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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dez. 2021
Lacan e Butler: uma conversa possível
Lacan e Butler: A Possible Conversation
Lacan et Butler: une éventuelle conversation
Lacan y Butler: una posible conversación
Clarice Arantes MartinI; Marcus André VieiraII
IDoutora e mestra em Psicanálise, Clínica e Cultura pelo Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Psicologia pela PUC-Rio
IIPsicanalista. Doutor em Psicanálise pela Université de Paris VIII. Professor adjunto no departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
RESUMO
Este artigo percorre, de forma sucinta, a trajetória teórica do movimento feminista, destacando, sobretudo, a torção operada em sua terceira onda, que dá lugar à emergência do pensamento queer. Elencamos algumas contribuições de Butler e, por fim, estabelecemos alguns pontos de contato entre a autora e Lacan.
Palavras-chave: feminismo. Queer. Abjeto.
ABSTRACT
This article briefly goes through the theoretical trajectory of the feminist movement, highlighting, above all, the twisting in its third wave that gives rise to the emergence of queer thinking. We listed some of Butler's contributions and finally established some points of contact between Butler and Lacan.
Keywords: Feminism. Queer. Abject.
RÉSUMÉ
Cet article passe brièvement en revue la trajectoire théorique du mouvement féministe, en soulignant avant tout le rebondissement de sa troisième vague qui donne lieu à l'émergence de la pensée queer. Nous avons énuméré certaines des contributions de Butler et avons finalement établi des points de contact entre Butler et Lacan.
Mots-clés: Féminisme. Queer. Abject.
RESUMEN
Este artículo recorre brevemente la trayectoria teórica del movimiento feminista, destacando, sobre todo, el giro en su tercera ola que da lugar a la aparición del pensamiento queer. Enumeramos algunas de las contribuciones de Butler y finalmente establecimos algunos puntos de contacto entre Butler y Lacan.
Palabras clave: Feminismo. Queer. Abyecto.
Introdução
Este artigo1 se propõe a traçar um breve percurso do movimento feminista em direção ao movimento queer. Para tanto, vamos nos servir da crítica que J. Butler elabora em relação aos discursos feministas centrados no "nós, mulheres", por compreender que as posições identitárias inevitavelmente pressupõem um efeito de exclusão. Com o objetivo de ampliar o feminismo para novas coalizões políticas, a autora desmonta a suposta continuidade atribuída ao sexo biológico, gênero e escolha objetal. Isso é possível porque a autora compreende o sexo, dito biológico, desde sempre, inserido na linguagem e, portanto, em uma certa compreensão cultural e histórica, descartando por completo qualquer recurso pré-linguístico para se pensar a sexualidade humana. Nesse ponto, Butler e Lacan se encontram, pois Lacan toma como prerrogativa fundamental o mesmo ponto de partida.
Acreditamos na perspectiva de um diálogo possível e bastante fértil entre tais autores. Possível em função de a linguagem ser o solo epistemológico comum a ambos; fértil porque, de modo algum, os objetivos e as consequências de um e outro pensamento são os mesmos. Para demonstrar as diferenças entre Butler e Lacan, destacamos aqui a noção de gênero em Butler atrelada a uma concepção específica de performance; enquanto para Lacan aquilo que seria próprio ao gênero estaria do lado da satisfação pulsional, não coincidindo necessariamente com os papéis sociais assumidos.
Vale ressaltar que Lacan não se utiliza do termo gênero. Inicialmente, o psicanalista se refere à diferença sexual para pensar os processos de identificação a partir do legado freudiano sobre o complexo de Édipo e, por fim, introduz uma teoria inédita sobre a sexuação que coloca em destaque a forma como cada corpo é atravessado pela satisfação pulsional.
Nas ondas do feminismo
O termo feminismo foi cunhado no ocidente somente na segunda metade do século XIX. Não que antes disso não houvesse luta feminina por direitos, mas a ideia de um movimento organizado, ancorado em um esforço de teorização, demorou a ser reconhecida como um campo do saber bem estabelecido. Segundo Rodrigues (2007), o termo feminismo expressa, de modo indissociável, tanto um sistema teórico plural como também a possibilidade de as mulheres tomarem a palavra no contexto de lutas políticas diversas.
Podemos definir as teorias feministas como um conhecimento ligado a um movimento político que problematiza, a partir de um ponto de vista epistemológico específico, a relação que o conhecimento mantém com o poder no âmbito do gênero; isso inclui analisar a educação, a parentalidade, os papéis sociais atribuídos aos gêneros, as relações de trabalho e também as amorosas. Trata-se de "politizar a experiência individual: transformando o pessoal em político". (Dorlin, 2008/2014, p. 11, tradução nossa).
