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Neuropsicologia Latinoamericana
versão On-line ISSN 2075-9479
Neuropsicologia Latinoamericana vol.5 no.4 Calle 2013
DOI: 10.5579/rnl.2013.0164
Efeitos do treinamento musical no cérebro: aspectos neurais e cognitivos
Effets de la formation musicale sur le cerveau: aspects neuronaux et cognitifs
Efectos de la formación musical en el cerebro: aspectos neurales y cognitivos
Effects of musical training on the brain: neural and cognitive aspects
Ana Carolina Rodrigues; Maurício Loureiro; Paulo Caramelli
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, Brasil
RESUMO
O interesse no estudo dos efeitos do treinamento musical no cérebro humano tem crescido de maneira significativa nas últimas décadas. Várias investigações têm indicado que os músicos possuem características encefálicas, estruturais e funcionais, que não são encontradas em não-músicos e que estão relacionadas com a idade de início dos estudos musicais. Tal reorganização plástica pode também produzir diferenças cognitivas entre músicos e não-músicos, como tem sido demonstrado em diversos estudos. Músicos constituem um grupo ideal de indivíduos para investigações relacionadas à adaptação cerebral, devido às suas experiências únicas e intensivas de treinamento. Este artigo apresenta uma revisão das descobertas nas últimas duas décadas que mostram efeitos positivos do treinamento musical no cérebro, seja considerando aspectos neurais ou cognitivos. Tais investigações, além de contribuírem para uma melhor compreensão dos efeitos da prática musical no desenvolvimento e funcionamento de diversos sistemas neurais, subjacentes a várias capacidades cognitivas, podem ter implicações nas áreas de saúde e educação.
Palavras-chave: Música, Treinamento musical, Cérebro, Neuroplasticidade, Cognição.
RESUMEN
El interés por el estudio de los efectos de la formación musical en el cerebro humano ha crecido de manera significativa en las últimas décadas. Diversas investigaciones han demostrado que los músicos tienen características cerebrales, estructurales y funcionales, que no se encuentran en los no-músicos y que están relacionadas con la edad de inicio de la formación musical. Esta reorganización plástica también puede producir diferencias cognitivas entre los músicos y los no-músicos, como se ha demostrado en varios estudios. Los músicos son un grupo ideal de individuos para investigar la adaptación del cerebro, debido a las experiencias de entrenamiento intenso que llevan a cabo. En este artículo se presenta una revisión de los hallazgos en las últimas dos décadas que muestran efectos positivos de la formación musical en el cerebro, ya sea teniendo en cuenta los aspectos neurales como cognitivos. Además de contribuir a una mejor comprensión de los efectos de la práctica musical en el desarrollo y el funcionamiento de diversos sistemas neurales que subyacen a diferentes habilidades cognitivas, estas investigaciones pueden tener implicancias en el campo de la salud y la educación.
Palabras clave: Música, Formación musical, Cerebro, Neuroplasticidad, Cognición.
RÉSUMÉ
L'intérêt d'étudier les effets de la formation musicale sur le cerveau humain a grandi d'une façon significative dans les dernières décennies. Plusieurs travaux ont montré que les musiciens possèdent des caractéristiques encéphaliques structurelles et fonctionnelles non trouvées chez les non-musiciens et reliées à l'âge au début des études musicales. Les musiciens constituent un groupe idéal d'individus pour des enquêtes liées à l'adaptation cérébrale, en raison de leurs expériences de formation uniques et intensives. Cet article présente une révision des découvertes dans les deux dernières décennies, qui montrent les effets positifs de la formation musicale sur le cerveau, considérant à la fois les aspects neuronaux et cognitifs. En plus de contribuer à une meilleure compréhension des effets de la formation musicale sur le développement et le fonctionnement de plusieurs systèmes neuronaux, sous-jacents à plusieurs capacités cognitives, de telles études peuvent avoir des implications dans les domaines de la santé et l'éducation.
Mots-clefs: Musique, Formation musicale, Cerveau, Neuroplasticité, Cognition.
ABSTRACT
The interest in studying the effects of musical training on the human brain has grown considerably in the last decades. Several works have shown that musicians have structural and functional encephalic characteristics which are not found in non-musicians and which are related with the age at commencement of musical studies. This plastic reorganization can also produce cognitive differences between musicians and non-musicians, as has been demonstrated in many studies. Musicians can be considered as ideal cases for investigations on brain adaptation, due to their unique and intensive training experiences. This article presents a review of findings in the last two decades showing positive effects of musical training on the brain, considering both neural and cognitive aspects. In addition to contributing to a better understanding of the effects of musical practice on development and functioning of several neural systems, which underlie many cognitive abilities, such studies may have implications in the fields of health and education.
Keywords: Music, Musical training, Brain, Neuroplasticity, Cognition.
Introdução
O interesse no estudo dos efeitos do treinamento musical no cérebro tem crescido de maneira significativa nas últimas décadas. Músicos constituem um grupo ideal de indivíduos para a investigação de adaptações às exigências únicas da performance musical, assim como para o estudo dos substratos cerebrais envolvidos em habilidades musicais específicas. Segundo Schlaug (2001), o aspecto mais importante de se considerar músicos como modelo para estudos sobre adaptação estrutural e funcional do cérebro frente a desafios extraordinários é o fato de que o início do treinamento musical geralmente ocorre quando o cérebro ainda pode ser capaz de se adaptar a tais desafios. Considerando a importância dos primeiros anos do desenvolvimento no processo de maturação cerebral, o treinamento musical, iniciado precocemente, poderia resultar em adaptação estrutural, provavelmente reorganização plástica, isto é, mudanças nas conexões sinápticas e/ou nos processos de crescimento de prolongamentos neurais (Baeck, 2002). Além disso, o tempo dedicado ao treinamento musical é considerável. Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (1993), por exemplo, relatam que um violinista, ao longo de seu estudo voltado à performance, acumula aproximadamente 10.000 horas de prática ao completar 21 anos de idade. Assim, é possível a investigação de vários aspectos da aprendizagem, bem como das modificações estruturais e funcionais nos cérebros dos músicos como resultado de suas experiências únicas de treinamento.
Estudos com animais têm fornecido evidências de que a estimulação ambiental pode influenciar o desenvolvimento neural. Ratos criados em ambientes socialmente e cognitivamente complexos apresentam, por exemplo, aumento da mielinização do corpo caloso devido a modificações do número e tamanho dos axônios (Juraska & Kopcik, 1988) e aumento do número de células hipocampais em relação a ratos criados em isolamento (Kempermann, Kuhn & Gage, 1998). Estudos em humanos também têm demonstrado modificações plásticas no cérebro após aprendizado e treinamento motor, como maior representação cortical dos dedos (Pascual-Leone et al., 1995a) e maior ativação do córtex motor primário (Karni et al., 1995; 1998) após prática manual. Avanços significativos têm sido realizados mediante o estudo de processos neuroplásticos transmodais na população cega (e.g. Roder, Rosler & Neville, 2001) e surda (e.g. Bavelier & Neville, 2002), bem como o monitoramento dos efeitos da amputação de membros (e.g. Flor et al., 1995).
Nessa perspectiva, o estudo envolvendo indivíduos submetidos a treinamento musical prolongado pode trazer contribuições significativas à pesquisa em neuroplasticidade. De acordo com Münte et al. (2002), um pianista, por exemplo, precisa coordenar bimanualmente a produção de até 1.800 notas por minuto. A música, como estímulo sensorial, é altamente complexa e estruturada em diversos níveis, transcendendo a complexidade dos estímulos usualmente utilizados na pesquisa em animais. Além disso, a produção musical requer integração de diversos tipos de informação e precisão no monitoramento da performance.
Várias investigações, que serão abordadas adiante, têm indicado que os músicos possuem características encefálicas, estruturais e funcionais, que não são encontradas em não-músicos e que estão relacionadas com a idade de início dos estudos musicais. Tal reorganização estrutural e funcional pode também produzir diferenças cognitivas entre músicos e não-músicos, como também será discutido. Schellenberg (2001) salienta que as aulas de música podem ser consideradas experiências únicas porque envolvem uma combinação particular de vários aspectos tais como horas de prática individual, leitura à primeira vista, atenção e concentração, percepção de ritmo, treinamento auditivo, presença de feedback do professor e exposição à música. Além disso, o aprendizado musical é capaz de desenvolver habilidades gerais, como atender rapidamente a informações temporais, detectar agrupamentos temporais, desenvolver atenção a várias formas de sinais, aprimorar a sensibilidade emocional e a expressividade e desenvolver habilidades motoras finas. Logo, efeitos positivos de transferência para domínios não-musicais poderiam também ser únicos para os indivíduos que aprendem música.
Este trabalho consiste em um estudo de revisão e tem como objetivo apresentar um conjunto de investigações, realizadas nas últimas duas décadas e com resultados publicados em periódicos científicos de diferentes áreas do conhecimento, que fornecem evidências de que o treinamento musical prolongado pode estar associado a processos neuroplásticos e, consequentemente, a modificações no processamento cognitivo. Nosso trabalho está dividido em três partes: inicialmente apresentamos estudos que têm demonstrado modificações encefálicas – estruturais e funcionais – decorrentes do treinamento musical prolongado; em seguida, abordamos pesquisas que têm evidenciado diferenças cognitivas, em diversos domínios, entre músicos e não-músicos; e, finalmente, discutimos possíveis implicações dos resultados de estudos sobre a influência da prática musical no cérebro nas áreas de saúde e educação.
