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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2021

 

ARTIGOS

 

Escrita literária em grupo: uma experiência coletiva

 

Literary writing in group: a collective experience

 

Escritura literaria en grupo: una experiencia colectiva

 

 

Veronica Torres GurgelI; Virginia KastrupII

ICentro Universitário IBMR, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Frequentemente a concepção da escrita em grupos pressupõe o indivíduo como unidade mínima de organização subjetiva. Nesta direção, o termo coletivo é entendido como sinônimo de social ou agrupamento de indivíduos - e em oposição ao termo individual. Contudo, é possível pensar a escrita como um processo eminentemente coletivo - quer ocorra solitariamente, quer em grupos. O artigo toma como referência o conceito de coletivo de Félix Guattari e os estudos da produção da subjetividade. O objetivo é discutir experimentações de escrita literária com um grupo de escritores amadores e analisar seus efeitos. A pesquisa foi realizada no Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda e se baseou no método da cartografia. Discute o uso de textos literários para ativação da escrita, a reverberação dos encontros e a importância da regularidade do trabalho. Três analisadores emergiram dos relatos dos participantes: confiança, gentileza e força do encontro presencial - que evidenciaram efeitos da escrita em cada um.

Palavras Chave: Escrita; Grupo; Coletivo; Literatura; Subjetividade


ABSTRACT

The conception of writing in groups frequently presupposes the individual as a minimum unit of subjective organization. In this article, the term collective is understood as a synonym for social or grouping of individuals - and in opposition to the term individual. However, it is possible to think of writing as an eminently collective process - whether it occurs alone or in groups. The article takes as a reference the concept of collective by Félix Guattari and the studies of the production of subjectivity. The aim is to discuss literary writing experiments with a group of amateur writers and analyze their effects. The research was carried out at the reading and writing club called "Clube de Leitura e Escrita Prosana Roda" and was based on the cartography method. We discuss the use of literary texts to ignite writing, as well as the reverberation of meetings and the importance of regular work. Three analyzers emerged from the participants' reports: the confidence, the kindness and the power of face-to-face meetings - which evidenced the effects of writing on each person.

Keywords: Writing; Group; Collective; Literature; Subjectivity


RESUMEN

A menudo, la concepción de la escritura en grupos presupone al individuo como unidad mínima de organización subjetiva. En este sentido, el término colectivo se entiende como sinónimo de social o agrupación de individuos - y en oposición al término individual. Sin embargo, es posible pensar en la escritura como un proceso eminentemente colectivo, ya sea solo o en grupo. El artículo toma como referencia el concepto de colectivo de Félix Guattari y los estudios de producción de subjetividad. El objetivo es discutir los experimentos de escritura literaria con un grupo de escritores aficionados y analizar sus efectos. La investigación se llevó a cabo en el Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda y se basó en el método cartográfico. Analiza el uso de textos literarios para activar la escritura, la reverberación de las reuniones y la importancia del trabajo regular. De los informes de los participantes surgieron tres analizadores: la confianza, la amabilidad y la fuerza del encuentro presencial, que evidenció los efectos de la escritura en cada uno.

Palabras Clave: Escritura; Grupo; Colectivo; Literatura; Subjetividad


 

 

Introdução

Frequentemente a concepção da escrita em arranjos grupais parte do pressuposto do indivíduo como unidade mínima de organização subjetiva. Neste contexto, o termo coletivo é entendido como um sinônimo de social ou agrupamento de indivíduos - e em oposição ao termo individual. Numa outra direção, é possível pensar a escrita como um processo eminentemente coletivo - quer ela ocorra solitariamente, quer em grupos (Gurgel, 2015). Para Félix Guattari (2012) o conceito de coletivo diz respeito a uma "multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos" (2012, p. 20). Neste sentido, entender a escrita coletiva requer conceber um além e um aquém do indivíduo, ou seja, a dimensão social da subjetividade, bem como o plano coletivo de forças, intensidades e afetos, que engendram tanto o indivíduo como o grupo (Escóssia, 2014).

É esse eu coletivo e movente que escreve, atravessado por afetos pré-individuais que formam grupalidade, e não um eu individual, estático e fechado sobre si mesmo. Guattari permite pensar o coletivo como um plano de coengendramento, do qual indivíduo e sociedade podem emergir. Ele diz respeito a um plano impessoal, no qual vetores heterogêneos se articulam e entram em relação. Nesta perspectiva, a escrita é entendida como um processo por meio do qual podemos acessar a dimensão coletiva que nos habita (Gurgel, 2015). Mesmo quando escrevemos solitariamente, quando não pretendemos compartilhar nossos escritos ou quando acreditamos que eles jamais interessarão a qualquer outra pessoa, trata-se sempre de uma solidão povoada de intensidades e afetos impessoais (Cabral &Kastrup, 2009). Por essa razão, algo do processo de escrita sempre nos escapa ao controle e, o que é especialmente interessante, nós escapamos um pouco de nós mesmos por entre as linhas do que escrevemos. Saímos da escrita modificada e nos arriscamos a fugir dos esquadrinhamentos prévios.