O conhecimento que se extrai a partir dessas análises busca, sobretudo, provocar mudanças na aliança entre poder e conhecimento. Para tanto, o conhecimento feminista é baseado em um conjunto de saberes locais, diferentes entre si e que, às vezes, opõem-se. Esses saberes dizem respeito, nomeadamente, à apropriação de si - do corpo e da identidade -, sendo esta compreendida fundamentalmente por meio do perpassamento histórico social que a constitui.
O movimento feminista ampliou a nossa compreensão sobre justiça social ao incluir assuntos anteriormente privados, como a sexualidade, o serviço doméstico, a reprodução e a parentalidade. Podemos dizer que as feministas expandiram a noção de justiça ao substituírem a ideia monista e economicista de justiça por uma compreensão mais vasta, que envolve economia, cultura, subjetividade e política (Fraser, 2009/2019, p. 32).
O feminismo pressupõe um trabalho de conscientização pelo qual as experiências de opressão cotidianas são reconhecidas como coletivas e não individuais, dando-lhes um sentido que possa ser compartilhado politicamente. "O saber feminista é também uma memória de combates." (Dorlin, 2008/2014, p. 11, tradução nossa). Nesses combates, não apenas a luta pela ampliação dos direitos civis está no horizonte, mas também a reivindicação pela palavra na cena pública; o que não é pouca ousadia, uma vez que, historicamente, as mulheres foram - e ainda são -, não poucas vezes, silenciadas.
Tais características tornam a história do movimento feminista bastante complexa, pois esta vem sendo construída pelo cruzamento de uma diversidade de lutas e narrativas, cujos movimentos de teorização são heterogêneos. A cada momento, esses cruzamentos se modificam (Rodrigues, 2019). Portanto, dada essa extensão e diversidade, não é simples precisar a especificidade das teorias feministas, mas é certo que o eixo central é a problematização da dominação masculina sobre as mulheres e a análise de suas consequências, sob o pano de fundo de uma revolta desejante que visa romper com os limites impostos e dar passagem para novas liberdades.
A teorização de cunho feminista foi sendo consolidada e relançada a partir das fortes ondas agitadas na maré social. Costumeiramente, essas ondas eram divididas em três momentos históricos, mas agora já se fala em uma quarta onda do movimento feminista (Rodrigues, 2020). Como toda classificação, essa divisão é um pouco arbitrária, mas válida quando pretendemos identificar alguns pontos de virada. Será especialmente importante, para o desenvolvimento de nossa pesquisa, refletir sobre as mudanças que forçaram o surgimento da terceira grande onda.
Essa classificação situa a primeira onda do movimento feminista a partir de meados do século XVIII até o fim do século XIX. Movimento, portanto, que passa pelas duas grandes guerras mundiais e que, nesse primeiro momento, caracteriza-se fundamentalmente pelas reivindicações da cidadania, do voto, do trabalho digno e da educação.
O esforço inicial da teoria feminista foi o de reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos, de modo a tornar visíveis as relações de poder estabelecidas entre os papéis sociais de gênero que se estendem para as categorias teóricas no âmbito das diferentes tradições intelectuais (Harding, 2019, p. 95). Nesse esforço, destaca-se Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, que, após a decepção feminina com os resultados da Revolução Francesa, redigiu a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (Gouges, 1791), uma vez que as mulheres haviam ficado de fora da Declaração dos direitos dos cidadãos, mesmo após terem tido uma importante participação - tanto braçal, como intelectual - na Revolução.
Esse período é denominado feminismo da igualdade porque se propõe, sobretudo, a buscar a igualdade jurídica e de oportunidade entre os sexos. A luta pelo sufrágio universal foi o maior marco desse período, não tendo sido uma conquista fácil. O direito ao voto, na Inglaterra, foi conquistado pelas mulheres somente após um século de luta, o que incluiu uma série de confrontações violentas com o Estado e a polícia.
A segunda onda do movimento feminista se desenvolveu depois da Segunda Guerra Mundial e ampliou as lutas por igualdade de direitos, mas também estabeleceu importantes teorizações afirmativas sobre as diferentes situações em que as mulheres se encontravam, sendo denominada feminismo das diferenças. Após certo avanço na luta pelos direitos das mulheres, percebe-se que este não é alcançado de forma homogênea. Com isso, o feminismo passa a abordar a pluralidade das situações em que se encontram as mulheres.
Uma reflexão importante que concerne a esse período é a prerrogativa de que se "a função da fêmea não basta para definir a mulher" (Beauvoir, 1949/2009, p. 15), então a condição feminina é estabelecida por uma situação política, econômica e social que determina algumas possibilidades em detrimento da imposição de muitos limites. Simone de Beauvoir, autora fundamental desse período, destaca os mecanismos históricos e sociais que promovem e mantêm um modelo de diferença sexual calcado da distribuição de um poder hierarquizante. É nesse sentido que a autora afirma que, enquanto o homem representa ao mesmo tempo o positivo e o neutro, pois podemos dizer "o homem" para designar a humanidade, a mulher, no entanto, é encerrada em sua animalidade, em seu corpo: "O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro." (Beauvoir, 1949/2009, p. 17).