Treinamento musical e modificações encefálicas
Mesmo que todos os indivíduos tenham contato ou estejam envolvidos, de alguma forma, com a atividade musical em suas rotinas diárias, eles o fazem com esforço e tempo limitados. Por outro lado, poucos indivíduos se tornam músicos profissionais, mediante prática prolongada e iniciada precocemente. Assim, segundo Münte et al. (2002), os músicos representam um modelo único para o estudo das modificações plásticas no cérebro humano, considerando a complexidade do estímulo envolvido – música – e o grau de exposição a ele. Nas últimas décadas, inúmeras pesquisas observaram modificações neuroplásticas encefálicas em músicos. Apresentamos a seguir uma descrição de estudos que evidenciaram modificações encefálicas estruturais e funcionais em músicos, decorrentes da prática musical prolongada.
Modificações encefálicas estruturais
Vários estudos têm mostrado diferenças entre músicos e não-músicos em relação a características estruturais do encéfalo (Tabela 1).
Schlaug, Jäncke, Huang e Steinmetz (1995a) investigaram, em músicos e não-músicos, a assimetria anatômica do plano temporal, porção bem definida do córtex auditivo. Foi verificada, em músicos, maior assimetria em direção ao hemisfério esquerdo. Os mesmos pesquisadores descobriram diferenças em outro substrato neuroanatômico, o corpo caloso (região anterior), que também parece ser maior em músicos (Schlaug, Jäncke, Huang, Staiger & Steinmetz, 1995b). Uma comparação entre subgrupos revelou que tal porção do corpo caloso foi, de maneira significativa, maior em músicos com início precoce do treinamento musical (anterior a sete anos de idade) em relação aos músicos com início mais tardio e também ao grupo controle. Segundo Schlaug (2001), a porção anterior do corpo caloso contém principalmente fibras de regiões frontais relacionadas à motricidade e de regiões pré-frontais, além de ser a última sub-região calosa a completar o processo de maturação. Assim, de acordo com o autor, a diferença anatômica observada na porção anterior do corpo caloso em músicos deve ser entendida em um contexto de exigência de maior comunicação inter-hemisférica, permitindo a realização de sequências bimanuais complexas.
Ao avaliar as dimensões do córtex motor dos hemisférios direito e esquerdo em músicos e não-músicos, Amunts et al. (1997) verificaram assimetria, com maiores dimensões no córtex motor esquerdo, em ambos os grupos. Porém, no grupo dos músicos, observou-se menor grau de assimetria, já que o córtex motor direito foi significativamente maior em relação ao grupo controle. Quanto ao córtex motor esquerdo, não houve diferença significativa entre os grupos. Considerando que todos os indivíduos eram destros, os músicos apresentaram maior representação cortical da área responsável pelo controle dos movimentos da mão não-dominante (córtex motor direito). Os pesquisadores ressaltam que a reduzida assimetria do córtex motor dos músicos coincidiu com a ocorrência de menor grau de assimetria manual em um teste motor (tapping test) realizado previamente. Este teste consiste em bater repetidamente, flexionando a articulação do punho, um estilete em uma placa de metal durante 20 segundos, uma vez com a mão dominante e posteriormente com a outra mão. O estudo também verificou correlação entre o tamanho do córtex motor de ambos os hemisférios e a idade de início dos estudos musicais. Quanto mais cedo o início dos estudos, maiores as dimensões dos córtices motores direito e esquerdo.
Em estudo retrospectivo, Schlaug, Lee, Thangaraj, Edelman e Waruch (1998) avaliaram o volume do cerebelo de músicos e não-músicos e constataram volume cerebelar relativo médio 5% maior em músicos do sexo masculino quando comparados a não-músicos do mesmo gênero. Em relação ao sexo feminino, não foi encontrada diferença significativa entre musicistas e não-musicistas, o que, segundo os pesquisadores, pode ter sido devido ao menor tamanho da amostra (34 mulheres versus 56 homens) e à maior heterogeneidade da mesma. Por outro lado, os resultados obtidos com os homens podem ser interpretados como evidência de adaptações microestruturais no cerebelo em resposta ao início precoce e à prática contínua de sequências bimanuais complexas. Tais modificações microestruturais poderiam levar a diferenças estruturais detectáveis ao nível macroscópico.
O estudo de Gaser e Schlaug (2003), que utilizou a técnica de morfometria baseada em voxel aplicada a imagens de ressonância magnética, a qual permite a determinação do volume de substância cinzenta no encéfalo como um todo, e não apenas em regiões definidas a priori, verificou, em músicos, aumento do volume de substância cinzenta em áreas cerebrais relacionadas à motricidade (córtex motor primário e pré-motor dos dois hemisférios e córtex cerebelar esquerdo), audição (giro de Heschl esquerdo), processamento visual-espacial (córtex parietal superior dos dois hemisférios) e processamento visual (giro temporal inferior dos dois hemisférios). Segundo os autores, os resultados podem ser vistos como adaptações estruturais em resposta à aquisição e prática intensiva de habilidades, o que foi corroborado pela descoberta de correlações positivas entre o volume de substância cinzenta e a intensidade de prática musical.
Bengtsson et al. (2005) investigaram a influência da prática musical prolongada sobre aspectos estruturais da substância branca cerebral, com a utilização da técnica de imagem com tensor de difusão. Nesta modalidade de imagem, a aplicação de gradientes adequados de campo magnético faz com que haja uma sensibilização para o movimento randômico das moléculas de água – difusão – na direção do gradiente do campo. Esta técnica, portanto, utiliza-se das características de difusibilidade da água e das eventuais restrições impostas a este processo (Engelhardt & Moreira, 2008). A anisotropia fracionada (FA) é uma medida de difusão da água e representa a orientação das estruturas dos feixes de fibras ao longo dos quais as moléculas de água se movem de modo preferencial, sendo que valores altos de FA podem ser relacionados a fatores como grau de mielinização e densidade axonal (Engelhardt & Moreira, 2008).
Ao comparar pianistas profissionais e não-músicos, Bengtsson et al. (2005) verificaram, no primeiro grupo, valores mais altos de FA no ramo posterior direito da cápsula interna, que contém fibras dos tratos córtico-espinhais, os quais são de extrema importância para os movimentos independentes dos dedos. Além disso, os pesquisadores observaram correlações positivas entre a intensidade de prática musical em diferentes períodos da vida e valores de FA em estruturas como corpo caloso, cápsula interna e tratos de áreas frontais superiores e inferiores (na infância), corpo caloso e tratos de áreas frontais superiores (na adolescência) e cápsula interna e fascículo arqueado (na idade adulta). Segundo os autores, os resultados sugerem que a prática musical prolongada pode levar a modificações plásticas na substância branca, sendo que o aumento da mielinização, estimulado por atividade neural de feixes de fibras durante o treinamento, pode ser um mecanismo subjacente a tais modificações.
Han et al. (2009) avaliaram a densidade de substância cinzenta e a integridade de substância branca, em pianistas e não-músicos, com a utilização das técnicas de morfometria baseada em voxel e de imagem com tensor de difusão. Os pesquisadores verificaram, em pianistas, maior densidade de substância cinzenta no córtex sensório-motor do hemisfério esquerdo e no hemisfério cerebelar direito. Em relação à substância branca, foram encontrados valores mais altos de FA no ramo posterior direito da cápsula interna, corroborando, portanto, o estudo de Bengtsson et al. (2005). Segundo os autores, os resultados sugerem que a prática de piano a longo prazo pode levar a adaptações nas substâncias cinzenta e branca em regiões relacionadas à motricidade. Tais modificações podem refletir maior número de sinapses, volume da glia ou mielinização e diâmetro dos axônios (Anderson et al., 1994; Anderson et al., 2002; Bengtsson et al., 2005).
Groussard et al. (2010) investigaram a densidade de substância cinzenta em áreas que previamente apresentaram maior ativação em músicos durante uma tarefa de recuperação de memória musical de longa duração e observaram, nestes indivíduos, maior densidade na região anterior do hipocampo esquerdo. Tal resultado persistiu após análise do cérebro como um todo. Assim, o estudo fornece evidências de diferença estrutural entre músicos e não-músicos em uma região cerebral classicamente relacionada à memória, capacidade cognitiva particularmente relevante para a prática musical.
Modificações encefálicas funcionais
As diferenças encefálicas entre músicos e não-músicos não são apenas estruturais, mas também se relacionam às características funcionais do encéfalo (Tabela 2).
