio entre o uso e o abuso das bebidas alcoólicas, moderação e excesso, até porque muitos daqueles que não corresponderam às exigências do mercado tornaram-se mais suscetíveis aos efeitos do álcool (Santos, 2006).
Os efeitos dessa lógica estão presentes na mentalidade da Marinha brasileira, podendo ser percebidos nas vivências laborativas de seu contingente e até no teor dos lemas navais que ratificam o dever ético de trabalhar: "Aqui estamos!" (Adsumus, lema do Corpo de Fuzileiros Navais); "Restará sempre muito o que fazer" (lema da Diretoria de Hidrografia e Navegação [DHN]); e "Pronto para tudo" (In omnia paratus, lema do Primeiro Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral MB); entre outros.
Trabalhos marinheiros e alcoolismo
A terminologia proposta neste estudo de trabalhos marinheiros emergiu com a escuta dos pacientes do CEDEQ nos grupos terapêuticos. Eles se referem às atividades relacionadas às condições, à organização e aos processos laborais navais sintonizadas com as exigências da lógica da produtividade, distintas das tarefas realizadas nos primórdios da vida nos mares, mais voltadas à marinhagem (Huntington, 1997).
As condições de trabalho, segundo Seligmann-Silva (1990), incluem fatores perturbadores nos ambientes físico, químico e biológico; condições de higiene e de segurança; e características antropométricas do posto de trabalho, gerando riscos psicossociais aos profissionais. Na vida naval, muitas funções podem ser adversas para um número significativo de militares, embora as Praças, dependendo de sua OM e de sua função, por executarem tarefas mais braçais, possam estar mais expostas aos seus efeitos negativos. Em geral, suas atividades ocorrem em locais onde as condições de seu exercício são adversas, sobretudo quando servem em navios, em áreas barulhentas, em locais apertados e abafados, submetidas a vibrações ou à ação de substâncias tóxicas.
Os processos de trabalho referem-se a como são concebidas e divididas as atividades entre os trabalhadores (divisão do trabalho); aos tempos, ao ritmo e à duração da jornada de trabalho; à remuneração pelo trabalho (salário); e ainda à estrutura hierárquica (relações verticais e horizontais). Certos processos podem expor o trabalhador a situações de risco (Rangel, 1994) e, em razão de sua natureza, podem gerar estresse e busca de apoio no álcool para relaxar. Destacam-se as especialidades que envolvem atividades de risco, caso de mergulhadores, aviadores, submarinistas e maquinistas, assim como aquelas que têm um ritmo intenso e extenuante, ocorrendo de forma inopinada, obrigando o indivíduo a estar sempre em prontidão, em dias e horários variados, nos feriados e nos fins de semana. Com isso, as jornadas de trabalho podem se estender sobremaneira, levando o trabalhador a viver em um isolamento, total ou parcial, dependendo da tarefa, afastando-o do seu meio social e familiar.
A organização do trabalho, que diz respeito à divisão do trabalho, ao conteúdo de sua tarefa, ao sistema hierárquico, às formas de comando, às relações de poder, entre outros, também pode produzir sofrimento no trabalho. Na MB, as falhas laborativas tendem a ser identificadas como contravenções disciplinares, sendo a punição a resposta mais corriqueira, sem haver maiores reflexões sobre as razões dos erros cometidos. Enfim, os trabalhos marinheiros são caracterizados por certas condições, processos e organização capazes de adoecer os trabalhadores, podendo provocar sofrimento psíquico e expondo-os a riscos (Araújo, 1986, citado por Vaissman, 2004; Borges, 2000; Dejours, 1987; Lacaz, 1996; McLean & Taylor, 1958, citado por Seligmann-Silva, 1990; Rangel, 1994; Seligmann-Silva, 1995; Silva Filho, 1989).
RESULTADOS
Os resultados foram obtidos a partir dos relatos dos pacientes, evidenciando a provável interseção entre os trabalhos marinheiros e o alcoolismo desses militares. Vale ressaltar que todos os nomes são fictícios. Os resultados serão apresentados agrupando-os em torno dos temas que ficaram em evidência no decorrer da pesquisa, a saber: pedagogia do beber, condições de trabalho, processos de trabalho, organização do trabalho e ambivalência institucional.