Beauvoir (1949/2009) compreende que a influência da socialização é decisiva no tocante à diferenciação sexual. Para a autora, a atitude passiva, característica reiteradamente dita feminina, não decorre de um dado biológico, mas de um destino imposto às mulheres pela educação. "Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro" (p. 361). A denúncia de Beauvoir recai, principalmente, sobre os sistemas de socialização que engendram o universo feminino como limitado, privando a mulher de uma posição ativa frente ao outro e diante da cultura e da vida social.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam o feminino. (Beauvoir, 1949/2009, p. 361).
Beauvoir (1949/2009) entende que a dificuldade de romper com as limitações impostas às mulheres passa pelo fato de que "o laço que a une a seus opressores não é compatível a nenhum outro" (pp. 20-22). Isso nos dá uma boa medida dessa enorme dificuldade. A mulher, educada para depender emocionalmente e financeiramente do homem, não pode com ele romper. Sendo assim, não é óbvio encontrar os meios a partir dos quais poderá trilhar outro caminho.
Beauvoir (1949/2009) estabelece um diálogo importante com a Psicanálise. A filósofa considera que o progresso realizado pela Psicanálise foi o de não considerar "o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito. A fêmea é uma mulher na medida em que se sente como tal" (p. 71). No entendimento de Beauvoir, a Psicanálise contribui para a tese de que "não é a natureza que define a mulher" (p. 71).
Freud conceituou a noção de diferença sexual, estabelecida como uma equação falocentrista que localiza o falo como o significante a partir do qual os sujeitos tendiam a se diferenciar sexualmente. Sobre a posição feminina, Freud a descreve como derivada da inveja do pênis, entendendo que uma de suas consequências é a abertura para uma dimensão da experiência que poderia ser descrita como misteriosa ou incompreensível.
É importante ressaltar que, para muitos autores - psicanalistas e também filósofos -, a posição de Freud é a de um clínico que descreve o modo hegemônico de constituição das identificações sexuadas que se apresentavam em sua experiência clínica, datada a partir do fim do século XIX, e não como alguém que prescreve esse modo como o mais adequado (Vieira, 2019; Safatle, 2020). Entretanto, Beauvoir considera que o psicanalista levou pouco em consideração os efeitos da educação e da cultura. Em sua compreensão, a mulher só pode ser tomada como Outro quando partimos de um olhar masculinicista. Definir a mulher como o Outro ou como objeto do desejo são limites do pensamento masculinista que reforçam o lugar histórico destinado às mulheres: o não lugar. Isso não a impediu de sinalizar avanços fundamentais que a teoria psicanalítica permitiu.
Freud pôs em foco um fato cuja importância, antes dele, não se havia ainda reconhecido totalmente: o erotismo masculino localiza-se definitivamente no pênis, ao passo que há, na mulher, dois sistemas eróticos distintos: um clitoridiano, que se desenvolve no estágio infantil, e outro, vaginal, que surge após a puberdade [...]. (Beauvoir, 1949/2009, p. 73).
Entretanto, de acordo com Beauvoir, pensar o erotismo vaginal, nos moldes freudianos, como o verdadeiro erotismo a ser alcançado, signo da mulher madura, é, antes de tudo, uma fantasia masculina que se traduz em um imperativo violento para as mulheres. Mas, ao contrário de reforçar a ideia de uma guerra dos sexos permanente, Beauvoir propõe o companheirismo e o respeito mútuo como o colorido que as relações homem-mulher deveriam assumir. Para tanto, seria necessário que os homens apoiassem as mulheres no seu processo de tornar-se sujeito, uma vez que a cultura não garante, necessariamente, os meios para ascensão de tal conquista. Mais fundamental ainda, que a própria mulher possa, em tomando consciência das dificuldades históricas que atravessam o seu lugar no mundo, apropriar-se desse percurso de luta por direitos e expansão das possibilidades de existência, colocando corajosamente sua voz e corpo no mundo.
Percebe-se, portanto, que a teoria de Beauvoir visa compreender os mecanismos sociais que impedem ou dificultam que a mulher possa exercer livremente sua individualidade. O horizonte que a autora tem em vista é um mundo onde possa estar garantida às mulheres a possibilidade de tornar-se sujeito.
Se, por um lado, Beauvoir ainda fala quase que exclusivamente de uma mulher abstrata na sociedade - ponto que desperta uma oportuna crítica das feministas negras, periféricas, lésbicas, dentre outros grupos, que não se reconheciam no retrato social descrito por Beauvoir -, por outro lado, ela afirma que a condição feminina é situacional, ou seja, depende de uma situação histórico-social. Talvez possamos afirmar que, embora Beauvoir não tenha abarcado em sua obra uma grande diversidade de situações, ela não era alheia a essa necessidade.