O estudo de Elbert, Pantev, Wiendbruch, Rockstroh e Taub (1995) investigou as representações corticais somatossensitivas dos dedos D1 (polegar) e D5 (dedo mínimo) de ambas as mãos em dois grupos de indivíduos: músicos (instrumentistas de cordas) e não-músicos. Após estimulação dos dedos D1 e D5 da mão esquerda, verificou-se que a magnitude de ativação cortical foi maior em músicos do que em não-músicos, evidenciando uma representação cortical aumentada de dedos que são intensivamente usados por instrumentistas de cordas. Os autores ressaltam que tal efeito foi particularmente pronunciado para D5. A representação cortical para D1 foi também aumentada, mas em menor grau em relação à D5, o que pode ser explicado pela menor utilização de D1, quando comparado aos outros dedos, por instrumentistas de cordas. Em relação à representação cortical da mão direita, não foi observada diferença significativa entre os grupos. O grau de representação cortical somatossensitiva da mão esquerda em músicos mostrou correlação com a idade de início dos estudos musicais, sendo que a resposta cortical para estimulação de D5 foi maior em músicos que iniciaram seus estudos mais cedo. Entre os músicos que tiveram um início mais tardio (após os 13 anos de idade), a representação cortical para D5 foi menor, mas, ainda assim, superou o observado no grupo controle.
Pantev et al. (1998) investigaram a representação cortical auditiva em três grupos de indivíduos: músicos com ouvido absoluto, músicos com ouvido relativo e não-músicos. A estimulação acústica consistiu em uma sequência pseudo-aleatória de quatro notas tocadas no piano (Dó4, Dó5, Dó6 e Dó7) e quatro tons puros com as mesmas frequências fundamentais daquelas notas (262, 523, 1046 e 2093 Hz). Os resultados mostraram, em todos os músicos, uma maior representação cortical auditiva em relação aos não-músicos. Após estimulação auditiva, a magnitude total de ativação cortical, que reflete o número de neurônios envolvidos na resposta, foi 25% maior em músicos do que no grupo controle. Curiosamente, este resultado foi verificado apenas quando o estímulo auditivo consistia em tons produzidos no piano. Para tons puros, mesmo que de mesma frequência e intensidade, não foi observada diferença significativa entre os grupos em relação à ativação cortical. Os autores ressaltam que os tons puros não são encontrados em nosso ambiente acústico natural e também não fazem parte do treinamento musical, o que poderia explicar a ausência de diferença significativa entre músicos e não-músicos. Não foram observadas diferenças entre músicos com ouvido absoluto e músicos com ouvido relativo em relação à ativação cortical. A descoberta de maior representação cortical auditiva nos músicos correlacionou-se também com a idade na qual os estudos musicais começaram: quanto mais jovem, maior o efeito. Nesse estudo, uma diferença marcante foi encontrada entre aqueles que começaram o treinamento musical antes e após os nove anos de idade.
Estudos envolvendo mismatch negativity (MMN) também mostram diferenças funcionais entre os cérebros de músicos e não-músicos. O MMN é um dos componentes dos potenciais evocados no córtex auditivo, obtido quando se apresenta a um indivíduo um bloco de centenas de estímulos idênticos (padrões) que são aleatoriamente substituídos por estímulos acusticamente diferentes (desviantes). Tais diferenças podem ser relativas à frequência, duração, intensidade, localização espacial, características fonéticas, rítmicas e padrão temporal (Santos et al., 2006). É importante ressaltar que o MMN ocorre na ausência de atenção ao estímulo.
No estudo de Koelsch, Schroger e Tervaniemi (1999), violinistas profissionais e não-músicos foram submetidos à estimulação auditiva representada por diversos acordes. Foi verificado que acordes perfeitos levemente alterados, apresentados entre acordes perfeitos maiores, produziram MMN apenas em músicos, o que, segundo os autores, demonstra que os mesmos possuem maior capacidade de extrair, anteriormente a engajamento atencional, informações de estímulos musicalmente relevantes. Rüsseler, Altenmüller, Nager, Kohlmetz e Münte (2001) investigaram a integração temporal em músicos e não-músicos. Durante a estimulação auditiva, foi apresentada uma sequência de tons regularmente espaçados por intervalos de 150 milissegundos, na qual foram introduzidos dois tipos de tons desviantes, espaçados por intervalos menores (100 e 130 milissegundos) que o intervalo padrão. Os resultados mostraram que os músicos apresentaram MMN para ambos os tons desviantes, enquanto os não-músicos exibiram MMN apenas para tons espaçados por 100 milissegundos. De acordo com os autores, os resultados indicam que o espaço de integração temporal parece ser maior e mais preciso em músicos e que o treinamento musical prolongado é refletido em modificações na atividade neural.
Herdener et al. (2010) avaliaram as respostas neurais no hipocampo à novidade temporal, apresentando aos sujeitos estímulos sonoros desviantes similares àqueles utilizados por Rüsseler et al. (2001), com três tipos de desvio de espaçamento (142, 130 e 100 milissegundos) em relação ao intervalo padrão (150 milissegundos). Além de seu conhecido papel na memória e navegação espacial (Ekstrom et al., 2003; Maguire, 2001), o hipocampo parecer estar envolvido também em processos de detecção de estímulos novos (Knight, 1996; Strange, Fletcher, Henson, Friston & Dolan, 1999).
O estudo de Herdener et al. (2010), que envolveu duas abordagens – transversal e longitudinal –, mostrou maior ativação da região anterior do hipocampo esquerdo, em resposta à novidade temporal, em músicos profissionais, quando comparados a não-músicos, e também em estudantes de curso superior de Música após um ano de estudos. Segundo os autores, as modificações funcionais observadas no hipocampo podem ser relacionadas ao desenvolvimento de habilidades auditivas, particularmente no que se refere à percepção de intervalos de tempo, ao longo do treinamento musical. Tal ideia é corroborada pela correlação positiva encontrada no estudo entre capacidade musical geral e magnitude das respostas neurais no hipocampo. Os pesquisadores também apontam que existem evidências de que lesões no hipocampo esquerdo em humanos são capazes de prejudicar a discriminação de intervalos de tempo (Samson, Ehrle & Baulac, 2001), o que reforça a relevância desta estrutura para a detecção de novidade temporal na modalidade auditiva.
O estudo de Groussard et al. (2010) investigou a ativação cerebral durante uma tarefa de recuperação de memória musical de longa duração em músicos e não-músicos. Os resultados mostraram maior ativação bilateral da região anterior do hipocampo, dos giros occipital, lingual e frontal orbitomedial e de áreas temporais superiores, assim como maior ativação do córtex cingulado médio. Os pesquisadores sugerem que o treinamento musical pode influenciar os processos relacionados à memória de longa duração, sendo que foi verificada não apenas maior ativação hipocampal, mas também ativação de áreas possivelmente envolvidas na memória autobiográfica, caracterizada por riqueza de detalhes e processamento auto-referencial (e.g. Cabeza & St Jacques, 2007). Assim, ao recuperar a memória musical, os músicos evocariam, por exemplo, imagens visuais e auditivas relacionadas a experiências pessoais vivenciadas pelos mesmos quando do processo de codificação da memória. Segundo os autores, as evidências sugerem a existência de associação positiva entre o treinamento musical e o desenvolvimento dos processos mnemônicos.
Em um estudo neurofisiológico e comportamental, George e Coch (2011) investigaram a capacidade de memória operacional em indivíduos com e sem treinamento musical. Foram avaliadas a amplitude e a latência do P300, um dos componentes dos potenciais evocados, produzidos em resposta a um estímulo desviante apresentado em meio a uma série de estímulos padrão, estando o sujeito atento à estimulação, em tarefas envolvendo memória operacional auditiva e visual. Tanto a amplitude quanto a latência do P300 têm sido relacionadas aos processos de memória operacional. Enquanto a amplitude reflete a facilidade do desempenho na tarefa, a latência é considerada um indicador do tempo de avaliação do estímulo (e.g. Polich, 2007).
Os resultados do estudo de George e Coch (2011) mostraram que os estímulos desviantes produziram componentes P300 com menor latência, tanto em tarefas auditivas quanto visuais, em indivíduos com treinamento musical. Além disso, na tarefa auditiva, os estímulos desviantes também geraram componentes P300 com maior amplitude nestes indivíduos, sendo que, na tarefa visual, foi observada tendência a este mesmo resultado. É importante mencionar que, em ambos os grupos, houve geração de P300 em várias regiões corticais, mas principalmente no córtex têmporo-parietal. Quanto à investigação comportamental, os pesquisadores verificaram melhor desempenho dos indivíduos com treinamento musical em três testes padronizados de memória operacional – fonológica, visual-espacial e executiva (Reynolds & Voress, 2007) – em relação ao grupo controle. Foram observadas correlações significativas entre o tempo de prática musical e a amplitude e latência do P300 na tarefa auditiva e a latência deste componente na tarefa visual.
Segundo George e Coch (2011), considerando que o treinamento musical requer atender simultaneamente a informações visuais e auditivas em um curto período de tempo, bem como integrá-las, é possível que o desenvolvimento de tal capacidade esteja refletido nas diferenças observadas entre os grupos quanto à latência do P300. De forma semelhante, a maior amplitude do P300 na tarefa auditiva sugere maior facilidade na discriminação auditiva e na atualização da memória operacional. Assim, os resultados neurofisiológicos, assim como os comportamentais, indicam associação positiva entre treinamento musical prolongado e capacidade de memória operacional nos domínios auditivo e visual.