Pedagogia do beber
Acredita-se que uma pedagogia do beber seja exercida pela ação coletiva (Halpern, Leite & Silva Filho, 2010), programando indivíduos, dotando-os de um conteúdo homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, e gravando, na mente e no corpo do contingente naval, maneiras de beber:
Eu comecei a beber na Marinha! Naquela época, não tinha CEDEQ, palestra. Entrei muito novo na Marinha, e aí o que você aprendia: "soco"[farra], "mulheril" [mulheres]. Na manobra, na manobra tinha que ter a bambona [recipiente] de cachaça, vai tirando um gosto nos intervalos. Foi assim que aprendi na Marinha (Américo, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Os pacientes relatam que, desde o ingresso na MB, em nome de uma tradição naval favorável ao consumo do álcool, inclusive durante a jornada de trabalho, foram "ensinados" a beber: "É tradição na Marinha! Geral, isso é tradição na Marinha. Semana passada teve quatro eventos, comemoraram não sei o que lá, comida e bebida à vontade. Nas manobras, então, se não tiver, vai ter problema!" (Geraldo, comunicação pessoal, 03 de maio de 2010).
Condições de trabalho
No que diz respeito às condições de trabalho, os pacientes sinalizaram que algumas de suas atividades ocorrem em condições adversas, sobretudo quando servem em navios, em locais ruidosos, apertados e abafados, expostos a temperaturas elevadas e vibrações. Um paciente explica: "No navio, quando surge um problema, um incêndio, só quem resolve é o 'cachaça', só ele tem coragem. De cara limpa não dá pra encarar. O cara tem que ser meio doido pra descer na 'praça de máquinas'" (José, comunicação pessoal, 26 de abril de 2010). Como resposta às condições nocivas do ambiente, outro militar adiciona:
Na Marinha, se o cara bebe, a tendência dele é beber mais. Qual navio que não libera cachaça direto? Todos eles, todo navio libera. Igual foi no ano de 1994, eu passava uma semana em casa, um mês fora, a Marinha sugando a gente de todo o jeito. Toda a viagem nossa tinha uma cota de cachaça pra todo mundo ir bebendo, pra aguentar o psicológico totalmente abatido [fala com ênfase]. A gente praticamente nem via as crianças em casa (Rodrigo, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Processos de trabalho
Constatou-se que determinados processos de trabalho peculiares à vida naval, como a participação nas escalas de serviço, podem trazer prejuízos ao servidor, especialmente por terem como característica agravante o fato de não haver uma sistemática de reposição das horas de sono perdidas:
É um emprego meio atípico, né!? Geralmente, no emprego [civil], o serviço é de segunda a sexta. [...] A rotina, a carga horária. Porque no quartel que eu tô a rotina é cinco por um, dois por um1. [...] E mais o trajeto, só o trajeto, o engarrafamento, e tudo, já tá dentro do quartel! O cara vive a bordo! (Márcio, comunicação pessoal, 10 de maio de 2010).
Na MB há especialidades que participam de manobras em um ritmo exaustivo, obrigando o indivíduo a permanecer em estado de alerta, como se vê abaixo:
E quando chegava no porto? [indaga a si mesmo] Quando chegava no porto, a galera queria mais é tirar aquela pressão toda! Às vezes saía de madrugada, todo arrebentado do serviço, daqui a pouco toca "postos de combate" [prontificar para combate] na hora que você ia dormir. O sistema todo é terrível! Então cheguei no ponto de explodir (João, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
No cotidiano naval, as jornadas de trabalho podem se prolongar, afastando o militar, parcial ou totalmente, do meio social e familiar. As movimentações para outras localidades do território nacional, comuns na carreira, também podem tornar o indivíduo mais suscetível ao consumo de álcool, afastando-o de sua família e cultura de origem, às vezes de forma definitiva. Em resposta, a ingestão de bebidas alcoólicas se torna essencial, fortalecendo laços entre pares e suavizando a aspereza da vida de bordo: "O 'sistema' na Marinha: ou você bebe ou você é de alguma religião. Sempre bebemos, tanto a bordo, nas comemorações, aqueles aperitivos do rancho [refeitório]. Na 'baldeação' [limpeza do navio] era liberado! E era cachaça mesmo!" (João, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Organização do trabalho
Quanto à organização do trabalho, verifica-se como as características dos trabalhos marinheiros podem trazer repercussões negativas, sobretudo no que se refere à estrutura hierárquica e ao sistema de comando:
O estresse vem lá de cima, vem de cima, e vem descendo! Aí, quando chega lá embaixo, vem o estresse total [fala com indignação]. Não tem necessidade disso. Eles [chefes] querem pra ontem [a tarefa], mas vai sair daqui a cinco dias! Depois que desestressou, pega o papel e rasga tudo, morreu esse assunto (Manoel, comunicação pessoal, 03 de maio de 2010).
