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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2021
ARTIGOS
Medicalização do viver entre usuárias de psicotrópicos na atenção básica
Medicalization of life among psychotropic users in primary care
La medicalización del vivir entre usuarias de psicotrópicos en atención primaria
Élen Lúcio PereiraI; Lumena Cristina de Assunção CortezII; Flávio Fernandes FontesIII; Mercês de Fátima dos Santos SilvaIII
IPrefeitura Municipal de São Bento, São Bento, PB, Brasil
IIUniversidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Santa Cruz, RN, Brasil
RESUMO
Na Política Nacional de Saúde Mental, a Atenção Básica possui um papel estratégico no atendimento às pessoas em sofrimento psíquico. Contudo, o tratamento a este sofrimento na Unidade Básica de Saúde é frequentemente restrito à prescrição de medicação. Diante disso, este estudo visou compreender as vivências de usuárias da atenção básica que fazem uso diário de psicotrópicos, investigando os sofrimentos imbricados na utilização inadequada da medicação. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, nos moldes da história de vida, com usuários da equipe da Estratégia de Saúde da Família numa área remota do Nordeste brasileiro. Da análise temática das narrativas coletadas evidenciaram-se três categorias que discutem o percurso dos usuários desde as queixas, passando pelas consultas, até o medo da cessação do uso da medicação. As narrativas assinalaram a proliferação do diagnóstico "psiquiátrico" para comportamento e sofrimento do cotidiano, evidenciando o processo defarmacologização de condutas consideradas indesejáveis.
Palavras-chave: Transtornos mentais; Saúde Mental; Psiquiatria; Atenção Primária à Saúde.
ABSTRACT
In the National Mental Health Policy, Primary Care has a strategic role in assisting people in psychological distress. However, the treatment of this suffering in the Basic Health Unit is often restricted to the prescription of medication. Therefore, this study aimed to understand the experiences of users of primary care who make daily use of psychotropics, investigating the imbricated suffering related to the inappropriate use of medication. In order to do so, semi-structured interviews were conducted along the lines of life history with patients of the Family Health Strategy, in a remote area of Northeast, Brazil. The thematic analysis of the collected narratives revealed three categories that discuss the path of users from complaints, through consultations, to the fear of cessation of the use of medication. The narratives pointed out the proliferation of the "psychiatric" diagnosis for daily behavior and suffering, evidencing the process of pharmaceuticalisation of behaviors considered undesirable.
Keywords: Mental disorders; Mental Health; Psychiatry; Primary Health Care.
RESUMEN
Enla Política Nacional de Salud Mental, laAtención Primaria tieneun papel estratégico enlaasistencia a las personas consufrimiento psíquico. Sin embargo, eltratamiento de este sufrimientoenlaUnidad Básica de Salud se limita a menudo a laprescripción de medicamentos. Por tanto, este estudiotuvo como objetivo conocerlas vivencias de losusuarios de atención primaria que hacen uso diario de psicotrópicos, investigando lossufrimientos imbricados enenlautilizacióninadecuada de medicamentos. Para ello, se realizaron entrevistas semiestructuradas, enlos moldes de lahistoria de vida, conusuariosdel equipo de laEstrategia de SaludFamiliarenun área remota del Nordeste brasileño. El análisis temático de las narrativas recogidasevidenciarontrescategorías que discuteneltrayecto de losusuarios desde lasquejas, pasando por las consultas, hasta elmiedo de lacesacióndel uso de los medicamentos. Las narrativas señalaronlaproliferacióndel diagnóstico "psiquiátrico" para comportamiento y sufrimiento de lo cotidiano, evidenciando elproceso de lafarmacologización de conductas consideradas indeseables.
Palabras clave: Trastornosmentales; Salud Mental; Psiquiatría; Atención Primaria de Salud.
Introdução
Os serviços de acolhimento às pessoas em sofrimento psíquico no Brasil estão estabelecidos como responsabilidade do Estado, a partir da Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001. O movimento da Reforma Psiquiátrica teve um papel importante na construção desta lei, tensionando o Estado na reformulação do modelo assistencial em saúde mental e colocando-o de acordo com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), através da concepção de cuidado integral e atenção multiprofissional, contando com a participação de toda comunidade, familiares e usuários (Lei nº 10.216, 2001).
Com a finalidade de fortalecer o atendimento às pessoas em sofrimento psíquico ou com dependência em álcool e outras drogas, elaborou-se também a Portaria do Ministério da Saúde nº 3.088 de 23 de dezembro de 2011, em que é promulgada a formulação de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS surge como uma tentativa de promover qualidade nos serviços, centrada no cuidado da pessoa, com estratégias terapêuticas que estimulem atividades no território, favorecendo o desenvolvimento de autonomia e cidadania (Portaria nº 3.088, 2011).
Uma das principais ações estratégicas da RAPS foi incentivar a expansão de serviços comunitários de saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nas modalidades I, II ou III (com leitos-noite), no território nacional. Os CAPS teriam como uma de suas finalidades substituir os hospitais psiquiátricos monovalentes, considerados ineficazes no cuidado da saúde mental das pessoas (Onocko-Campos, 2019).