A partir de 1970, dado o crescimento desse debate, a reivindicação desloca-se para o reconhecimento da sobreposição da diferença sexual à diferença de raça e classe social. Uma vez entendido o caráter mítico da categoria de "homem" para designar aquilo que no humano seria da ordem do universal, as teorias feministas passaram a colocar em dúvida a utilidade da análise que toma como sujeito uma mulher universal. "A consequência é que, assim, tudo aquilo que era considerado útil, tendo como base a experiência social das mulheres brancas, ocidentais, burguesas e heterossexuais, acaba por parecer suspeito." (Harding, 2019, p. 96).
[...] as feministas negras e as feministas anti-imperialistas se opuseram aos esforços de feministas radicais para colocar o gênero em uma mesma posição de privilégio categórico. Focando não apenas no gênero, mas também na classe, na raça, na sexualidade e na nacionalidade, elas foram precursoras de uma alternativa "interseccional" que é amplamente aceita hoje. (Fraser, 2009/2019, p. 31).
Essa exigência inaugura uma terceira grande onda do movimento feminista, trazida pela repercussão de uma pluralidade de vozes dissidentes. O pensamento de Judith Butler conseguiu encontrar um ponto de convergência entre esses cruzamentos, tornando-se um dos nomes a quem se atribui a consolidação, no campo da teoria, dessa nova onda.
Em Problemas de gênero (1990), Butler questiona a substancialidade da categoria de identidade de gênero. Para tanto, enfatiza que não apenas a compreensão do gênero é derivada da cultura, como também a própria noção de sexo está aberta a significações e valores distintos que, como veremos mais adiante, são alterados ao longo da história e que não estão longe, muito pelo contrário, da incidência dos mecanismos de poder de cada época.
A primeira estratégia da autora é demonstrar a insuficiência dos binômios natureza/cultura e sexo/gênero. Binômios que levaram muitas autoras feministas a afirmarem, por exemplo, uma liberdade anterior às limitações impostas pela cultura patriarcal. Para a autora, a sexualidade é, desde sempre, ordenada por determinações significantes, não havendo, portanto, nenhum sentido em imaginar uma sexualidade anterior para a qual pudéssemos retornar. "A postulação desse 'antes' na teoria feminista torna-se politicamente problemática quando obriga o futuro a materializar uma noção idealizada do passado." (Butler, 1990/2008, p. 65).
O mito da mulher feminina - responsável por enaltecer características supostamente "naturais" da mulher, como a sensibilidade, a maternidade, a compaixão, a empatia etc. -, embora possa parecer um mito enaltecedor, na compreensão de Butler, acaba por confinar a mulher à ideia de natureza. Não apenas exclui aquelas que não se sentem representadas por tais características, como ainda se refere à mulher como seres essencialmente dóceis, o que não contribui em nada para uma mudança na posição social das mulheres.
Butler (1990/2008) aposta na possibilidade de renovação do feminismo. "É tempo de empreender uma crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base única e permanente" (p. 23). O "nós" feminista nega a complexidade e a indeterminação interna ao termo mulheres, devendo ser analisado criticamente, pois esse "nós" só se constitui por meio da exclusão de parte do grupo que pretende representar. Ao se alinharem à política representacional, os discursos feministas acabam trabalhando por exclusão, pois, representando um sujeito específico, excluem outros sujeitos.
Com o objetivo, portanto, de abrir o feminismo para novos agenciamentos, Butler busca demonstrar como a instabilidade da categoria mulher põe em questão os próprios fundamentos do que vinha sendo pensado no movimento feminista. Entretanto, em vez de enxergar isso como um problema, Butler compreende tal situação como uma oportunidade, o que poderia representar uma perda. O "logo agora que as mulheres alcançaram o status de sujeito, as teorias pós-identitárias querem nos convencer da queda do sujeito" (Rodrigues, 2007) é compreendido por Butler como uma oportunidade de redistribuir o poder simbólico atrelado às formações identitárias.
Para tanto, faz-se necessário compreender em que medida a política feminista pode funcionar sem um sujeito especificado. Desse modo, Butler (1990/2008) convoca o movimento feminista a incluir os gêneros considerados não inteligíveis. E, ainda, nos instiga a pensar nas formas políticas que podem surgir quando a noção de identidade não rege mais o discurso.
O raciocínio fundacionista da política da identidade tende a supor que primeiro é preciso haver uma identidade, para que os interesses políticos possam ser elaborados e, subsequentemente, empreendida a ação política. Meu argumento é que não há necessidade de existir um "agente por trás do ato", mas que o "agente" é diversamente construído no e através do ato. (Butler, 1990/2008, p. 104, grifos da autora).
Com o objetivo de renovar o movimento feminista, a produção intelectual da autora durante os anos 1990 visa construir uma concepção de gênero que não se concentra apenas na análise dos processos sociais de produção de identidades normativas, mas que também possa indicar o fracasso inerente a esses mecanismos. Com isso, Butler aponta para uma dimensão singular e criativa da construção de gênero.