É comum haver relatos sobre problemas atinentes às relações de poder, dando relevo às diferenças entre Oficiais e Praças. Com efeito, a ingestão de etílicos torna-se um recurso comum para amenizar tensões nessa esfera: "Há o estresse, sabe, interno também. Tem Comandante que, pô, acaba com você ao ponto de você querer encher a cara" (Américo, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
É interessante observar como o uso do álcool ajuda a denunciar a presença de um mal-estar na organização. Fainzang (2003) considera que o alcoolismo teria a função de ser uma linguagem reveladora da existência de conflitos interpessoais e sociais. Na verdade, como esclarece Neves (2003), as representações sobre o alcoolismo encontram-se atreladas às faltas, aos castigos e aos desvios, indicando o peso da ordem social e fomentando práticas de discriminação.
Na maior parte das vezes, os pacientes não se queixam da instituição em si, consideram que a "Marinha é boa" e que o "sistema é mau". A percepção de que certas condições laborais expõem o trabalhador naval a riscos, colaborando para o uso abusivo do álcool e para a instalação do alcoolismo é nublada, talvez pelo forte sentimento de gratidão que os acompanha desde os tempos de calouros: "A Marinha, ela tem tudo pra ser uma instituição forte, né, mas o sistema é duro, é cruel! Hoje em dia, eu vou ser sincero, hoje em dia vejo a Marinha como emprego, não tenho aquela motivação"(José, comunicação pessoal, 26 de abril de 2010).
Constata-se a existência de um ambiente de controle e vigilância nas unidades militares característico das chamadas instituições totais (Goffman, 1992). No seu interior, a imposição de horários e regras pode ajudar a romper a fronteira saudável que separa a vida particular e a profissional; em resposta, o indivíduo reage de uma forma que pode ser interpretada como negativa. Ao ser despojado de sua privacidade, ele age destoando da homogeneidade de comportamentos e gestos tidos como desejáveis, passando a ser taxado como desviante da normalidade. Desde o ingresso na carreira, o militar passa por um processo que Goffman chamou de despojamento do papel, um tipo de "programação" que enquadra e modela os neófitos para que formem um grupo unificado e homogêneo. A vida do sujeito passa a ser perpassada em todas as suas esferas pela vida institucional, fato acirrado quando ele rompe, parcial ou totalmente, com os papéis e pessoas do mundo privado:
No navio, é direto, não tem hora pra "baixar terra" [sair do trabalho, da unidade militar]. Se o Comandante decide que o navio vai sair, não importa se ele acabou de atracar. Na hora do "licenciamento" [término da jornada de trabalho], quando eu saio do navio, eu já tô "carimbado" [marcado], decidido a beber! (Geraldo, comunicação pessoal, 03 de maio de 2010).
Muitos pacientes assumem, de modo ambivalente, a culpa pela sua condição mórbida e pelas falhas cometidas a bordo, o que sugere um forte conformismo aos preceitos militares. A próxima fala ilustra esse aspecto: "A culpa não foi da Marinha, foi minha! Eu não tenho do que reclamar, a Marinha é boa! Certas pessoas que me decepcionaram, me agrediram moralmente, isso aí é que veio desestimulando" (Fábio, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Goffman considera que, aos poucos, uma carreira moral vai sendo construída mediante uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu; em resposta, o indivíduo é progressivamente mortificado e mutilado, consolidando crenças negativas a seu respeito. O paciente citado anteriormente prossegue sua narrativa demonstrando como um militar acaba sendo visto como um desviante do sistema: "Ah, me trataram de forma inadequada, como por exemplo, por cinco minutos de atraso, o cara te coloca no 'Livro' [Livro de Contravenções]. Numa formatura, você deixou de ir, o 'cara' [superior hierárquico] não quer saber".
Halpern, Leite e Silva Filho (2010) entendem que os pacientes do CEDEQ ficam acorrentados a um círculo vicioso: vivendo nesse cenário coercitivo, têm mais chances de cometer erros; vulneráveis, tornam-se mais suscetíveis ao consumo de bebidas alcoólicas, consolidando um estigma pernicioso a seu respeito.
