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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.8 no.15 São João del Rei jul./dez. 2019
Freud com Hegel: a operação de Lacan
Freud with Hegel: Lacan's operation
Freud avec Hegel: l'opération de Lacan
Freud con Hegel: la operación de Lacan
Victor Hipolito MuguerzaI; Marta Regina de Leão D'AgordII
IPsicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIPsicóloga. Doutora em Psicologia e Mestre em Filosofia. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação, Mestrado, Psicanálise: Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsa Produtividade CNPq
RESUMO
O presente trabalho objetiva examinar as condições que possibilitaram a formulação lacaniana do conceito de sujeito. Nossa investigação tem como corpus a tese de Lacan, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (2011), e textos publicados nos quatro anos subsequentes à defesa da tese (1932-1936). Demarcamos três momentos cruciais à formulação do conceito de sujeito por Lacan. Em primeiro lugar, a aproximação ao campo psicanalítico em função da problemática da tese. Num segundo momento, a constatação de impasses concernentes à teoria psicanalítica do narcisismo e à explicação freudiana para a gênese do Eu. Por fim, ao apropriar-se da Filosofia Hegeliana ao longo do curso sobre a Fenomenologia do Espírito, ministrado por Alexandre Kojève, Lacan encontrou um suporte para resolver tais impasses teóricos. Essa articulação da dialética da consciência-de-si hegeliana à metapsicologia freudiana nomeamos a operação de Lacan - cujo produto primeiro é a formulação sobre o estádio do espelho em 1936.
Palavras-chave: Sujeito. Lacan. Hegel. Psicanálise. Estádio do espelho.
ABSTRACT
This paper examines the conditions that enabled the lacanian formulation of the concept of subject. The key texts of our inquiry are Lacan's thesis "Paranoid psychosis and its relation to the personality" and the texts published during the next four years following his thesis presentation (1932-1936). We delineate three crucial moments for Lacan's formulation of the concept of subject. The first moment is the approach to the field of psychoanalysis as a function of the problematic that animates the thesis. The second is the statement of impasses related to the psychoanalytical theory of narcissism and to the freudian account of the origins of the Ego. The final moment is Lacan's discovery of a support to solve these theoretical impasses in his appropriation of the hegelian philosophy that he encountered throughout Alexandre Kojève's course on the Phenomenology of Spirit. We termed this articulation of hegelian dialectic of self-consciousness with freudian metapsychology "Lacan's operation" - whose first product was the formulation of the mirror stage in 1936.
Keywords: Subject. Lacan. Hegel. Psychoanalysis. The mirror stage.
RÉSUMÉ
Le présent travail vise à examiner les conditions qui ont permis la formulation lacanienne du concept de sujet. Notre investigation a comme corpus la thèse de Lacan, De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité, et des textes publiés dans les quatre années subséquentes à la soutenance de la these (1932-1936). Nous avons identifié trois moments cruciaux dans la formulation du concept de sujet par Lacan. Tout d'abord, l'approche du champ psychanalytique en raison de la problématique de la thèse. Dans un deuxième temps, la constatation d'impasses concernants la théorie psychanalytique du narcissisme et l'explication freudienne de la genèse du Moi. Enfin, quand Lacan s'approprie de la philosophie de Hegel, tout au long du cours sur la Phénoménologie de l'Esprit, enseigné par Alexandre Kojève, Lacan a trouvé une base de résolution de telles impasses théoriques. Nous appelons "l'opération de Lacan" l'articulation de la dialectique de la conscience-de-soi hégelienne à la métapsychologie freudienne, dont le premier produit est la formulation sur le stade du miroir en 1936.
Mots clés: Sujet. Lacan. Hegel. Psychanalyse. Stade du miroir.
RESUMEN
El presente trabajo objetiva examinar las condiciones que posibilitaron la formulación lacaniana del concepto de sujeto. Nuestra investigación tiene como corpus la tesis de Lacan, De la psicosis paranoica en sus relaciones con la personalidad y textos publicados en los cuatro años subsecuentes a la defensa de la tesis (1932-1936). Demarcamos tres momentos cruciales a la formulación del concepto de sujeto por Lacan. Primero, la aproximación al campo psicoanalítico en función de la problemática de la tesis. Segundo, la constatación de los impases concernientes a la teoría psicoanalítica del narcisismo y la explicación freudiana par la génesis del Yo. Por fin, al apropiar-se de la filosofía hegeliana al longo de lo curso acerca de la Fenomenología del Espíritu, ministrada por Alexandre Kojève, Lacan encontró un soporte para resolver tales impasses teóricos. Esa articulación de la dialéctica de la conciência-de-si hegeliana a la metapsicología freudiana, nomeámos la operación de Lacan - cuyo producto es la formulación acerca del estadio del espejo en 1936.
Palabras clave: Sujeto. Lacan. Hegel. Psicoanálisis. Estadio del espejo.
Introdução
Lacan introduziu na Psicanálise o conceito de sujeito do inconsciente. Trata-se de uma contribuição fundamental, de profundo impacto na teoria e na prática psicanalítica. Como um fio condutor, a problemática do sujeito foi sendo elaborada ao longo do ensino de Lacan. A maneira como compreendemos esse conceito tem implicações nos modos de operar na clínica psicanalítica.
Considerando que a problemática do sujeito desdobra-se ao longo do ensino de Lacan - de seu início ao fim -, a presente pesquisa intenta examinar as condições que possibilitaram a formulação do conceito de sujeito, cujo tema foi objeto da atenção de filósofos e psicanalistas como Ogilvie (1988), Simanke (2002), Chaves (2005) e Kaszubowski (2018).
Partimos, em nossa investigação, do primeiro trabalho maior de Lacan: sua tese de doutoramento em Psiquiatria, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (2011a), defendida em 1932. Nela, encontramos uma problemática por nós considerada originária do que virá a ser a problemática do sujeito. Referimo-nos ao problema que dá nome à tese: o problema das relações entre a psicose paranoica e a personalidade.
Pretendemos apresentar aquilo que se deu a ver por meio de nossa pesquisa: que a concepção do conceito de sujeito só foi possível à medida que Lacan aproximou-se, em função do problema trabalhado na tese, do campo da Psicanálise; que sua leitura dos textos psicanalíticos o conduziu à constatação de impasses concernentes à teoria do narcisismo e à explicação freudiana para a gênese do Eu; que, em sua apreensão da Filosofia Hegeliana, mediada pelo ensino de Kojève, Lacan encontrou suporte para pensar e, mesmo, para resolver tais impasses teóricos. A aproximação de Lacan com a Filosofia Hegeliana é também objeto da atenção de filósofos e psicanalistas como Juranville (1984/1987), Regnault (1986), Ogilvie (1988), Arantes (1995), Simanke (2002), Torres (2004), Chaves (2005) e Rocha (2009). A essa articulação da metapsicologia freudiana com a dialética da consciência-de-si hegeliana, nomeamos a operação de Lacan. Seu produto não é senão a formulação sobre o estádio do espelho, apresentada em 1936. Seus meandros, o problema que a precede na tese e a problemática - do sujeito - que dela se desdobra, eis o que pretendemos abordar nas linhas que se seguem.
A tese de 1932
Lacan escreveu sua tese de doutoramento em meio à emergência de um grande debate no campo da Psiquiatria, organizado em torno da etiologia das doenças mentais. Com o avanço das ciências naturais, a corrente organogenética despontava no meio psiquiátrico. A esta corrente contrapunham-se outras, psicogenéticas. A tese de Lacan apresenta uma ambição significativa: fazer avançar esse debate por meio da concepção de uma nova metodologia, capaz de solucionar seus impasses - a ciência da personalidade.
A primeira parte da tese, intitulada Posição teórica e dogmática do problema, destina-se à exposição e análise crítica dos pressupostos conceituais dos principais autores franceses e alemães de ambas as correntes acerca do quadro nosológico das psicoses paranoicas. A escolha por ater-se a este quadro deve-se ao fato de que, à diferença do quadro das demências, as psicoses revelavam-se "na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade (de memória, de motricidade, de percepção, de orientação e de discurso) e na ausência de qualquer lesão orgânica" (Lacan, 2011a, p. 1).