 

Dinâmica e método da pesquisa-intervenção

Movidos pelo desejo de escrever, compartilhar e, ao mesmo tempo, avançar na investigação da escrita literária, fundamos o Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda, com reuniões presenciais e quinzenais no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o apoio do Núcleo de Pesquisas Cognição e Coletivos (NUCC). O projeto fez parte de uma pesquisa de doutorado e foi submetido ao comitê de ética do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ (CFCH) e aprovado CAAE 60512216.1.0000.5582). O grupo se reuniu entre 2016 e 2017, e realizamos ao todo 18 encontros. O encerramento das atividades do grupo se deveu à necessidade de organizar o material colhido para a produção do texto da tese e coincidiu com uma greve de funcionários da UFRJ, que dificultou a disponibilidade de um local adequado para os encontros. Em média, cada encontro contou com 5 participantes, que serão aqui apresentados com nomes fictícios. No total, contamos com 15 participantes, que compareceram aos encontros por diferentes períodos, segundo suas próprias disponibilidades de tempo. A divulgação dos encontros foi realizada com cartazes espalhados em diferentes pontos do campus da Praia Vermelha/UFRJ e por postagens em plataformas online, como os sites Meetup, Facebook e Instagram. Como consequência, os participantes chegaram até nós por diferentes meios. Alguns eram conhecidos e amigos nossos; outros vieram por meio da divulgação. Os participantes eram alunos ou ex-alunos de graduação ou pós-graduação dos cursos de Psicologia, Física, Letras, Design, História e Jornalismo, com ou sem vínculo com a UFRJ. Todos possuíam ensino superior em andamento ou concluído e eram escritores amadores. O Clube não tinha um caráter pedagógico, isto é, não se organizava em torno de um professor que ensinaria técnicas ou regras que deveriam ser seguidas para se escrever bem. Numa dinâmica de participação e auto-organização, o grupo era um dispositivo para incitar o desejo de escrever, acolher aquilo que os outros produziam e observar as reações que o texto de cada um despertava nas outras pessoas. Assim, ele se configurou como um local para a experimentação e troca dos textos produzidos. A função de coordenação, realizada por uma das autoras, limitou-se a realizar a divulgação do Clube, a garantir o uso da sala onde ele acontecia e às atividades da pesquisa-intervenção com o método da cartografia, como a escrita dos diários da pesquisa, o convite para a entrevista grupal, a análise do material produzido e a escrita de artigos relativos ao trabalho.

A dinâmica do trabalho foi baseada numa organização participativa. A cada encontro os participantes eram convidados a levar um excerto de um livro de sua preferência. Cada um lia o trecho que havia trazido e, juntos, escolhiam, por votação, aquele que serviria de mote ou disparador para a escrita de um novo texto pelos participantes. O mote poderia ser um poema, crônica, conto ou trecho de um romance, e incluíram textos de autores de estilos e gêneros variados, entre os quais: Carlos Drummond de Andrade, Tatiana Salem Levy, Walter Benjamin, Milan Kundera, Gay Talese, Vanessa Bárbara, Guimarães Rosa, Eliane Brum, George Saunders e Carola Saavedra. Foi combinado que os textos a serem produzidos seriam em prosa.

Com o auxílio de participantes do grupo, cada encontro era nomeado segundo o texto selecionado como mote, dentre eles: Voyeurismo Literário, O Grande e Árido Clube, O Cósmico Clube em uma Casca de Ovo, Clube Clariciano de Máscaras, Clube dos Perdidos, Clube das Palavras que Matam. A ideia de nomear os encontros era criar um efeito de surpresa e curiosidade em relação ao mote escolhido. O fato de nomear cada encontro indica que, para além da regularidade, cada dia se atualizava de um modo diferente, convocando afetos distintos e singulares. Os diários de campo seguiram esta nomenclatura.

Os textos eram escritos em casa e solitariamente ao longo dos quinze dias de intervalo entre um encontro e outro. Assim, cada reunião contava com duas etapas: na primeira, líamos os trechos de livros e elegíamos o mote para a quinzena seguinte; na segunda, líamos os textos de nossa autoria, escritos com base no mote escolhido no encontro anterior. Cada participante apresentava brevemente o texto que havia escrito e o lia em voz alta em seguida. Após a leitura os participantes costumavam dar algum tipo de feedback, procurando destacar seus pontos fortes e fracos, bem como suas ambiguidades - intencionais ou não.

Por que utilizávamos o mote literário como ponto de partida para a escrita dos próprios contos? Poderíamos escrever livremente ou escrever a partir de temas, como o Natal, relacionamentos amorosos, velhice, verão, etc. No entanto, houve uma aposta na potência da arte em geral, e da literatura em particular, de abrir uma brecha em nossos automatismos e hábitos cristalizados (Pantaleão &Kastrup, 2015). Segundo Francisco Varela (2003), no dia a dia tendemos a adquirir certos repertórios de ação que se convertem em hábitos mais ou menos arraigados. Esse processo representa uma forma de economia psíquica, liberando nossos recursos atencionais para atividades novas ou mais complexas. Todavia, há experiências capazes de desconfigurar esse modo de agir corriqueiro, o que Varela denomina de breakdown. Esta experiência é caracterizada como uma ausência temporária de sentido, fazendo com que padrões de ação sejam questionados e se tornem obsoletos, rompendo com uma atitude recognitiva. Além disso, ele não consiste apenas na suspensão de modos de ser e agir, uma vez que é por meio dessa suspensão que outras possibilidades podem emergir.