No entanto, em 21 de dezembro de 2017 foi decretada a Portaria nº 3.588, que reintroduz na RAPS o Hospital Psiquiátrico Especializado e o Hospital Dia, além de instituir o CAPS AD IV (Portaria nº 3.588, 2017). Outra inflexão importante surgiu com a nota técnica nº 11/2019 do Ministério da Saúde. Em termos organizativos os serviços que compõem a RAPS sofreram alteração, desabilitando o fechamento de hospitais psiquiátricos, como também anulando o termo "rede substitutiva", entendendo agora que nenhum serviço possui caráter de substituir o outro, e sim, de complementar, tendo como objetivo ampliar a variedade de cuidados (Nota Técnica nº 11, 2019).
Essas ações resgatam e valorizam as intervenções biomédicas por sobre as práticas psicossociais, concedendo financiamento público federal para comunidades terapêuticas e legitimando práticas manicomiais e asilares nesses espaços. Essas mudanças têm sido criticadas como retrocessos na forma de organização da política e uma retomada do modelo manicomial que podem ser interpretados como uma Contrarreforma Psiquiátrica (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2019; Nunes, Lima, Portugal & Torrenté, 2019). A inclusão desses serviços pode ainda intensificar o subfinanciamento da área da saúde mental no SUS (Onocko-Campos, 2019). Em meio a conflitos, continua existindo no país uma Política Nacional de Saúde Mental com objetivos organizativos acerca do tratamento e assistência aos usuários e seus familiares, abrangendo a atenção a pessoas com diversos transtornos mentais, bem como quadros de uso nocivo e dependência de substâncias consideradas psicoativas (Nota Técnica nº 11, 2019).
A organização da gestão em saúde mental pauta-se no cuidado e na assistência às pessoas nos seus territórios. Dessa forma, a RAPS desenvolveu sua regionalização no país e interiorizou a assistência no âmbito da saúde mental em municípios de médio e pequeno porte, com intensa participação da Atenção Básica, além da descentralização dos leitos em atenção psicossocial (Macedo, Abreu, Fontenele, & Dimenstein, 2017).
Nesse sentido, as Unidades Básicas de Saúde (UBS's) com a Estratégia de Saúde da Família (ESF) configuram serviços fundamentais de atendimento às pessoas em sofrimento psíquico nos municípios. Estes serviços possibilitaram aos profissionais das equipes o estabelecimento de proximidade com as histórias de vidas das pessoas e uma melhor compreensão do vínculo existente entre a comunidade e o território onde reside, assim como outros elementos relacionados ao seu contexto (Caderno de Atenção Básica, 2013).
Assim, as intervenções em saúde mental deveriam ser estabelecidas a partir das condições e modos de viver, relacionando a prática do cuidado focada no sentido existencial da experiência do adoecimento, seja ele físico ou mental, buscando-se enfatizar as raízes e significados sociais relacionados a este, diante das dificuldades de construção de "projetos de felicidade" em saúde em coletividade. Além disso, as intervenções deveriam articular a dimensão dialógica do encontro, a partir da "sabedoria prática", que só ocorre quando há um bom encontro clínico, revelado a partir da escuta qualificada em saúde (Ayres, 2004).
Contudo, a literatura aponta que o atendimento à demanda de saúde mental na UBS é frequentemente restrita à consulta médica e à prescrição de medicação, direcionando-se à manutenção de uma conduta terapêutica focada no diagnóstico de transtorno mental, evidenciando a doença e ignorando a experiência das pessoas em suas singularidades (Bezerra, Jorge, Gondim, Lima, & Vasconcelos, 2014). Assim, a transformação de aspectos da história de vida das pessoas em adoecimentos é aliada à construção da intervenção com foco no uso de fármacos, produzindo consumidores diretos no processo de busca por uma normalidade e desenvolvendo espaços dialéticos de medicalização que colaboram com uma perspectiva de farmacologização das vidas, conceitos que se distinguem, mas também apresentam momentos de sobreposição (Camargo, 2013).
Assim, a psicofarmacologia pode encarcerar o sujeito em uma nova alienação, ao pretender curá-lo de males como a tristeza, decepção, angústia, medo e ansiedade. Promete-se o fim do que seriam suas vulnerabilidades, imperfeições, finitudes e mal-estar psíquico por meio da ingestão de pílulas, que ocasionam em si a suspensão dos sintomas e transformação da subjetividade, expressão da instância psíquica humana (Henriques, 2012).
Na literatura, vários estudos têm discutido as práticas de cuidado em saúde mental nos serviços de saúde, apontando a forma como questões sociais presentes nas vidas das pessoas (situação de violência, pobreza, entre outros) ganharam a interpretação de adoecimento mental, recebendo a indicação medicamentosa como tratamento majoritário. A substituição da escuta qualificada (terapias) pelas drogas estimula uma relação de dependência e ausência de protagonismo diante das próprias emoções, consequências que são estudadas e percebidas nos discursos dos indivíduos (Bezerra e cols., 2014; Ferrazza, 2010; Ferreira, 2015; Henriques, 2012; Moura, Pinto, Martins, Pedrosa, & Carneiro, 2016; Onocko-Campos e cols., 2013).