O constitucionalismo, corrente psicogenética dominante na França à época da escrita da tese, concebia a etiologia da psicose paranoica como uma disposição pré-determinada (inata) de alguns traços psicológicos (Lacan, 2011a, p. 13). A isso chamavam constituição paranoica. Seus traços característicos, diferentemente dos de uma constituição dita "normal", seriam: "superestima de si mesmo, desconfiança, falsidade do juízo, inadaptação social". Em torno desses traços essenciais agrupar-se-iam outros traços contingentes: "orgulho, vaidade, suscetibilidade, autodidatismo, idealismo apaixonado, amor pela natureza etc." (Lacan, 2011a, p. 63). Para os constitucionalistas, as constituições representavam "um comportamento original e permanente característico da personalidade" (Delmas, 1932, citado por Lacan, 2011a, p. 40), e sua descrição permitiria estabelecer uma classificação dos tipos de personalidade segundo suas características.
Na tradição germânica, prevalecia uma outra concepção psicogênica das psicoses paranoicas, desenvolvida inicialmente por Bleuler: "Ao contrário de Sérieux e Capgras", constitucionalistas franceses, "que relacionam a gênese do delírio às predisposições constitucionais do doente, Bleuler encontra sua explicação, a seu ver exaustiva, nas reações do sujeito a situações vitais" (Lacan, 2011a, p. 66). Estas reações, na psicogênese das psicoses paranoicas, dariam origem ao desencadeamento dos delírios. A estrutura e o conteúdo dos delírios travariam íntimas relações com a situação ou o conflito vital experienciados, bem como com a história e a personalidade do indivíduo em questão.
Para as correntes organicistas francesa e alemã, a irrupção dos sintomas das psicoses (fenômenos elementares) dar-se-ia em razão de um processo de natureza orgânica (Lacan, 2011a, p. 97). Na ausência de dados que evidenciassem alterações humorais ou neurológicas, funcionais ou lesionais no determinismo causal das psicoses, os partidários do organicismo defendiam a tese de que a observação clínica da evolução dos casos poderia fazer-nos admitir sua identidade com as psicoses orgânicas (como as demências). Seu argumento era que os fenômenos elementares irrompiam subitamente, tal qual nas psicoses orgânicas - ainda que com menor vigor e de modo mais passageiro (Lacan, 2011a, p. 98). O delírio seria uma elaboração secundária, tentativa de racionalização desses fenômenos estranhos ao indivíduo.
Embora as delimitações nosológicas do grupo das psicoses paranoicas fossem concordantes nas escolas analisadas (Lacan, 2011a, p. 15), as explicações etiológicas divergiam profundamente, como pudemos observar. Lacan destaca, contudo, que a "opinião comum dos psiquiatras", ainda que divergindo quanto à etiologia, reconhecia na gênese das psicoses paranoicas - fosse organogenética, fosse psicogenética - um distúrbio no desenvolvimento da personalidade (Lacan, 2011a, p. 19). A psicose, escapando ao paralelismo psico-orgânico dos distúrbios demenciais,1 configuraria um distúrbio mental específico da personalidade (Lacan, 2011a, pp. 1-2).
Representa ela [a psicose] o desenvolvimento de uma personalidade, e então traduz uma anomalia constitucional, ou [uma] deformação reativa? Ou a psicose é uma doença autônoma, que remaneja a personalidade quebrando o curso de seu desenvolvimento? Esse é o problema que a própria exposição das doutrinas apresenta. (Lacan, 2011a, p. 3)
Para Lacan, essa confusão entre as escolas (em relação à etiologia das psicoses paranoicas) devia-se ao fato de os autores terem prescindido de uma definição explícita dos fenômenos da personalidade. Aí estaria a origem de toda a contradição. Sem uma concepção suficiente do que seja a personalidade, "a psicose permanecerá sempre como um enigma" - asseverou (Lacan, 2011a, p. 2).
A ambição da tese, como indicamos, reside no fato de Lacan pretender solucionar esses impasses. Almeja fazê-lo por meio da tentativa de apresentar uma definição objetiva da personalidade e de seus fenômenos (Lacan, 2011a, pp. 2-3). Estabelecer as relações entre psicose e personalidade - eis aí, inaugurado, seu primeiro campo problemático.
O conceito de personalidade
Embora a "opinião comum dos psiquiatras" reconhecesse na gênese das psicoses paranoicas um distúrbio no desenvolvimento da personalidade, a referência à noção de personalidade não era unívoca de um autor para outro (Lacan, 2011a, p. 19). Lacan examina as contribuições da "crença comum" (o senso comum), da metafísica tradicional e de alguns ramos do que chama "Psicologia Científica" com o intuito de delimitar de modo rigoroso e objetivo a noção de personalidade e seus fenômenos. De seu exame das contribuições da Psicologia Científica, destaca-se a posição crítica assumida no que tange à utilização da noção de eu. Uma passagem de Ribot - elencada por Lacan em nota de rodapé - resume sua posição.
Na linguagem psicológica se entende geralmente por pessoa o indivíduo que tem uma consciência clara de si mesmo e age em consequência: é a forma mais alta da individualidade. Para explicar esse caráter, que ela reserva unicamente ao homem, a psicologia metafísica se contenta unicamente em supor um eu perfeitamente uno, simples e idêntico. Infelizmente isso é apenas uma falsa clareza e uma aparência de solução. Em vez de conferir a esse eu uma origem sobrenatural, é necessário explicar como ele nasce e de que forma inferior ele provém.2 (Ribot, 1885, citado por Lacan, 2011a, p. 23)
Lacan opõe-se, em sua crítica, à concepção de um eu uno, simples e idêntico e resgata as contribuições da "crença comum" - os atributos que o senso comum reconhece na personalidade - para indicar a incidência de um certo "afastamento" entre dois polos da personalidade: de um lado, a função de um juízo sobre nós mesmos (quem/como somos); de outro, uma série de ações, desejos, sentimentos e pensamentos que destoam em relação a esse juízo (Lacan, 2011a, p. 20). Esses "conflitos internos à personalidade" são da ordem de
[...] surpresas e decepções que incessantemente nos trazem nossos pensamentos e nossos atos pela intervenção, imprevista ou habitual, de forças internas, às vezes inteiramente novas para nós, outras vezes conhecidas demais. As forças são, na maioria das vezes, de natureza afetiva e seu conflito com nossa personalidade organizada nos leva a desaprová-las, qualquer que seja, por outro lado, seu valor real, nocivo para nós, para os outros, ou sujeito a dúvidas, ou mesmo benéfico. (Lacan, 2011a, p. 24)
Partindo desde o interior do campo psiquiátrico, a análise crítica de Lacan tensiona a concepção de eu cara à Psicologia (uno, simples e idêntico), privilegiando a ordem dos conflitos e da diferença interiores ao eu. Seu movimento encontra ressonâncias no pensamento de Freud. Esse momento da tese evidencia uma primeira aproximação de Lacan à Psicanálise, bem como seu uso para pensar a noção psicológica de eu.
À luz da teoria psicanalítica, Lacan passa a conceber esse "afastamento" (reconhecido pela "crença comum") como um "afastamento constante que vai do eu real ao ideal que o orienta".3 Por "ideal do eu" - conceito tomado de empréstimo à Psicanálise -, Lacan compreende a "imagem que a personalidade faz de si mesma" (Lacan, 2011a, p. 25). O autor da tese reconhece a importância das pesquisas empreendidas pelo campo psicanalítico no sentido da formação4 da imagem ideal do eu, realizada por meio do exame dos complexos afetivos em sua relação com a ontogênese do psiquismo (Lacan, 2011a, p. 28). As "teorias freudianas trouxeram [...] uma nova luz, mostrando os mecanismos em parte inconscientes que presidem à formação dessa imagem [...] e seu vínculo com a identificação afetiva" (Lacan, 2011a, p. 28).
Tornaremos, posteriormente, ao exame da apropriação que faz Lacan da metapsicologia freudiana na tese, bem como seu uso - de capital importância - para o desenlace do caso Aimée (Parte II da tese). Indiquemos apenas que, desde o campo psiquiátrico, Lacan começa a mobilizar a teoria psicanalítica para pensar seu problema na tese. Resta, ainda, indicar os resultados da pesquisa da noção de personalidade, seus fenômenos e sua definição.