Um tipo de experiência que parece particularmente propícia para a ocorrência de breakdown é o encontro com a arte. O objetivo dos motes literários não é eleger um único tema a ser tratado por todos, mas produzir desestabilizações e contágios no plano coletivo dos afetos. Ao lermos ou ouvirmos um texto, somos tocados, algo se agita em nós e nos compele a escrever, ao mesmo tempo em que nos fornece uma espécie de contorno ao pensamento e à imaginação. Registramos no diário de campo o relato de um dos participantes sobre o mote:

Quando queremos escrever, temos tantas possibilidades que acaba sendo difícil escolher um caminho único a seguir. Ficamos perdidos e isso pode nos levar à estagnação. Quando partimos de alguma ideia, quando temos um prazo, acabamos por desenvolver algo. (Diário de Campo - 18.09.17 - Clube das palavras que matam)

O participante destaca que o mote e a regularidade dos encontros davam contornos ao processo e o estimulava a escrever. Por haver um ponto de partida, sentia-se menos perdido, ainda que houvesse um número infinito de possibilidades de caminhos a serem seguidos em seu texto. O mote era capaz de afetá-lo e o contagiava com o desejo da escrita.

Para desenvolvermos a pesquisa-intervenção tomamos como norteador o método da cartografia, que não se baseia na aplicação de protocolos preexistentes, nem consiste na simples reprodução de uma técnica prévia. Trata-se de um método que demanda a invenção de estratégias de atuação e pesquisa in loco (Passos, Kastrup & Escóssia, 2012; Passos, Kastrup & Tedesco, 2014). A adoção de tal método se explica por sua natureza de pesquisa-intervenção e pelo entendimento da dimensão inventiva do conhecimento (Kastrup, 2007; Kastrup & Barros,2012).

Adotamos como prática de pesquisa a escrita de diários, que se desdobrou em duas modalidades. O Diário de Campo contém os relatos de cada encontro com o grupo, os textos lidos por nós, as reações e as falas de cada um. Ao longo do trabalho produzimos um segundo diário, que chamamos Diário de Bordo, como propõem Barros e Passos (2012). Nele discorremos sobre o próprio ato de pesquisar, sobre as leituras que fizemos e sobre as dificuldades do campo. Na cartografia, a função dos diários de pesquisa não é representar uma realidade exterior e objetiva. Pelo contrário, é trazer uma escrita encarnada, capaz de despertar afetos. Em nossa experiência com a cartografia, os diários serviram como uma ferramenta do pensamento, criando condições para uma escrita da pesquisa menos formal, abstrata e objetiva, buscando ser mais encarnada, livre e despretensiosa.

Com a finalidade de explorar os múltiplos sentidos daquela experiência coletiva, após o encerramento das atividades do Clube foi realizada uma entrevista em grupo que contou com a presença de boa parte dos participantes. Tomamos como base a entrevista cartográfica (Tedesco, Sade & Caliman, 2013), que não visa a coletar informações referentes a experiências que ocorreram previamente, mas criar uma nova experiência por meio da fala. O manejo da entrevista foi participativo e negociado ao longo de sua duração: os próprios participantes colocavam perguntas uns para os outros, questionavam certos aspectos de suas experiências, se surpreendiam com o que os demais diziam. Foi interessante observar que os participantes se engajaram ativamente na investigação e procuraram pensar, elaborar hipóteses e entender o funcionamento do seu próprio processo de criação a partir dos encontros coletivos do Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda.

Juntos, gaguejamos na tentativa de fazer com o que processo de escrever em grupo - e de existir em grupo - se tornasse algo mais nítido para nós mesmos. Ao longo da entrevista, foi interessante notar que a curiosidade frente ao processo de escrita coletiva, que era o tema da pesquisa de doutorado, contagiou os participantes, que buscaram colocar em palavras experiências que, até então, restavam como não verbais. Foi então que um dos participantes colocou a pergunta incômoda: "De todo mundo que está aqui, vocês têm escrito?" - ao que boa parte respondeu negativamente. A pergunta da pesquisa foi então explicitamente colocada pelos participantes e para os participantes: o que nos faz escrever em grupo, mas - muitas vezes - não experimentar a escrita literária quando estamos sozinhos? Ao longo da entrevista o problema retornou de diversas maneiras, em diferentes formulações, como um texto que é lentamente tecido, fazendo emergir novos sentidos e padrões de composição.

 

Analisadores e análises de resultados

Identificamos alguns analisadores da experiência coletiva de escrita literária em grupo, que surgiram nos diários de pesquisa e na entrevista grupal. Neste estudo, vamos examinar particularmente três analisadores que surgiram na entrevista e que destacam os efeitos do grupo na escrita de cada um dos participantes. O conceito de analisador foi criado e desenvolvido por René Lourau (2004) para tratar dos acontecimentos que irrompem no campo, produzindo efeitos de análise. O analisador é aquilo que emerge como questão, produz rupturas no que estava cristalizado e desindividualiza a pesquisa, deslocando a análise do especialista para o próprio campo. Não é o especialista que analisa, "é o analisador que realiza a análise" (Barros & Barros, 2013). Irrompe como o estranho, o que produz inquietação, rachaduras, que esgarça o tecido da realidade e nos faz questionar os processos que sustentam nossas práticas e modos de ser. Dos diversos acontecimentos que surgiram no campo, destacamos três analisadores: a confiança, a gentileza e a força do encontro presencial. Os analisadores se articulam e se interpenetram, como será visto a seguir.

