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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2021
ARTIGOS
Coleur de Peau et Reconnaissance Sociale: L'expérience Vécue des Afro-brésiliens Émigrés à Paris
Skin color and social recognition: the lived experience of Afro-Brazilians who emigrated to Paris
Color de piel y reconocimiento social: la experiencia vivida de los Afrobrasileños que emigraron a París
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
Compreender as múltiplas facetas que compõem a lógica das relações raciais no Brasil tem exigido, seja no passado ou na atualidade, um esforço teórico e metodológico de muitos intelectuais que se debruçam sobre o tema. Couleur de peau et reconnaissance sociale: l'expérience vécue des afro-brésiliens émigrés à Paris, livro escrito por Lenita Perrier, publicado em 2016 pela L'Hamarttan, traz novos elementos para pensar como essas relações raciais se remodelam em um contexto transnacional.
As novas dinâmicas sociais e culturais características do cenário europeu marcam outros processos identitários. Ao flagrá-los, Lenita Perrier nos mostra continuidades, rupturas e contradições entre as representações produzidas no Brasil e aquelas recriadas no contexto migratório. A autora é PhD da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, França. Ela é também membro fundador do grupo de pesquisa "Frontières identitaires et représentation de l'altérité" em Paris. Atualmente Perrier desenvolve pesquisa sobre a escola de pensamento decolonial Latino Américano: "modernitade/colonialidade/decolonialidade.
Couleur de peau et reconnaissance sociale: l'expérience vécue des afro-brésiliens émigrés à Paris buscou analisar a experiência de vida de imigrantes brasileiros em Paris. Esse grupo se insere nos estudos de imigração como uma "população invisível". Isso se deve a uma circulação relativamente pequena de imigrantes brasileiros na França, em comparação a outras nacionalidades. A emigração de brasileiros, por exemplo, tem sido maior para Portugal e para o mundo anglo-saxão.
Além disso, há uma diferença entre imigrantes brasileiros negros e brancos. Conforme a autora, a cor da pele torna-se um marcador que antecede à própria nacionalidade. Assim, se a população branca brasileira em Paris é pouco notada; a negra, se destaca na paisagem multicultural parisiense. Esse grupo está presente, majoritariamente no campo das artes e da cultura. Trata-se de pessoas portadoras de um grande capital cultural.
Essas particularidades criam determinados canais de acesso, diálogo e reconhecimento dentro da sociedade francesa. Perrier nos mostra como esse marcador de classe traz impactos nas relações de poder e dominação na França. O olhar colonialista francês absorve o negro imigrante brasileiro dentro de um determinado imaginário: o exótico. Tanto a cultura, como o corpo negro se tornam espaços imaginários de trocas, negociações e de muitas tensões. Isso está presente nas vozes dos interlocutores do livro.
Nas palavras de Perrier, pode-se dizer que o pano de fundo desse processo é a combinação complexa entre "representações históricas e culturais dos brasileiros, somadas às dos franceses sobre a sociedade e população brasileira" (Perrier, 2016, p. 280). O livro então percorre os debates teóricos no campo de estudos das relações raciais no Brasil, tentando recompor suas mudanças e continuidades no espaço transnacional.
A autora procura apontar a natureza porosa dos discursos identitários, cujos marcadores ora são mais "fluidos", ora mais "marcados". Trata-se de um jogo de natureza relacional, no qual mobiliza processos de construção de identidades dos grupos analisados.
Cabe destacar que Perrier se utiliza das categorias "afro-brasileiro", "negro" e "mestiço", para nomear seus interlocutores. Tais categorias se movem ao sabor dos contextos discursivos nas quais estão situadas. Isso nos mostra algumas diferenças na dinâmica das relações raciais, tanto no contexto brasileiro, como no francês.
Diante da complexidade das categorias de raça e cor no Brasil, foi necessário usar uma abordagem teórica adaptada ao trabalho de campo na França. Se, no contexto inglês, usei o termo "não-branco" para nomear brasileiros negros e mestiços em relação à população branca brasileira, me pareceu mais apropriado usar, no contexto francês, as categorias de "negro" e "mestiço" para representar os brasileiros descendentes de africanos em Paris. Assim, retive o título inicial deste trabalho e, ao longo dele, a categoria "afro-brasileiro". Isso parecia correto, principalmente pelo lado simbólico no Brasil (categoria cultural), mas também pelo fato de essa população estar, no contexto francês, localizada nos interstícios dos movimentos migratórios transnacionais e supranacionais na Europa (Perrier, 2016, p. 28)
Um outro aspecto importante que nos chama atenção na obra consiste em pensar esses imigrantes em termos de espaços de circulação. Isso porque, de acordo com a pesquisadora, não há uma "comunidade brasileira" em Paris. No entanto, isso não significa que os brasileiros não construam uma "comunidade imaginada". Há uma seleção de imagens que os remetem às suas origens culturais e também raciais. Esse movimento cria uma representação coletiva de comunidade, que situa os imigrantes brasileiros em uma posição de contraste em relação a outros grupos estrangeiros.
