Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.14 no.2 Belém maio/ago. 2022
ARTIGO
Experiência de mulheres com histórico de perdas gestacionais: contribuições da Logoterapia
Experience of Women with History of Gestacional Losses: contribuitions of Logotherapy
Experiencia de Mujeres con Historia de Pérdidas Gestacionales: contribuciones de Logoterapia
Leanne Maria Ferreira Dias1 I; Francisca Pereira da Cruz Zubicuetaa2 I
I Universidade Federal do Maranhão, Brasil
RESUMO
Perdas gestacionais envolvem os abortos espontâneos e natimortos/óbitos fetais. Por vezes a dor vivenciada não é reconhecida pela sociedade o que traz impactos no processo de luto. O objetivo dessa pesquisa foi analisar a experiência de mulheres que vivenciaram perdas gestacionais pela perspectiva da Logoterapia e Análise Existencial. Realizou-se entrevistas semiestruturadas com mulheres com histórico de perdas gestacionais em acompanhamento no Hospital Universitário Materno-Infantil da cidade de São Luís-MA. Os resultados foram analisados através da análise de conteúdo do tipo temática e revelaram que a experiência de perdas foi atravessada por sofrimento, sendo compreendida como um período de crise. O suporte da família se apresentou como importante recurso de enfrentamento. Conclui-se que as participantes estiveram diante da Tríade Trágica dor, culpa e morte e, apesar disso, foi possível encontrarem sentido diante do sofrimento inevitável. Os recursos noéticos se mostraram evidentes, assim como, a capacidade humana de ser-livre e ser-responsável.
Palavras-chave: Maternidade; Luto; Psicologia; Logoterapia.
ABSTRACT
Pregnancy losses involve miscarriages and stillbirths/fetal deaths. Sometimes the pain experienced is not recognized by society, which impacts the grieving process. The objective of this research was to analyze the experience of women who experienced pregnancy loss from the perspective of Logotherapy and Existential Analysis. Semi-structured interviews were carried out with women with a history of miscarriages in follow-up at the Hospital Universitário Materno-Infantil in the city of São Luís-MA. The results were analyzed through thematic content analysis; revealed that the experience of loss was crossed by suffering, being understood as a period of crisis. Family support was presented as an important coping resource. It is concluded that the participants were faced with the Tragic Triad - pain, guilt and death and it was possible to find meaning in the face of inevitable suffering. The noetic resources were evident, as well as the human capacity to be free and responsible.
Keywords: Motherhood; Grief; Psychology; Logotherapy.
RESUMEN
Las pérdidas de embarazo implican abortos espontáneos y mortinatos. El dolor experimentado no es reconocido por la sociedad, lo que impacta en el proceso de duelo. El objetivo de esta investigación fue analizar la experiencia de mujeres que vivieron la pérdida del embarazo desde la perspectiva de la Logoterapia y el Análisis Existencial. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con mujeres con antecedentes de abortos espontáneos en seguimiento en el Hospital Universitário Materno-Infantil de la ciudad de São Luís-MA. Los resultados revelaron que la experiencia de pérdida fue atravesada por el sufrimiento, siendo entendida como un período de crisis. El apoyo familiar se presentó como un importante recurso de afrontamiento. Se concluye que los participantes se enfrentaron a la Tríada Trágica - dolor, culpa y muerte; fue posible encontrar sentido frente al sufrimiento inevitable. Eran evidentes los recursos noéticos, así como la capacidad humana de ser libres y responsables.
Palabras clave: Maternidad; Luto; Psicología; Logoterapia.
Introdução
Inúmeras mulheres possuem o desejo de engravidar e gestar um filho em seu ventre, no entanto, algumas vivenciam perdas gestacionais, onde nem sempre é possível identificar as causas para tais perdas. Essa experiência é caracterizada de forma única, podendo ser fonte de sofrimento, que é considerado esperado frente esta situação. Além disso, representa para algumas famílias a perda de sonhos e expectativas (Binotto, 2015; Torloni, 2007). O interesse nessa temática partiu da prática na Residência Multiprofissional onde realizei atendimentos a pacientes que haviam passado por perdas gestacionais. Tal fato me levou a refletir sobre as questões emocionais que envolvem esse momento, assim como, a possibilidade de diálogo com o referencial da Logoterapia e Análise Existencial.
Quando abordamos o referido tema é necessário esclarecer que a terminologia "perdas gestacionais" pode envolver: abortamentos e natimortos/óbitos fetais. Por definição o abortamento é entendido como "a expulsão ou extração de um produto da concepção com menos de 500g e/ou estatura menor que 25 cm, ou menos de 22 semanas de gestação, tenha ou não evidências de vida e sendo espontâneo ou induzido" (Ministério da Saúde, 2009, p. 24). Já a conceituação para natimorto ou óbito fetal considera a morte do feto "a partir de 22 semanas completas de gestação, ou 154 dias ou fetos com peso igual ou superior a 500g ou estatura a partir de 25 cm" (Ministério da Saúde, 2005, p. 9).
No que concerne as causas do óbito fetal, existem diversas possibilidades, tanto de ordem fetal (alterações no cromossomo ou má-formações), placentária (descolamento ou hemorragia feto-maternal), quanto de problemas maternos (hipertensão, diabetes e anticorpos antifosfolípides). Porém, em cerca de 25% - 35% dos casos não é possível identificar um fator específico (Torloni, 2007).
Do ponto de vista psicológico, a literatura nos mostra que as perdas gestacionais podem gerar sofrimento para a mulher, sentimento de culpa e impotência (Carvalho & Meyer, 2007; Silva & Nardi, 2014). Binotto (2015) apresenta um aspecto interessante desse contexto, o fato de que nem sempre a sociedade reconhece que essa mulher pode estar vivenciando um processo de luto, que indica a própria dificuldade do ser humano em lidar com o sofrimento e morte. A autora afirma que, para a mulher atravessar o luto de forma mais saudável, é importante que essa dor seja validada e reconhecida.
Lemos e Cunha (2015, p. 1122) corroboram com essa ideia ao indicarem que "nos casos em que a perda gestacional ocorre nas primeiras semanas de gestação [...] percebe-se que nem sempre o luto realizado pela mulher é socialmente aceito". Destaca-se que o sofrimento advindo desse tipo de perda se relaciona ao vínculo já estabelecido, sonhos e fantasias e não necessariamente com a idade gestacional (Binotto, 2015).