Assim, a partir da problematização das repercussões da medicalização e patologização do sofrimento, buscou-se compreender as concepções e vivências das pessoas referentes aos impactos e sofrimentos imbricados no uso diário e inadequado de psicotrópicos.
Metodologia
Trata-se de um estudo exploratório de abordagem qualitativa desenvolvido na perspectiva teórico-metodológica da Fenomenologia-hermenêutica a partir da compreensão das Ciências Sociais e seus estudos sobre a experiência do adoecimento das pessoas. Tal perspectiva se expressa pela preocupação em compreender e problematizar como as pessoas vivenciam a experiência de sentir-se mal e como atribuem significados e interpretam as ações sociais relacionadas à experiência do adoecimento (Alves, 2006).
Partimos da Sociologia fenomenológica de Alfred Schütz que, influenciado por Max Weber, pauta a interpretação da realidade social a partir dos sentidos e dos motivos que as pessoas atribuem aos seus atos e práticas, ou seja, como elas concebem significados e representam o "mundo da vida". Do ponto de vista metodológico, nas Ciências Sociais, a fenomenologia encontra-se na abordagem dos estudos compreensivos, indicando que a compreensão sobre significado, concepção e percepção que as pessoas têm sobre determinados fenômenos sociais por elas vivenciados são centrais para a investigação.
A pesquisa foi realizada no município de Currais Novos, localizado na região do Seridó Potiguar, área remota do Rio Grande do Norte. O referido município localiza-se a 187 km da capital (Natal), em uma região historicamente marcada pela ocorrência das secas, o que leva à vulnerabilidade ambiental, climática e à instabilidade da economia, influenciada pela má gestão dos recursos hídricos disponíveis.
O município possui como população uma estimativa de 45.060 habitantes, dividida em área rural e urbana, possuindo 17 equipes de ESF e 01 CAPS (Nota Técnica do Departamento de Atenção Básica, 2018). Assim como outras cidades da região, Currais Novos apresenta elevado quantitativo de usuários e usuárias das UBS's que fazem uso de algum tipo de psicotrópico. De acordo com dados dos livros do controle de psicotrópicos na Farmácia Básica do município, detectou-se a compra de 237.284 compridos e 3.306 frascos de medicação psicotrópica, gerando um custo de cerca de R$ 100.000,00ao município, em 2016.
A presente pesquisa ocorreu durante o período de julho a dezembro de 2017, em uma UBS. A escolha do serviço de saúde justifica-se por este ter sido um dos espaços de prática no qual a autora principal do estudo se inseriu como psicóloga da Residência Multiprofissional em Atenção Básica, filiada à Escola Multicampi de Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A proposta da Residência vincula-se à perspectiva de interiorização do ensino e produção de práticas interprofissionais em saúde.
Para seleção dos interlocutores foi realizada análise documental dos prontuários, a fim de identificar usuários que faziam uso de psicotrópicos por um período igual ou superior a um ano, e com idade igual ou superior a 18 anos. Segundo Perez (2015), o uso dessas substâncias ultrapassando o período de quatro a seis semanas pode levar ao desenvolvimento de dependência, por isso optou-se pelo tempo de uso de um ano ou mais.
Foram identificados 25 prontuários que atendiam a estes critérios de inclusão, sendo obtido em seguida o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE - prontuário) para sua análise. Dentre os prontuários analisados, 18 eram prontuários de pessoas do sexo feminino e 07 do masculino, na faixa etária dos 32 aos 80 anos de idade, em sua maioria fazendo uso de medicações como Clonazepam e Bromazepam. Destas 25 pessoas, dez foram selecionadas para a próxima etapa da pesquisa, por apresentarem disponibilidade de participação nas entrevistas, sendo nove mulheres e um homem. O número de pessoas selecionadas foi restringido pelo tempo disponível para realização da pesquisa.
O áudio dos encontros foi gravado mediante autorização das pessoas que aceitaram deliberadamente participar, assinando um TCLE. As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro preestabelecido e duraram entre 11 e 40 minutos, com média de 25 minutos cada, utilizando a técnica da história de vida para auxiliar a abordagem teórico-metodológica adotada.
Segundo Queiroz (1991) a técnica da história de vida define-se como um relato do narrador/narradora da sua existência através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que o/a narrador/narradora vivenciou e transmitir as experiências que adquiriu a partir das suas relações sociais. Entretanto, ao mesmo tempo que o entrevistador tenta captar a narrativa de caráter individual, ele busca ultrapassar este nível de análise, considerando a relevância social da problemática de pesquisa, de forma a desvelar as relações sociais nas quais o entrevistado está inserido. Isto significa que, embora a entrevistadora (autora principal do artigo) tenha conservado mais tempo em silêncio, o que não significa ausente, a mesma conduziu a entrevista para a "vida" de seu/sua interlocutor/interlocutora relacionada ao tema de pesquisa, a partir do roteiro preestabelecido (Queiroz, 1991).