Nessa linha, pode-se dizer que esse imaginário coletivo sobre o Brasil entra em choque, em alguns pontos, com aquele criado pela sociedade francesa. Essa última, não obstante o viés exotizante, possui admiração pela cultura e população brasileira. Isso coloca esses sujeitos sociais em outra esfera de aceitação e, sobretudo, de reconhecimento social. Lenita Perrier procurou argumentar que esse reconhecimento traz um impacto positivo na construção da identidade dos afro-brasileiros em Paris.
Assim, a autora defende que esse capital simbólico em torno da cultura brasileira favorece novas articulações "sócio-raciais". Em outras palavras, a partir de um imaginário positivo a respeito do Brasil, os grupos de imigrantes negros em Paris criam diversas estratégias de negociação social e enfrentamento das discriminações raciais. Isso implica na formação ou no fortalecimento de uma "consciência negra". Nesse contexto transnacional, a ideologia do embranquecimento, tão enraizada nas relações raciais no Brasil, não tem guarida. Torna-se impreterível assumir essa "afro-brasilidade" como recurso de empoderamento e reconhecimento na sociedade francesa.
É muito interessante verificar, segundo Perrier, a plasticidade no processo de construção de identidades afro-brasileiras em Paris. Se, por um lado, a simbologia da cor da pele não é a mesma no Brasil, por outro, é preciso recriá-la. Isso desencadeia um duplo movimento de ressignificação: a de si (sua identidade afro-brasileira) e a do próprio país (a sua identidade etno-nacional).
O livro é dividido em seis capítulos. O primeiro faz um percurso histórico e teórico pelo campo de estudos das relações raciais no Brasil. Nessa reflexão, há um destaque à construção do discurso da mestiçagem e o impacto da ideologia do embranquecimento sobre a construção de identidades negras.
Cabe destacar que esta ideologia fazia parte do conjunto de doutrinas raciais características de fins do século XIX. De acordo com Guimarães (1999, p. 53).: "O núcleo desse racialismo era a ideia de que o sangue branco purificava, diluía e exterminava o negro, abrindo assim, a possibilidade para que os mestiços se elevassem ao estágio civilizado" Assim, no Brasil a mestiçagem mobilizou o ideal de branqueamento, se enraizou no pensamento social e no imaginário popular nacional. Se é correto afirmar que o embranquecimento traduzia o chamado racismo cientifico do século XIX, a mestiçagem se tornou o eixo fundador do mito das três raças e particularizou a ideologia racial brasileira a partir do século XX.
Nessa linha, um dos objetivos desse capítulo consiste em refletir acerca da função social e política dos mitos fundadores da nação brasileira, como o de democracia racial. Para tanto, a autora traz os seguintes marcos temporais: 1960-70, 1980-90 e 2000. Isto significa pensar a construção e a crise desses discursos identitários. Acresce a isso o impacto da ascensão dos movimentos sociais, sobretudo o negro, nas narrativas sobre o Brasil.
No segundo capítulo, o tema gira em torno do conceito de raça e suas imbricações com a formação da sociedade capitalista do final do século XIX e início do XX. A autora também situa o leitor diante das análises sobre o conceito de etnia, advindas, sobretudo, do mundo anglo-saxão. Nesse campo, o capítulo tece um diálogo com as proposições teóricas de Fredrick Barth.
Cabe ressaltar, que na França esse conceito - tal como argumenta Lenita Perrier - assumiu um lugar marginal nos estudos sociológicos. Há uma tradição de pesquisa (que remonta os ideais iluministas), na qual a ênfase recai muito mais sobre o conceito de cidadania e integração. Essa aparente rejeição do conceito de etnia dificulta a compreensão e superação do racismo na França. A autora observa que a sociedade francesa optou por um tipo de integração baseada em valores universalistas. Esses valores mascaram e, de certa forma, legitimam práticas de intolerância e rejeição do "Outro". Daí a autora chamar a atenção para a importância em produzir reflexões teóricas sobre o conceito de etnia: "Teorizar a etnia não significa fundar o pluralismo étnico como modelo de organização sócio-política; é examinar as maneiras pelas quais uma visão de mundo étnica se torna relevante para os atores" (Perrier, 2016, p. 95)
Esse pano de fundo desenhado no livro, nos permite compreender o embate entre os conceitos de cidadania e multiculturalismo na França. A imagem de uma identidade nacional francesa unificada e assimiladora não deixa espaço para pensar em um projeto pautado no multiculturalismo. Percebe-se uma rigidez no tratamento dado às múltiplas identidades étnicas, optando-se por um modelo homogeneizador. Tal opção esbarra nos desafios impostos pela globalização, em que universalidade e diversidade se tornam temas na agenda política e na discussão acadêmica.
Dentro desse contexto, Perrier nos dá um panorama crítico do funcionamento do racismo na França: as discriminações que pautam a relação entre franceses e imigrantes, a simbologia da cor e da origem, o racismo institucional, entre outras faces que organizam e alimentam as práticas racistas nesse país.
Já o terceiro capítulo fornece um panorama interno sobre o grupo analisado, bem como as ferramentas metodológicas de pesquisa. Alguns dados estatísticos desenham o perfil dessa população de brasileiros em Paris. Além disso, os dados, de modo geral, nos mostram também algumas diferenças entre os imigrantes e os fluxos migratórios para a França nas últimas décadas.