Analisador Confiança

David Lapoujade (2017) discute a noção de confiança, tal como proposta por William James, e destaca seu caráter paradoxal: por um lado, implica a antecipação e a esperança. Confiamos quando agimos como se as coisas fossem se passar de certo modo. Escrevemos como se o grupo fosse aguardar o nosso texto; nos dedicamos à escrita como se tivéssemos a certeza de que nossos colegas estarão à nossa volta para ouvi-lo. Por outro lado, a confiança implica uma indeterminação: só há sentido em se falar em confiança quando o resultado não está dado, quando há um grau de imprevisibilidade nos acontecimentos. Em suas palavras, "a confiança não consiste em realizar uma ação cujo sucesso é assegurado (previsão), mas em tentar uma ação cujo resultado é incerto (antecipação)." (Lapoujade, 2017, p. 87). Portanto, podemos dizer que a confiança é o que nos faz agir quando nem tudo está garantido.

A confiança depende de uma construção: se faz em ato, em um agir que já é uma aposta; este, por sua vez, abre novas possibilidades de ação. No caso do Clube de leitura e escrita Prosa na Roda, confiamos que o grupo existe, confiamos nos demais participantes e por isso a escrita se abre para nós como possibilidade viva. Nada nos garante que os outros estarão lá, nada nos garante que estarão dispostos a acolher nosso texto. Lançamo-nos nesta experiência aceitando a vulnerabilidade e falibilidade de nossa escolha. Há uma cascata da confiança no grupo: como coordenadoras, confiamos que os outros virão e tornamo-nos disponíveis; cada um dos membros confia na nossa presença e na dos demais. Agimos de acordo com o que é esperado de nós: escrevemos nossos contos, selecionamos textos para o mote, aparecemos na hora marcada. Estar disponível a um evento não quer dizer aceitá-lo de forma dócil, obediente, mas engajar-se ativamente em sua execução. Os participantes do grupo podiam frustrar o que se esperava deles: podiam não ir, podiam não escrever seus textos. No entanto, dispuseram-se a participar do Clube.

A regularidade dos encontros parece ter contribuído para criar um solo propício para a construção da confiança. Em nossa entrevista, o participante João afirmou a existência de um laço de confiança, caracterizada por ele como um "senso de camaradagem" que foi sendo cultivado ao longo dos encontros quinzenais, e destacou:

Os encontros viram quase que um ritual: a cada duas semanas você se encontra para olhar na cara das pessoas, para ouvir a voz delas, para ouvir a reação... e meio que cria, para além da intimidade, cria... Sei lá... Eu fui como desconhecido de todo mundo, mas um mês depois, você está compartilhando um negócio que é tão pessoal, às vezes... [...]. Bem ou mal, cria um vínculo que eu não sei bem nem como, nem por que, nem o que é, mas que pra mim está presente. (Entrevista, junho 2018)

Fomos criando um ritual que, como um ritornelo (Deleuze & Guattari, 1997) ou o refrão de uma música, é antecipado e convocado pelas estrofes que o precedem. A confiança no grupo fez com que ele existisse e com que existíssemos enquanto seus participantes. Confiamos no outro e na sua escrita e, como contrapartida, em nós mesmos e em nossa própria escrita. O real se enriqueceu na medida em que passou a ser povoado por outras possibilidades de ação. O procedimento de construção do grupo "cria um vínculo que eu não sei bem nem como, nem por que, nem o que é"; trata-se de um senso de pertencimento, que acompanha a construção e a habitação do território grupo.

Analisador Gentileza

Ao longo da entrevista, a fala de um dos participantes ganhou relevo, ao surgir como um enigma que nos forçou a pensar. Estávamos conversando sobre o processo de escrita a partir do grupo. Juntos buscávamos entender o que nos movia. Por que escrevíamos no grupo e não em outras condições? O que poderia nos colocar em movimento? Carlos afirmou:

Os encontros tinham esse aspecto de "quero escrever porque vou estar em um lugar em que vou trocar ideias com pessoas, onde vou ouvir coisas parecidas" e meio que existe nessa motivação também... para mim é quase uma gentileza, entendeu? (Entrevista, junho 2018)

O termo escolhido por Carlos - gentileza - nos tocou e ressoou em todos os participantes. O que significa um ato de gentileza? Qual a sua relação com o trabalho em grupo? Mais do que uma obrigação e um compromisso, a gentileza é uma oferta - não necessariamente material - cujo sentido se dá por sua relação com o outro, pois ela não existe na solidão. Ela também não é um estado mental e interno, mas um ato que nos liga ao outro. Não convoca relações hierarquicamente verticalizadas - relações de submissão e opressão - mas relações de cuidado e atenção. A gentileza implica, igualmente, que haja alguém a recebê-la: há um outro pronto a aceitar o que lhe é ofertado. Como uma outra participante destacou, faz muita diferença ter alguém esperando que você escreva.