Tomando de empréstimo da Psicanálise a noção de ideal, Lacan propõe que mais do que um eu uno e idêntico, responsável por operar uma síntese da personalidade, tratar-se-ia de sucessivas tentativas de síntese, conforme a oscilação ou transformação da realidade e das imagens que a personalidade faz de si mesma (Lacan, 2011a, p. 25). A partir daí, seria possível pensar um desenvolvimento da personalidade, contrapondo-o a uma noção de identidade fechada (Psicologia Científica). Lacan indica que encontramos, portanto, no lugar de uma síntese psicológica, uma lei evolutiva (Lacan, 2011a, p. 26). E conclui: o desenvolvimento da personalidade é de natureza dialética (Lacan, 2011a, p. 29).
Acrescentemos, por fim, uma última e fundamental observação de Lacan a respeito do desenvolvimento da personalidade: todo ato do indivíduo, todo ato humano, ainda que aparentemente autônomo, é essencialmente relativo ao grupo. Todo ato encontra-se implicado num sistema de participação. O desenvolvimento da personalidade passa por uma "gênese social" (Lacan, 2011a, p. 30).
Consideram-nos legitimamente responsáveis por esses atos, porque essa aparente autonomia do indivíduo é essencialmente relativa ao grupo, seja porque ela se apoia claramente no juízo que os outros têm ou terão a nosso respeito [...].
Essa gênese social da personalidade explica o caráter de alta tensão que assumem, no desenvolvimento pessoal, as relações humanas e as situações vitais que fazem parte delas. (Lacan, 2011a, pp. 30-31)
Tendo analisado as contribuições de diferentes áreas do conhecimento - da "crença comum" à metafísica tradicional, da "Psicologia Científica" à teoria psicanalítica -, Lacan estabelece sua "definição objetiva dos fenômenos da personalidade" e propõe que
Toda manifestação humana, para que a relacionemos à personalidade, deverá, pois, implicar:
1. Um desenvolvimento biográfico, que definimos objetivamente por uma evolução típica e pelas relações de compreensão que aí podem ser lidas. - Ele se traduz para o sujeito segundo os modos afetivos sob os quais ele vive sua história (Erlebnis).
2. Uma concepção de si mesmo, que define objetivamente por atitudes vitais e pelo progresso dialético que aí se pode descobrir. - Ela se traduz para o sujeito segundo as imagens mais ou menos "ideais" de si mesmo que ele traz à consciência.
3. Uma certa tensão das relações sociais, que definimos objetivamente pela autonomia pragmática da conduta e pelos elos de participação ética que aí são reconhecidos. - Ela se traduz para o sujeito segundo o valor representativo pelo qual se sente afetado em relação a outrem. (Lacan, 2011a, p. 31)
Os fenômenos da personalidade constituem, para Lacan, um campo amplo. Cobrem, como indica a passagem anterior, desde a história subjetiva até a concepção que fazemos de nós mesmos - nossa autoidentidade - em seu progresso dialético, conforme modificam-se nossos ideais e autoimagens; e nossas relações sociais. Quanto às últimas, Lacan ressalta aquilo a que chama elos de participação ética, ou seja, o fato de que todo ato, sentimento ou expressão é dotado de um valor representativo, assumindo sentido (ou significação) em um sistema social. Daí sua afirmação de que todo ato humano é essencialmente relativo ao grupo (Lacan, 2011a, p. 30).
Desse modo, para Lacan, além de a personalidade não ser redutível ao nível orgânico de funcionamento, ela não pode ser tomada de maneira individualista ou atomística, pois se refere, necessariamente, às relações que estabelece com seu meio - posto que é, como virá a definir, a "totalidade constituída pelo indivíduo e por seu meio ambiente próprio5" (Lacan, 2011a, p. 338). E o meio humano, ressalta Lacan, "seria por excelência o meio social humano" (Lacan, 2011a, p. 338).
A ênfase posta sobre a gênese social da personalidade marca uma particularidade do percurso de Lacan em relação ao de Freud. Se o mestre vienense destacou, em seu Projeto para uma Psicologia Científica (1990), o papel da ação específica executada por um outro (Nebenmensch) para que sejam ativados os dispositivos reflexos do recém-nascido, em 1914, como veremos, ao esboçar uma explicação para a gênese da instância do Eu, Freud não leva em consideração a mediação de um Outro. Explica essa gênese a partir de uma "nova ação psíquica" que se acrescenta ao autoerotismo (Freud, 1914/2010, p. 19). Lacan, por sua vez, ao desdobrar sua reflexão acerca da gênese social da personalidade, será levado, futuramente, a pensar o papel do Outro na gênese do Eu, bem como na constituição do sujeito. É o que Bertrand Ogilvie (1988, p. 90) nomeia a "dupla questão": "como se constitui inicialmente o sujeito humano, levando-se em conta sua 'natureza' particular de ser social?". É em razão dessa particularidade no trajeto lacaniano que a Filosofia de Hegel assumirá importância primordial na concepção do conceito de sujeito, servindo de suporte para sua reflexão. A seu tempo, tornaremos a discuti-lo.
Uma solução metapsicológica: a psicose paranoica de autopunição
Tendo exposto e analisado os pressupostos conceituais de diferentes escolas da Psiquiatria e delimitado sua definição objetiva dos fenômenos da personalidade, Lacan passa à segunda parte da tese, intitulada O caso "Aimée" ou a paranoia de autopunição. Propõe que apenas o exame o mais exaustivo e rigoroso possível de um caso clínico a partir de sua definição objetiva dos fenômenos da personalidade permitirá decidir por uma das explicações etiológicas apresentadas anteriormente.
Após examinar as relações entre o desenvolvimento da personalidade e a história do delírio de Aimée,6 Lacan realça dois pontos: "a relação dos surtos delirantes com os acontecimentos que tocam no conflito central da personalidade de Aimée; e a evolução de seu caráter sob a influência do delírio" (Lacan, 2011a, p. 232). Lacan conclui que "nada nos permite falar, em nossa doente, de disposição congênita, nem mesmo adquirida, que se exprimiria nos traços definidos da constituição paranoica" (Lacan, 2011a, p. 239). Ainda, a partir da análise dos fenômenos elementares presentes na sintomatologia do caso, constatou a insuficiência da explicação etiológica organogenética.
Situando-se na esteira dos trabalhos de Bleuler (e da tradição germânica), Lacan compreende o desencadeamento do delírio de Aimée como uma reação a acontecimentos traumáticos relacionados a um conflito vital (a intrusão de sua irmã mais velha em sua vida domiciliar). Para Chaves (2005), aqui reside a originalidade de seu estudo, pelo menos para a época: interpretar exaustivamente os fenômenos mentais de um delírio em função da história do sujeito, ou seja, buscar os fatores determinantes da psicose "numa análise psicológica concreta, que se aplica a todo o desenvolvimento da personalidade do sujeito, isto é, aos acontecimentos de sua história, aos progressos de sua consciência, às suas reações no meio social" (Lacan, 1975, p. 346, citado por Chaves, 2005, p. 27).
Lacan pergunta-se, no entanto, por que alguns acontecimentos, e não outros, determinam em um caso dado uma psicose (e uma psicose paranoica) "e não qualquer outro processo neurótico ou desenvolvimento reativo" (Lacan, 2011a, p. 241). Se, por um lado, Lacan adota a explicação etiológica de Bleuler, por outro, constata que ela não é exaustiva, como o suíço pensava. Há um problema anterior: o que determina que uma reação conduza a uma psicose ou não?
Lacan defende que as causas primeiras da psicose de Aimée devem-se a uma "anomalia de estrutura"7 e - amparando-se na teoria psicanalítica - a uma "fixação de desenvolvimento da personalidade" (Lacan, 2011a, p. 243). O autor aponta que, na estrutura da personalidade de Aimée, prevalecem os mecanismos de autopunição descritos pela Psicanálise. Como afirmamos anteriormente, o recurso à metapsicologia será fundamental para o desenlace da tese. É com ele que Lacan precisará a natureza do "distúrbio inicial" que conduziu Aimée à psicose e não a um desenvolvimento reativo neurótico, solucionando o problema colocado à explicação etiológica bleuleriana.