Dessa forma, as entrevistas foram conduzidas a partir das seguintes questões: 1) o início do uso da medicação; 2) como têm sido as consultas e sua participação na discussão do uso da medicação; 3) se tem conhecimento dos efeitos colaterais e como os tem sentido; 4) tentativa de desmame da medicação, a necessidade do uso e como esta tem feito parte de sua rotina de vida.
Das entrevistas emergiram narrativas que foram analisadas a partir da técnica de codificação temática, a partir dos núcleos gerais de sentido apontados nas questões acima. Após a leitura exaustiva das narrativas foram estabelecidos os núcleos de sentidos e significados comuns das narrativas relatadas (Flick, 2009). Com os agrupamentos dos sentidos e significados comuns codificamos inicialmente oito categorias analíticas, que foram sintetizadas em três categorias temáticas: "Já sabia qual era o meu problema. E passou... fluoxetina": das queixas à medicação; "Ela passa a receita, e eu vou embora": os (des)caminhos e (des)cuidados nas consultas em saúde mental; "Falta arroz, feijão, rapadura, linguiça, salsicha, mas não falta meu remédio": a medicação e o medo da cessação do uso.
A pesquisa foi conduzida de acordo com os aspectos éticos e legais da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido submetida ao Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi, e aprovada sob número 2.081.220.
Resultados e discussão
Como mencionado anteriormente, após a análise documental, dez pessoas participaram livremente do estudo, recebendo nomes fictícios para garantir o anonimato dos interlocutores. A partir dos dados dos prontuários e das entrevistas, elaborou-se um perfil dos participantes: Rute, 56 anos, diarista, faz uso de clonazepam desde o ano de 2002; Rosa Maria, 70 anos, aposentada, faz uso de Clonazepam desde o ano de 2002; Augusto, 64 anos, jornalista, faz uso de Clonazepam desde o ano de 2007; Sofia, 72 anos, aposentada, faz uso de Bromazepam desde o ano de 2009; Maristela, 34 anos, do lar1, fez uso de Fluoxetina em 2010, sendo substituída pelo Escitalopram em 2016; Manoela, 32 anos, autônoma, faz uso de Fluoxetina desde o ano de 2012; Julieta, 53 anos, do lar, em uso de Bromazepam desde 2012, recebendo também a indicação de Fluoxetina em 2016; Aparecida, 36 anos, do lar, faz uso de Sertralina desde o ano de 2014; Luzia, 53 anos, aposentada, faz uso de Clonazepam desde o ano de 2016; Eliete, 46 anos, do lar, faz uso de Alprazolam desde o ano de 2016.
A seguir apresentaremos as três categorias de sentidos que foram estabelecidas por meio da análise das entrevistas.
"Já sabia qual era o meu problema. E passou... fluoxetina": das queixas à medicação
Essa categoria relaciona-se às queixas indicadas pelos participantes para a introdução dos psicotrópicos em suas vidas, e os profissionais que realizaram a indicação desse tipo de medicamento. Queixas consideradas comuns ao cotidiano da existência humana são regularmente tratadas com psicofármacos, sem escuta das narrativas das pessoas (Ferrazza, Rocha & Luzio, 2013).
Nas narrativas produzidas neste estudo, muitos dos sofrimentos relatados relacionam-se às questões de gênero, como a responsabilização do papel da mulher como cuidadora e de qualquer tipo de fazer ligado ao ambiente doméstico. Desse modo, Carvalho e Dimenstein (2003) destacam que essa divisão sexual do trabalho está pautada na separação do espaço público e de produção de bens como campo masculino, e o espaço privado como feminino, como expõe Sofia, Aparecida e Rosa Mari, respectivamente: "Tudo aqui em casa. Tudo era pra cima de mim, aí não tinha corpo que aguentasse uma coisa dessa, nem mente."; "Aí eu me preocupo muito assim, porque eu cuido daqui e cuido lá de mamãe"; "Eu já lutei com uma filha minha com depressão".
De acordo com Moura e cols. (2016) e Wanderley, Cavalcanti e Santos (2013) a população que mais consome medicação psicotrópica de forma abusiva são as mulheres. Tal dado corresponde, para além das queixas de sofrimento psíquico, a uma prevalência da presença dessas usuárias nos serviços de Atenção Primária à Saúde.
Os sofrimentos psíquicos estão relacionados ao contexto social dos sujeitos, presentes em suas histórias. A vivência da perda de um ente querido caracteriza o luto, contudo, sua elaboração psicológica depende da forma como o grupo social reflete sobre a morte e se comporta diante dela. Em culturas onde é percebida de forma natural, as pessoas tendem a aceitá-la de forma pacífica e tranquila, entretanto, nas culturas que ressignificam como afastamento indesejado de alguém querido, as reações tendem a ser dolorosas e geradores de sentimentos intensos (Filardi, Mendonça & Oliveira, 2021), questão sinalizada por Rute: "(...) foi porque meu pai morreu. Eu não queria aceitar a morte dele. (...) não dormia de noite. Ela [médica] me passou uns comprimidos".