Musacchia, Sams, Skoe e Kraus (2007) mostraram que as modificações na organização funcional podem envolver também estruturas sensoriais subcorticais, demonstrando que os músicos, em relação ao grupo controle, possuem, no tronco encefálico, respostas auditivas e audio-visuais maiores e mais precoces a estímulos de fala e música. Os resultados também indicaram correlação positiva entre anos de prática musical e magnitude da ativação do tronco encefálico a estímulos de fala, sugerindo que os músicos podem desenvolver maior representação do atributo altura através do treinamento musical prolongado. Assim, segundo os autores, o estudo sugere que práticas de alta complexidade, como aprender a tocar um instrumento musical, podem exercer impacto nos mecanismos de codificação em estruturas sensoriais subcorticais. Os resultados da pesquisa indicam que os músicos possuem modificações subcorticais, provavelmente decorrentes do desenvolvimento de habilidades musicais, como discriminação auditiva e visual, que favorecem a codificação auditiva e audio-visual de estímulos de fala e música. Os autores ainda ressaltam que mecanismos de codificação multissensorial se desenvolvem e se intensificam por meio de relações recíprocas entre processos corticais e subcorticais, como tem sido demonstrado (e.g. Wible, Nicol & Kraus, 2005).
Treinamento musical e capacidades cognitivas
Os estudos sobre prática musical e neuroplasticidade anteriormente citados indicam a existência de uma reorganização encefálica, estrutural e funcional, como resultado do treinamento musical prolongado, o que poderia influenciar funções cognitivas, produzindo também diferenças entre músicos e não-músicos. Várias pesquisas (Anvari, Trainor, Woodside & Levy, 2002; Bilhartz, Bruhn & Olson, 1999; Costa-Giomi, 1999; Forgeard, Winner, Norton & Schlaug, 2008; Graziano, Peterson & Shaw., 1999; Gromko, 2005; Hetland, 2000; Ho, Cheung & Chan, 2003; Piro & Ortiz, 2009; Rauscher et al., 1997; Rauscher & Zupan, 2000; Standley & Hughes, 1997; Vaughn, 2000) têm relatado, em crianças, associações positivas entre o estudo formal da música e capacidades cognitivas pertencentes ao domínio não-musical, como raciocínio verbal, matemático e visual-espacial. Segundo Schellenberg (2001), se a educação musical representa um enriquecimento para o ambiente da criança, é possível sugerir que tal enriquecimento seria capaz de promover desenvolvimento neurológico, o que poderia influenciar no incremento de capacidades pertencentes a outros domínios. Contudo, é preciso cautela na interpretação dos resultados de pesquisas que sugerem ganhos cognitivos associados ao treinamento musical, já que, muitas vezes, não são possíveis generalizações.
Alguns trabalhos também têm demonstrado associações positivas entre treinamento musical e inteligência geral em crianças. Schellenberg (2004), em um estudo longitudinal, distribuiu uma amostra de 144 crianças em quatro grupos: dois grupos experimentais – submetidos a aulas de música (piano ou canto) – e dois grupos controles – um submetido a aulas de teatro e outro não submetido a nenhum tipo de aula artística. O quociente de inteligência (Q.I.) das crianças foi avaliado antes do início das aulas e um ano após o mesmo, mediante a aplicação do WISC III (Wechsler, 1991), o qual contém doze subtestes. Em relação às crianças pertencentes aos grupos controles, as crianças que receberam aulas de música apresentaram um maior aumento do Q.I. De acordo com o autor, embora a diferença entre os grupos tenha sido significativa (p < 0,05), a magnitude do efeito (d = 0,35) foi relativamente pequena (d = 0,2 indica efeito pequeno e d = 0,5, efeito médio, segundo Cohen, 1988), sendo que as crianças que participaram dos grupos controles apresentaram, em média, aumento de 4,3 pontos (desvio-padrão = 7,3) na escala de Q.I., e as crianças que receberam aulas de música, aumento de 7,0 pontos (desvio padrão = 8,6). Contudo, em dez, dos doze subtestes, as crianças com treinamento musical apresentaram um resultado superior em relação às outras crianças.
Em outro estudo (Schellenberg, 2006), o autor investigou a existência de possíveis associações entre a duração do treinamento musical e o Q.I., avaliando crianças e adultos que receberam aulas de música durante períodos de tempo variados. Na primeira parte do estudo, que envolveu 147 crianças entre seis e 11 anos de idade, foram observadas correlações positivas entre a duração do treinamento musical e o Q.I. (coeficientes de correlação de r = 0,17 a r = 0,25 entre os subtestes que apresentaram correlações significativas; p < 0,05). Na segunda parte do estudo, que envolveu 150 estudantes universitários entre 16 e 25 anos de idade, também foram verificadas correlações positivas, porém mais fracas em relação à primeira parte do estudo, entre o tempo de prática musical na infância e o funcionamento intelectual. (coeficientes de correlação de r = 0,17 a r = 0,23 entre os subtestes que apresentaram correlações significativas; p < 0,05). De acordo com Schellenberg (2006), os resultados indicam que a exposição formal à música durante a infância está associada positivamente ao Q.I., e que tais associações, embora sejam pequenas, parecem ter um caráter amplo e duradouro. Embora os efeitos do treinamento musical sobre funções cognitivas tenham sido mais bem documentados em crianças, estudos envolvendo adultos com e sem experiência musical, assim como músicos profissionais e não-músicos, também têm mostrado diferenças entre os grupos em diferentes domínios cognitivos (Tabela 3). Apresentamos a seguir uma descrição de estudos que evidenciaram capacidades cognitivas aumentadas em músicos, decorrentes da prática musical prolongada.
Vários estudos têm sugerido efeitos positivos do treinamento musical em capacidades cognitivas visuais. Neuhoff, Knight e Wayand (2002) utilizaram um teste no qual foi solicitado aos participantes, com diferentes níveis de experiência musical, que avaliassem a magnitude de intervalos de altura utilizando um analógico visual. Os resultados mostraram que os músicos profissionais forneceram respostas mais precisas, sugerindo melhor uso do domínio visual (distâncias espaciais) para a representação de uma informação sonora (intervalos de altura). Uma condição controle no estudo, na qual diferenças de brilho deveriam ser visualmente mapeadas, mostrou que tal vantagem encontrada em músicos não poderia ser explicada apenas por maior capacidade sensório-motora.
O estudo de Brochard, Dufour e Després (2004) investigou capacidades visuais-espaciais em músicos e não-músicos. O experimento principal envolveu a aplicação de um teste neuropsicológico capaz de avaliar capacidades visuais-espaciais de percepção e de imagem mental. Os pesquisadores mediram o tempo de reação dos indivíduos, em uma tarefa na qual era preciso detectar a posição de um ponto em relação a uma linha horizontal (discriminação vertical) ou vertical (discriminação horizontal), apresentados em uma tela de computador. Foram realizadas duas condições experimentais: uma condição de imagem – na qual a linha de referência desaparecia antes que o ponto fosse apresentado, envolvendo, portanto, a necessidade de uma imagem mental da linha – e uma condição de percepção – que envolvia o mesmo procedimento, porém com a permanência da linha na tela. Os resultados mostraram que os tempos de reação foram significativamente menores em músicos em ambas as condições, mas principalmente na discriminação vertical na condição de imagem.
Com a utilização de outro teste, a fim de comparar as habilidades sensório-motoras entre os grupos, Brochard et al. (2004) concluíram que o melhor desempenho dos músicos no teste descrito anteriormente poderia ser apenas parcialmente explicado por uma melhor integração sensório-motora. Os pesquisadores apontam que o aumento das capacidades visuais-espaciais observado nos músicos pode ser devido à experiência de leitura musical, já que a decodificação de altura envolve o reconhecimento das posições relativas das notas musicais ao longo do eixo vertical da partitura. O estudo também ressalta que as diferenças observadas poderiam ser explicadas por processos atencionais mais eficientes em músicos, o que ainda requer maiores investigações.
O estudo de Kalakoski (2007) envolveu a aplicação de um método para a investigação dos processos de codificação de informações visuais individuais em unidades semânticas maiores e avaliação da influência do treinamento musical nos processos de construção de representações mentais. Músicos e não-músicos foram submetidos a um teste no qual padrões de notas musicais, representados por círculos cheios e vazios, eram visualmente apresentados em uma pauta, um a um, sendo que o sujeito, após a apresentação, deveria se lembrar da sequência de padrões apresentados o mais corretamente possível. As sequências consistiam em trechos melódicos simples, ("sequências musicais") não familiares aos indivíduos, ou nestes mesmos trechos apresentados de trás para frente ("sequências espelhadas"). Os resultados mostraram que os músicos apresentaram melhor desempenho na tarefa de evocação para ambos os tipos de sequências, além de maior acurácia na evocação de sequências musicais em relação às espelhadas, resultado não verificado no grupo dos não-músicos.