Essa dimensão do gênero que não é estabilizada pelos mecanismos de poder, normalmente, é lida como abjeta porque destoa da grade de leitura cis-heteronormativa, amplamente reiterada socialmente, ainda que essa reiteração esteja, muitas vezes, encoberta (Butler, 1990/2008). Essa grade de leitura cis-heteronormativa é responsável por reforçar uma suposta harmonia natural entre o sexo, o gênero, o desejo e as práticas sexuais, a partir da qual apenas as formações identitárias que são reforçadas pela reiteração dessa norma podem ser legíveis; relegando ao lugar de abjeto os gêneros que não podem ser lidos a partir dessa concepção normativa. Apostar no uso do abjeto como potência subversiva exigirá de Butler declinar de uma política do reconhecimento tradicional.
A renovação do termo gênero por J. Butler
No âmbito da teoria feminista, o termo gênero é progressivamente adotado a partir da década de 1970. De acordo com Scott (1986/2019, p. 55), embora esse seja um termo polivalente, seu uso inicialmente foi útil por permitir a análise dos mecanismos de poder que sustentam os papéis sociais atribuídos aos gêneros, mas que permitiram poucas mudanças concretas ao não se aterem apenas na análise da construção social dos gêneros. Mas, na medida em que Butler inclui uma perspectiva que permite pensar a subversão do gênero, podemos compreender que seu trabalho renova de forma significativa o termo (Preciado, 2019).
Butler (1990/2008) destaca que, quando valorizamos o campo identitário, inflacionamos o campo daquilo que é tido culturalmente como abjeto. Essa percepção é muito cara a seu pensamento. Seu trabalho intelectual nesse período consiste em encontrar os meios pelos quais o abjeto pode tornar-se uma potência subversiva, renomeando e expandindo aquilo que reconhecemos como "humano". Para tanto, uma das estratégias teóricas fundamentais do livro Problemas de gênero de Butler é a de questionar genealogicamente a categoria de identidade como algo fixo, estável, consistente ou verdadeiro.
Se o gênero é a construção social do sexo e se não existe nenhum acesso a esse "sexo" exceto por meio de sua construção, então parece não apenas que o sexo é absorvido pelo gênero, mas que o "sexo" torna-se algo como uma ficção, talvez uma fantasia, retroativamente instalado em um local pré-linguístico ao qual não existe nenhum acesso direto. (Butler, 1990/2008, p. 72).
Na mesma esteira desse pensamento, o historiador Laqueur (1992/2001) interroga-se sobre a historiografia do sexo. A pesquisa que o historiador empreende percorre as principais mudanças paradigmáticas na concepção do sexo desde o período pré-iluminista até o nosso, incluindo a representação anatômica dos órgãos ditos sexuais. Nesse trabalho, Laqueur identifica a passagem do modelo do sexo único para a concepção de dois sexos e demonstra que a própria representação da anatomia humana mudou em função do contexto político de cada época.
Segundo o autor, da Antiguidade até a Renascença, o paradigma vigente era o do "sexo único", cujo modelo era o do masculino. Como veremos, Freud identificou esse modelo na clínica e dissecou o seu funcionamento psíquico inconsciente.
Não é que não se diferencia os homens das mulheres, mas os critérios não repousavam sobre a natureza biológica. Supunha-se uma continuidade entre mulheres e homens, indo respectivamente da imperfeição à perfeição. Essa hipótese era sustentada por uma argumentação metafísica - em um período cujo poder masculino era assegurado tanto pela política como pelas religiões cristãs -, sendo a família um ambiente de reprodução e perpetuação desses valores.
[...] todas as ilustrações anatômicas [...] são abstrações; são mapas de uma realidade surpreendente e infinitamente variada. As representações das características pertencentes em especial ao homem e à mulher, em razão das enormes consequências sociais dessas distinções, são mais obviamente determinadas pela arte e pela cultura. (Laqueur, 1992/2001, p. 203).
No modelo do sexo único, o corpo feminino se distinguia do masculino apenas em função da sua temperatura mais baixa, o que tornava o aparelho reprodutor não exposto, mas este não tinha uma lógica própria. Entendia-se, por exemplo, que a mulher tinha um pênis para dentro.
No entanto, acreditava-se que o orgasmo da mulher era fundamental para a concepção. Laqueur encontrou diversas cartilhas elaboradas por parteiras aconselhando posições sexuais que facilitassem o orgasmo feminino. Segundo ele, isso se altera a partir da constatação de que mulheres violentadas também podem engravidar. Tal fato passa a indicar que o orgasmo feminino não tem papel decisivo em relação à reprodução e este simplesmente desaparece das preocupações médicas. A partir desse momento, o clitóris, órgão já conhecido, deixa de ser representado nos manuais de anatomia e cai em um longo período de esquecimento. Esse exemplo é especialmente interessante, pois demonstra como o progresso da ciência não é dissociado da ideologia de uma época.