Nesse panorama, a autora aponta que a população de imigrantes brasileiros é bem heterogênea. Apesar disso, no corpus da análise qualitativa composto de 50 entrevistas semi-diretivas aprofundadas (2 ou 4 horas), com os afro-descendentes brasileiros, homens e mulheres, negros/negras ou mestiços/mestiças (morando, estudando ou trabalhando em Paris) observou-se (através da metodologia de entrevista "bola de neve") uma maior concentração etária entre 30 e 40 anos, originária sobretudo da cidade do Rio de Janeiro. Há um grupo menor de brasileiros imigrantes, entre 40 a 50 anos, formado por uma maioria de pessoas negras e mestiças. A pesquisa de campo, de natureza etno-sociológica, traz uma visão interna do grupo com a finalidade em abordar "as idéias, percepções, comportamentos, representações e pontos de vista de negros e mestiços brasileiros, com o objetivo de privilegiar e trazer à luz os significados internos articulados, construídos e elaborados por esses indivíduos" (Perrier, 2016 p. 119)
Por fim, os capítulos quatro, cinco e seis sistematizam os dados coletados nas entrevistas. Os relatos permitem uma maior compreensão da experiência de vida dos migrantes negros e mestiços em Paris. Nesse momento, a autora articula depoimentos individuais com a experiência coletiva do grupo, nos transpondo para um universo de significados recriados no contexto migratório. A partir da análise das representações sociais produzidas pelo grupo, Perrier procura entender não apenas as dinâmicas das relações sócio-raciais na França, como os elementos que perfazem a identidade desse grupo. Para tanto, são múltiplas as vozes que ganham espaço nesses capítulos. Vozes que constroem um mapa, muitas vezes invisível da sociedade parisiense. Nele, caminhamos pela rede formada por artistas brasileiros negros e negras, sua inserção no mercado de trabalho, os estereótipos que os rondam e os conflitos que daí resultam.
É interessante notar que as imagens sobre o Brasil, sua população e cultura produzidas pela sociedade francesa se chocam com aquelas trazidas pelos imigrantes brasileiros negros. No mercado de trabalho, há uma procura por artistas brasileiros negros, pois são considerados, no imaginário francês, como "verdadeiros" representantes da cultura brasileira. No entanto, há um modelo estereotipado de "brasileiro negro" absorvido pelo mercado de trabalho na França. Esse tipo deve ter o tom da pele escura, "sensual, com swing, festeiro", entre outras características performáticas. Acresce que essa "brasilidade" requerida se encaixa - segundo esse imaginário - no perfil do baiano ou do carioca. Esses se situam em uma trama simbólica de representações sobre as regiões brasileiras.
Assim, Perrier, afirma a presença na sociedade francesa, de uma visão "racializada, unilateral e distorcida" da população afro-brasileira. A prática em estigmatizar o negro brasileiro na França, ao mesmo tempo que reifica sua identidade, o reconhece e o reintegra na sociedade. Igualmente, diferencia-o dos negros de origem francesa, brasileira, africana e caribenha. Nesses espaços limítrofes - fronteiriços -, os conflitos e as negociações fazem parte desse jogo relacional. Aí as identidades são recriadas. A contradição se dá nos meandros, ou seja, apesar dos estigmas que giram em torno do Brasil, o livro nos mostra que é por meio deles que ocorre sua subversão.
Notas
1 Au vu d'une telle complexité des catégories de race et de couleur au Brésil, il fallait poser la question d'une approche théorique adaptée au travail de terrain en France. Si, dans le contexte anglais, j'ai utilisé le terme « non-white » (non-blanc) pour nommer les Brésiliens noirs et métis vis-à-vis de la population blanche brésilienne, il m'a semblé plus adapté d'utiliser, dans le contexte français, les catégories de « noir » et « métis » pour y représenter les Brésiliens descendants d'Africains à Paris. J'ai ainsi conservé dans le titre initial de ce travail et, tout au long de celui-ci, la catégorie d'« afro-brésilien ». Celle-ci a paru juste, notamment par son côté symbolique au Brésil (catégorie culturelle), mais aussi du fait que cette population est, dans le contexte français, située dans les interstices des mouvements migratoires transnationaux et supranationaux en Europe (p. 28).
Referências
Guimarães, Antonio S. Alfredo. (1999). Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo, Brasil: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, Ed. 34. [ Links ]
Perrier, L. (2016) Couleur de peau et reconnaissance sociale: l'expérience vécue des afro-brésiliens émigrés à Paris. Paris, França: Editora L'Harmattan. [ Links ]
Submissão: 11/11/2020
1° avaliação: 15/12/2020
Aceite: 19/01/2021
Janaina de Figueiredo é pós-doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Sua linha de pesquisa atual está voltada para o estudo das populações africanas e afro-brasileiras. É também pesquisadora associada aos grupos de pesquisas: O CERNe - grupo de pesquisa do Departamento de Antropologia da USP e Azânia.
E-mail: janaacubalin@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8224-2905