Diante desse contexto iremos abordar um importante conceito para a presente pesquisa, trata-se do "luto não-reconhecido", mas antes de adentrarmos nesse campo precisamos compreender o que significa luto. Segundo Casellato (2015, p. 21) o "luto pode ser definido como uma resposta característica à perda de um objeto valorizado [...]", também é visto comoum processo esperado para elaboração da perda e fundamental para a saúde mental do indivíduo, uma vez que possibilita o desenvolvimento de recursos e ajustamento às mudanças.
Sobre aspectos referentes ao luto, Santos (2017, p. 122) nos diz que:
As reações diante de uma perda podem ocorrer de distintas maneiras e não devem ser consideradas universais e padronizadas. Cada indivíduo terá um tipo de resposta sustentada por diversas variáveis: desde suas respostas instintivas diante da ameaça e medo mobilizados pela perda, abrangendo suas condições pessoais de história de vida, suporte social, contexto cultural, até as características do relacionamento perdido e das condições da perda.
O luto não-reconhecido é exposto por Doka (1989) conforme citado por Casellato (2015) a partir do pressuposto de que a sociedade costuma ter um conjunto de normas que determinam quem, como, quando, onde e por quanto tempo devemos manifestar os sentimentos de luto. As perdas gestacionais estariam incluídas nesse conceito por serem um exemplo de perdas não reconhecidas socialmente, onde muitas vezes as famílias têm seus sentimentos minimizados.
Lemos e Cunha (2015) realizaram estudo numa maternidade pública do Rio de Janeiro, com mulheres que vivenciaram perdas gestacionais em decorrência de aborto espontâneo ou óbito fetal. Dentre os resultados, destacam-se os sentimentos de tristeza e impotência, assim como, a busca por explicações e o receio de passar por outra perda. Em relação ao luto, as participantes demonstraram reivindicar um tempo para essa elaboração. Volkmer (2009), em pesquisa desenvolvida com mulheres atendidas em ambulatório de abortamento de repetição, afirma que após sucessivas perdas algumas mulheres vivem o luto de maneira mais intensa. Outro achado do estudo diz respeito à presença dos sentimentos de culpa, medo e ansiedade.
Pode-se observar que as situações de perdas espontâneas costumam ocorrer de forma inesperada e em alguns casos levam a grande mobilização emocional. A presente pesquisa foi analisada à luz da Logoterapia e Análise Existencial, que é um sistema teórico desenvolvido por Viktor Emil Frankl (1905-1997). A perspectiva logoterapêutica traz como ideia principal que a motivação básica do ser humano é a busca pelo sentido para sua vida, sendo uma característica que o diferencia das demais espécies (Frankl, 2005). A visão de homem desse referencial é sustentada por três conceitos principais: a liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida (Frankl, 2011).
O primeiro diz respeito ao fato de que o homem não é livre de condicionantes, sejam eles sociais, biológicos e psicológicos, mas que é possível escolher qual atitude tomar diante das circunstâncias que se depara na vida. O segundo é definido como a motivação primária do ser humano, "o esforço mais básico do homem na direção de encontrar e realizar sentidos" (Frankl, 2011, p. 50). Por último o sentido da vida é compreendido como algo único e que pode ser encontrado nas mais diversas situações que o homem experiencia (Frankl, 2019).
Para o mesmo autor, o ser humano é confrontado durante sua existência com situações que não pode mudar, incluindo aquelas que geram sofrimento. No entanto, através da liberdade da vontade manifesta sua capacidade de se posicionar diante das adversidades e encontrar um sentido (Frankl, 2011). Segundo o precursor da Logoterapia, temos a capacidade de encontrar um sentido na vida até mesmo quando enfrentamos um destino que não pode ser mudado, sendo estimulados a realizar uma mudança em nós mesmos (Frankl, 2005). O destino então, é definido como aquilo que foge da responsabilidade do homem e que não está no seu controle a capacidade de alterá-lo (Frankl, 1989).
De que modo o homem encontra sentido? Essa descoberta do sentido único de cada situação que vivenciamos ao longo da vida pode ser realizada através dos valores. Frankl (2011, 2019) nos apresenta a seguinte classificação para os valores: criativos, vivenciais e atitudinais. O primeiro diz respeito ao que o homem entrega ao mundo por meio de suas "obras", trabalho ou atividades que desenvolve. O segundo se refere ao que o homem recebe do mundo, seja através da natureza ou da arte, suas experiências e encontros com o outro. Por último, os valores atitudinais são conceituados como a atitude que assumimos quando estamos frente uma situação que não temos a capacidade de mudar.
Nesse ponto o autor revela que os valores de atitude podem ser divididos na "Tríade Trágica", que é composta por três elementos constituintes da existência: dor, culpa e morte. Segundo Frankl (2011, p. 94), "não há um único ser humano que possa dizer que jamais sofreu, que jamais falhou e que não morrerá". Conjuntamente desenvolveu a "Tese do Otimismo Trágico" onde afirma que "a vida potencialmente tem um sentido em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis". De acordo com Frankl (2016, p. 161), o potencial humano permite transformar sofrimento em conquista, retirar da culpa a chance de mudar a si mesmo e utilizar a transitoriedade da vida como incentivo para agir com responsabilidade.
Diante dessa ótica, podemos refletir: o que as mulheres que vivenciaram perdas gestacionais têm a nos dizer sobre o confronto com essa situação que não podem mudar? Quais os principais sentimentos vivenciados por essas mulheres? Como enfrentaram esse momento? O objetivo do estudo é analisar a experiência de mulheres que vivenciaram perdas gestacionais atendidas em Maternidade Pública pela perspectiva da Logoterapia e Análise Existencial. Em relação aos objetivos específicos foram estabelecidos os seguintes: narrar a história de perdas das participantes; investigar os principais sentimentos vivenciados por essas mulheres nessa experiência e apresentar as contribuições teóricas da Logoterapia e Análise Existencial para compreensão dessa experiência. Para tanto foi realizada uma pesquisa qualitativa através de entrevista semiestruturada com mulheres em acompanhamento no Pré-Natal do Hospital Universitário Materno-Infantil da Universidade Federal do Maranhão.
Metodologia
A presente pesquisa se caracteriza como qualitativa e exploratória. A pesquisa qualitativa tem como atributo principal a busca por entender o significado de determinado fenômeno para a população que está sendo estudada (Turato, 2005). Em relação às pesquisas exploratórias, Gil (2002, p. 41) afirma que estas "[...] têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses".