Ao argumentar que o sistema delirante de Aimée cai de todo quando a doente realiza que "atingiu a si mesma" (Lacan, 2011a, p. 247), Lacan lança mão, para sua argumentação, dos trabalhos psicanalíticos sobre o mecanismo autopunitivo e sobre os sentimentos de culpa.8 "O que fizemos permaneceria enigmático se um número enorme de fatos objetivos não impusesse, a partir de agora, à ciência médica [psiquiátrica], a existência e o imenso alcance dos mecanismos psíquicos de autopunição" (Lacan, 2011a, p. 247). Destaca, ainda, que esses mecanismos têm uma gênese social (Lacan, 2011a, p. 247).
Lacan sustenta que a prevalência desses mecanismos de autopunição na personalidade de Aimée deve-se a uma fixação na evolução da libido no momento evolutivo do narcisismo secundário. É, portanto, nas elaborações psicanalíticas acerca da psicose que Lacan encontra uma explicação etiológica e patogênica para o caso Aimée. "Se, com efeito, distúrbios orgânicos e acontecimentos da história só nos dão o desencadeamento do processo mórbido, a fixação e a estrutura da psicose só são explicáveis em função de uma anomalia psíquica anterior a essas instâncias" (Lacan, 2011a, p. 251). A análise do caso Aimée a partir da definição objetiva dos fenômenos da personalidade permitiu a Lacan descrever "um distúrbio que só tem sentido em função da personalidade, ou, se preferirmos, um distúrbio psicogênico" (Lacan, 2011a, p. 251).
O problema da gênese do Eu
Entre as conclusões críticas oriundas da tese, destaca-se o relevo que dá Lacan ao problema, à época pouco considerado pelos psiquiatras, da relação da psicose com a situação familiar infantil dos sujeitos psicóticos (Lacan, 2011a, p. 281). As poucas e breves observações sobre o período da infância assinalavam constantemente a incidência de "anomalias" em suas situações familiares (Lacan, 2011a, p. 281). Lacan (2011a, p. 268) chama a atenção para o fato de o conflito vital - associado, no presente, à estruturação e ao conteúdo dos delírios - estar muito frequentemente ligado às conflitivas de suas relações parentais ou fraternas na infância.
O destaque dado à influência exercida pelo meio familiar no determinismo da psicose já pode ser entrevisto em um artigo publicado por Lacan um ano antes de concluir sua tese (Lacan, 1931, p. 9). Neste artigo, Lacan indica que a profilaxia das psicoses teria de dar-se durante a infância (Lacan, 1931, p. 10), visto que as psicoses fixar-se-iam precocemente e que suas "causas determinantes" operariam durante o "estágio primário da afetividade", dito estágio "oral" ou "narcísico".9 Nas considerações finais da tese, o período do narcisismo é retomado e comentado:
Essa compreensão de uma compensação entre as fixações narcísicas e as fixações objetais trouxe esclarecimentos incontestáveis na compreensão do conjunto das psicoses. É preciso reconhecer, no entanto, que essas primeiras sínteses ainda aguardam sua coordenação de um estudo sistemático dos fatos que elas dão a oportunidade de ver sob nova luz. Pensamos que a contribuição de monografias psicopatológicas, tais como a nossa, é essencial a qualquer progresso nessa via, e que só a análise comparativa de trabalhos desse tipo permitirá esclarecer os estádios de estrutura do obscuro período do narcisismo. (Lacan, 2011a, pp. 255-256)
Ainda que homenageando os psicanalistas pelas contribuições fornecidas ao estudo das psicoses com o conceito de narcisismo (em sua relação com a libido e a teoria dos objetos), Lacan aponta os limites da noção, afirmando que seu caráter malformado marca-se "bem na estagnação de sua elaboração e na enorme elasticidade de sua aplicação"10 (Lacan, 2011a, p. 323). "O narcisismo, de fato, se apresenta na economia da doutrina psicanalítica como uma terra incógnita, que os meios de investigação provenientes do estudo das neuroses permitiram delimitar quanto às suas fronteiras, mas que permanece mítica e desconhecida no seu interior" (Lacan, 2011a, p. 323).
A teoria do narcisismo, observa Simanke (2002, p. 139), será a "pedra de toque" do que virá a ser a primeira grande reinterpretação lacaniana de Freud. Por meio do exame do período do narcisismo (e suas dificuldades), Lacan identifica um problema fundamental: o problema da gênese do Eu em Freud. A seu ver, a oposição freudiana entre Eu e Isso sofria uma dessas "confusões" entre as definições positivas e as definições gnoseológicas que se podem dar dos fenômenos da personalidade.
Para Lacan, havia, na noção freudiana de Eu, uma distinção insuficiente entre as tendências concretas11 e a definição abstrata do Eu como sujeito do conhecimento (Lacan, 2011a, pp. 324-325). Ao passo que fez da consciência-percepção (Wahrenhmung-Bewusstsein) o próprio núcleo do Eu, nem por isso, salienta Lacan, Freud achou-se obrigado a diferenciar o Eu por uma gênese outra que tópica. "O Ego12 seria apenas a 'superfície' do Id e só se engendraria por contato com o mundo exterior" (Lacan, 2011a, p. 325). Contudo, Freud invocou em sua gênese do Eu a dualidade princípio de realidade - princípio do prazer. Para Lacan (2011a, p. 325), esse "princípio de realidade só se distingue do princípio do prazer em um plano gnoseológico". E, assim sendo, é "ilegítimo fazê-lo intervir na gênese do Ego, uma vez que ele implica o próprio Ego como sujeito do conhecimento" (Lacan, 2011a, p. 325).
Lembremo-nos que, ao efetuar a crítica do eu psicológico, Lacan evoca Ribot para indicar que é necessário explicar como o eu nasce (Lacan, 2011a, p. 23). Expusemos, anteriormente, o elogio que rende Lacan às pesquisas psicanalíticas que lançaram luz sobre a formação do ideal do eu (Lacan, 2011a, p. 28). Contudo, para Lacan, a explicação da gênese do Eu na teoria psicanalítica restava ainda em aberto. Sua crítica desvelou a insuficiência da solução encontrada por Freud. A identificação do problema da gênese do Eu na teoria freudiana será fundamental para a futura formulação da problemática do sujeito.
Em suas considerações finais, Lacan afirma que sua pesquisa sobre as psicoses "retoma o problema no ponto a que a psicanálise chegou" (Lacan, 2011a, p. 322), e que pretende retomar o estudo do domínio do narcisismo a partir de sua nascente doutrina da personalidade (Lacan, 2011a, p. 323). Esta e outras linhas de pesquisa abrem-se como fruto do trabalho de análise e de crítica empreendidos por Lacan na tese. Nos anos subsequentes à obtenção do título de doutoramento, Lacan inicia sua análise pessoal com Rudolph Loewenstein, filia-se à Sociedade Psicanalítica de Paris e passa a frequentar o seminário13 de Kojève (2002) acerca da Fenomenologia do Espírito, de Hegel. O encontro com a dialética hegeliana terá papel decisivo nessa virada que marca a passagem da problemática da tese para a problemática do sujeito.
A dialética da consciência-de-si em Hegel
O lugar fundamental que, neste momento, a dialética da consciência-de-si encontrará no pensamento de Lacan deve-se ao empreendimento que fora a escrita da tese e, mais precisamente, à formulação da "dupla questão", referida por Ogilvie (1988). Ao pensar as relações entre psicose paranoica e personalidade, Lacan aproximou-se da Psicanálise. Como expusemos, em seu estudo sobre a teoria do narcisismo, Lacan identificou a "confusão" freudiana acerca da instância do Eu, bem como o problema de sua gênese. Na dialética da consciência-de-si, Lacan encontrará suporte para pensar - e mesmo, para solucionar - esse problema. Como destaca Ogilvie (1988, p. 90), é à elaboração de uma resposta para essa "dupla questão" que Lacan consagrará os anos que se seguem à defesa da tese.