Ainda que na Antiguidade a mulher fosse definida metafisicamente como inferior ao homem, por se tratar de um referencial que pensava os gêneros em continuidade, havia certa indeterminação em jogo. Não era tão raro, por exemplo, que pessoas que viviam o gênero em desacordo com o sexo fossem aceitas socialmente. Em um ambiente no qual a Medicina ainda não era uma disciplina bem estabelecida, o que figurava maior importância era o papel social assumido. O gênero se sobrepunha ao sexo.
A partir do século XVII, houve significativas mudanças na concepção da diferença sexual. Laqueur (1992/2001) argumenta que, em função da necessidade de asseguramento da vida burguesa e de manutenção da mulher em seu lugar de inferioridade em relação ao homem, o sexo masculino e feminino passa a ser diferenciado socialmente a partir de sua anatomia, ou seja, de sua "natureza". Diante dessa necessidade, o avanço médico e científico se alinha às necessidades do poder.
Assim, podemos compreender que o modelo de dois sexos pode ser considerado fruto de um imperativo moral de reinterpretação do corpo que instaurou uma matriz binária e hierárquica para fundamentar em outros termos a diferença entre o masculino e o feminino. Dessa forma, o corpo tornou-se um ponto de ancoragem para o discurso cultural sobre o lugar dos homens e das mulheres na sociedade, os quais passaram a ser compreendidos como radicalmente diferentes, mas complementares em função da sua suposta natureza.
Desde então, a Biologia passa a servir de base para a fundamentação das diferenças sexuais. A partir daí, surge uma concepção de gênero acoplada à noção de sexo, modelo teórico que é fruto do pensamento moderno. Segundo Foucault (1975/1984, p. 39), um dos problemas dessa concepção é que nela se aloja a ideia de que haveria uma verdade sobre o sexo. Verdade a partir da qual os sujeitos deveriam se ajustar.
Foucault (1975/1984) destaca o papel das instituições e das disciplinas que articulam o saber e o poder frente a esta formação histórica. Para o autor, a Pedagogia, a Medicina, a Psicanálise, eventualmente a prisão ou o manicômio, e, agora mais recentemente, a medicalização excessiva da vida são processos pelos quais se transmitem reiteradamente as normas por meio das quais a sexualidade se institui como uma verdade evidente.
Ainda que Foucault pouco tenha escrito sobre o tema do gênero, muitos autores queer referem à emergência desse pensamento como uma herança do trabalho do autor. O ponto em que se justifica essa filiação é o fato de Foucault ter elaborado uma história da sexualidade a partir de uma abordagem genealógica, método que permite evidenciar as mudanças paradigmáticas nas lógicas discursivas; também em razão da forma como a noção de sujeito é trabalhada em sua obra. O autor compreende que, ainda que o poder capture a vida nas malhas dos saberes e práticas, instituídos em cada época, esse trabalho nunca é totalizado, o que deixa margem para que se pense em um campo de resistência.
Com o objetivo de dar lugar a um conjunto de práticas de resistência, uma segunda estratégia do pensamento de Butler para desmontar a consistência atribuída à noção de gênero é pensá-lo a partir das práticas de estilização do corpo. "O gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos." (Butler, 1990/2008, p. 200, grifos da autora). Desse modo, o que dá estabilidade para o gênero não é sua "harmonia" com a biologia do corpo ou o seu caráter verdadeiro do ponto de vista psicológico, mas sua repetição constante.
Aqui, a autora se apoia na leitura que Derrida empreende de Austin sobre o carácter performativo da linguagem. A partir desta, Derrida compreende que a linguagem cria aquilo que descreve. Butler (1990/2008) estabelece que a identidade de gênero é constituída a partir da reiteração constante de uma ampla e consistente multiplicidade de performances sociais que articulam o sexo anatômico, a identidade, o desejo e as práticas sexuais, de modo a acharmos que a relação entre tais termos deveria ser de causa e efeito. A autora contrapõe uma repetição normativa que tende a uma naturalização à performance drag, que lhe serve de exemplo para afirmar uma possibilidade de se performar o gênero de forma transgressora.
A performance do drag brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado. Mas estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance. Por mais que crie uma imagem unificada da "mulher" […]. Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero - assim como sua contingência. (Butler, 1990/2008, p. 196, grifos da autora).
Para a autora, a estratégia de apropriação e deslocamento das categorias de identidade é interessante não apenas porque contesta o verdadeiro "sexo" do sujeito, mas também porque evidencia a distância entre o sexo, a identidade e o gênero. Ao colocar o ato em cena, a performance drag corrobora a sua tese de que o gênero é fundamentalmente uma repetição estilizada.