Para González Rey (2005, p. 48) "a abordagem qualitativa no estudo da subjetividade volta-se para a elucidação, o conhecimento dos complexos processos que constituem a subjetividade [...]". É nesse sentido que Minayo (2009) traz uma importante colaboração quando nos diz que a "fala" oferece a possibilidade de revelar modos de viver, culturas e experiências muito próprias de determinada população. Dessa forma, esse tipo de pesquisa apresentou maior afinidade com o objetivo proposto pelo estudo, uma vez que foi possível conhecer a experiência das participantes que passaram por perdas gestacionais através dos seus próprios relatos.
As participantes da pesquisa foram 5 (cinco) mulheres que estavam em acompanhamento no Pré-natal Especializado do Hospital Universitário Materno-Infantil (HUMI) da cidade de São Luís-MA. A amostra foi concluída através do critério de saturação teórica a partir do momento em que os relatos das entrevistadas começaram a se repetir.
As participantes incluídas na pesquisa foram: mulheres que estavam realizando acompanhamento no Pré-natal Especializado do HUMI; possuíam idade igual ou superior a 18 anos; aceitaram participar da pesquisa de forma voluntária; mulheres com pelo menos duas ou mais perdas gestacionais. Foram excluídas da pesquisa mulheres que apresentavam diagnóstico de transtornos psiquiátricos e mulheres com histórico de perdas gestacionais por diagnóstico de malformação fetal ou anencefalia.
O instrumento elaborado para coleta dos dados foi uma entrevista semiestruturada que continha perguntas fechadas e abertas. De acordo com González Rey (2005, p. 86): "[...] o diálogo constituído no cenário da pesquisa científica se expande em seus conteúdos de forma espontânea, alcançando áreas de interesse do pesquisador, sobre as quais este não tinha nenhuma ideia no começo da pesquisa". Essa característica da pesquisa de campo trouxe enriquecimento para o estudo ao permitir que a pesquisadora se deparasse com questionamentos que ainda não havia refletido. A coleta dos dados foi realizada no Ambulatório de Obstetrícia do Hospital Universitário Materno-Infantil da Universidade Federal do Maranhão em São Luís-MA, que é onde ocorrem as consultas do Pré-natal Especializado.
O projeto de pesquisa foi enviado à Comissão Científica (COMIC) do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HUUFMA), após aprovação seguiu para submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do HUUFMA através da Plataforma Brasil. A finalidade dessa etapa foi de atender aos critérios das Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde que regulamentam as pesquisas que envolvem seres humanos (Ministério da Saúde, 2012, 2016). A pesquisa foi aprovada sob número de parecer: 4.211.106.
A coleta foi executada, após aprovação do CEP, no Ambulatório de Obstetrícia do Hospital Universitário Materno-Infantil de São Luís-MA. As mulheres eram abordadas individualmente enquanto esperavam ser chamadas para a consulta, àquelas que se enquadraram nos critérios da pesquisa eram convi da das a participar do estudo. A partir do aceite foram apresentadas ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi assinado em duas vias. Além disso, eram informadas de que a entrevista seria gravada. O período que a pesquisa de campo foi desenvolvida abrangeu os meses de setembro a novembro de 2020.
Para análise das informações coletadas utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade temática desenvolvida por Bardin (1977, p.42), que é definida como "conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens". A autora nos apresenta três etapas principais na organização da análise: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
A primeira etapa é entendida como a fase da "organização propriamente dita", onde o pesquisador escolhe os documentos que serão submetidos para análise e formula hipóteses e objetivos (Bardin, 1977). Esse processo se caracteriza pela leitura exaustiva do material coletado com intuito de ter uma visão abrangente, podendo escolher formas de classificação primárias (Gomes, 2009).
Na segunda etapa o pesquisador passa à exploração do material, em que busca distribuir frases ou fragmentos do texto selecionado pelo esquema de categorização definido anteriormente, além disso, identifica e analisa os diversos núcleos de sentido que compõem a classificação. Nessa fase também pode ser realizado um reagrupamento das partes do texto com base nos temas destacados, assim como, escrita de redação associada aos conceitos teóricos (Gomes, 2009).
Na terceira etapa se desenvolvem inferências e interpretações tomando como suporte os objetivos propostos, as hipóteses levantadas e o referencial teórico estudado (Bardin, 1977). Nesse processo se pretende ir além do material, buscando o encontro de significados mais amplos e estabelecendo relações com a teoria (Gomes, 2009).
Resultados e Discussão
Após realização das entrevistas, estas foram transcritas na íntegra e lidas de maneira exaustiva como proposto por Bardin (1977). Todas as etapas do referencial de análise foram seguidas, apresentado anteriormente, para que fosse possível chegar às categorias temáticas. Na tabela a seguir apresentamos breve caracterização do perfil sociodemográfico das mulheres que aceitaram participar do estudo. Ressalta-se que todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade das mesmas.
O estudo foi composto por 5 mulheres, todas gestantes, que estavam realizando o Pré-natal no Hospital Universitário Materno-Infantil na cidade de São Luís-MA. A idade das participantes variou entre 24 anos e 39 anos. Todas informaram realizar algum tipo de ocupação ou profissão. Sobre o estado civil, uma se declarou em união estável, uma afirmou ser solteira e três relataram serem casadas.
Em relação a quantidade de perdas, quatro afirmaram terem passado por duas perdas e uma já havia vivenciado três perdas gestacionais. As informações obtidas nos mostraram que as perdas relatadas foram espontâneas e precoces, com idades gestacionais entre 4 semanas até 8 semanas. Posto isso, a análise das entrevistas evidenciou as seguintes categorias temáticas: 1. Sentimentos vivenciados frente à perda gestacional, 2. Enfrentamento do processo de perdas, 3. Vivência de nova gestação após perdas sucessivas.
Sentimentos vivenciados frente à perda gestacional
Através da análise das entrevistas observamos que a maioria das participantes relataram sentimentos como: tristeza, frustração, desesperança e impotência. Além disso, também foi comum o questionamento sobre a causa da perda gestacional. A literatura consultada nos indica que os sentimentos citados e a busca por explicações marcam a experiência dessas mulheres (Carvalho & Meyer, 2007; Lemos & Cunha, 2015; Silva & Nardi, 2014).