Algo nos põe em movimento, mas não se trata de uma obrigação, de uma pressão externa, nem de um desejo interior e isolado do mundo. Como podemos pensar a gentileza? Embora o termo seja pouco explorado no campo da psicologia, proporemos pensá-lo como um ato que desencadeia emoções - que, por sua vez, nos recolocam em movimento. Segundo Natalie Depraz (1999), o termo emoção admite significados bastante distintos, o que nos leva a uma compreensão confusa deste assunto. Afastando-se de uma concepção puramente biológica ou individualista das emoções, a autora propõe defini-la como algo capaz de nos mover para fora de nós mesmos (ex-movere). É possível que pensemos que emoções são disparadas quando realizamos um ato de gentileza e/ou quando somos o alvo da gentileza de outras pessoas. Essas emoções, por sua vez, nos colocam em ação.

Todavia, esse movimento para fora de nós mesmos não se dirige apenas a um alvo específico. Trata-se mais de uma errância, um mover-se fragmentado, difuso, múltiplo. Mover, neste sentido, não implica apenas a ação corporal (mover meu corpo em direção a algo), mas também um movimento em termos de novas produções de sentido. A emoção é capaz de suspender nossos hábitos e automatismos, abalando aquilo que assumia formas consolidadas. Segundo Jerusa Rocha (2007), mais do que simples reações fisiológicas e/ou psíquicas ao que nos circunda, a emoção é capaz de nos colocar em movimento. A emoção nos lança em direção a outra coisa - ao outro aí fora e ao outro cá dentro de nós mesmos.

O ato gentil de que tratamos nos emociona, nos move, nos leva a construir coisas, a agir e a criar laços: é um ato que nos torna obsoletos em relação a nós mesmos, impele-nos para mais além. Os participantes enfatizaram a importância de saber que havia pessoas aguardando a sua presença e a leitura de seus textos. O que somos, o que viemos a ser, o que estamos em vias de nos tornar, tudo isso é engendrado pela gentileza, pelas emoções e afetos que nos atravessam. Na entrevista, a participante Fernanda afirmou que o clube acionava um comprometimento consigo e com o outro, comprometimento que envolvia uma repetição: a frequência dos encontros e a presença do outro imprimem uma regularidade ao processo. Vou porque sou aguardada, porque sei que o outro me aguardará. É na repetição dos encontros com o grupo que nós nos abrimos para a possibilidade de sermos acometidos pelo inesperado na escrita. A importância de compartilhar o texto com outros também foi destacada por alguns dos participantes, o que parece também apontar para a existência de gentileza neste ato:

Carlos- [...] quase ninguém escreve para si ou faz qualquer coisa totalmente para si. [...] O texto existe se ele fica somente na minha cabeça ou num caderno que ninguém nunca vai ler? [silêncio]. É interessante que ele exista para os outros [...]. Essa é a graça da literatura, né? (Entrevista, junho 2018)

Em sua fala, o participante enfatiza a escrita como um ato direcionado ao outro, cujo sentido se dá pela existência de um leitor possível ou almejado. Curiosamente, Roger Chartier (1999) identifica uma diferenciação entre dois termos existentes no francês que podem ser utilizados para se referir àquele que escreve: écrivainse auteurs. Enquanto o termo écrivains se refere àqueles que escreveram um manuscrito que permaneceu sem circulação, não sendo lido, auteurs seria reservado apenas àqueles que publicam, de alguma maneira, seus textos. Acreditamos ser possível que os termos distintos indiquem, igualmente, uma distinção em nível ontológico: aquilo que se escreve e se guarda encerra seus efeitos sobre o escritor e o texto; por outro lado, quando compartilhada, a escrita funciona como uma pedra que se joga em um lago: produzindo círculos concêntricos cada vez mais largos. O texto compartilhado atua por efeitos de contágio e reverberação, o que Fernanda evidenciou no trecho abaixo:

Fernanda - A experiência de compartilhar um texto faz ele se tornar infinito. [...]. Por exemplo, eu lembro de um texto que você leu [...] e que gostei muito. Enquanto eu estiver com minhas faculdades mentais plenas, ele será um texto infinito. Se eu for escrever algo, por exemplo, ele já faz parte da minha bagagem, então de alguma forma esse texto se atualiza. (Entrevista, Junho, 2018)

Analisador Presença

Ao investigar a relação entre humanos e não-humanos, Vinciane Despret (2004) destaca um laço que ultrapassa as barreiras do verbal e não verbal e que se constrói por meio dos gestos, dos toques, dos tons de voz. Tais laços se dão no plano coletivo de forças e afetos, tal como entendido por Guattari (2012). As expressões corporais e faciais, bem como a entonação e o ritmo de nossas falas são componentes importantes de nossas enunciações, o que é destacado na fala abaixo.