Na segunda parte do estudo de Kalakoski (2007), o mesmo teste foi aplicado, desta vez sem a exibição de sequências espelhadas e com as notas musicais apresentadas por escrito, sendo a oitava indicada pelos números 1 e 2. Os músicos, mais uma vez, apresentaram maior acurácia na tarefa de evocação, indicando que o tipo de estímulo visual não influenciou o desempenho destes indivíduos. É importante mencionar que o padrão de erros observado neste teste também mostrou diferenças qualitativas entre os grupos, sugerindo representações mentais distintas. Enquanto os músicos apresentaram mais erros de transposição, entre um e três tons abaixo ou acima da referência, em relação aos não-músicos, estes exibiram mais erros de identificação de oitava quando comparados aos músicos. Como mencionam os autores, os resultados do estudo indicam que os músicos são capazes de construir, de forma mais eficiente, representações mentais, a fim de conectar informações isoladas, as quais devem ser ativamente mantidas na memória operacional, transformando-as em uma unidade semântica maior. Presumivelmente, no grupo dos músicos, houve a construção de representações auditivas internas a partir dos estímulos visuais apresentados, o que já foi sugerido por outros estudos (e.g. Brodsky, Henik, Rubinstein & Zorman, 2003; Schürmann, Raij, Fujiki & Hari, 2002). Contudo, como ressaltam os pesquisadores, é possível que outros tipos de representação também sejam construídos a partir da estimulação visual.
Quanto à prática de leitura musical, é preciso fazer algumas considerações. A comparação dos movimentos sacádicos – movimentos rápidos dos olhos realizados entre fases de fixação – em músicos e não-músicos permite observações interessantes. Segundo Kopiez e Galley (2002), o padrão dos movimentos sacádicos pode ser usado como um possível indicador de transtornos mentais, assim como uma medida da velocidade de processamento da informação visual geral. De acordo com os autores, devido às demandas específicas da leitura musical, parece razoável presumir que o início precoce da prática instrumental com a utilização da leitura de partitura pode ser capaz de modificar a maneira pela qual a informação visual é processada em músicos adultos. O estudo de Kopiez e Galley (2002), que comparou músicos e não-músicos, mostrou que, durante a execução de tarefas oculo-motoras simples, músicos profissionais produzem movimentos sacádicos mais rápidos e eficientes, com mais movimentos antecipatórios, em relação a não-músicos. Os autores sugerem que os parâmetros de movimento do sistema oculo-motor revelam uma espécie de "impressão digital" da maneira pela qual o indivíduo processa a informação visual, e que tal característica é diferente nos músicos.
Os movimentos sacádicos em músicos e não-músicos adultos também foram investigados por Gruhn et al. (2006), os quais citam outras pesquisas que apontam para a existência de uma conexão direta entre atenção e movimentos sacádicos (Biscaldi, Fischer & Hartnegg, 2000; Currie, Ramsden, McArthur & Maruff 1991; Kinsler & Carpenter, 1995). Como ressaltam Gruhn et al. (2006), a fixação, caracterizada por uma supressão voluntária dos movimentos sacádicos, assim como a taxa de movimentos sacádicos expressos, reações entre 80 e 135 milissegundos, envolvem processos no lobo frontal, o qual também participa de mecanismos atencionais. Segundo os pesquisadores, apesar da ausência de diferenças estatisticamente significativas na maior parte dos parâmetros analisados, foi observada clara tendência de superioridade dos músicos em relação às capacidades oculo-motoras. Em geral, os músicos apresentaram tempos de reação menores, maior produção de movimentos sacádicos expressos e maior êxito na correção de erros direcionais e na supressão sacádica. De acordo com os autores, este resultado deve-se provavelmente à prática musical diária, que exige grande concentração, fixação ocular controlada, atenção dirigida e controle voluntário de todos os movimentos finos envolvidos na performance musical.
Considerando as evidências indicando maior eficiência de processos visuais em músicos, realizamos um estudo comparativo a fim de verificar se o treinamento musical poderia resultar no aumento da capacidade de atenção visual (Rodrigues, Guerra & Loureiro, 2007). Em nosso estudo, músicos e não-músicos foram submetidos a testes neuropsicológicos indicados para avaliar a capacidade de atenção visual. O principal teste aplicado, Multiple Choice Reaction Time (Biodata, 1988), exigia que o indivíduo respondesse, por meio de ações motoras específicas, a vários estímulos luminosos apresentados sequencialmente. Para avaliação da capacidade de atenção visual dividida, o teste foi aplicado duas vezes: na primeira, situação 1, isoladamente, e na segunda, situação 2, concomitantemente a um vídeo com outros estímulos visuais, os quais se alternavam aleatoriamente. Ao indivíduo foi solicitado informar verbalmente a ocorrência da mudança dos estímulos do vídeo no momento em que fosse percebida.
Nossos resultados mostraram que, na situação 1, os músicos apresentaram uma porcentagem de respostas corretas significativamente maior em relação aos não-músicos, o que sugere maior capacidade de atenção visual, assim como reações visuais-motoras mais eficientes. Na situação 2, não foi observada diferença significativa na porcentagem de respostas corretas entre os grupos, mas os músicos apresentaram menores tempos de reação aos estímulos do vídeo, o que pode sugerir maior capacidade de atenção visual dividida, indicando que os músicos conseguiram dividir a atenção visual entre os dois conjuntos de estímulos de modo mais eficiente.
Em continuidade à pesquisa anterior, investigamos se o treinamento musical intensivo poderia estar associado a aumento da capacidade de atenção visual em três diferentes modalidades – seletiva, dividida e sustentada – bem como a aumento da capacidade de memória visual (Rodrigues, Loureiro & Caramelli, 2013). Músicos e não-músicos foram submetidos a cinco testes neuropsicológicos: três testes de atenção visual, sendo um para cada modalidade atencional, um teste de memória visual e um teste de tempo de reação simples.
Os músicos mostraram melhor desempenho em quatro variáveis dos três testes de atenção visual, envolvendo tempo de reação e acurácia, e em três variáveis do teste de memória visual, envolvendo apenas tempo de reação. Tal desempenho não pode ser explicado por melhor integração sensório-motora, uma vez que não houve diferença entre os grupos no teste de tempo de reação simples. Além disso, foram verificadas correlações significativas entre variáveis relacionadas à experiência musical – como idade de início dos estudos musicais e tempo de estudo individual com instrumento por dia – e algumas variáveis dos testes de atenção e memória visuais. Nossos resultados podem sugerir haver, em músicos, maior capacidade de atenção visual, em diferentes modalidades. O melhor desempenho dos músicos no teste de memória visual também pode indicar maior eficiência dos processos atencionais, já que as diferenças foram observadas apenas em relação aos tempos de reação.
Patston, Corballis, Hogg e Tippett (2006) compararam músicos e não-músicos destros em uma tarefa de bissecção de linhas (Hausmann, Ergun, Yazgan & Güntürkün, 2002) que consiste em marcar o centro de 17 linhas horizontais, de diferentes tamanhos, distribuídas aleatoriamente em uma folha de papel. Segundo Hausmann et al. (2002), neste tipo de tarefa, indivíduos destros e neurologicamente normais tendem a dividir a linha cerca de 2% à esquerda do verdadeiro centro. Tal erro sistemático, denominado pseudonegligência (Bowers & Heilman, 1980), é atribuído à dominância do hemisfério direito em relação à capacidade de atenção visual-espacial (Oliveri et al., 2004). Os resultados de Patston et al. (2006) mostraram que os não-músicos apresentaram maior desvio em direção à esquerda, quando comparados aos músicos, os quais exibiram tendência de desvio em direção à direita. Além disso, os músicos apresentaram maior acurácia no teste e não mostraram diferença entre o desempenho das mãos direita e esquerda, ao contrário dos não-músicos, que obtiveram melhor resultado com a mão direita. Segundo os autores, a maior acurácia e a menor diferença intermanual sugerem que a atenção visual-espacial pode ser melhor balanceada em músicos, os quais poderiam desenvolver, no hemisfério esquerdo, uma maior capacidade para desempenhar funções que são preferencialmente exercidas pelo hemisfério direito.
Patston, Hogg e Tippett (2007a) também investigaram a lateralidade da atenção visual-espacial em músicos e não-músicos destros, comparando acurácia e tempo de reação em uma tarefa de discriminação visual na qual eram apresentados estímulos à esquerda e à direita de uma linha vertical, paradigma semelhante ao utilizado por Brochard et al. (2004) na condição de imagem. Os resultados mostraram que ambos os grupos alcançaram melhor desempenho para os estímulos exibidos à esquerda e que os músicos apresentaram maior acurácia, em relação aos não-músicos, para os estímulos exibidos à direita, o que, segundo os autores, é consistente com os resultados do estudo anterior (Patston et al., 2006), sugerindo, também, melhor balanceamento da capacidade de atenção visual-espacial em músicos. De acordo com os pesquisadores, isso poderia ser associado às demandas cognitivas da prática bimanual de um instrumento desde a infância, o que favoreceria os processos de neuroplasticidade envolvidos no desenvolvimento de uma representação mais equilibrada do espaço. Os resultados também mostraram, em músicos, menores tempos de reação no teste como um todo, o que está de acordo o estudo de Brochard et al. (2004).