A originalidade de Hegel na Fenomenologia do Espírito (2011) foi passar a considerar o próprio sujeito da filosofia como fenômeno, quando, até então, na tradição filosófica, essa condição era exclusiva dos objetos do conhecimento.14 A partir de Hegel, a Filosofia começará a refletir sobre as condições de formação (Bildung) do próprio sujeito do conhecimento15 - na terminologia de Hegel, consciência-de-si. Sua fenomenologia seria a "ciência da experiência da consciência", ciência que teria por tarefa expor os momentos desse percurso de formação da consciência como consciência-de-si. Esse percurso, bem como sua conceituação, Hegel batizou de dialética da consciência-de-si.16
A dialética da consciência-de-si retoma, etapa a etapa, o processo de uma gênese. Esse é o motivo pelo qual Lacan encontrará nela um suporte para pensar o problema da gênese do Eu. Se a tradição filosófica concebia um sujeito transcendental e abstrato, "rigorosamente a-histórico", a solução hegeliana retraçará o processo de sua gênese por meio de um jogo de mediações recíprocas, de estrutura dialética (tempos dialéticos), entre um vir-a-ser sujeito e seus objetos-outros e o mundo. Sua gênese é imanente: não há sujeito sem outro. De forma resumida, apresentaremos as etapas dessa Bildung nas linhas que se seguem, para compreender, posteriormente, de que modo se servirá delas Lacan.
O primeiro e mais elementar momento desse percurso é uma simples indicação do objeto (do conhecimento) no aqui e agora. Este momento, Hegel nomeia de certeza sensível ou consciência animal. Para o filósofo, nessa indicação, ao diferenciar um objeto, o sujeito aparece para si mesmo de maneira abstrata e indefinida (Vaz, 1981, p. 11). A partir daí, o percurso retratado na Fenomenologia "prossegue como aprofundamento dessa situação histórico-dialética de um sujeito que é fenômeno para si mesmo no próprio ato em que constrói o saber de um objeto que aparece no horizonte de suas experiências" (Vaz, 1981, p. 11).
A próxima etapa consiste na exposição de uma figura intitulada dialética do desejo. Nesta figura, Hegel descreve a relação de desejo que o sujeito trava com o objeto diferençado. Caracteriza o desejo como ato que visa suprassumir17 o objeto desejado em busca de satisfação (Vaz, 1981, p. 16). Contudo, no percurso da formação da consciência-de-si, o objeto acaba por revelar-se insuficiente para assegurar a passagem da consciência do mundo animal para o mundo humano, mundo da cultura: "para que a consciência-de-si alcance a sua identidade concreta será necessário que ela se encontre a si mesma no seu objeto" (Vaz, 1981, p. 16).
O objeto de desejo, sendo consumido na satisfação, mostra-se "incapaz de exercer a mediação exigida para que o saber de si mesmo se constitua como resultado dialético" (Vaz, 1981, p. 16), ou seja, para que a consciência se encontre, se reconheça, no seu objeto. Nesse sentido, Vaz (1981, p. 17) salienta: "O sujeito humano se constitui tão somente no horizonte do mundo humano e a dialética do desejo deve encontrar sua verdade na dialética do reconhecimento".
Na etapa da dialética do reconhecimento, a consciência faz "verdadeiramente a sua experiência como consciência-de-si porque o objeto que é mediador para o seu reconhecer-se a si mesma [...] é ela mesma no seu ser-outro: é outra consciência-de-si" (Vaz, 1981, p. 17). O sujeito, indica Vaz (1981, p. 18), constitui-se em oposição ao outro. A dialética do reconhecimento tem por primeira figura a célebre passagem do Senhor e do Servo. Esta passagem ilustra o encontro da consciência com uma outra consciência-de-si e os momentos de sua luta por reconhecimento. Vaz (1981, p. 18) adverte que não se trata de uma hipótese histórica para o problema da origem da sociedade ou do estado.18 Afinal, o indivíduo humano, a consciência-de-si (à diferença da consciência animal), para Hegel, é desde sempre um indivíduo social. Assim, essa figura é um dos momentos do caminho pelo qual se forma a consciência-de-si (Vaz, 1981, p. 19).
Vaz explicita que é por haver esse encontro de duas consciências (que assim se reconhecem reciprocamente) que o agir de cada um dos sujeitos passa a ter "a dupla significação de ser o agir dele mesmo e do outro" (Vaz, 1981, p. 20). Lembremo-nos da participação ética definida por Lacan em sua tese, na qual todo ato é, invariavelmente, um ato social, um ato que por estar inserido em um sistema social, adquire significação para outrem.
Nesse momento, embora se reconhecendo abstratamente como iguais, cada consciência aparece para a outra como um objeto: "o outro não se prova ainda como essencial para que cada um se constitua como efetiva e concreta consciência-de-si" (Vaz, 1981, p. 20). Ao abordarem-se mutuamente como objeto (de desejo), na tentativa de se suprassumirem em busca de satisfação, as consciências engajam-se numa "luta de vida ou de morte", uma luta por reconhecimento (em Kojève, a luta por "puro prestígio"). Essa luta não pode findar com a morte de alguma das consciências, o que eliminaria qualquer possibilidade de fazer avançar a relação do reconhecimento (Vaz, 1981, p. 21). Diante da possibilidade da morte, uma das consciências "ingloriamente tremerá" (Arantes, 1995, p. 15), abdicará da luta por reconhecimento (por se fazer reconhecer consciência-de-si) e reconhecerá na outra (que não recuou diante da morte)19 uma senhora livre e independente, submetendo-se ao estatuto de seu objeto de satisfação. A consciência triunfante, vencedora, passa ao estatuto de consciência-de-si, é assim reconhecida (e assim se reconhece), ao passo que a consciência vencida segue coisificada, serva, dependente, objeto. Sem reconhecimento. "O mundo exterior está agora entre as duas consciências-de-si ou situa-se na distância que separa a consciência-de-si de si mesma na sua 'duplicação'" (Vaz, 1981, p. 21). O Senhor, o Servo e o mundo: "três termos que se entrelaçam no jogo de mediações características dessa experiência fundamental" (Vaz, 1981, p. 22). Hegel dá a essas formas de mediação, que unem dialeticamente os três termos, a denominação geral de "ação de formar-se" (das Formieren) ou "cultura" (Vaz, 1981, p. 22).
Para Hegel, Senhor e Servo não são "personagens de uma espécie de situação arquetipal da qual procederia a história. São apenas figuras de uma parábola com as quais Hegel pretende designar momentos dialéticos entrelaçados rigorosamente no discurso que expõe a formação do indivíduo para o saber" (Vaz, 1981, p. 23). Não nos deteremos no desfecho da dialética do Senhor e do Servo, na qual o Servo, por meio de sua ação sobre o mundo (o trabalho) faz do Senhor a consciência dependente, serva - reconhecendo no Servo a consciência-de-si livre e independente.
O estádio do espelho: a operação de Lacan
Se em 1933 Lacan (2011b, p. 413) afirmava que o progresso da ciência psiquiátrica não poderia prescindir de um estudo aprofundado das "estruturas mentais" por meio do indispensável método da análise fenomenológica, em 193520 ele dispensava "a fenomenologia psiquiátrica, da qual se nutrira até 1932, substituindo-a por uma outra fenomenologia" (Roudinesco, 1994, p. 117). Essa "verdadeira fenomenologia" estava referida às elaborações de Hegel, Husserl e Heidegger - nas quais Lacan iniciara-se nos anos subsequentes à publicação da tese. Esse período é marcado por um gradual afastamento da psiquiatria e aproximação aos campos da Filosofia e da Psicanálise (Roudinesco, 1994, p. 117).