Ambivalência institucional
A observação no setting terapêutico revelou que a MB sustenta as práticas etílicas no trabalho. De forma ostensiva e insidiosa, reforça a associação entre o cumprimento de certas tarefas e o consumo de etílicos; há uma crença blindada de que o beber a bordo, por ser uma tradição naval, não pode ser revisto. Paradoxalmente, o indivíduo pode ser punido ao apresentar-se a bordo em estado de embriaguez, incorrendo em uma contravenção disciplinar, segundo o regulamento. Tal cenário sugere que a MB esteja emitindo uma dupla mensagem ao seu contingente, de apoio e de rechaço ao uso do álcool. Por um lado, ela permite a distribuição de bebidas durante o expediente de trabalho: "Além do navio em si mesmo, do próprio, proporcionar bebidas a bordo, a gente sai de porto em porto também. Embarquei num navio que, pô, praticamente tudo o que acontecia tinha bebida!"(Américo, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010). Por outro, pune aquele que comete erros laborais por conta das consequências desse uso. As regras que estabelecem o limite entre o beber social e o beber problemático são dúbias:
Quando você começa a errar muito, a trazer problemas administrativos, quando você não sabe gerenciar... Enquanto você tá bebendo "socialmente" [mostra com os dedos o sinal de aspas], tá tudo bem. Não é permitido pelo RDM2 (Geraldo, comunicação pessoal, 03 de maio de 2010).
Há uma ambiguidade na interpretação e aplicação das normas sobre o beber, podendo variar conforme o contexto e o grau hierárquico: "A Marinha é uma mentira, as senhoras [terapeutas] já ouviram isso, né?! O Almirante bebe uísque e o Marinheiro bebe cachaça" (Fábio, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Parece haver uma incoerência entre o que está preconizado no RDM (que considera contravenção disciplinar apresentar-se em organização militar em estado de embriaguez ou embriagar-se) e os esforços para perpetuar as tradições navais que aceitam as práticas etílicas. Cabe rever quais costumes deverão ser incentivados visando o fortalecimento do espírito de corpo (e não do "espírito de copo"), sem prejudicar a instituição e seus integrantes. Ao mesmo tempo que a "tradição etílica" coopera para desenvolver a tolerância ao álcool (levando o indivíduo a precisar ingerir cada vez mais a substância para obter os amplos efeitos desejados), paralelamente ocorre a progressão da (in)tolerância institucional ao usuário. O militar deixa de ser apoiado para ser repelido: a tradição é substituída pela punição. Uma ciranda negativa começa a se formar na vida do sujeito, na qual ele se vê dragado por uma série de erros derivados de outras falhas, e assim sucessivamente, produzindo maior sofrimento no trabalho e em todas as esferas de sua vida:
Desde o dia em que ela [esposa] foi embora, só dormia bêbado! Aí o alcoolismo veio com tudo! Depressão, sozinho. Eu me mantinha bêbado constantemente [ênfase]. Caí de produção no serviço, fiquei malvisto, um monte de coisas. Não tinha respeito mais pra comandar um grupo de Marinheiros (Rodrigo, comunicação pessoal, 19 de abril de 2010).
Este cenário, por sua vez, acaba deixando o sujeito mais vulnerável ao consumo de etílicos. Incapaz de cumprir seus afazeres, suas falhas são computadas nos seus registros profissionais, distanciando-o do protótipo de bom militar.
DISCUSSÃO
A observação participante evidenciou que o alcoolismo dos pacientes é um fenômeno construído, facilitado pelo fato de eles operarem em uma mesma província de significados, nos termos de Schutz (1979), compartilhando um sistema de crenças e valores comuns. A despeito de haver uma variação individual, predomina certa homogeneidade, ainda que exista uma heterogeneidade do ponto de vista sociológico em função de estratificação social, faixa etária, gênero, entre outros. De fato, os pacientes do CEDEQ compartilham um universo semelhante, não somente pelo fato de serem integrantes da MB, mas também por pertencerem ao grupo das Praças. Acredita-se que, em geral, eles tenham passado por experiências similares relativas às diferenças de tratamento entre os Oficiais e Praças, tendo sido afetados por processos de valorização e de anulação que atravessam, continuamente, as relações sociais, ainda que de forma inconsciente, tornando-os mais suscetíveis ao alcoolismo. Seligmann-Silva (1995) aponta que as situações de risco para o alcoolismo estão associadas, sobretudo, à existência de atividades socialmente desprestigiadas, quando a possibilidade de qualificação ou de ascensão profissional é restrita.