No relato a seguir poderemos observar o sentimento de frustração e uma ideia de inferioridade apresentados por Patrícia quando discorre sobre suas gestações anteriores:
Na verdade eu considerava como se fosse uma mulher que não tivesse nascido totalmente sadia, totalmente mulher [...] então eu ficava meio que frustrada, às vezes, tinha noite que eu chorava bastante por isso não acontecer [...] essa pressão acaba te trazendo uma coisa que te deixa pra baixo, deixa a pessoa ruim, deixa a pessoa se sentindo um pouco frustrada, um estado meio de humilhação [...] (Patrícia)
Para esta participante, que havia passado por três perdas consecutivas, tal vivência trouxe impactos na sua autopercepção e autoestima quando afirma que não se considerava uma mulher completa e nem "sadia" suficiente por ter suas gestações interrompidas espontaneamente. Esse resultado se aproxima do que foi encontrado por Faria-Schutzer, Lovarato, Duarte, Vieira & Turato (2014) em pesquisa com mulheres que passaram por perda gestacional após vinte semanas de gestação. As entrevistadas relataram abalo na autoestima e conflito entre o papel de mulher e a maternidade. Segundo Lemos e Cunha (2015) as mulheres criam fantasias sobre a "involução da gestação" e por vezes relacionam estas a um "funcionamento incorreto do corpo".
A experiência da perda gestacional também suscitou sentimentos ambivalentes como poderemos notar no relato de Pétala:
[...] ao mesmo tempo em que eu sentia um alívio eu fiquei confusa. Eu não sabia se eu queria ou se eu não queria, meu esposo ficou muito triste, eu fiquei triste por ele, entendeu? Mas eu cheguei até por um momento agradecer porque assim alguns profissionais falaram que eu não podia ter então eu criei um bloqueio de verdade. Mas assim eu fiquei triste depois pela minha reação (Pétala).
A entrevistada Pétala contou que possui o diagnóstico de anemia falciforme e anemia ferropriva e que os médicos que a acompanham durante este tratamento apontavam riscos elevados em caso de gestação, inclusive chegaram a mencionar a possibilidade de morte no parto. Dessa forma, refletimos que a reação narrada pode estar relacionada com esse contexto, o que provocava sentimentos conflituosos. Ainda nesse relato é possível discutir o primeiro pilar da Logoterapia que é a liberdade da vontade, quando Frankl (2011) afirma que temos uma liberdade limitada, não somos livres "de" no caso de Pétala livre das questões biológicas que limitam ou inviabilizam a gestação no entanto, ela é livre "para" escolher o modo de lidar com a situação de perda.
Essa experiência de perda pode acarretar uma situação de crise diante da ruptura de sonhos e ideais, envolvendo um importante fator relacionado ao significado da gravidez (Silva & Nardi, 2014). Sobre esse aspecto a entrevistada Karla relata a quebra de expectativas e o estabelecimento da relação de vínculo com o bebê:
Foi bem difícil porque quando a gente perde, independente de ta' no início ou não você sente, porque a partir do momento que a gente vê o positivo naquela fitinha a gente já sabe que ali tem um coraçãozinho, tem uma pessoinha crescendo né e a gente cria toda uma expectativa de quarto, nome, como que vai ser quando nascer e quando acontece isso parece que o mundo desaba. Nos primeiros dias eu só queria chorar, só o que eu queria fazer... chorar (Karla).
Essa fala provoca interessante reflexão apoiada no que Binotto (2015) nos diz sobre o fato de que a dor vivenciada pelas famílias, que passam por perda perinatal, não está relacionada com o período gestacional. Nesse sentido, a autora enfatiza a importância que esses sentimentos sejam validados, afirma ainda que a partir desse momento se inicia um processo necessário que é o luto. Doka (1989) conforme citado por Casellato (2015) considera que as perdas gestacionais são caracterizadas como um luto não-reconhecido, justamente por não serem legitimadas pela sociedade, segundo a autora o que se observa é uma negação e minimização desses eventos.
Os resultados da presente pesquisa nos trazem uma ilustração do que foi exposto acima com os relatos de Karla e Patrícia: " [...] eu escutei muita gente dizer assim "é bom porque tu não viu nem a barriga crescer, tu não viu o bebê, nem tinha bebê ainda", então não sente muito, eu disse sente sim" (Karla).
[...] os amigos sempre falavam assim... Não se preocupa depois vai vim outro, isso é normal, isso acontece... ah quem sabe é porque esse daí ia nascer com algum problema coisa assim do tipo e a família também da mesma forma... ah tu ainda ta nova' (Patrícia).
Na história dessas entrevistadas fica evidente o quanto os seus sentimentos em um período de sofrimento não foram respeitados. Diante desse contexto, trazemos a ótica da Logoterapia e Análise Existencial onde Frankl (2016) afirma que o homem se depara durante sua existência com a Tríade Trágica', que é composta pela dor, culpa e morte. As narrativas das participantes são uma notável representação dos aspectos envolvidos nesta tríade, uma vez que todas apresentaram determinado grau de sofrimento, percebemos de forma implícita a presença da culpa e que ficaram diante da morte ao perderem seus bebês. Para Frankl (1989, 2011), o sofrimento é inerente a vida humana, mas mesmo nas situações de sofrimento inevitável, onde não pode mudar os condicionantes resta ao homem escolher qual postura adotar.
Na mesma perspectiva, Frankl (1989, p. 123) traz o conceito de "destino" para a Logoterapia que é definido como "[...] tudo aquilo que escapa essencialmente à liberdade do homem e que não fica sob o seu poder nem sob a sua responsabilidade". Como citado anteriormente, pesquisadores afirmam que não há como determinar as causas das perdas gestacionais em 25 35% dos casos (Torloni, 2007), o que nos mostra que boa parte destas ocorrem de forma espontânea e sem que haja possibilidade de controle maior quanto a isto.
Sendo assim, consideramos que esta experiência pode ser compreendida como um destino, onde não há como alterar o histórico de perdas gestacionais, mas ainda é possível escolher como enfrentar essa situação. A partir deste pensamento, de que forma as participantes do estudo enfrentaram o processo de perdas gestacionais?
Enfrentamento do processo de perdas
Cada mulher trouxe um relato único de como responderam a essa situação desafiadora em suas vidas, mas percebemos alguns pontos convergentes. Destaca-se, por exemplo, o suporte do marido ou companheiro e da família ao longo desse percurso. No entanto, algumas participantes descreveram uma postura de isolamento e de evitar falar desse assunto com outras pessoas da família ou amigos.