Na Filosofia de Hegel, Lacan encontrou a elaboração para um problema semelhante ao da "confusão freudiana" acerca da instância do Eu. A dialética da consciência-de-si, como indicamos, é uma resposta ao problema da gênese do sujeito abstrato e universal do conhecimento, sujeito epistêmico. A um mês antes da comunicação de Lacan sobre o estádio do espelho no Congresso da IPA, em Marienbad, Kojève redigiu uma nota em russo.21
Hegel e Freud: ensaio de uma confrontação interpretativa. 1) a gênese da consciência de si. O início é urgente pois deve ser escrito [por] você em colaboração com o doutor Lacan e publicado em Recherches Philosophiques. (Somente uma parte da "introdução" está escrita, seis parágrafos, dando uma comparação entre Hegel e Descartes.) Não terminado. [...] Começado em 20/VII/36. (Kojève citado por Roudinesco, 1994, p. 118)
Roudinesco (1994, p. 118) aponta que, naquele ano, Kojève e Lacan decidiram escrever juntos um estudo que se chamaria Hegel e Freud: ensaio de uma confrontação interpretativa, a ser publicado na revista de Koyré, Recherches Philosophiques. O empreendimento permaneceu em "estado embrionário": "Lacan nada escreveu e Kojève não foi mais adiante" (Roudinesco, 1994, p. 119). Nesse esboço - que viria a ser a introdução do trabalho -, Kojève cotejava as Filosofias de Descartes e Hegel, distinguindo uma Filosofia do "eu penso" de uma Filosofia do "eu desejo". Ali, efetuava uma cisão entre o eu [je], sujeito do pensamento ou do desejo, e o eu [moi], lugar de ilusão ou fonte de erro. Ainda, o desejo aparece como "revelação da verdade do ser". Esses conceitos serão utilizados por Lacan em todos os textos publicados (sobre o assunto) a partir de 1936: Para além do princípio de realidade; Os complexos familiares; Considerações sobre a causalidade psíquica; e a segunda versão do Estádio do espelho, de 1949 (Roudinesco, 1994, p. 119). Lacan deveria ter por "missão completar esse texto situando a posição freudiana numa perspectiva análoga àquela em que Kojève havia situado a posição de Descartes e a de Hegel" (Roudinesco, 1994, p. 119).
Não é anódino portanto saber que a segunda grande reelaboração teórica efetuada por Lacan, que o conduziu de uma leitura já freudiana da psiquiatria a uma leitura filosófica da obra freudiana, teve por matriz original um projeto de obra a dois no qual o "mestre hegeliano" de toda uma geração integrava o saber de seu "discípulo" a um vasto conjunto fenomenológico centrado em torno de uma série de interrogações "hegeliano-freudianas" sobre o desejo, o Cogito, a consciência de si, a loucura, a família e as ilusões do eu. (Roudinesco, 1994, pp. 119-120)
Para Roudinesco, essa "[re]leitura filosófica da obra freudiana" (orientada por aquilo que indicamos ser a particularidade de Lacan, em relação a Freud) foi condição para que Lacan não permanecesse adepto da Psicanálise a qual tinha acesso na França de seu tempo (a Psicanálise de Marie Bonaparte, de Kris, de Loewenstein...), para que viesse a formular, futuramente, suas contribuições originais (Roudinesco, 1994, p. 124). Pensamos que, ao valer-se dessas elaborações hegeliano-kojèvianas, foi possível, para Lacan, reformular o "afastamento" da personalidade indicado na tese - "eu real" / "ideal do eu" - sob uma nova perspectiva: de um lado, o sujeito, sujeito do desejo; de outro, a imagem ou função do eu. Dessa forma, Lacan apresenta um desenlace ao problema da "confusão freudiana", engendrada "por toda tentativa de resolver geneticamente um problema de ordem gnoseológica, como o do Ego, se o consideramos como lugar da percepção consciente, isto é, como sujeito do conhecimento" (Lacan, 2011a, p. 327). Ao promover a cisão sujeito/eu, Lacan atribuiu a função gnoseológica à função do eu, de forma que a atividade do conhecimento está orientada segundo a referência dessa instância - lugar de ilusão, fonte de erro. Depreendemos que Lacan amparou-se, aqui, na distinção hegeliana entre verdade e certeza. Assim, situou - ao modo de Kojève - a verdade do lado do sujeito (e do desejo), e do lado do eu, a certeza.22 Ao passo que a certeza aliena, cabe ao devir dialético dar lugar à verdade.
Esse desenlace culminará na preconização, na segunda versão do estádio do espelho, de que devemos partir da função de desconhecimento que caracteriza o eu em todas as suas estruturas (Lacan, 1998b, pp. 102-103). Daí a afirmação de que o conhecimento humano é estruturado paranoicamente (Lacan, 1998b, p. 99): está orientado sobre uma função de desconhecimento autoenganadora, pautada sobre certezas alienantes ou alienadoras. Como ressalta Arantes (1995, p. 31), "a consciência [hegeliana] também pode ser vista como a personificação de uma função de desconhecimento", apresentando-se "na forma do auto-engano, medido pela distância entre certeza e verdade". Restava em aberto, porém, o problema da gênese do Eu.
Em Introdução ao Narcisismo (1914/2010, pp. 18-19), Freud chegou à constatação de que o "Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido". Argumentou ser preciso supor que a formação do Eu (e de seu narcisismo) passe por um processo que culmina em uma "nova ação psíquica" que se acrescenta ao autoerotismo (Freud, 1914/2010, pp. 18-19). Esse momento primeiro, de autoerotismo, é marcado pela indistinção eu-mundo e eu-outro. O vislumbre de Freud, portanto, é de que o Eu não é uma instância inata, mas que tem uma gênese: passa por um processo de formação. Essa ação psíquica demarcaria o aparecimento da instância do Eu e de seu narcisismo, bem como sua diferenciação para com o mundo e seus objetos. Como indicamos, trata-se de um processo que não leva em consideração a mediação de um Outro.
Tomando como suporte as elaborações hegelianas da dialética da consciência-de-si e os conceitos cunhados por Kojève, Lacan efetuará uma operação de articulação de dois campos distintos, Filosofia e Psicanálise, para pensar o problema da gênese do Eu e delimitar a natureza dessa "nova ação psíquica". Sua solução apresenta os momentos dialéticos dessa ação psíquica suposta - mas não definitivamente explicada - por Freud, que Lacan rebatizou como estádio do espelho. Se, em 1932, Lacan evocava Ribot para indicar que é necessário explicar como o eu nasce, em 1936, fornece, ele mesmo, uma resposta ao problema da gênese do Eu. Lacan aplicará, rigorosamente, a dialética hegeliana na concepção dos tempos dialéticos da formação da instância do Eu.23
Em Freud, o estágio primordial do autoerotismo - marcado pela indistinção eu-mundo e eu-outro - corresponde ao tempo anterior ao surgimento da instância do Eu. Lacan (1998b, p. 100) refere-se a esse momento como o tempo da "imagem despedaçada do corpo"24. De fato, nessa etapa, não há ainda noção total de imagem unificada ou, mesmo, de corpo próprio. Na gênese da consciência-de-si, a dialética tem por início a simples indicação de um objeto. Trata-se, como vimos, do momento da consciência animal. Não há propriamente, ainda, consciência-de-si ou sujeito.
A essa etapa, sucede-se a dialética do desejo. A consciência engaja-se numa relação de satisfação com esses objetos. Em Freud, poderíamos ler, analogamente, o período no qual vigora o princípio do prazer - pois que a satisfação dá-se com esses objetos primordiais, míticos.25 A consciência, porém, só pode começar a reconhecer-se como consciência-de-si quando se inicia a dialética do reconhecimento: esse objeto não pode ser um objeto qualquer, mas uma outra (e idêntica)26 consciência-de-si. Se Freud não considerou a mediação de um Outro na sua explicação para a gênese do Eu, em Hegel, como expusemos, a formação da consciência-de-si tem como necessidade fundamental essa mediação por uma outra consciência-de-si.
Nessa etapa, o primeiro momento dialético diz respeito a esse encontro (da consciência) com um outro que ela reconhece como sendo uma consciência-de-si. No segundo momento dialético, a consciência, sem ser ainda consciência-de-si, se reconhece nesse outro. E, então, justamente por reconhecer-se como sendo algo que ainda não é - nesse jogo, mesmo -, passa a ser.27 Eis aí, dado, o terceiro momento dialético. Como aponta Vaz (1981, p. 15), a consciência-de-si "é, essencialmente, um retorno a partir do ser-outro". E, ainda: o sujeito constitui-se em oposição ao outro, nesse retorno (Vaz, 1981, p. 18).