Outro estudo de Patston e colaboradores (Patston, Kirk, Rolfe, Corballis & Tippett, 2007b) avaliou a lateralidade da atenção visual-espacial com a utilização de uma medida eletrofisiológica – o tempo de transferência interhemisférica. No teste, músicos e não-músicos respondiam a estímulos apresentados nos campos visuais direito e esquerdo enquanto eram submetidos à eletroencefalografia. O tempo de transferência interhemisférica foi calculado comparando-se a latência dos componentes N1 dos potenciais evocados no lobo occipital dos dois hemisférios. De acordo com os autores, vários estudos (e.g. Barnett, Corballis & Kirk, 2005; Brown & Jeeves, 1993; Brown, Larson & Jeeves, 1994) têm indicado, em adultos neurologicamente normais, haver menor tempo de transferência do hemisfério direito para o esquerdo, em relação à direção oposta. Isso poderia ser explicado, por exemplo, por uma maior proporção de axônios mielinizados no hemisfério direito (Miller, 1996) ou um maior número de axônios sendo projetados do hemisfério direito para o esquerdo do que vice-versa (Marzi, Bisiacchi & Nicoletti, 1991).
O estudo de Patston et al. (2007b) mostrou que os não-músicos apresentaram menor tempo de transferência do hemisfério direito para o esquerdo, em relação à direção oposta, além de uma menor latência do componente N1 no hemisfério esquerdo, quando comparado ao direito. Os músicos, ao contrário, não exibiram nenhuma diferença entre os tempos de transferência interhemisférica, em cada uma das direções, e entre as latências de cada hemisfério. Assim, em músicos, a informação visual parece ser recebida por ambos os hemisférios, assim como transferida de um hemisfério a outro, com maior equidade, o que é consistente com evidências comportamentais, já mencionadas, sugerindo que a atenção visual-espacial possui uma maior representação bilateral em músicos, quando comparados a não-músicos (Patston et al., 2006; Patston et al., 2007a). Segundo os autores, o treinamento bimanual, inerente à aprendizagem de um instrumento, poderia favorecer o processo de mielinização, resultando em um maior balanceamento das conexões entre os hemisférios, em relação àquele normalmente encontrado em indivíduos sem treinamento musical. Processos mais equilibrados de transferência no corpo caloso seriam vantajosos para os músicos, considerando as constantes exigências de ações motoras bilaterais rápidas em resposta à leitura musical.
Stoesz, Jakobson, Kilgour e Lewycky (2007) investigaram o processamento visual de detalhes em músicos e não-músicos, com a utilização de tarefas de decomposição e de construção. Na primeira parte do estudo, foi utilizado o Group Embedded Figures Test (Witkin, Oltman, Raskin & Karp, 1971), que consiste na apresentação de uma série de 25 figuras complexas, cada uma delas contendo um de nove possíveis alvos escondido no desenho. O sujeito é instruído a examinar cada figura e marcar o alvo assim que o identificar. Na segunda parte do estudo, foram utilizados dois testes: o subteste Block Design do WAIS III (Wechsler, 1997a), que requer que o indivíduo replique um padrão geométrico, apresentado em um cartão, utilizando as superfícies de diversos cubos coloridos, e uma tarefa envolvendo a reprodução de desenhos de objetos fisicamente possíveis e impossíveis. Os músicos apresentaram melhor desempenho no Group Embedded Figures Test, no subteste Block Design e na tarefa de reprodução de desenhos fisicamente impossíveis, o que sugere processamento visual de detalhes mais eficiente. Segundo os autores, tal resultado pode refletir modificações, induzidas pelo treinamento, no sistema fronto-parietal envolvido no controle de movimentos oculares exploratórios e na atenção visual, capacidades importantes para a leitura musical, que também requer análise de detalhes visuais.
Jakobson, Lewycky, Kilgour e Stoesz (2008) avaliaram a capacidade de memória visual em pianistas e não-músicos. Os pesquisadores utilizaram o Rey Visual Design Learning Test (Rey, 1964), no qual o indivíduo precisa memorizar um conjunto de 15 desenhos de figuras geométricas simples apresentadas sequencialmente. A evocação, registrada solicitando-se ao sujeito que desenhe todas as figuras das quais é capaz de se lembrar, é testada após uma fase de aprendizagem e um período de intervalo. Posteriormente, é aplicado também um teste de reconhecimento. Os resultados mostraram que os músicos apresentaram melhor desempenho em duas de cinco tentativas da fase de aprendizagem, na evocação após um período de intervalo e no teste de reconhecimento, o que sugere maior capacidade de memória visual. De acordo com os autores, a habilidade de desenho não foi uma variável confundidora no estudo, uma vez que as figuras do teste eram bastante simples, além de Stoesz et al. (2007) previamente não terem encontrado diferença significativa entre músicos e não-músicos em uma tarefa de reprodução de desenhos fisicamente possíveis. Segundo Jakobson et al. (2008), a associação positiva encontrada entre capacidade de memória visual e treinamento musical pode ser relacionada à maior eficiência em processos envolvidos na atenção visual a detalhes, à maior capacidade de manipulação e armazenamento de imagens na memória operacional, o que facilita o processo de codificação, ou pode refletir um maior uso de processos estratégicos de memória.
O estudo de Rodrigues (2011) investigou a orientação da atenção encoberta em músicos e não-músicos por meio de uma variação do Paradigma de Atenção Encoberta de Posner (1980). Tal teste consiste na apresentação de um ponto de fixação visual no centro de uma tela, onde o voluntário deve manter o foco visual ao longo de toda a tentativa, seguida pela exibição de uma pista indicativa do provável local de apresentação de um alvo e, finalmente, pela apresentação de um alvo ao qual o voluntário deve reagir, usualmente pressionando uma tecla. As pistas podem ser válidas ou inválidas se, respectivamente, informarem o local correto ou incorreto de aparecimento do alvo. Os resultados mostraram que os músicos exibiram melhor desempenho, em relação aos não-músicos, expresso sob a forma de menores tempos de reação e menor porcentagem de erros de omissão particularmente para estímulos apresentados no hemicampo esquerdo. Além disso, enquanto os não-músicos mostraram clara assimetria, com melhor desempenho para estímulos apresentados no hemicampo direito, os músicos exibiram tempos de reação e porcentagem de erros de omissão similares para estímulos apresentados nos dois hemicampos. Os resultados sugerem que o treinamento musical leva a melhora no desempenho de tarefas que requerem constantemente re-orientação da atenção visual-espacial.
As habilidades subjacentes à capacidade de aprendizagem de uma peça musical podem ser semelhantes àquelas envolvidas na memorização de um poema ou prosa e têm havido, de fato, evidências apontando uma ligação entre prática musical e capacidade de memória verbal (Jakobson et al., 2008). Chan, Ho e Cheung (1998), mediante a utilização de tarefa de aprendizagem a partir de uma lista, relataram maior capacidade de memória para palavras faladas em adultos que receberam treinamento musical antes dos 12 anos de idade e durante pelo menos seis anos, em relação a adultos sem tal treinamento. Kilgour, Jakobson e Cuddy (2000) demonstraram em adultos com prática musical, quando comparados ao grupo controle, melhor desempenho em tarefa de memória verbal, incluindo tanto evocação imediata quanto tardia. Brandler e Rammsayer (2003), ao compararem algumas capacidades cognitivas em músicos profissionais e não-músicos, por meio de uma bateria de testes de inteligência, também observaram maior capacidade de memória verbal em músicos.
Jakobson et al. (2008), com a utilização do California Verbal Learning Test II (Delis, Kaplan, Kramer & Ober, 2000), investigaram a capacidade de memória verbal em pianistas e não-músicos. Este teste consiste na apresentação auditiva de duas listas de palavras, cada uma delas composta por 16 palavras de quatro categorias semânticas distintas. As evocações, livre e baseada em pista, são testadas após uma fase de aprendizagem e após períodos de intervalo curto e longo. Os resultados do estudo indicaram maior capacidade de memória verbal em músicos, já que eles apresentaram melhor desempenho na evocação baseada em pista após período de intervalo curto e em ambas as evocações, livre e baseada em pista, após período de intervalo longo.
Além disso, os músicos apresentaram maior uso de uma estratégia de agrupamento semântico durante a fase de aprendizagem, o que sugere, segundo os autores, que o aumento da capacidade de memória verbal não está relacionado simplesmente à melhor habilidade de memorização, mas, sim, à maior capacidade de extração de informações semânticas, de ordem superior, durante o processo de codificação. Os pesquisadores apontam que a codificação e o armazenamento da informação sobre as relações hierárquicas entre as palavras, assim como no caso das representações estruturais da música, refletem o uso de processos estratégicos de memória. Como menciona Patel (2003), mesmo que estes dois tipos de representação sejam armazenados separadamente, os processos envolvidos na ativação dos mesmos podem depender de um substrato neural comum. De acordo com Jakobson et al. (2008), é possível que modificações neste circuito neural, induzidas pelo treinamento, sejam subjacentes à maior capacidade de memória verbal em músicos verificada no estudo.