De certa forma, somos todos drags. A única diferença é que provavelmente a maioria de nós utiliza menos maquiagem, de modo que a prática de se "montar" cotidianamente passe quase despercebida, mas nem por isso desimportante. A estabilidade de um gênero requer uma performance repetida continuamente, que, por isso, tende à naturalização, enquanto um ato propriamente dito é uma performance que surpreende, deslocando e transgredindo significados cristalizados, podendo, assim, nos apresentar uma novidade.
Para além dos atos performáticos, Butler (1990/2008) também inclui nessa mesma lógica estratégica as categorias parodísticas que visam a um trabalho sobre a linguagem. Diferentemente de autoras feministas que problematizam categorias como as de femme e de butche, por exemplo, por acreditarem que, ao referir a femme a um tipo de lésbica feminina e a butch, a uma lésbica masculina, tais categorias reforçariam a linguagem na sua dimensão binária e heterossexual. Ao contrário desse argumento, Butler acredita que tais "categorias parodísticas servem ao propósito de desnaturalizar o sexo" (p. 177), funcionando no sentido de multiplicar os lugares possíveis de aplicação de um termo, bem como revelar a relação arbitrária entre o significante e o significado.
Acreditamos que, ao valorizar esse tipo de estratégia, Butler indica uma espécie de limite potente de seu pensamento e das práticas que ele permite pensar. Em vez de fazer coro com Wittig (1970), por exemplo, que gostaria de explodir a linguagem patriarcal (estratégia que Butler considera fadada ao fracasso), Butler opta por algo muito mais modesto: deslocar, deslocar, deslocar, até que algo novo seja incluído na grade de leitura cultural.
Talvez essa relativa modéstia, marca de seu trabalho, indique algo de prático e crível em sua proposta. Longe dos ideais revolucionários, mas, nem por isso, ou justamente por isso, profundamente atrelado à concretude política e cotidiana. Para Butler (1990/2008), trata-se de desenvolver no discurso social um "novo e legitimador léxico para a complexidade de gênero que sempre vivemos" (p. 219), um léxico que confira visibilidade à diversidade de corpos e modos de existência.
A posição da autora sobre a questão da identidade é, portanto, dupla: não se trata de recusar qualquer relação com uma identidade, mas de garantir que a identidade não congele as relações consigo mesmo e com os outros (Butler, 1993/2012). Ou seja, se estas nos definem, mesmo que estejamos conscientes dos limites da lógica identitária, talvez seja necessário ativar o "erro necessário" (Spivak apud Rodrigues, 2019, p. 12), estratégia a partir da qual é possível vislumbrar os deslocamentos das normas sendo operados dentro das normas. É nesse sentido que Butler afirma que, se as políticas queer forem totalmente independentes das formas de poder instituídas, elas podem perder a sua força subversiva, pois não há afirmação que possa intervir de maneira performativa sem a historicidade do poder. A aposta do pensamento de Butler é a de que seria possível transformar aquilo considerado abjeto em uma sociedade em uma potência subversiva.
Assim, com o objetivo de desconstruir a ideia de que gêneros não inteligíveis são patológicos, Butler tornou a noção de gênero uma categoria política que visa a um deslocamento da patologia à política. "A concepção de política que uso está relacionada à questão da sobrevivência, física e psíquica. Como criar um mundo em que aqueles que entendem seu gênero e seu desejo como não normativos possam viver e prosperar sem a ameaça do mundo externo." (Butler, 1990/2008, p. 219).
A Psicanálise é queer?
Com a teoria da pulsão, Freud elabora uma noção de sexualidade inédita. A novidade da teoria freudiana não é a afirmação de que o sexual é uma característica do ser humano, e sim que o sexual põe em questão o próprio ser. Freud desenvolve o conceito de "sexual" como um nome que define a inconsistência do ser. Assim, o procedimento da Psicanálise é oposto ao procedimento de humanização, pois o que está em jogo em tomar o ser humano pela via do sexual é indicar que o seu núcleo mais íntimo não é algo objetivo, mas anônimo e estrangeiro (Zupancic, 2012).
Tendo em vista que a assunção de uma identificação sexuada não está garantida pela anatomia ou pela Biologia, o percurso pelo qual as crianças são levadas a assumir uma posição sexuada exige outra leitura. Para Freud (1932/2010, p. 20), "Aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia". Assim, é apenas a partir da travessia dos complexos de Édipo e de castração que nos tornamos sexuados, isto é, marcados por uma identificação. O que não exclui que a singularidade de cada sujeito entre necessariamente em jogo, pois o complexo de Édipo é apenas a estrutura da experiência. Em certo sentido, o complexo de Édipo sempre fracassa, na medida em que não recobre toda a vida erótica do sujeito (Kehl, 2016). Freud mostrou, portanto, que a experiência infantil se assentava em dois eixos: de um lado, as pulsões parciais, de outro, a comparação imaginária dos corpos e com isso a emergência do falo como o elemento que organizava, até certo ponto, as pulsões.