As relações sociais e profissionais são poderosas formas de dominação nas quais determinados aspectos simbólicos têm predominância, sendo essencial a participação do capital cultural, que pode se apresentar na forma de diplomas e cargos (Bourdieu, 2005). No seio institucional naval, relações duradouras de domínio se instauram por meio de estratégias orientadas à reprodução dos mecanismos de dominação, garantindo a perpetuação da ordem estabelecida, não somente pelas palavras, mas também pelo silêncio. Ainda segundo Bourdieu, trata-se de uma violência branda, invisível, atrelada à aplicação da dádiva e da dívida, configurando a violência simbólica. Conforme Gaulejac (2006, p. 16) sinaliza: "A desqualificação social os leva a internalizar uma imagem negativa de si que, pouco a pouco, destrói do interior não apenas a revolta, mas também sua capacidade de ação". Assim, o uso do álcool talvez seja um dos meios deles escaparem à miséria, à dominação e à desesperança.
Segundo os pacientes, em virtude do hiato entre Oficiais e Praças, haveria uma tendência de esses últimos serem avaliados com maior rigor pelo RDM (Decreto nº 88.545, 1983). Eles informam que as Praças usuárias de álcool podem ser punidas ou, em casos extremos, desligadas do Serviço Ativo da Marinha (SAM). Quanto aos Oficiais, geralmente seus erros são absorvidos com discrição e seus excessos alcoólicos são minimizados e perdoados, sendo poupados das sanções administrativas. Parece não haver um critério de aplicação geral a ser conduzido. Muito pelo contrário, existiria uma variedade de respostas da administração naval, com o emprego de procedimentos aleatórios: ora aplicando-se a lei, ora incentivando o consumo, ora encaminhando o usuário para tratamento, ora desligando-o do SAM.
A ocorrência de falhas no âmbito naval é mais visível quando elas provêm do contingente das Praças, devendo ser corrigidas, punindo administrativamente e/ou tratando no CEDEQ. O ingresso no tratamento visa a recuperação para não mais errarem. A punição e o tratamento são prescritos de forma exemplar para que sirvam de modelo, a fim de que outras evitem erros, consolidando a autoridade do "punidor" e a manutenção da hierarquia e da disciplina. A aplicação de sucessivas penas, justas ou injustas, abusivas ou não, parece produzir um achatamento progressivo de suas individualidades, rebaixando a autoconfiança, convidando-as a errarem ainda mais e, por fim, consolidando sentimentos de exclusão, como se fossem refugos humanos (Bauman, 2005). Assim, muitas acabam consolidando uma imagem negativa construída pela ação coletiva, acirrando a ideia de exclusão, alijando-se, progressivamente, do grupo dos estabelecidos e tornando-se outsiders (Becker, 1963, 1977). No fundo, parece estar em pauta um jogo sutil relativo à luta ou à manutenção de posições sociais, provocando sentimentos de superioridade e de inferioridade que possam responder por comportamentos e atitudes discrepantes entre eles.
Muitos militares resistem à dominação no espaço laboral por meio de práticas que envolvem o beber, não apenas ansiando pelo ato da ingestão, mas também almejando as associações entre colegas, cumplicidades, segredos e "armações". É um tipo de resistência silenciosa, inconsciente, que procura fugir dos abusos de autoridade de muitos superiores hierárquicos. O absenteísmo frequente pode ser uma resposta usada perante as dificuldades de atenderem às exigências do trabalho, uma forma de resistência à dominação e à superexploração (Silva Filho, 1989).
Vale destacar que tais considerações puderam ser tecidas graças ao emprego do modo de pensar hermenêutico, que possibilitou a busca por significados profundos das histórias e biografias em torno de dois eixos: a trajetória de envolvimento com a substância etílica e o labor. Além disso, a abordagem intuitiva permitiu reconstruir o pensamento como uma maneira de reexperimentar o processo mental da pesquisadora principal por meio do círculo hermenêutico proposto por Schleiermacher e Dilthey (Palmer, 1986), ou melhor, a partir do processo pelo qual o todo fornece o sentido às partes e vice-versa. Alberti (1996, p. 9) ressalta: "A compreensão é então circular porque é nesse círculo que surge o sentido". De fato, a natureza antropológica que ampara esta atitude sempre implicará uma interpretação, que pressupõe a interferência da subjetividade do investigador (Geertz, 2008).