O estudo de Franklin et al. (2008), que também comparou músicos e não-músicos, foi dividido em duas partes: na primeira, foi avaliada a capacidade de memória verbal de longa duração, com a utilização do Rey Auditory Verbal Learning Test (Schmidt, 1996), o qual envolve um paradigma de aprendizagem por lista, e, na segunda, foi introduzida uma supressão de articulação no mesmo teste, com o objetivo de interferir nos processos de ensaio verbal. Segundo os autores, a supressão de articulação, obtida quando o sujeito é instruído a pronunciar o artigo "the" entre cada palavra lida a partir da lista, consiste em uma técnica que impede que o indivíduo realize ensaios com o material verbal a fim de armazená-lo mais facilmente na memória operacional e, posteriormente, na memória de longa duração. Os resultados mostraram que os músicos superaram os não-músicos na parte 1, mas não na parte 2 do estudo. De acordo com os pesquisadores, o fato de o melhor desempenho dos músicos ter sido minimizado com a supressão de articulação pode sugerir a utilização, pelos mesmos, de uma estratégia implícita de ensaio para beneficiar o desempenho no teste. Assim, Franklin et al. (2008) apontam que o treinamento musical pode ser capaz de influenciar a capacidade de memória verbal de longa duração, assim como a memória operacional, e que mecanismos de ensaio mais eficientes podem ser responsáveis pelo melhor desempenho dos músicos nas tarefas de memória verbal.
Huang et al. (2010) utilizaram um paradigma semelhante ao de Chan et al. (1998) para a investigação da capacidade de memória verbal em indivíduos com e sem treinamento musical. No teste aplicado, 20 palavras, presentes em todos os seis blocos de codificação, eram apresentadas auditivamente e deveriam ser memorizadas pelos sujeitos. Em seguida, nos blocos de recuperação, os indivíduos eram instruídos a evocar o maior número possível de palavras e, finalmente, na tarefa de reconhecimento, na qual 20 novas palavras eram apresentadas em meio ao conjunto anterior, os sujeitos deveriam classificar cada estímulo como "novo" ou "antigo". Embora não tenha havido diferença significativa entre os grupos quanto à evocação de palavras, os indivíduos com treinamento musical apresentaram maior acurácia na tarefa de reconhecimento. Como ressaltam os autores, a diferença foi pequena, o que pode ter sido atribuído à relativa facilidade do teste, mas significativa. São necessários mais estudos para identificar os aspectos específicos do treinamento musical, como por exemplo, a prática de leitura de partitura, que podem ser responsáveis pelo aumento da capacidade de memória verbal.
Bialystok e DePape (2009) compararam músicos – instrumentistas e cantores – não-músicos bilíngues e não-músicos monolíngues em tarefas envolvendo processamento executivo, considerando que já foram demonstradas associações positivas entre bilingualismo e controle executivo em indivíduos de diferentes faixas etárias (e.g. Carlson & Meltzoff, 2008; Colzato et al., 2008; Bialystok, Craik & Ryan, 2006). Foram aplicados dois testes para avaliação do funcionamento executivo – versões modificadas do teste de Simon (Simon & Rudell, 1967) e do teste de Stroop (Hamers & Lambert, 1972), envolvendo tarefas espaciais e auditivas, respectivamente. Cada um dos testes apresentou condições controle para avaliação do desempenho dos indivíduos em tarefas sem a presença de conflito, com este presente nas condições experimentais. Os resultados mostraram que não houve diferença significativa entre os grupos nas condições controle, ao contrário das condições experimentais.
Na versão do teste de Simon, envolvendo conflito espacial entre a direção e a posição de um estímulo visual, tanto músicos quanto indivíduos bilíngues apresentaram menores tempos de reação quando comparados aos indivíduos monolíngues, corroborando resultados prévios em relação ao bilingualismo. Já na versão do teste de Stroop, envolvendo conflito linguístico e auditivo entre uma palavra apresentada auditivamente e sua altura, os músicos exibiram melhor desempenho em relação aos indivíduos bilíngues e monolíngues, não tendo sido observada diferença entre os últimos. É interessante observar que não foi verificada nenhuma diferença significativa entre instrumentistas e cantores. Assim, os dados sugerem que o treinamento musical pode aumentar o controle executivo em tarefas espaciais, como previamente demonstrado para indivíduos bilíngues, mas também pode exercer tal efeito em tarefas auditivas, ao contrário do bilingualismo.
Segundo Bialystok e DePape (2009), o estudo fornece evidências de que o treinamento musical possui tanto efeitos específicos, em uma tarefa auditiva, quanto efeitos gerais, em uma tarefa espacial, no funcionamento executivo. Porém, como ressaltam os pesquisadores, ainda não são claros os mecanismos responsáveis por tais impactos. No caso do bilingualismo, é possível que o melhor controle executivo seja resultado do uso de processos de monitoramento de atenção aos dois sistemas linguísticos ativos. Quanto ao treinamento musical, trata-se de atividade que exige constantemente as capacidades de atenção seletiva e inibição, alternância e monitoramento, as quais são componentes do funcionamento executivo (Miyake & Shah, 1999).
Cohen, Evans, Horowitz e Wolfe (2011) investigaram a capacidade de memória auditiva para sons musicais e não-musicais em músicos e não-músicos. No teste utilizado pelos pesquisadores, vários estímulos sonoros – trechos musicais familiares e não-familiares, sons ambientais e sons de fala – eram sequencialmente apresentados aos sujeitos, os quais deveriam memorizá-los. Em seguida, a mesma quantidade de estímulos era apresentada, sendo que apenas metade já havia sido ouvida pelos indivíduos na fase de aprendizagem, os quais deveriam, portanto, classificar cada estímulo como "novo" ou "antigo". Os resultados mostraram que os músicos obtiveram melhor desempenho na tarefa de memória auditiva para todos os tipos de estímulos apresentados.
Como mencionam Cohen et al. (2011), talvez a existência de melhor percepção inicial dos estímulos sonoros não-musicais, o que poderia resultar em maior quantidade de informações disponíveis para os processos de codificação, tenha contribuído para os resultados observados. Contudo, após a realização de uma tarefa de classificação, na qual os sujeitos deveriam identificar cada estímulo sonoro ambiental e de fala apresentados na tarefa de memória, não foram verificadas diferenças significativas entre músicos e não-músicos. É interessante notar que o estudo mostrou que a maior capacidade de memória auditiva em músicos não se restringiu a estímulos musicais, contribuindo para a crescente literatura evidenciando a relação entre treinamento musical e desenvolvimento de diferentes capacidades auditivas (e.g. Hannon & Trainor, 2007; Patel & Iversen, 2007; Kraus & Chandrasekaran, 2010).
Considerações finais
Como ressaltam Schellenberg & Peretz (2007), um dos aspectos relacionados à interface música/cognição que não está claro é o que se refere à causa das diferenças. Ainda não é possível determinar se as capacidades cognitivas aumentadas, verificadas em músicos, são realmente consequência de treinamento prolongado ou são inatas. Muitas pesquisas que sugerem benefícios cognitivos da prática musical são estudos de correlação ou de natureza quasi-experimental, o que torna difícil o estabelecimento de uma clara relação causal. Contudo, vários estudos têm fornecido evidências que apóiam a perspectiva da aprendizagem. Por exemplo, alguns trabalhos longitudinais têm demonstrado capacidades espaciais (e.g. Bilhartz et al., 1999; Costa-Giomi, 1999; Graziano et al., 1999), verbais e de raciocínio (e.g. Forgeard et al., 2008) aumentadas em crianças após um período de aulas de música. Outras pesquisas, como já mencionado, têm verificado correlações entre o grau de modificações estruturais e funcionais no cérebro e a idade de início dos estudos musicais (Amunts et al., 1997; Elbert et al., 1995; Ohnishi et al., 2001; Pantev et al., 1998; Schlaug et al., 1995b), o tempo de prática musical (George & Coch, 2011; Musacchia et al., 2007; Sluming et al., 2002) e sua intensidade (Bengtsson et al., 2005; Gaser & Schlaug, 2003).
Como sugerem Wan e Schlaug (2010), tendo em vista as evidências indicando que o cérebro humano pode ser moldado pela experiência musical, uma linha de pesquisa promissora consiste no estudo da aplicação da prática musical na mitigação do processo de declínio cognitivo associado ao envelhecimento e no tratamento de desordens neurológicas. Cabe ressaltar que os processos neuroplásticos podem ocorrer durante toda a vida, embora o grau de neuroplasticidade diminua com o passar do tempo (e.g. Berardi, Pizzorusso & Maffei, 2000). A revisão de Kramer, Bherer, Colcombe, Dong e Greenough (2004) abordou a ligação entre fatores relacionados ao estilo de vida e vitalidade cognitiva durante o envelhecimento. Estudos conduzidos em diferentes países revelaram que indivíduos com ocupações mais complexas são capazes de manter seu funcionamento cognitivo à medida que envelhecem. Além disso, fora do ambiente profissional, sujeitos envolvidos em atividades com demanda cognitiva, como, por exemplo, jogos, apresentam redução do potencial para o declínio cognitivo associado ao envelhecimento. O efeito protetor da atividade mental parece depender da natureza das tarefas.