Entretanto, Freud descreveu uma sexualidade organizada fundamentalmente por uma lógica falocêntrica - que, apoiada na cultura de sua época, fazia convergir imaginariamente pênis e falo. O privilégio do significante fálico na obra freudiana dá lugar ao modo de construção masculina como viril, enquanto a feminilidade só pode ser compreendida como continente negro. A partir de uma releitura da noção de feminilidade para além do rochedo da castração, Lacan permite que possamos pensar na existência daquilo que o falo não satura. Essa dimensão de um gozo para além do falo é compreendida como uma condição do falasser, não mais atrelado ao gênero feminino.
Lacan (1972-1973/1985) insistiu, desde o início de seu percurso, que as identificações sexuadas são efeitos da linguagem, afirmando que "[...] não há a menor realidade pré-discursiva, pelo mesmo motivo que o que faz a coletividade, e que chamei de homens, mulheres e crianças, nada significa como realidade pré-discursiva. Homens, mulheres e crianças são apenas significantes" (p. 34). Assim, Lacan descarta veementemente qualquer concepção de relação natural entre os sexos.
No Seminário 20, Lacan (1972-1973/1985) elabora uma importante distinção entre um gozo dito fálico, subscrito pela civilização, e um gozo nãotodo que extrapola os limites da lógica fálica e da representação. Aquilo que Lacan nomeia como feminilidade diz respeito a experiências relativas ao universo nãotodo que colocam o sujeito diante do gozo como tal, independentemente da anatomia ou do gênero que se pretenda assumir.
Assim, o gozo que se apresenta ao sujeito obedecendo a lógica do nãotodo não encontra no falo um ponto de ancoragem suficiente que seja capaz de tratar sua relação com o gozo pela via dos universais. Trata-se de todo um universo de experiências, diante das quais a manutenção do laço social é posta em xeque, pois tais experiências atestam a solidão radical do sujeito diante da falha da linguagem e uma impossibilidade de representação de seu furo.
Lacan (1972-1973/1985) costumava se referir a esse Outro gozo como aquele que porta algo de "louco e enigmático" (p. 32), justamente porque este desconhece os limites impostos pela função fálica. Embora tenha como base o corpo, esse Outro gozo não é experimentado no corpo como próprio, mas no corpo como uma presença deslocalizada, o que desmonta a construção imaginária do corpo. A partir dessa definição, entende-se como destinos lógicos para o Outro gozo a possibilidade da devastação, mas também do arrebatamento e do êxtase, pois, se o gozo nãotodo é aquele que extrapola as barreiras fálicas que circunscrevem a relação do gozo com o prazer, com o bem e o belo - limites da civilização -, o gozo nãotodo é alheio a qualquer utilidade. Assim, o nãotodo lacaniano impossibilita a estabilização de um saber universal. O saber que podemos depreender de tais experiências é necessariamente múltiplo e plural.
Portanto, justamente por ser aquilo que abala as posições fálicas, a lógica do nãotodo é necessariamente subversiva. Diante da emergência de um gozo Outro, as construções identitárias se liquefazem e o sujeito só pode agir pelo não saber, ponto exato em que sua subjetividade é aniquilada para erguer-se depois em outros termos. Diante da impossibilidade da relação sexual, cada sujeito constrói ficções singulares que colocam um véu na invasão provocada pelo encontro traumático com o furo do real, mas esse véu sempre pode se rasgar e desnudar o real.
Desse modo, a noção de feminilidade encarna o paradoxo de um saber à margem dos universais: saber insabido, derivado de um gozo postulado no real. E que, em função de sua lógica, é de difícil transmissão. Trata-se de um saber fundamentalmente paradoxal: não se pode escrevê-lo, mas algo contingencialmente se escreve. Sendo este um dos pontos principais de uma análise, a relação do sujeito com a falta de um saber prévio e totalizante para o campo da sexualidade, acreditamos que, apesar de muitas distinções importantes, a Psicanálise lacaniana conversa com a teoria de Butler, uma vez em que visa estabelecer um saber consistente sobre as noções de gênero ou identificação, pois compreendem a sexualidade como um campo aberto a experimentações singulares e à formulação de saberes inéditos.
Todavia, é importante destacarmos que enquanto o termo gênero utilizado por Butler sublinha o caráter político das identificações sexuadas, o que inclui uma ampla e importante crítica às violências que constituem essa formação; Lacan utiliza o termo sexuação para estabelecer uma dialética entre uma satisfação corporal que dá lugar às exigências culturais e outra que comparece à margem, fazendo com que haja uma incompletude fundante dos saberes universais sobre a sexualidade e, com isso, uma possibilidade de subversão.
Referências
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1 Agradecemos à Capes pela bolsa concedida que viabilizou esta pesquisa e ao departamento de Psicologia da PUC-Rio. Este artigo é produto da pesquisa de doutorado de Clarice Arantes Martin, sob orientação do Prof. Marcus André Vieira.