Diante uma situação de luto, experienciar os sentimentos que vem à tona favorecem sua elaboração, o que permite à pessoa a capacidade de lidar com a perda e reorganizar sua vida diante da nova realidade. Entretanto, mesmo considerado um sofrimento comum em nossa sociedade, percebe-se do prescritor uma postura medicalizante diante do fato. Anteriormente, no DSM-IV, o luto era considerado uma situação excepcional na qual a aparição dos sintomas podia estender-se por dois meses, já no DSM-5essa excepcionalidade desaparece ficando por conta do clínico a avaliação de cada situação concreta (Caponi, 2014). Na experiência de Rute, a ação resultou em medo de cessar o uso do medicamento, por possíveis sofrimentos relacionados aos efeitos sobre a vivência da perda de seu pai: "(...) se eu parar, eu tenho medo de voltar tudo (...) quando papai morreu mesmo. Eu tenho medo".
Assim como pontua Ferrazza (2010), o início do uso da medicação marcado por um acontecimento eventual, que possui efeitos momentâneos, fica marcado pelos efeitos do uso prolongado dos medicamentos que se inserem nas pessoas, estendendo-se de forma indefinida em suas vidas, como no caso de Maristela: "Falei só que vivia chorando. Ele [médico] perguntou por quê? Perguntou se eu vivia bem. Eu disse: 'vivo!' Mas só que eu já tinha pegado esse problema quando morei dentro da casa da minha sogra".
A participante relatou alguns sintomas de tensão e tristeza relacionados a conflitos no seu âmbito familiar que foram enquadrados rapidamente dentro de um diagnóstico de ansiedade. Em seguida foi prescrito um tratamento de dois anos contínuos com uso de Fluoxetina, embora a literatura aponte que os riscos ligados ao consumo dos psicotrópicos estão diretamente relacionados ao seu tempo de uso (Sadock, Sadock, &Sussman, 2013, 2013).
Dessa forma, o saber psiquiátrico foi assimilado de maneira a proporcionar uma medicalização do social, definindo rotulações diagnósticas e tratamentos dos sofrimentos psíquicos, tornando-se parte do cotidiano da classe médica. Na verdade, não apenas da classe médica, mas também de outros profissionais de saúde, que têm reivindicado certas expertises sobre sofrimento psíquico em situações de vulnerabilidade social (pobreza, delinquência, desemprego, trabalho precário etc.) (Perrusi, 2015).
Todo mal-estar psíquico é transformado em doença, valorizando uma concepção biológica do sofrer, fundamentando-se numa perspectiva neurológica e genética, incentivando um tratamento químico (Cavalcante & Cabral, 2017; Ferrazza e cols., 2013). Assim, as vivências singulares das pessoas são patologizadas, recebendo tratamento direto com tecnologias duras, com respostas rápidas e incisivas em qualquer tipo de "sintoma" relacionado às vivências humanas, conforme relatou Julieta: "Só fez dizer que... já sabia qual era o meu problema... e passou... fluoxetina".
A fala de Sofia exemplifica a percepção do sofrimento enquanto "anormalidade", ou uma desordem humana, vejamos: "Eu tinha problema no nervosismo e a doideira que tinha atacado, ele passou esse remédio controlado". Assim, corrobora Le Breton (2003) ao compreender o uso do psicotrópico como meio simbolizante eficaz para a produção de um estado psicológico que se adapte às diferentes condições de vida, a fim de uma adequação tranquilizante, utilizando-se de soníferos para a manutenção da normalidade.
Percebeu-se ainda que a maioria dos profissionais que realizaram a primeira, e, na maior parte das vezes, única indicação de psicotrópico, pertencia a outras especialidades médicas, que não a psiquiátrica (cardiologista, reumatologista, clínico geral), tendo apenas uma das entrevistadas a recebido de um psiquiatra. Além disso, quando questionados acerca de encaminhamentos para algum outro profissional ou indicação de psicoterapia, os entrevistados negaram direcionamentos a algum tipo de terapêutica que não a medicamentosa.
Isso reflete uma conduta terapêutica de manutenção do diagnóstico, focando, dessa forma, na "doença" e não na experiência de vida, sendo tal prática um reflexo da limitação na formação acadêmica dos profissionais para lidar com pessoas em sofrimento psíquico (Bezerra e cols., 2014). Nota-se, portanto, uma deficiência no reconhecimento dos recursos e serviços existentes no território em saúde, em que situações de vulnerabilidade social podem ser acolhidas. Equipamentos da Assistência Social, espaços comunitários e de suporte social (organizações não-governamentais, igrejas, associações de bairro), assim como outros equipamentos da RAPS poderiam ser mobilizados. Além disso, também poderiam ser utilizadas tecnologias que foquem o acolhimento e construção de vínculos, já que "o sofrimento psicológico por vezes melhora com o simples encorajamento de um médico" (Sadock e cols., 2013, p. 41).