Há que se destacar o estatuto duplo, pessoal e profissional, da primeira autora, pois essa condição exigiu um permanente posicionamento de estranhamento e de reflexividade, ou seja, um constante "estado etnográfico" (Duarte & Gomes, 2008). Por meio da postura etnográfica, construiu-se uma maneira de olhar e de construir o relato, permitindo a captura da dimensão da experiência. Vale dizer que a seleção dos tópicos da pesquisa, a produção de conhecimento do campo de estudo e a análise dos dados foram guiadas pelos valores, interesses pessoais e compromissos sociais da pesquisadora (Weber, 2003). Ainda assim, não se perdeu de vista que, embora este seja um mundo social familiar a ela, tal familiaridade é aparente, requerendo um trabalho de autoconsciência para proceder à objetivação de seus elementos fundamentais (Bourdieu, 2005). Com efeito, foi preciso transformar o familiar em exótico e o exótico em familiar (Da Matta, 1978), enfrentando o desafio da proximidade (Velho, 1981).
Além disso, o seu posicionamento na instituição lhe permitiu mapear um mundo: "[...] cada pessoa está 'posicionada' em virtude de um padrão singular formado pela reunião, nessa pessoa, de partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares" (Barth, 2000, p. 137). Por pertencer a esse contexto e realizar as observações durante um período longo (Hughes, 1960), algo que ocorreu por força das contingências profissionais, foi possível desenvolver um conhecimento profundo, ainda que sempre limitado e parcial por divisar um determinado ângulo de análise que se descortina pelo ponto de vista do observador e do observado. Portanto, trata-se de uma verdade parcial que se extrai em meio a um emaranhado de discursos múltiplos, de mundos distintos e simultâneos, atravessados por correntes (streams) de tradições culturais: "A construção cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica" (Barth, 2000, p. 123).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que os resultados apresentados neste artigo fazem parte de uma pesquisa inaugural nas Forças Armadas brasileiras sobre o tema do etilismo no ambiente de trabalho, espera-se que ele sirva de estímulo para que outras pesquisas sejam realizadas e que desperte as autoridades navais para os efeitos negativos da ingestão do álcool no trabalho.
Há que se frisar que, para dar partida nessa seara ainda hermética à investigação acadêmica, aplicou-se um modelo explicativo em pequena escala, ou seja, a partir dos pacientes do CEDEQ, de modo a se obter uma figuração que se crê universal, tentando superar as resistências já esperadas. Para tal, procurou-se realçar os méritos e as limitações dos estudos microssociológicos intensivos, empreendendo-se um estudo a partir de um microcosmo (CEDEQ) que servisse a levantamentos macrossociológicos (MB) em pesquisas futuras. Esse modelo funcionou como gabarito, em pequena escala, aplicável a uma configuração mais ampla e complexa (Elias & Scotson, 2000): o contingente naval brasileiro. Tal protótipo procurou ilustrar uma dinâmica objetivando seu ajuste às experiências de outros militares não investigados, produzindo generalizações analíticas, ou seja, gerando induções a uma concepção mais abrangente a partir de um conjunto particular de resultados (Yin, 2005).
Em suma, ainda que não se conheça o número de afetados pelo consumo abusivo de álcool, acredita-se que, além daqueles que frequentam o CEDEQ, devam existir muitos outros precisando de ajuda. Sugere-se que a administração superior passe a fazer um levantamento sistemático e periódico do contingente afetado, inclusive de Oficiais, a fim de nortear medidas protetivas ao trabalhador e à instituição.
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Endereço para correspondência:
Elizabeth Espindola Halpern
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria
Avenida Venceslau Brás n. 71, fundos. Botafogo
CEP: 22.290-140. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: espindolahalpern@yahoo.com.br
1 O militar faz referência à escala de serviço na qual tem um dia de serviço, pernoitando a bordo, com o intervalo de cinco ou de dois dias sem serviço, ou seja, sem pernoitar. Mesmo após cumprir o serviço, ele continua trabalhando no dia seguinte, sem repor as horas de sono perdidas.
2 RDM: Regulamento Disciplinar para a Marinha (Brasil, Decreto nº 88.545, 1983).