Nesse momento da elaboração de Lacan, incide a influência de um autor cujas inovações Lacan apropriara-se durante a escrita da tese. Trata-se do biólogo Jakob von Uexküll, pioneiro da etologia. Sem podermos nos deter no tema, apenas indicamos que é desse autor que Lacan retira a noção de ciclo vital de comportamento. Em von Uexküll, o animal reage a seu meio ambiente próprio. Relendo-o na tese, Lacan (2011a, p. 338) propõe que o humano reage a seu meio ambiente próprio: meio esse eminentemente social. Daí o porquê Lacan apoiar-se na etologia para indicar que, como nos animais, o infans, ao deparar-se com uma imagem, inicia um ciclo constitutivo de comportamento. Essa imagem não é uma imagem qualquer: é sua imagem especular (idêntica). Nela, o infans reconhece uma totalidade, uma unidade - é um outro (especular). Trata-se do primeiro tempo dialético. Depois, o infans se reconhece nesse outro (segundo tempo) e antecipa, enfim (no terceiro tempo dialético), num "retorno a partir do ser-outro", a forma total de seu corpo e, mesmo, a unidade de seu eu28 - "forma mais constituinte do que constituída" (Lacan, 1998b, p. 98).
Como indicamos, Lacan concebe a formação do eu rigorosamente segundo o jogo de mediações dialéticas que estrutura a dialética da consciência-de-si. Esse jogo dialético de mediações, que vai de um outro especular a um eu especular, é responsável por delimitar um corpo próprio, uma "forma total" - o eu ideal -, por diferenciá-lo do mundo e dos demais objetos (o eu e o corpo são, eles mesmos, objetos) e por inscrever essa dinâmica libidinal que caracteriza o tempo do narcisismo primário: um investimento libidinal objetal sobre si mesmo - uma libido do Eu. Em síntese, esse desenvolvimento
é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do círculo do Innenwelt para o Umwelt29 gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu. (Lacan, 1998b, p. 100)
Lembremo-nos de que, ao elogiar, na tese, as pesquisas psicanalíticas acerca da formação da imagem ideal do eu, Lacan (2011a, p. 28) apontou que essas pesquisas demonstravam o vínculo que essa formação mantinha com o processo de identificação. Sua formulação sobre o estádio do espelho esclarece o meio pelo qual o sujeito aliena-se nessa forma30 primordial (eu ideal) - "identidade alienante" que situa a instância do eu numa "linha de ficção" que só "se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu]31, sua discordância de sua própria realidade" (Lacan, 1998b, p. 98). Com isso, Lacan indica que essa chamada identificação primordial32 será a origem das identificações secundárias que se desdobrarão nesses sucessivos arrolamentos dialéticos do eu (orientados, por sua vez, por esses ideais de eu de que falavam os psicanalistas).
Ainda, na tese, Lacan (2011a, p. 31) criticara a noção psicológica de eu (uno, simples e idêntico), propondo, por seu turno, ao descrever o afastamento que incide sobre a personalidade, uma progressão dialética do "eu real" e das imagens que este faz de si mesmo. Ao pensar esse afastamento, Lacan compreendeu a existência dessa "discordância" do eu consigo mesmo: uma diferença irremediável entre sujeito e eu.
O fim do estádio do espelho dá-se com a passagem do eu especular para o eu social: "Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...] a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas" (Lacan, 1998b, p. 101). Se, num primeiro momento, é à formação do narcisismo primário que diz respeito a operação do estádio do espelho, essa passagem do eu especular ao eu social é relativa ao narcisismo secundário.
Em 1933, ao abordar um artigo de Freud,33 Lacan apresenta a descrição freudiana de uma hostilidade primitiva entre irmãos, um ciúme primordial que amalgama hostilidade, agressividade e amor. E frisa, com Freud, o fato de que esse momento é constitutivo de uma passagem ao social: "essa fixação amorosa é a condição primordial da primeira integração nas tendências instintivas do que nós chamamos [na tese] as tensões sociais" (Lacan, 2011c, p. 408). Essa fixação amorosa, para Freud, diz respeito a um mecanismo homossexual infantil (de valor constitutivo). Segundo Lacan (2011c, p. 409), essa integração das tensões sociais faz-se segundo a "lei da menor resistência, por uma fixação afetiva ainda muito próxima do eu solipsista [eu ideal, narcisismo primário], fixação que merece ser dita narcísica e na qual o objeto escolhido é o mais semelhante ao sujeito: tal é a razão de seu caráter homossexual".34
No drama do ciúme primordial impera a lógica da rivalidade: "ou ele ou eu". Faz-se evidente a influência da dialética do Senhor e do Servo, da luta de vida ou morte que travam - uma luta por reconhecimento.35 A rivalidade prevalece, pois o semelhante impõe uma fascinação dual: esse "ou um ou outro [...] é a figura do assassinato hegeliano" (Lacan, 1998a, p. 77). Lacan aponta - como o fez Hegel - que a partir dos desdobramentos dessa dialética, dar-se-á uma série de intermediações culturais. Entre elas Lacan destaca a que diz respeito ao objeto sexual: o complexo de Édipo (1998b, p. 102).
Considerações finais
Pensamos que é ao se debruçar sobre essas intermediações culturais, especialmente sobre o complexo de Édipo, que Lacan formulará, num desdobramento de todo o percurso aqui exposto, sua problemática do sujeito. Em consonância com nosso ponto de vista, Roudinesco (1994, p. 131) afirma que em 1936 "já estavam colocados os prolegômenos de uma teoria do sujeito que se enxertava da obra de Freud a partir de uma leitura kojèviana de Hegel".
Mesmo ao reler o complexo de Édipo e o complexo de castração, Lacan irá valer-se das especulações hegelianas e kojèvianas em suas elaborações.36 No primeiro, o infans, alienado nessa imagem (eu ideal), crê ser, ele mesmo, o falo. É ao ingressar na dialética do ser ao ter que o infans poderá passar da alienação à separação. Até então, a criança era um objeto alienado ao desejo do Outro. Como indicamos, em nota, a reinterpretação kojèviana da Begierde de Hegel será fundamental para a teoria lacaniana do desejo, na medida em que a "antropomorfiza". Se tanto para Freud como para Hegel o desejo estava relacionado à satisfação de objeto, com Kojève (nisso o seguirá Lacan), para tornar-se "humano, o homem deve agir não em vista de submeter uma coisa, mas em vista de se submeter a um outro Desejo" (Kojève, 1947, p. 169, citado por Regnault, 1986, p. 25), ao desejo de um Outro. Essa dimensão social do desejo Lacan a prenunciava com sua gênese social da personalidade.
Ao se dar o complexo de castração, o infans ver-se-á faltante. Mesmo o Outro será visto como tal. Nesse momento, a criança passará de objeto do desejo do Outro a ser-de-falta ou falta-a-ser - passará à posição de sujeito faltante e, justamente por isso, de sujeito desejante. Aí está sintetizada a teoria da constituição do sujeito, a qual Lacan pôde chegar após ter-se dedicado a solucionar o problema da gênese do Eu.
Assim, acreditamos ter justificado o fato pelo qual situamos o esforço da tese, os problemas nela e por ela colocados, na origem do conceito de sujeito - condição para sua formulação. Do mesmo modo, pensamos ter demonstrado que a concepção do conceito de sujeito só foi possível mediante a articulação efetuada por Lacan da metapsicologia freudiana à dialética da consciência-de-si (Hegel): a operação de Lacan.
Como indicamos, a problemática do sujeito, como um fio condutor, permeou toda a obra de Lacan. O sujeito será a todo tempo repensado segundo a contribuição dos aportes teóricos tomados a outros campos do saber, nas sucessivas operações de articulação de Lacan, notadamente: a Antropologia e a Linguística estrutural, a Filosofia heideggeriana, a Ética kantiana, a Topologia matemática, etc. Abordamos, portanto, um momento circunscrito da reflexão de Lacan, precisamente aquele que estabelece as condições de formulação da problemática do sujeito.