"Ela passa a receita, e eu vou embora": os (des)caminhos e (des)cuidados nas consultas em saúde mental
A elaboração dessa categoria relaciona-se aos tipos de consultas e informações disponibilizadas nestas, bem como à forma como os participantes têm mantido seu diagnóstico e renovado receitas para uso da medicação. Os achados vão ao encontro do que foi relatado por Ferrazza e cols. (2013) - independente de origem e demanda relacionada ao uso anterior da medicação, esta condição era suficiente para continuidade da prescrição pelo serviço. Isto é, a inserção do psicofármaco na vida e prontuário do sujeito é suficiente para que seu acompanhamento em saúde mental seja direcionado à continuidade do uso.
O prontuário é um documento para auxílio no compartilhamento do cuidado entre os profissionais. No caso da receita em saúde mental, ele serve de guia para a conduta, focada na prescrição: "Eu levo só prontuário, lá não tem a medicação que eu tomo? Aí a médica já sabe, aí passa" (Maristela). Assim, a rigidez do papel clínico-preventivista da relação médico/usuário não permite a atribuição de novos sentidos, mantendo-se a lógica do controle de riscos e busca de uma normalidade (Ayres, 2004).
Quando questionada acerca da consulta, Rute menciona passo a passo de como a mesma acontece: "Eu dou boa tarde, ela dá boa tarde, aí ela diz assim: 'É o remédio?', eu digo: 'é'. Ela passa a receita, e eu vou embora".A conduta descrita é perceptível nas indicações realizadas nos prontuários dos usuários: em geral, as anotações no documento referiam-se à manutenção da receita, e na maioria dos casos não existia uma descrição do início do uso da medicação, nem ao menos uma descrição de duração do tratamento e suas finalidades.
No entanto, nem todos se direcionam ao "Posto de Saúde" para atendimento com profissional de saúde. Existem outras estratégias adotadas que, conforme veremos na fala de Augusto, nos conduzem a um campo da não efetividade do Cuidado em Saúde Mental: "Às vezes ela consegue [refere-se à esposa], enquanto tiver conseguindo melhor, quando não conseguir, eu vou". No entanto, para um cuidado efetivo, como pontua Ayres (2004), se faz necessária a criação de uma atmosfera de dimensão dialógica do encontro, onde acontece um verdadeiro interesse em ouvir o outro.
Uma das entrevistadas (Rosa Maria) relatou ainda que a Agente Comunitária de Saúde (ACS) da sua microárea é a responsável por sua receita. Nesse sentido, a prática de receita renovável é um modelo existente, entretanto, foi criado para comodidade dos usuários, sendo direcionada particularmente às pessoas com doenças crônicas, para evitar deslocamentos a serviços de saúde, como hospitais, com o intuito único de obtenção de receitas (Madruga, 2009).
Afirmando a percepção do uso crônico e baseando-se nas diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que direciona as ações de atenção às pessoas em sofrimento psíquico, Ferrazza (2010) problematiza acerca de sua efetivação nos serviços de atendimento a esse público, através das insuficiências e resistências presentes nas práticas dos profissionais. Para a autora, os profissionais tendem mais para um processo de medicalização generalizada e crônica da população, do que para a ampliação de acesso aos direitos à saúde mental coletiva, proposta pela Política Nacional de Saúde Mental (Ferrazza, 2010).
Além das problemáticas relacionadas à cronicidade da indicação das medicações, a falta de informação acerca das repercussões do uso foi constatada. Quando questionados se eram informados sobre os efeitos colaterais dos medicamentos, os participantes responderam de forma negativa. A esse respeito, o diálogo durante a consulta é um princípio básico de transmissão de segurança ao usuário e consequente adesão à prescrição, o que deve envolver transparência na indicação, esclarecimento e disponibilidade do profissional diante de situações de possíveis reações adversas, uma vez que a falta de conhecimento sobre as medicações em uso pode colocar em risco a saúde do usuário e a credibilidade do prescritor (Madruga, 2009).
Salienta-se que apenas um dos participantes revelou ter recebido uma única informação acerca de reações adversas, no caso, o risco de dependência: "A coisa que ele citou mais era que o medicamento era um medicamento viciante, que eu tinha o risco de ficar dependente desse medicamento [refere-se ao Clonazepam]" (Augusto).Ao verificar a bula deste medicamento, encontra-se a indicação do desenvolvimento de dependência física e psíquica, havendo possibilidade de aumento desse risco, de acordo com a dose e com a duração do tratamento. Mas outros efeitos também são citados, e são igualmente importantes de serem repassados àquele que faz uso: sonolência, cefaléia, fadiga, depressão, vertigem, náusea, perda do equilíbrio, entre outros (EMS S/A, s. d.).