João - [...] Era legal saber que vai ter alguém dando um feedback meio imediato. Botar um texto na internet... eu acho ótimo, mas às vezes você olhar no olho da pessoa e a pessoa dizer "ah eu não gostei disso, não gosto daquilo" meio que te inspira para escrever mais. (Entrevista, junho 2018)

João compara a escrita compartilhada remotamente pela internet e a escrita compartilhada presencialmente. O feedback imediato a que se refere, é preciso notar, não consiste apenas em palavras, na medida em que ferramentas de escrita e compartilhamento de textos on-line também permitem comentários e observações dos leitores. Trata-se de um feedback corporal, olho-no-olho que, segundo ele, era o que o levava a escrever mais. A linguagem, segundo Silvia Tedesco (2001), não é composta apenas por seus aspectos formais (gramática, sintaxe etc.), mas engloba um duplo domínio: o linguístico e não linguístico. O plano linguístico diz respeito ao papel ordenador da linguagem frente a um plano empírico desordenado e em constante mutação. O não linguístico, por sua vez, indica um plano coletivo de forças em conexão, em que não há organização ou previsibilidade, que está em constante processo de mutação, e "compõe-se de traços a-gramaticais, partículas desviantes da regularidade dos ditos" (p. 31).

Em sua abordagem pragmática da linguagem, Deleuze e Guattari (2007) afirmam que a linguagem é criadora e marcada por sua potência para transgredir. Eles se contrapõem à ideia de que a língua é um sistema que opera segundo leis invariantes que a antecedem, bem como à noção de que as falas são simples enunciados individuais, marcados por variações contingenciais. Os enunciados são acontecimentos: seu sentido é efeito da mistura de corpos (palavras), sempre decorre do próprio uso da linguagem e jamais é anterior a ele (Gurgel, 2015). O que está no cerne do enunciado enquanto acontecimento não são apenas seus aspectos formais (domínio linguístico), mas também o não linguístico.

A leitura de um texto pode ser especialmente propícia para acessar o domínio não-linguístico da linguagem (Kastrup, 2008). O sentido do que se diz envolve desde a escolha das palavras, até a entonação, as feições, a gesticulação. Estes não são simples adereços que se acrescenta ou se remove a bel prazer, mas, pelo contrário, criam mundos distintos ao suscitarem certas redes de afetos. Tais componentes foram destacados por alguns dos participantes do clube, como vemos abaixo:

Carlos - O texto é seu. Quando você lê da sua maneira é o seu negócio e é você lendo o que está escrito [...]. Inclusive eu me pegava às vezes escrevendo os textos pensando em como eu estaria lá, lendo o texto. Porque se não fosse eu a ler, o texto seria outra coisa... (Entrevista, junho 2018)

A experiência coletiva realizada em grupo desperta aspectos por vezes negligenciados da escrita: a sonoridade, certa dicção, cadência da voz, volume, timbre. Carlos enfatiza que, na ausência da leitura em grupo, a experiência com o texto seria outra. Quando estamos com outras pessoas somos capazes de afetá-las com nossa presença física e nossos gestos atencionais. Se nos recostamos na cadeira, falamos de modo automático, indiferentes à presença do outro, de modo extremamente lento e monótono, tendemos a produzir em nossos interlocutores um efeito específico - efeito de tédio ou desinteresse. Se nos levantamos, andamos por uma sala, falamos com brilho nos olhos, o efeito será oposto. Por meio de nossos gestos, convocamos o outro a se unir a nós.

De acordo com Yves Citton (2014), "ninguém presta atenção sozinho", pois a atenção não é uma capacidade do indivíduo direcionada a um objeto. Contrapondo-se às abordagens segundo as quais a atenção é um processo que remete ao par indivíduo-objeto, ele afirma a necessidade de compreender a atenção enquanto um fenômeno que envolve tanto o ambiente nos quais nos encontramos, quanto a participação de outras pessoas no processo atencional. No caso de uma sala de aula, por exemplo, este processo envolve um ecossistema atencional composto por sua disposição espacial, iluminação, temperatura, nível de ruído, mas também pelos gestos atencionais das pessoas presentes.

Para Citton (2014), situações de pequenos grupos presenciais, limitados no espaço e no tempo - chamadas por ele de situações de co-presença - são marcadas por uma especificidade: elas envolvem a atenção conjunta1. Em suas palavras, esta é uma co-atenção presencial em que "pessoas, conscientes da presença de outros, interagem em tempo real em função do que percebem em relação a atenção dos demais participantes" (Citton, 2014, p. 127). Este conceito substitui a díade atencional sujeito-objeto por um modo de compreensão da atenção a partir de um funcionamento triádico, que envolve ao menos duas pessoas e um objeto: as duas pessoas se afetam mutuamente, construindo em conjunto o modo como cada uma encara certo objeto. A atenção conjunta envolve uma espécie de modulação de si a partir da constatação do funcionamento atencional dos demais, que está para além da transmissão de informações e conteúdo. Ela pode, inclusive, prescindir de signos verbais, como na relação mãe-bebê. Para o autor, a atenção conjunta é orientada pelos princípios de reciprocidade, esforço de sintonia afetiva e práticas de improvisação. Neste sentido, ela mobiliza o plano coletivo e criador de forças e afetos.