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1 Cujo fundamento seria a correlação ("no mínimo grosseira", escreve Lacan), de um deficit capacitário a uma lesão orgânica (Lacan, 2011a, p. 1).
2 Grifos nossos.
3 Distinção que figura na Introdução ao narcisismo (Freud, 1914/2010, p. 40), não aludida por Lacan nesse momento.
4 Sublinhamos a importância desse termo, utilizado por Freud em Introdução ao narcisismo (2010) ao referir-se à gênese do Ideal do Eu e do narcisismo. Cf. Nota 29.
5 Lacan (2011a, p. 338) acrescenta, em nota: "uma escola de biologia de importância capital [von Uexküll] elaborou em seu pleno valor essa noção de meio próprio a um ser vivo dado; o meio, definido por essa doutrina, parece de tal modo ligado à organização específica do indivíduo que, de certa forma, faz parte dele. [...] Vê-se que, em nossa concepção, aqui concordante com Aristóteles, o meio humano, no sentido que lhe dá Uexküll, seria por excelência o meio social humano".
6 Cf. Parte II, Cap. 3 da tese.
7 Concepção não-inatista. Estrutura que se desenvolve a partir da história afetiva da personalidade.
8 Lacan (2011a, p. 248) remete o leitor a um conjunto de trabalhos psicanalíticos publicados acerca do tema dos mecanismos autopunitivos, dos sentimentos de culpa e da teoria do Supereu.
9 Lacan (1931, p. 9) atribui essas formulações aos psicanalistas.
10 "A própria noção de fixação narcísica, na qual a psicanálise funda sua doutrina das psicoses, permanece muito insuficiente, como manifesta bem a confusão dos debates permanentes sobre a distinção do narcisismo e do autoerotismo primordial - sobre a natureza da libido que concerne ao Ego (o Ego sendo definido por sua oposição ao Id, a libido narcísica provém do Ego ou do Id?) - sobre a natureza do próprio Ego, tal como é definido pela doutrina (ele é identificado com a consciência perceptiva, Wahrnehmung-Bewusstsein, e com as funções pré-conscientes, mas ele é também, em parte, inconsciente no sentido próprio da doutrina) - sobre o próprio valor econômico dos sintomas que mais solidamente fundamentam a teoria do narcisismo (sintomas de despersonalização, idéias hipocondríacas: trata-se aí de fatos de superinvestimento ou de desinvestimento libidinal? É sobre isso que as opiniões variam completamente)" (Lacan, 2011a, p. 322).
11 Referidas à história biográfica e afetiva, às identificações, aos ideais, aos investimentos libidinais e objetais, às participações sociais.
12 Observamos que a edição utilizada optou por traduzir os termos Moi e Soi por Ego e Id, respectivamente.
13 Para uma contextualização do que fora o impacto do Seminário na França, Cf. Arantes, 1991.
14 De modo que, na tradição filosófica, o sujeito estava dado de partida - numa perspectiva rigorosamente a-histórica (Vaz, 1981, p. 11).
15 Ao nos referirmos ao termo sujeito, nesta seção, aludiremos ao sujeito hegeliano, sujeito da filosofia ou consciência - e não ao conceito lacaniano.
16 Arantes (1995, p. 23) observa que a consciência-de-si não é uma entidade, como o Eu idêntico a si mesmo, mas a história de um movimento: a história desse trajeto de formação em suas diferentes etapas.
17 Aufhebung: palavra "dialética" de Hegel que indica, ao mesmo tempo, negar, suprimir e conservar.
18 Sua significação "está articulada, na obra de Hegel, a um contexto especulativo-histórico bem mais amplo e complexo do que aquele ao qual a reduziram a hermenêutica marxiana e as versões marxistas posteriores, que acentuaram ainda mais a linha redutora com relação à temática hegeliana original" (Vaz, 1981, p. 7).
19 Arantes (1995, p. 25) aponta que essa passagem figura, em Kojève, um "impasse existencial", visto que a morte, para Hegel, revela uma verdade acerca da vida, uma "fluidificação absoluta de todo subsistir" (Arantes, 1995, p. 15), espécie de transcendência sobre a própria vida animal, passagem à liberdade e à cultura humanas (Vaz, 1981, p. 21).
20 Cf. Lacan, Le temps vécu. Études phénomenologiques et psychologiques, 1935, citado por Roudinesco, 1994, p. 117.
21 Essa nota, provavelmente destinada a Koyré, nunca foi enviada, permanecendo nos documentos catalogados pelo biógrafo de Kojève, aos quais Roudinesco (1994) teve acesso (Cf. p. 118).
22 A sequência da dialética da consciência-de-si "constitui de fato um sistema da ilusão, ou se preferirmos, uma exposição completa das formas da falsa consciência" (Arantes, 1995, p. 18).
23 Em 1954, afirmará: "[...] a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível mais envolvente da eficácia do sujeito, obriga-nos a compreender o eu, de ponta a ponta, no movimento de alienação progressiva em que se constitui a consciência de si na fenomenologia de Hegel" (Lacan, 1998c, p. 375).
24 Não podemos senão citar a segunda versão do texto, de 1949. É sabido, porém, por meio das notas de Dolto, tomadas em 1936, que Lacan já apresentava os seguintes termos em sua primeira versão do texto: "o sujeito e o eu [je], o corpo próprio, a expressividade da forma humana, a libido, a imagem do corpo, a imagem do duplo e a imagem especular, a libido do desmame, o instinto de morte, a destruição do objeto vital, o narcisismo e seu vínculo com o simbolismo fundamental do conhecimento humano, o objeto reencontrado no Édipo, os gêmeos" (Roudinesco, 1994, pp. 127-128).
25 A releitura lacaniana do Wunsch freudiano também será marcada pela intercessão da interpretação de Kojève da Fenomenologia, mais precisamente da Begierde hegeliana. Isso porque Kojève opera, em sua releitura, uma "antropomorfização" da Begierde: "O Desejo não é humano - ou mais exatamente 'humanizante, antropogênico' - senão sob a condição de estar orientado desde um outro Desejo" (Kojève, 1947, p. 169, citado por Regnault, 1986, p. 25). É de Kojève, e não de Lacan, afinal, o aforismo: "o desejo do homem é o desejo do Outro".
26 "Não é qualquer um que a consciência vê surgir ao seu encontro [...], mas um sósia perfeito". Um "Duplo" (Arantes, 1995, p. 16).
27 Daí o papel fundamental, na dialética da consciência-de-si, desse outro como objeto mediador, operador da mediação que dá continuidade ao percurso dialético.
28 Nova articulação de Lacan, somando a Freud e Hegel: von Uexküll, Wallon (e sua prova do espelho) e as elaborações da Gestaltpsychologie.
29 Noções de von Uexküll.
30 Bild: forma ou imagem; Bildung: formação. O estádio do espelho como formador da função (ou imagem) do eu - eis aí demonstrada a importância desses dois termos no intertexto freudiano-lacaniano-hegeliano.
31 Quando indicado entre colchetes, refere ao termo francês "je".
32 Nesse momento de sua elaboração, Lacan sobrepõe o conceito freudiano de identificação ao conceito hegeliano de alienação (Arantes, 1995, p. 28). Com os três registros, essa leitura dará lugar a uma nova: a alienação e o reconhecimento estarão no campo do registro imaginário, ao passo que a identificação, no campo do simbólico.
33 Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade (Freud, 1922/2011). Traduzido por Lacan para a Sociedade Psicanalítica de Paris em 1932.
34 Lacan relê Freud e sua elaboração sobre a escolha homossexual infantil de objeto (pré-genital) a partir da Filosofia de Hegel: o "homossexual" passa a ser, em sua releitura, o "semelhante". Trata-se da lógica hegeliana do reconhecimento (aquele no qual me reconheço).
35 Esclarece Arantes (1995, p. 18): "a lógica hegeliana do reconhecimento, devidamente filtrada, é uma lógica do imaginário".
36 Resume Regnault (1996, p. 24): "Hegel inspira, então, muito diretamente toda a problemática lacaniana do reconhecimento, do desejo e do gozo, da Coisa e do ser, da consciência e do outro".