As entrevistadas Amanda e Karla enfatizam o marido e a mãe como seus principais suportes: "[...] mas sempre meu marido tava junto né... Ele ficou lá no hospital comigo [...] Eu sempre tive o acolhimento da minha mãe, ela sempre esteve presente [...] (Amanda). O relato de Karla traz uma perspectiva similar:
Foi o meu marido e as pessoas que estavam próximas porque na época a gente ainda morava com a minha mãe, foi o fato das pessoas entenderem que naquele momento eu precisava de um tempo pra mim, pra aceitar o que tinha acontecido (Karla).
Por sua vez, Camila nos contou que durante as duas perdas gestacionais vivenciadas (ambas do mesmo companheiro) não dispôs de amparo do pai dos bebês e que sua mãe e tia estavam ao seu lado. De modo geral, a família nuclear se mostrou como a principal rede de apoio das participantes ao descobrirem a perda. Na perspectiva da Logoterapia, a família é compreendida como "[...] centro gravitacional do amor, onde as pessoas se sentem reciprocamente atraídas na alegria e na tristeza, fornecendo-lhes amparo e refúgio, incentivando e apoiando-as, alimentando e protegendo-as, acompanhando-as do nascimento até a morte" (Lukas, 1990, p. 30).
O estudo desenvolvido por Lemos e Cunha (2015), com mulheres que vivenciaram perdas gestacionais, indica como um dos seus resultados a relevância da rede de apoio familiar. As autoras afirmam que diante da fragilidade física e emocional apresentada pelas participantes, possuir suporte da família, de amigos e de profissionais de saúde contribuem para melhor elaboração da perda. Refletimos que o apoio dessa rede pode ser compreendido como um exemplo do exercício de valores vivenciais, considerando que nesta categoria também se incluem as relações, o encontro com os outros, o amor e a amizade (Kroeff, 2014). A partir do momento que estas mulheres se sentem amparadas é possível que encontrem sentido no estabelecimento desse vínculo e auxilie no luto.
O uso da fé baseada em alguma crença religiosa também foi percebido como significativo no enfrentamento do processo de perdas. Frankl (2011) afirma que o homem é constituído por três dimensões: psíquica, biológica e noética ou noológica. É na dimensão noética que estão situados aqueles fenômenos especificamente humanos, sendo o senso de religiosidade uma das manifestações desta dimensão. Através do relato de Karla temos um exemplo deste enfoque:
[...] a gente ia pra igreja, eu lia a bíblia... Essas coisas, entendeu? A gente se apegava muito a isso, na esperança de que aquilo tava acontecendo porque tinha que acontecer, mas que mais na frente Deus ia recompensar a gente entendeu? Ia dá outra oportunidade, uma coisa melhor (Karla).
É importante citar o conceito de suprassentido que é compreendido como o sentido último que pode ser encontrado pela via da fé (Frankl, 1989). O autor declara que "não conseguimos relacionar-nos com esse suprassentido em solo puramente racional, mas, apenas, em solo existencial, através do todo de nosso ser, isto é, por meio da fé" (Frankl, 2011, p. 181). Verificamos que a fé apresentada pela participante auxiliava com que esta resgatasse o sentimento de esperança, sendo um dos recursos possíveis para atravessar esse período.
Por outro lado, algumas mulheres relataram que tiveram dificuldade em partilhar sua dor com outras pessoas e afirmaram evitar falar sobre assuntos relacionados as perdas ou maternidade. A entrevistada Patrícia revelou que direcionou sua atenção para o trabalho e atividades na igreja:
Eu tentava tirar assim o foco daquilo e focar mais na questão do trabalho e também como eu tô na igreja, alguns eventos na igreja eu me interessava mais [...] pra mim não ficar pensando tanto naquilo. Então sempre quando as pessoas perguntavam assim pra mim "Tu nunca engravidou?", pra mim eu não considerava como se fosse uma gravidez, eu dizia não não... Eu preferia não falar pra mim não ter que contar a história e todo mundo ficar perguntando. Mas depois de um tempo eu vi que era necessário, algumas pessoas, às vezes, passavam por situações parecidas e, às vezes, era bom conversar sobre isso e acabava falando o que tinha acontecido (Patrícia).
Como já explicitado a perspectiva logoterapêutica indica três caminhos nos quais o homem pode encontrar sentido valores criadores, vivenciais e de atitude (Frankl, 2019). No relato acima temos um exemplo da possibilidade de realização de valores criadores ao passo que Patrícia se dirige a questões relacionadas ao trabalho e o exercício de valores vivenciais quando se orienta em prol da sua fé religiosa.
Outro interessante conceito da Logoterapia que nos ajuda a analisar a vivência desta mulher é o autodistanciamento. Segundo Kroeff (2014, p. 84) este "permite que a pessoa se afaste do que lhe está ocorrendo; que adquira alguma perspectiva ante o fato, de forma que não esteja tão absorvida ou próxima que fique cega às possibilidades de solução que se podem apresentar". Salientamos que a realização dos valores criadores e vivenciais pode ter possibilitado que Patrícia fizesse uso do autodistanciamento quando consegue se opor às circunstâncias que já estavam determinadas. E após certo tempo passa a compartilhar sua experiência de perda com outras pessoas que vivenciaram algo similar, expressando isso de forma positiva.
A entrevistada Pétala também nos trouxe uma descrição de que evitava conversar até com seu marido sobre as perdas e questões concernentes a ter filhos:
Na realidade eu acho que eu me bloqueie, eu evitei pensar, eu evitei conversar sobre isso até com meu esposo [...] ele queria fazer a vasectomia e a gente adotar. Eu bloqueei até na questão da adoção [...] Eu só não tocava no assunto, quando falava de filhos eu evitava. Realmente não foi fácil e às vezes quando você coloca pra fora é mais fácil, agora quando você bloqueia é mais difícil [...] Hoje eu já falo pra algumas pessoas, da minha família (Pétala).
No fragmento acima observamos na fala de Pétala a dificuldade de entrar em contato com o sofrimento e se aproximar da sua própria experiência. Isso nos faz pensar que a elaboração desse luto pode ter sido difícil, principalmente quando menciona diversas vezes que havia "bloqueado" esse assunto. Em contrapartida afirma que ao se permitir falar disso facilita de alguma forma o seu enfrentamento.