Diante disso, a intencionalidade da prescrição parece ser direcionada às questões psíquicas decorrentes de vivências de sofrimento, no entanto, fatores de riscos raramente são comunicados às pessoas durante as prescrições de medicações psicotrópicas, o que suscita uma urgência em "empoderar o sujeito em sofrimento; para isso é preciso informar (...) e politizar os cidadãos para que estes também (...) lutem por maneiras mais saudáveis e eficazes de cuidar da sua saúde mental" (Zanella, Luz, Benetti, &Roberti, 2016, p. 61).
"Falta arroz, feijão, rapadura, linguiça, salsicha, mas não falta meu remédio": a medicação e o medo da cessação do uso
A categoria foi construída a partir dos relatos relacionados à forma como os participantes imaginariam sua vida se nunca tivessem utilizado a medicação psicotrópica, a perspectiva de desmame ou até mesmo se imaginam que algum dia poderiam abandonar o tratamento psicofarmacológico.
A retirada abrupta dos psicotrópicos do repertório cotidiano dos sujeitos pode gerar a chamada síndrome de descontinuação, caracterizada por algumas reações, sendo mais comum o mal-estar generalizado, náuseas, cefaleia, ansiedade, confusão, tremores, sudorese, irritabilidade, insônia, parestesias, letargia e distúrbios de memória. Para prevenir possíveis agravos gerados por essa descontinuidade do uso, deve-se considerar uma diminuição gradativa da medicação e disseminar as informações, aos usuários e seus familiares quanto ao risco da retirada abrupta (Paulin, Reis, & Rodrigues, 2008).
Relacionado ao receio ocasionado a esta síndrome, alguns entrevistados a nomeiam de "recaída" e acreditam que cessar o uso do medicamento traria de volta todos os sofrimentos que motivaram sua incorporação em suas vidas, além de outros indesejáveis, o suficiente a não permitir a descontinuidade do consumo, como observado a seguir: "Armaria! Quando a gente se acostuma, se não tomar vai adoecer. Aí eu procuro tomar. Quando ele [refere-se ao esposo] demora a receber, arrumo um dinheiro emprestado, mas compro meu remédio. (...) É o medo da recaída que eu tenho" (Maristela).
Para além do medo da "recaída" o temor também se refere a um sentimento ou humor não desejado que as colocam como "descontroladas" frente às sensações geradas pela síndrome, e a sofrimentos íntimos, que estão presentes em sua história, seja a tristeza diante de um luto vivido há anos, ou uma relação conflituosa com algum familiar. Sobre esses sentimentos Zanella e cols. (2016) alertam acerca do perigo que o medicamento possui em mascarar a dor, como forma de manicômios disfarçados de tratamento, tornando as pessoas reféns da primazia medicalizante.
Nesse sentido, o profissional deve imbricar-se na construção de espaços de fortalecimento que superem condições medicalizantes, mediante a perspectiva do Cuidado que assume uma relevância exponencial nos diversos níveis de saúde (Ayres, 2004). Assim, cada profissional deve se interrogar acerca do "porquê", "como" e "quanto" tem se responsabilizado a respeito dos projetos de felicidades dos sujeitos aos quais têm prestado cuidado, atentando-se ao quanto tais pessoas também conhecem e participam desse compromisso.
Outra temática presente nas entrevistas condiz com a ideia da substituição do medicamento por outro que produza os mesmos efeitos, ou até mesmo, melhores que o utilizado. Assim, o psicotrópico assume uma posição primordial na vida dessas pessoas, e ganha a posição de "objeto mágico" estabelecendo uma concepção que as impedem de terem uma compreensão mais ampliada acerca do seu processo de saúde e de sofrimento psíquico (Oliveira, Aguiar, & Cavalcante, 2011). Dessa forma, como expõe Camargo (2013), as pessoas acabam tendo suas vidas colonizadas pelos produtos farmacêuticos. Nas palavras de Sofia: "Eu tenho vontade, mas não consigo. [Entrevistadora: Então acha que não é possível parar?] Acho que não, só se tiver outro pra substituir. Parar não dá não". Já Manoela afirma: "Parar para passar outra medicação, mas eu não penso não, em parar não."
A essencialidade do uso como forma de manutenção da vida evidenciou-se em relatos de alguns dos participantes, ligando ao risco de óbito, caso não tivessem adentrado o tratamento com psicofármaco. O remédio torna-se "alimento da vida", superando necessidades primárias, como a ingestão de alimentos popularmente conhecidos pelos brasileiros como pratos essenciais: "E tem uma coisa, eu sou altamente dependente, falta arroz, feijão, rapadura, linguiça, salsicha, mas não falta meu remédio" (Luiza).
Assim, questiona-se: que identificações e processos de subjetivação a medicalização têm criado na vida destas pessoas? Nota-se uma imbricação, uma simbiose entre medicação e sujeitos, de tal forma que Luíza não consegue imaginar um viver longe de seu Clonazepam, algo presente também no depoimento de Augusto: "Eu acho que eu teria morrido, eu já, eu juro a você, eu digo muito".