A reciprocidade diz respeito à circulação bidirecional da atenção, que convoca todas as partes envolvidas à alternância de seus papéis - uma espécie de transversalização da operação atencional. É o que ocorre frequentemente entre adultos e crianças. O adulto olha para um carro, aponta e diz "Olha! Um carro vermelho!", guiando o olhar e atenção da criança. A criança, por sua vez, começa a apontar os demais carros e enunciar as suas cores - ela passa a guiar a brincadeira em conjunto com o adulto.

O esforço de sintonia afetiva visa a destacar a importância de uma copresença que seja suficientemente sensível aos gestos do outro para que cada um seja capaz de modular ou ajustar a sua própria ação. Todos já vivenciamos alguma situação em que esbarramos na rua com algum conhecido, conversamos um pouco até que começamos a dar sinais de que a conversa se esgotou ou que desejamos ir embora. No entanto, a pessoa parece incapaz de captar os nossos microgestos - respostas monossilábicas, consultas constantes ao relógio de pulso, olhares que vagueiam: a sintonia afetiva não foi acessada.

Por tratar-se de uma situação de leitura compartilhada de textos de autoria própria, nos encontros do Clube era frequente que fossem necessários gestos de encorajamento antes e durante a leitura, como sorrisos silenciosos ou gargalhadas nas partes engraçadas dos textos. Além disso, depois da leitura poderia ser oferecido um reconforto por meio do comentário dos demais participantes. Em uma ocasião, Carlos se mostrou constrangido por não ter tanta familiaridade com a escrita, na medida em que sua área de atuação profissional (design) é muito distante desta prática. Antes de ler, ele se desculpou, dizendo que não escrevia muito bem, nem tinha um longo percurso nesse caminho. Rimos e dissemos que isso também era algo de praxe: a gente sempre acabava falando mal do próprio texto antes de lê-lo. Fernanda comentou, rindo, que participou de uma oficina em que era proibido desculpar-se. A reação à fala de Carlos poderia consistir simplesmente em frases do tipo "Que isso! Sai dessa". No entanto, este conteúdo verbal não necessariamente seria capaz de acessar a sintonia afetiva. No entanto, os gestos dos participantes - seus sorrisos, gargalhadas, o fato de concordarem com a dificuldade de compartilhar a própria escrita, serviram para "preparar o terreno" para a sua leitura, isto é, criar um espaço em que Carlos se sentisse confortável e acolhido.

Por fim, a prática de improvisação diz respeito à necessidade de fugirmos ao previsto frente a interpelação do outro. Uma conversa é um jogo de improvisação: é impossível sabermos efetivamente o que o outro dirá e prevermos nossas possíveis respostas. Estar com o outro é, neste sentido, lançarmo-nos no desconhecido. As características apresentadas por Citton (2014) parecem propícias para pensarmos a relação que se estabelece entre os participantes do grupo. Como já explicitado por João, um feedback olho-no-olho e um "contato físico real" se revelaram importantes na composição do Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda. Carlos indica, igualmente, esta importância:

Carlos - Quando o cara lê ou vê uma obra de arte ele tem uma experiência, mas quando recebe aquilo direto de uma pessoa, é outro universo de experiência... (Entrevista, junho 2018)

A oportunidade de compartilhar os textos presencial e oralmente abriu ainda outras possibilidades, convocando os participantes a se engajarem em uma escrita atenta à sonoridade das palavras e frases. Saber que o texto será lido para os demais participantes parece ser algo que produziu reverberações. Márcia, por exemplo, demostrou que se preocupava em não escrever textos muito longos, pois "poderia ficar chato". Carlos, por sua vez, admitiu que, ao escrever, tinha em mente que ele mesmo (em suas palavras) seria o veículo da leitura, que a sua forma de ler se embrenharia no sentido do texto. A presença física e a leitura oral frente aos colegas criam problemas e estratégias de escrita distintas. Carlos mencionou que com a sequência dos encontros já escrevia pensando na sonoridade das palavras, em certas entonações das frases e mesmo no sotaque dos personagens, que conferiam ao texto um ritmo e cadência específicos. Para Carlos, esta era uma vantagem, uma espécie de recurso que facilitava sua escrita, como indicado abaixo:

Carlos - Eu pensava em frases, em como que eu concatenaria as ideias verbalmente, oralmente. Se eu não estivesse indo para lá, escrever... Primeiro porque eu não teria escrito, mas se tivesse, não teria sido o mesmo texto, eu tenho certeza. [...]

João - Fazendo o sotaque e tudo mais? (risos) (Entrevista, junho 2018)

João se declarou surpreso ao perceber que jamais havia pensado na importância do sotaque - possivelmente porque até então suas práticas de leitura eram predominantemente solitárias e silenciosas. A leitura em voz alta, destacada na dinâmica de funcionamento do Clube, pode ter concorrido para colocar este problema. Afinal, quando estamos cientes de que vamos ler em voz alta um texto, somos levados a nos defrontar com estes aspectos, que de outro modo poderiam restar esquecidos. Para Carlos, isto representava uma vantagem, ativando sua potência de escrita literária. Uma possível razão para isso é o fato de que a oralidade parece ser muito mais natural para nós, enquanto a escrita nos parece artificial - e mais difícil. É possível que recuperar a dimensão oral da leitura possa concorrer para recuperar, igualmente, o prazer da escrita.