Santos (2017) ao discorrer sobre o luto nos diz que não existem reações padronizadas nas situações de perda, reforçando que cada indivíduo apresentará uma resposta baseada em diferentes aspectos como sua história pessoal, suporte social, contexto em que está inserido e características da relação perdida. Portanto, retomando o relato de Pétala, notamos que ela precisou de um tempo bastante particular até se sentir à vontade para falar da sua dor com outras pessoas, dando provas de que o luto tem contornos singulares em cada caso. Ponderamos também que em algumas situações é de suma importância um suporte profissional que possa auxiliar o enlutado nesse processo.
Das mulheres entrevistadas apenas uma possuía filho biológico e quando conhecemos um pouco mais da história de Karla observamos a manifestação da autotranscendência recurso antropológico "localizado" na dimensão noética (Frankl, 2005, 2011), tendo em vista que essa mãe nos conta que buscava força para continuar cuidando de seu filho diante do sofrimento vivenciado.
[...] mas ao mesmo tempo eu me apegava que eu tinha que ter força porque eu tinha uma outra criança que precisava de mim ali dentro e também assim meu esposo sempre me deu muito apoio, aí a gente se apoiava era um se agarrando com o outro pra não deixar vim uma depressão, uma coisa pior, entendeu? Tentava distrair, tentava reunir a família [...] (Karla)
A autotranscendência é definida por Frankl (2005) como a capacidade do ser humano de esquecer um pouco de si mesmo e se direcionar para algo ou alguém, para um sentido a realizar. Além disso, percebemos na prática aquilo que é apresentado pela Logoterapia sobre o fato do homem não ser livre dos condicionantes físicos, psíquicos e sociais, mas que mesmo nessa situação desafiadora foi possível a Karla escolher qual postura adotar e exercer valores de atitude.
Vivência de nova gestação após perdas sucessivas
Como já explicitado, todas as participantes dessa pesquisa estavam sendo acompanhadas no Pré-natal especializado do HUMI. Dessa forma, a presente categoria reúne as principais reações das entrevistadas diante da descoberta de nova gestação e algumas experiências desse percurso. As cinco mulheres entrevistadas expressaram apreensão e medo de passarem por outra perda gestacional. A pesquisa desenvolvida por Teodózio, Barth, Wendland & Levandowski (2020), com mulheres que tiveram bebê após perda gestacional, mostrou resultado similar onde o medo foi elemento marcante durante a gestação das participantes. Volkmer (2009) também discute que a gravidez depois das perdas foi avaliada como um momento estressante e pela disposição de estado emocional caracterizado por medo e ansiedade.
Tais elementos podem ser representados no relato da participante Karla, que revela uma "mistura" de sentimentos ao descobrir a gestação. Algo que também comparece na sua fala é a insegurança, que está vinculada a experiência de perdas:
No início foi uma mistura de medo e felicidade, o medo ele nunca sumiu... até hoje ele existe porque a gente fica com medo de se apegar a barriga [...] eu ainda percebo uma diferença dessa pra gestação do meu primeiro filho ... a gente tem muito medo de acontecer a mesma coisa (perda gestacional), então a gente acaba não curtindo totalmente a gestação como é curtida né... a gente não brinca muito com a barriga [...] (Karla).
A entrevistada Patrícia também demonstra certo grau de apreensão, além disso, percebemos a dificuldade desta em acreditar que a gestação pudesse ter um desfecho diferente das anteriores:
[...] eu fiz escondida no trabalho (teste de gravidez) quando eu vi a lista fraquinha eu disse não "vou esperar"... vai ser que nem nas outras vezes... não vou criar expectativa nem nada [...] vou esperar mais um pouco... ai eu fiz o outro... aí apareceu de 2 a 3 semanas (Patrícia)
Sobre os fragmentos acima refletiremos acerca destes à luz da Logoterapia, quando Frankl (1989, p. 123) aborda questões relativas à temporalidade. O autor indica que os acontecimentos do passado nos permitem compreender o presente, mas não se justifica que as possibilidades do futuro sejam por ele determinado. Patrícia e Karla trazem um histórico obstétrico marcado por vivências de perdas, o que possivelmente as deixou em estado de maior tensão e preocupação nesta gravidez atual. Dessa forma, é legítimo que apresentem esses sentimentos, mas também é importante que consigam fazer uso do autodistanciamento, ou seja, tomem certa distância dessas condições, que fazem parte da sua história, para que não se sintam paralisadas pelo medo (Frankl, 2011).
Apesar dos resultados que denotam estado emocional de maior apreensão pela nova gravidez, também se identificou a busca por uma postura de tranquilidade e confiança, principalmente no contexto da Pandemia por COVID 19, como veremos no fragmento abaixo:
Mas eu mantive muito a questão psicológica, eu não me desesperei embora em meio a pandemia... Eu procurei meios, vídeos... coisas pra me distrair... pra não ficar pensando "meu Deus vou pegar um Covid", "meu Deus se eu pegar um covid posso morrer" (Pétala).
A partir da visão da Logoterapia notamos na fala de Pétala a manifestação do autodistanciamento que é denominado como a "capacidade humana de distanciar-se de quaisquer condições que venha a enfrentar" (Frankl, 2011, p. 27). Isso se evidencia quando, mesmo com o histórico de dois abortos espontâneos, possuir diagnóstico de uma doença crônica e estar no meio de uma Pandemia, exprime que se distanciou desses condicionantes adotando uma postura afirmativa frente à vida.
Embora tenha relatado esse posicionamento também afirmou que a descoberta da gestação a deixou assustada e aponta algumas dificuldades:
[...] no momento eu fiquei assustada, "meu Deus e agora o que será", só que assim... não é que eu tenha rejeitado... eu tive dificuldade de conversar com a criança... hoje eu já converso... já brinco... já canto... eu tive essa dificuldade no início de conversar, de aceitar, eu tava me achando um pouco feia também [...] só que aí eu caí na real comecei a assistir vídeos motivacionais [...] e comecei a sentir que realmente tinha uma vida e que era minha responsabilidade né junto com ele de aceitar essa vida ... (Pétala)
Através desse fragmento percebemos que Pétala precisou de um tempo para assimilar a sua nova gravidez, assim como, para se aproximar do bebê que estava se desenvolvendo. Porém, acrescenta que houve uma mudança na sua atitude sobre como enfrentar esse período e nos revela uma das essências do homem que é a possibilidade de ser-responsável (Frankl, 1989). A partir de uma situação única que se colocou na sua vida, a participante se permitiu fazer uso da sua liberdade e realizar valores atitudinais que é um dos caminhos para encontrar sentido. Exerce também a autotranscendência quando se dirige para algo ou alguém, nesse caso quando volta sua atenção para sua filha e busca formas de cuidar desta (Frankl, 2005).