E qual tipo de estratégia poderia ser construída para superar a necessidade do uso? Segundo Eliete, apenas um "milagre" possibilitaria o abandono da medicação: "Então preciso da medicação, acho que por tempo indeterminado, a não ser que Deus mude meu quadro (...) assim, fisicamente falando, eu acredito que... só um milagre". A concepção religiosa e o fármaco tendem a se apresentar como soluções milagrosas aos mal-estares individuais, e supostamente tornam-se capazes de desfazer angústias sem destrinchar suas causas, mascarando assim a origem afetiva e inter-relacional imbricada nas dificuldades psíquicas encontradas nos seres humanos (Martins, 2008).
No entanto, a saúde também deve contemplar essa nossa capacidade em lidar com nossas angústias diárias, aquilo que, por si, não nos torna saudáveis. Essa experiência do viver inclui o adoecimento, o ser humano não é perfeito, sendo os riscos, as doenças parte das nossas vidas (Caponi, 2012), assim, "(...) estar bem de saúde consiste em acolher a doença - e não rejeitá-la ou negá-la - para melhor afrontá-la em seguida" (Peixoto, 2010, p. 736).
Considerações finais
Este trabalho buscou compreender as vivências das pessoas que fazem uso diário de psicotrópicos e os sofrimentos relacionados ao seu uso inadequado. Contribui assim para a compreensão das práticas de cuidado no campo da saúde mental, ao fornecer dados, descrever de forma empírica e denunciar a medicalização em curso no contexto da Atenção Básica em um município do Rio Grande do Norte. Destaca-se como limitação o fato de a pesquisa ter sido conduzida em um contexto socioeconômico e espacial específico, o que sugere cautela na transposição das suas conclusões para outros cenários.
Retomaremos agora os principais resultados e análises, de forma a sintetizar o percurso até aqui. Na primeira categoria temática os resultados demonstram, através dos relatos concretos das pessoas entrevistadas, o despreparo dos profissionais de saúde para a realização de diagnósticos. Conhecimentos relevantes sobre gênero, cultura, psicologia e psiquiatria são ignorados, reduzindo-se o processo de diagnóstico a contatos superficiais e rápidos em que as conclusões parecem prescindir de qualquer investigação responsável e detalhada. Na segunda categoria temática podemos observar que a má qualidade ou mesmo ausência das consultas persiste de forma sistemática ao longo de meses e anos. Os contatos se organizam basicamente para renovação da receita, sem que o paciente muitas vezes sequer seja informado sobre os riscos que está correndo pelos efeitos do uso prolongado de tais substâncias. Por fim, a terceira categoria nos permite verificar nos discursos das pessoas tanto os efeitos da dependência quanto o medo da recaída. O aprisionamento na situação é evidenciado pelo fato de muitos não conseguirem vislumbrar possibilidade alguma de suspensão do uso dos medicamentos.
Dessa forma, enquanto a população entorpece suas dores e busca tamponar suas crises com pílulas "milagrosas", alguns profissionais de saúde tornam-se os técnicos prescritores de tranquilizantes e anestésicos psicossociais; os medicamentos assumem o papel de tratamento, cura, vício e "companheiro" de uma vida; e a indústria farmacêutica ganha aliados, dependentes e lucros.
As práticas medicalizantes refletem uma fragilidade na construção de espaços de matriciamento e de educação permanente que favoreçam a construção de linhas de cuidado pautadas nas necessidades de saúde das pessoas e singularidades e potencialidades do viver humano, focadas nos diálogos gerados nos encontros entre profissional/usuário. Assim, ressalta-se aqui a importância da qualificação dos serviços da Atenção Básica, que possuem como uma de suas atribuições a realização de espaços de discussão de casos e construção de Projetos Terapêuticos Singulares com proposta pautada na perspectiva da Clínica Ampliada e na participação ativa dos usuários em sua construção, enfatizando o diálogo, acolhimento, e outras tecnologias leves.
Notas
1 "Do lar" foi a denominação utilizada pelas próprias interlocutoras para relatar ocupação direcionada unicamente aos cuidados e manutenção dos afazeres domésticos em suas residências.
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Submissão: 04/05/2020
1° avaliação: 14/01/2021
Aceite: 08/04/2021
Élen Lúcio Pereira é psicóloga e especialista em Atenção Básica. É também coordenadora de Políticas Públicas para as Mulheres. São Bento, PB.
E-mail:elenluciop@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1332-0380
Lumena Cristina de Assunção Cortez é enfermeira e mestre em Saúde Coletiva. É também doutoranda pelo Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem de São Paulo e da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP.
E-mail: lumena@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4652-6556
Flávio Fernandes Fontes é psicólogo e doutor em Psicologia. É também professor adjunto da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairí da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Santa Cruz, RN.
E-mail: flaviofontes@outlook.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2036-8147
Mercês de Fátima dos Santos Silva é socióloga e doutora em Saúde Coletiva. É também professora Adjunta da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairí da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Santa Cruz, RN.
E-mail: merces.santos30@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8124-6832