Segundo Green e Bavelier (2008), os efeitos da aprendizagem são geralmente específicos em relação à habilidade aprendida, mostrando reduzido grau de generalização para tarefas similares ou novos ambientes. Tal especificidade pode ser considerada um dos maiores obstáculos na elaboração de paradigmas de reabilitação eficientes. De acordo com os autores, há poucos programas de treinamento nos quais a aprendizagem parece apresentar efeitos mais generalizados. Tais paradigmas são tipicamente mais complexos em relação a manipulações em laboratório e correspondem a experiências da vida real. Como apontam Bugos, Perlstein, McCrae, Brophy e Bedenbaugh (2007) e Green e Bavelier (2008), intervenções cognitivas ideais devem incluir auto-eficácia, feedback, dificuldade progressiva, prática motivada, variedade de estímulos e integração multissensorial. Especificamente quanto à motivação, Penhune (2011) ressalta que estímulos relevantes podem induzir maior grau de neuroplasticidade em relação a estímulos não significativos (e.g. Blake, Heiser, Caywood & Merzenich, 2006). Nessa perspectiva, o treinamento musical parece envolver os atributos necessários para engajar e preservar sistemas cognitivos ao longo da vida.
Em um estudo longitudinal, Bugos et al. (2007) avaliaram o efeito de aulas de piano individuais em voluntários saudáveis entre 60 e 85 anos de idade. Foram aplicados diversos testes neuropsicológicos anteriormente ao início do treinamento, após seis meses de intervenção – que consistiu em aulas semanais de 30 minutos e prática instrumental independente por, no mínimo, três horas por semana – e após três meses de intervalo. Os resultados mostraram que os indivíduos sujeitos ao treinamento apresentaram melhor desempenho no subteste Digit Symbol do WAIS III (Wechsler, 1997a) e na parte B do Trail Making Test (Reitan & Wolfson, 1985), em relação aos sujeitos pertencentes ao grupo controle, após seis meses de intervenção e também após três meses de intervalo. Tais testes permitem a avaliação das capacidades de atenção visual, concentração, processamento executivo e memória operacional. Assim, o efeito de aulas de piano individuais não apenas foi verificado em capacidades cognitivas não-musicais, como também foi mantido após um período de intervalo. Segundo os autores, os resultados podem estar relacionados ao fato de o treinamento musical envolver a participação de múltiplos domínios cognitivos, ao contrário de outras intervenções que empregam tarefas unimodais, o que sugere a possibilidade de aplicação da prática musical como estratégia de intervenção em casos de declínio cognitivo associado ao envelhecimento.
Hanna-Pladdy e MacKay (2011), em um estudo transversal, investigaram a possível influência do tempo de prática instrumental ao longo da vida sobre o envelhecimento cognitivo. A pesquisa envolveu avaliação neuropsicológica de indivíduos saudáveis entre 60 e 83 anos de idade pertencentes a três grupos distintos: não-músicos (sem experiência musical), músicos com reduzida atividade musical (1 a 9 anos de prática instrumental) e músicos com intensa atividade musical (acima de 10 anos de prática instrumental regular). Os pesquisadores verificaram diferenças significativas entre músicos com intensa atividade musical e não-músicos, sendo que os primeiros apresentaram melhor desempenho em tarefas envolvendo as capacidades de nomeação (Boston Naming Test – Kaplan, Goodglass & Weintraub, 1983), memória visual (subteste Visual Reproduction II do WMS III – Wechsler, 1997b), atenção visual e processamento executivo (parte B do Trail Making Test – Reitan & Wolfson, 1985). Além disso, os músicos com intensa atividade musical superaram aqueles com reduzida atividade na parte A do Trail Making Test, que permite avaliação das capacidades de atenção visual e sequenciamento.
Embora a maior parte das diferenças entre músicos com diferentes níveis de atividade musical não tenha sido significativa, o desempenho cognitivo dos músicos com reduzida atividade situou-se entre o dos não-músicos e o dos músicos com intensa atividade, sugerindo uma relação linear entre o tempo de prática instrumental e o funcionamento cognitivo em indivíduos idosos. Análises de regressão revelaram, dentre outras associações, correlação entre o desempenho no teste de memória visual e o tempo de prática instrumental, assim como a idade de início dos estudos musicais. É interessante notar, como ressaltam Hanna-Pladdy e MacKay (2011), que as capacidades nas quais os músicos com intensa atividade musical superaram os não-músicos estão relacionadas a áreas cerebrais envolvidas em processos de declínio cognitivo ao longo do envelhecimento. Assim, o perfil neuropsicológico dos primeiros sugere a existência de benefícios capazes de favorecer a reserva cognitiva em idosos, sendo, entretanto, necessários mais estudos para investigar os fatores de mediação e os mecanismos neurais subjacentes. Por não se tratar de uma pesquisa de natureza experimental, como salientam os autores, não é possível afirmar claramente que o treinamento musical foi o responsável pelo aumento cognitivo observado nos indivíduos.
A investigação de Sluming et al. (2002), ao comparar músicos de orquestra e não-músicos, demonstrou redução significativa, associada ao envelhecimento, no volume total do cérebro e em regiões tais como o córtex pré-frontal dorsolateral e o giro frontal inferior esquerdo, apenas no grupo dos não-músicos. Portanto, os músicos parecem ser menos susceptíveis a degenerações neurais relacionadas ao envelhecimento, presumivelmente em função de suas atividades musicais diárias. Em um estudo longitudinal, Verghese et al. (2003) avaliaram a contribuição relativa de diferentes atividades, ao longo de cinco anos, para a manutenção do funcionamento cognitivo em idosos acima de 75 anos de idade. Os resultados mostraram que os indivíduos que possuíam prática regular de instrumento apresentaram menor probabilidade de desenvolvimento de demência em relação àqueles que raramente praticavam. O efeito protetor da prática instrumental foi mais significativo quando comparado ao efeito de outras atividades cognitivas, como leitura, escrita ou jogo de palavras-cruzadas.
É válido também mencionar pesquisas que têm envolvido a utilização da Terapia de Entonação Melódica (Albert, Sparks & Helm, 1973), técnica de reabilitação da linguagem, em pacientes afásicos. Esta abordagem terapêutica envolve a utilização de elementos musicais da fala (melodia e ritmo) com o objetivo de melhorar a expressão da linguagem por meio do estímulo de funções preservadas, como o canto, e do engajamento de regiões homólogas, relacionadas à linguagem, no hemisfério cerebral direito, intacto (Norton, Zipse, Marchina & Schlaug, 2009). Bonakdarpour, Eftekharzadeh e Ashayeri (2000) verificaram, em indivíduos com afasia não-fluente, melhora da condição afásica, avaliada em teste padronizado (Farsi Aphasia Test – Nilipour, 1993), após 15 sessões de Terapia de Entonação Melódica. Schlaug, Marchina e Norton (2009), em uma investigação envolvendo a técnica de imagem com tensor de difusão, demonstraram aumento significativo do número de fibras, assim como do volume do fascículo arqueado do hemisfério cerebral direito em pacientes com afasia não-fluente após, no mínimo, 75 sessões da referida abordagem terapêutica.
Há também possíveis implicações, na área de educação, de estudos que demonstram capacidades cognitivas aumentadas em músicos. Como foi descrito, várias pesquisas têm evidenciado, em crianças, efeitos positivos da prática musical em capacidades cognitivas pertencentes ao domínio não-musical, como raciocínio verbal, matemático e visual-espacial. Contudo, é preciso cautela na aplicação dos resultados de tais investigações na prática educacional. O ensino de música não deve ocorrer unicamente em função de proporcionar aumento de capacidades cognitivas. Hetland e Winner (2001) sustentam que se a presença do ensino de artes nas escolas se dá somente em razão da crença de que o mesmo leva a melhora do desempenho acadêmico, as artes rapidamente perderão sua posição enquanto componente curricular, caso não sejam verificados benefícios em tal desempenho. A justificativa para o ensino artístico deve, sobretudo, considerar seu caráter único e evidenciar o que somente as artes, dentre diversos componentes curriculares, podem ensinar. As aulas de música podem ser consideradas experiências singulares porque envolvem uma combinação particular de vários aspectos tais como percepção multissensorial, atenção, concentração, raciocínio, planejamento, estratégias de adaptação, habilidades motoras finas, sensibilidade emocional e expressividade.
Em resumo, estudos que demonstram efeitos positivos do treinamento musical no cérebro, seja considerando aspectos neurais ou cognitivos, podem ter implicações teóricas e práticas, como salientam Stoesz et al. (2007). No nível teórico, tais investigações podem levar a uma melhor compreensão dos efeitos da prática musical no desenvolvimento e funcionamento de diversos sistemas neurais, subjacentes a várias capacidades cognitivas, e, no nível prático, ainda que músicos profissionais representem um grupo muito específico na população, podem contribuir para avanços nas áreas de saúde e educação.
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Endereço para correspondência
Paulo Caramelli
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte
Avenida Professor Alfredo Balena, 190 sala 246
CEP 30130-100 - Belo Horizonte, Brasil
E-mail: caramelli@ufmg.br
Artigo recebido: 09/09/2013
Artigo revisado: 23/12/2013
Artigo revisado (2ª revisão): 27/12/2013
Artigo aceito: 30/12/2013