Outro elemento interessante que surgiu ao longo do estudo diz respeito ao significado da experiência da perda e seu impacto na nova gestação:
A experiência da perda ela foi muito significativa tão tal que essa minha aqui eu tive maior cuidado. Eu descobri eu tava com 6 semanas também, eu recorri logo pro pré-natal, vi as vitaminas, eu comecei. Tudo que me passam eu tomo, minhas consultas eu não faltei nenhuma, todo tempo no controle da dieta por causa do meu peso (Clara).
Nesse exemplo fica explícito a capacidade humana de exercer a sua liberdade e responsabilidade (Frankl, 2011), uma vez que Clara demonstra que aquilo que é possível de ser feito para melhor desenvolvimento da gravidez tem buscado realizar, seja seguindo as orientações do pré-natal ou realizando dieta. O passado de perdas não pode ser apagado, mas diante do horizonte de possibilidades que possui, realiza ações significativas no presente que contribuem para o futuro.
Para Pétala e Clara a gestação tem sido um processo de mudanças internas, e apesar das dificuldades apresentadas anteriormente, destacam fatores positivos nesse momento das suas vidas: "[...] depois que a gente incorpora a questão da maternidade, tem que abdicar de muitas coisas, na minha opinião tá sendo uma experiência de amadurecimento mesmo completo, psicológico, físico, químico" (Clara).
Tem sido um aprendizado, é algo novo [...] Porque assim, se tu te desesperar é pior, e não ficar correndo atrás de coisas ruins... "ah eu tô sentindo uma coisa aqui eu vou já perder" [...] Tem sido uma experiência muito boa, gratificante, de vitória, entendeu? Chegar até esse período da gestação e imaginar assim só vamos aguardar o momento do parto ... Tô muito satisfeita... Graças a Deus (Pétala).
A partir do olhar da Logoterapia é visível que mesmo com as adversidades vivenciadas ao longo das suas históricas obstétricas, foi possível encontrar um sentido único diante dessa situação irrepetível. Os relatos nos mostram o quanto essas mulheres dirigem sua atenção para os cuidados com esse ser humano que está em crescimento no seu ventre, dedicando-se para algo além de si mesmas. Identificamos então uma das manifestações da autotranscendência o amor. Para Frankl (2011, p. 29) o amor "constitui a capacidade de apreender outro ser humano em sua genuína singularidade", sendo considerado também um ato intencional. Ademais, constatamos o exercício de valores de vivência ao passo que se permitem experimentar esse contexto da maternidade e o processo de tornar-se mãe.
Observamos que cada mulher apresentou detalhes únicos diante da descoberta de nova gestação e a análise de alguns relatos nos remetem a Tese do Otimismo Trágico. Frankl (2016) afirma que a vida permanece com o seu sentido potencial mesmo quando o homem se depara com os aspectos trágicos da existência humana dor, culpa e morte. Todas essas mulheres possuem um histórico de perdas gestacionais que fizeram com que estivessem frente a frente com essas questões desafiadoras. Através das falas de Pétala e Clara percebemos o exercício da capacidade humana de transformar vivências negativas em algo construtivo, que podem levar ao amadurecimento através do sofrimento.
Considerações Finais
A experiência de mulheres que vivenciaram perdas gestacionais foi caracterizada como um processo permeado pela singularidade de cada caso. No entanto, notamos que todas as participantes expressaram determinado grau de sofrimento diante deste acontecimento de suas vidas. O contexto das perdas gestacionais foi perpassado por sentimentos como tristeza, frustração, desesperança e impotência.
Percebe-se que em muitos casos a dor relacionada a perda gestacional não é validada e nem reconhecida pela sociedade. Tal informação vai ao encontro da literatura quando engloba a perda gestacional no grupo dos lutos não-reconhecidos. Enfatizamos que para algumas mulheres foi muito difícil falar sobre as perdas com pessoas próximas, diante disso, apontamos o quanto esse assunto requer sensibilidade e cuidado ao ser abordado tanto por familiares, amigos e profissionais. A gravidez após perdas sucessivas foi atravessada pelo medo, apreensão e insegurança. Apesar desses aspectos, também foi possível constatar a busca de uma postura de confiança em desfecho diferente das gestações anteriores.
Do ponto de vista da Logoterapia, consideramos que as participantes se depararam com o que Frankl (2016) denominou de a "Tríade Trágica" da existência humana, ao observarmos que todas expressaram passar pela experiência de dor/sofrimento com as perdas/mortes gestacionais. Essa vivência foi entendida como um destino, ou seja, àquilo que escapou da liberdade dessas mulheres e que não estava no seu controle. Identificamos também o exercício de valores de atitude quando as participantes trazem relatos sobre como se posicionaram diante dos desafios colocados pela vida. Assim, visualizamos a possibilidade de descoberta do sentido diante do sofrimento inevitável.
A rede de apoio das participantes, constituída principalmente pela família, foi percebida como um exemplo de valores vivenciais, uma vez que as relações, os encontros existenciais, o amor e a amizades estão incluídos nessa categoria. Ressaltamos que nenhuma participante citou os profissionais de saúde como suporte nesse processo. Em relação aos valores vivenciais, notamos a realização de sentido através desse caminho quando as participantes mencionam aspectos significativos sobre a experiência da gestação atual, assim como a construção do vínculo afetivo com o bebê que estava se desenvolvendo.
Frankl (2011) propõe uma visão do ser humano como um ser biopsiconoético ; na dimensão noética se "localizam" os fenômenos especificamente humanos, a exemplo destes temos os recursos antropológicos do autodistanciamento e autotranscendência. A análise dos resultados revelou a manifestação do primeiro quando verificamos que as participantes conseguiram tomar certo distanciamento dos problemas e condicionantes para que pudessem escolher qual atitude adotar. A autotranscendência foi evidenciada no momento em que algumas mulheres não ficaram centradas em si mesmas, mas realizaram tarefas ou se dedicaram a alguém que naquele momento necessitava delas.