 

Considerações finais

Ao longo deste artigo cartografamos o processo de constituição e funcionamento do Clube de Leitura e Escrita Prosa na Roda, abordando três dos analisadores que emergiram em nosso campo de investigação. A confiança, a gentileza e a presença do grupo se revelaram particularmente importantes para incitar os participantes a escrever, aumentando a sua abertura a novas experiências literárias. É preciso sublinhar que os analisadores estão imbricados uns nos outros, sem hierarquia. A presença física, marcada pela atenção conjunta em sua dimensão de reciprocidade, improvisação e sintonia afetiva, propicia o estabelecimento de uma relação desconfiança entre os participantes. Para confiar é preciso estar atento à pessoa que está conosco e dar-se conta de que ela também está atenta a nós. Por outro lado, a confiança no trabalho do clube de leitura e sua dinâmica participativa instaura gestos de atenção conjunta. As trocas e partilhas da atenção são ao mesmo tempo condição e efeito da confiança. A gentileza, entendida como uma atitude afetiva que nos move para fora de nós mesmos, requer que estejamos presentes e sejamos atenciosos, o que, neste sentido, envolve um esforço de sintonia com o grupo. Por sua vez, a gentileza abre a disponibilidade ao outro, concorrendo para um interesse de participar do próprio movimento do grupo: não faltamos aos encontros, participamos das atividades propostas etc. Neste sentido, a gentileza propicia a instauração da presença. Enfim, em um grupo que se propõe a ler e escrever, a escrita é compartilhada num território imantado com gestos de confiança e gentileza com o outro, em que foram cultivados os laços do grupo.

Ao longo de nossos encontros, percebemos que o Clube passou a ter um importante papel no processo de criação escrita dos participantes do grupo. Sua frequência e regularidade tornaram-no um território especialmente propício a acolher experimentações literárias daqueles escritores amadores. A maior parte de nossos participantes declarou escrever com mais regularidade e afinco quando em grupo. Todavia, é preciso reconhecer que a escrita solitária é uma outra estratégia válida de escrita e que o grupo não é o único ou melhor dispositivo de escrita para todas as pessoas e a todo momento. No entanto, em nossa pesquisa o grupo se destacou especialmente por acionar processos coletivos e por ativar atividades criadoras de escrita literária nos participantes. Como procuramos demonstrar, o caráter presencial dos encontros teve papel de destaque na mobilização das forças de criação.

No ano de 2020 a noção da importância da presença física se renova: ao vivermos uma pandemia de Covid-19 que nos forçou a estarmos distantes fisicamente, muitos de nós reduzimos os encontros presenciais àqueles extremamente necessários. Escrevendo este artigo após meses de trabalho remoto, aulas, reuniões e até mesmo festas online, notamos o paradoxo desses meios de comunicação: eles permitem mais encontros, mas, ao mesmo tempo, algo é mais difícil e talvez mesmo se perca nesses encontros online.

Mais encontros, no sentido em que podemos nos conectar com aqueles que estão distantes, mesmo com a necessidade de isolamento social. Mas algo dos encontros presenciais é mais difícil e parece se perder ali, na medida em que a atenção conjunta se torna mais precária, por vezes inviável nessa nova e singular ecologia. Em primeiro lugar, a reciprocidade é algo complicado, na medida em que cada participante de uma conversa online ocupa dois campos ao mesmo tempo. Um corresponde ao espaço físico em que se encontra; o outro, ao espaço digital compartilhado - que comporta apenas um pequeno recorte do lugar em que cada um dos participantes está. Mesmo com as câmeras ligadas, há toda uma gama de objetos que são vistos apenas por um dos participantes da conversa e que pode convocar a sua atenção sem, no entanto, modular a interação digital. Além disso, por melhores que sejam as condições técnicas das interações online, perdemos muito da dimensão não verbal do encontro: as pequenas mudanças faciais, os movimentos sutis e as posturas corporais são difíceis de perceber, o que reduz as modulações da co-presença e da sintonia afetiva. Por fim, não são raros os atrasos e cortes nas conversas que produzem embaraços: duas pessoas falando juntas, uma falando e a outra sem ouvir ou todos em silêncio.

Encerramos esse texto com a convicção na potência dos grupos de escrita presenciais enquanto territórios propícios aos encontros com outras pessoas, mas também com a literatura, nos impelindo para fora de nosso eu. A possibilidade e os desafios de seu desenvolvimento por dispositivos online é uma interrogação que exigirá novos estudos e muita experimentação.

 

Notas

Em Citton (2014) o termo atenção coletivaé utilizado para nomear situações de conexão atencional e interação a distância (on-line, por exemplo), sendo o conceito de atenção conjunta mais próximo do processo que buscamos investigar neste artigo.

 

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Submissão: 24/03/2021
1° avaliação: 18/05/2021
Aceite: 02/06/2021

 

 

Veronica Torres Gurgel é doutora em Psicologia (PPGP-UFRJ) e professora auxiliar no Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação.
E-mail: vgurgel@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2774-5443
Virginia Kastrup é doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP) e professora titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, é bolsista PQ do CNPq na área de psicologia cognitiva.
E-mail: virginia.kastrup@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9101-3282

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