A pesquisa mostrou que a experiência da perda gestacional pode ser atravessada por sofrimento, mas apesar disso também constatamos a capacidade humana de amadurecer através dos desafios e dificuldades impostas pela vida. O estudo desenvolvido traz subsídios pertinentes para o campo teórico por apresentar o olhar da Logoterapia e Análise Existencial sobre a temática das perdas gestacionais. No que diz respeito ao campo prático pode auxiliar no desenvolvimento de assistência mais qualificada para mulheres que passam por perdas gestacionais. Trabalhos como este também são relevantes por fomentarem a discussão acerca das perdas e sensibilizar a sociedade sobre a vivência desse luto.
Em relação as limitações da pesquisa, citamos o fato de não ter contemplado a perspectiva da família e dos profissionais de saúde no assunto proposto. Assim, sugerimos como pesquisas futuras o enfoque na percepção desses sujeitos com base no referencial teórico apresentado. Outra possibilidade de pesquisa envolveria o sentido da maternidade na perspectiva da Logoterapia para mulheres com esta vivência. O estudo também traz como potencialidade o desenvolvimento de projetos de extensão para mulheres que passaram por perdas gestacionais.
Referências
Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trad.). São Paulo: Edições 70. [ Links ]
Binotto, A. M. F. (2015). Natimorto, aborto e perda perinatal: a morte no lugar do nascimento. Em: Casellato, G. (Org.), Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade (pp. 35-50). Niterói: PoloBooks. [ Links ]
Brasil (2005). Ministério da Saúde. Manual dos Comitês de prevenção do óbito infantil e fetal. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado de: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/pdfs/Manual_obito_Infantil_Fetal.pdf. [ Links ]
Brasil (2005). Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento. Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf. [ Links ]
Brasil (2009). Ministério da Saúde. Manual de Vigilância do óbito Infantil e Fetal e do Comitê de Prevenção do Óbito Infantil e Fetal. (2ª ed.). Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado de: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_obito_infantil_fetal_2ed.pdf. [ Links ]
Brasil (2012). Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 466 de 12 de dezembro de 2012. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html. [ Links ]
Brasil (2016). Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 510 de 07 de abril de 2016. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html. [ Links ]
Carvalho, F. T. de. & Meyer, L. (2007). Perda gestacional tardia: aspectos a serem enfrentados por mulheres e conduta profissional frente a essas situações. Boletim de Psicologia, 57 (126), 33-48. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/bolpsi/v57n126/v57n126a04.pdf. [ Links ]
Casellato, G. (2015). Luto não reconhecido: um conceito a ser explorado. Em: Casellato, G. (Org.), Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade (pp. 19-33). Niterói: PoloBooks. [ Links ]
Faria-Schutzer, D. B.; Lovarato Neto, G., Duarte, C. A. M.; Vieira, M. C. & Turato, E. R. (2014). Fica um grande vazio: relatos de mulheres que experenciaram morte fetal durante a gestação. Estudos interdisciplinares em Psicologia, 5 (2), 113-132. DOI: 10.5433/2236-6407.2014v5n2p113 [ Links ]
Frankl, V. E. (1989). Psicoterapia e Sentido da Vida: fundamentos da Logoterapia e Análise Existencial. São Paulo: Quadrante. [ Links ]
Frankl, V. E. (2005). Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida-SP: Ideias & Letras. [ Links ]
Frankl, V. E. (2011). A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da Logoterapia. (I. S. Pereira, Trad.). São Paulo: Paulus. [ Links ]
Frankl, V. E. (2016). Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. (W. O. Schlupp & C. C. Aveline, Trad.). São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Frankl, V. E. (2019). O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. São Paulo: É Realizações. [ Links ]
GIL, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. (4. Ed.). São Paulo: Atlas. [ Links ]
Gomes, R. (2012). Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. Em: Minayo, M. C. de S. (Org.), Pesquisa social: teoria, método e criatividade (pp. 79-108). Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
González Rey, F. L. (2005). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thomson Learning. [ Links ]
Kroeff, P. (2014). Logoterapia e Existência: a importância do Sentido da Vida. Porto Alegre: Evangraf. [ Links ]
Lemos, L. F. S. & Cunha, A. C. B. (2015). Concepções sobre a morte e luto: experiência feminina sobre a perda gestacional. Psicologia, ciência e profissão, 35 (4), 1120-1138. http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001582014. [ Links ]
Lukas, E. (1990). Mentalização e saúde: a arte de viver e logoterapia. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
Minayo, M. C. De S. (2009). O desafio da pesquisa social. Em: Minayo, M. C. De S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. (pp. 9-29). Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
Santos, G. C. B. F. (2017). Intervenção do profissional de saúde mental em situações de perda e luto no Brasil. Revista M.: Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, 2 (3), 116-137. Recuperado de http://www.seer.unirio.br/index.php/revistam/article/view/8152. [ Links ]
Silva. A. C. de O. & Nardi, A. E. (2014). Luto decorrente de abortamento e óbito fetal. Em: Santos, F. S. (Ed.). Tratado brasileiro sobre perdas e luto (pp. 137-143). Atheneu. [ Links ]
Torloni, M. R. (2007). Óbito Fetal. Em: Bortoletti, F. F. (Org.). Psicologia na Prática Obstétrica: abordagem interdisciplinar (pp. 297-300). Barueri, SP: Manole. [ Links ]
Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde Pública, 39 (3), 507-514. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000300025. [ Links ]
Volkmer, V. (2009). Significados de maternidade para mulheres com trajetória reprodutiva marcada por perdas gestacionais recorrentes (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA. Recuperado de https://pospsi.ufba.br/sites/pospsi.ufba.br/files/vivian_volkmer.pdf. [ Links ]
Teodózio, A. M.; Barth, M. C.; Wendland, J. & Levandowski, D. C. (2020). Particularidades do luto materno decorrente de perda gestacional: estudo qualitativo. Revista Subjetividades, 20 (2), e9834. http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2. [ Links ]
Endereço para correspondência
Leanne Maria Ferreira Dias
E-mail: leannemaria02@gmail.com
Francisca Pereira da Cruz Zubicuetaa
E-mail: franciscapcruz@hotmail.com
Recebido: 04/06/2022
Revisado: 09/06/2022
Aceito: 29/06/2022
Publicado: 30/06/2022
1 Leanne Maria Ferreira Dias: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3013-3758
2 Francisca Pereira da Cruz Zubicuetaa: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3127-7884