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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.30 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

 

TEMAS E M DESTAQUE - SEÇÃO TEMÁTICA

 

Mobilidade e autonomia na vivência de crianças urbanas: uma etnografia do parque público infantil

 

Mobility and autonomy in the experience of urban children: an ethnography of the public playground

 

Movilidad y autonomía en la experiencia de los niños urbanos: una etnografía del patio público

 

 

Milene Morais FerreiraI; Patrícia Maria Uchôa SimõesII

IUniversidade Federal da Paraíba, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, João Pessoa, Paraíba, Brasil
IIFundação Joaquim Nabuco, Diretoria de Pesquisas Sociais, Recife, Pernambuco, Brasil

 

 


RESUMO

O estudo teve como foco as crianças em um parque público e fundamenta-se na perspectiva dos estudos sociais das infâncias, para pensar a criança como construtora de possibilidades de ver e viver na cidade e produzir sentidos para aquilo que foi instituído a partir de suas percepções e vivências. Foram realizadas sessões de observação não participante em um parque público da cidade de Recife, tendo como foco as formas de apropriação das crianças, considerando o uso dos equipamentos disponibilizados e as interações com seus pares e seus acompanhantes adultos. A análise aponta o exercício da autonomia da criança, ao escolher parceiros, brinquedos e brincadeiras, e a mobilidade pelos espaços e equipamentos disponíveis. Também se evidenciam as intervenções dos adultos nas formas de organização dos tempos e espaços das crianças. Como conclusão, o estudo reflete a condição de cidadania da criança e o seu direito à cidade.

Palavras-chave: criança, cidade, autonomia, mobilidade.


ABSTRACT

The present study proposed to analyze the forms of appropriation of spaces in a public playground for children, considering the use of the equipment available in this space and the interactions with their peers and their adult companions. For that, we used the ethnographic method. To support this study, we used contributions from the new social studies of childhood. The results show that children perform actions of resistance to the rules of adults regarding the use of spaces and the interactions established; conflict situations between peers are a way to keep playing; in interactions, they give new meaning to the park's spaces, times and equipment. Therefore, this work can contribute to confer more discussions on the urban experiences of children in contemporary cities, pointing out the importance of children's performance and participation in public spaces in the city in a relationship of exchange of experiences between the different generational groups that attend it.

Keywords: children, city, autonomy, mobility.


RESUMEN

El estudio se centró en los niños en un parque público y se basa en la perspectiva de los estudios sociales de la infancia, para pensar en el niño como un constructor de posibilidades de ver y vivir en la ciudad y producir significados a lo instituido, a partir de sus experiencias, percepciones y experiencias. Se realizaron sesiones de observación no participante en un parque público de la ciudad de Recife, enfocándose en las formas de apropiación de los niños, considerando el uso de los equipos provistos y las interacciones con sus pares y sus acompañantes adultos. El análisis apunta al ejercicio de la autonomía del niño, a la hora de elegir parejas, juguetes y juegos, y la movilidad a través de los espacios y equipamientos disponibles. También destaca las intervenciones de los adultos en las formas de organizar los tiempos y espacios de los niños. Como conclusión, el estudio refleja la ciudadanía del niño y su derecho a la ciudad.

Palabras clave: niño, ciudad, autonomía, movilidad.


 

 

Introdução

O campo interdisciplinar de estudos das infâncias vem desenvolvendo muitas investigações que têm como foco as crianças nos espaços urbanos, suas possibilidades de mobilidade e autonomia, suas interações com os seus pares e com os adultos e a apropriação que fazem dos equipamentos culturais nesses contextos (AITKEN, 2014; ARAÚJO, 2016; CHRISTENSEN, 2010; CHRISTENSEN et al., 2014; LAZZAROTTO; NASCIMENTO, 2016; LOPES; COSTA, 2017; MÜLLER, 2012; MÜLLER; NUNES, 2014; SARMENTO, 2018).

Segundo Sarmento (2018), esse recente interesse na investigação sociológica das crianças é o resultado de três fatores conjugados: o desenvolvimento de uma agenda de pesquisas sobre a condição social da infância e sobre a criança enquanto ator social; a importância do estudo da cidade contemporânea, especialmente com os aportes da Sociologia Urbana, e a compreensão da infância na cidade a partir dos dispositivos de controle, interdição e fragmentação do espaço urbano.

As crianças, tanto quanto os adultos, são agentes na construção de novas possibilidades de se ver e viver na cidade e, na medida em que atuam, transitam e utilizam os espaços urbanos, produzem sentidos e ressignificam aquilo que foi instituído, a partir de suas perspectivas e vivências, nos seus contextos culturais (AITKEN, 2014; ARAÚJO, 2016; CHRISTENSEN et al., 2014; CHRISTENSEN, 2010; MÜLLER, 2012; MÜLLER; NUNES, 2014; SARMENTO, 2018).

O presente estudo parte das perspectivas dos estudos sociais das infâncias para pensar a criança como agente social e produtora de culturas, bem como as infâncias enquanto categoria de análise da sociedade (ABRAMOWICZ, 2018; BELLONI, 2007; COHN, 2005; CORSARO, 2011; MAYALL, 2013; MONTANDON, 2001; PROUT, 2010; QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2004; 2005; SIROTA, 2001). Essa proposta teórico-metodológica oferece poder explicativo quando se focaliza as crianças na cidade, suas possibilidades de deslocamento e de escolha quanto aos espaços e tempos e às formas de utilização dos espaços públicos.

A partir do estudo das crianças na cidade, temos elementos explicativos da sociedade, pois conhecer práticas cotidianas de uma cidade e de seus membros vai além da apropriação geográfica dos sujeitos, dizendo respeito às relações sociais que são estabelecidas por diferentes grupos geracionais no interior desses espaços.

O presente texto pretende refletir sobre as relações entre crianças e cidades, enfatizando o espaço do parque no contexto das infâncias. O objetivo foi analisar a apropriação dos espaços de um parque público infantil pelas crianças pequenas, considerando as formas de utilização ou não dos equipamentos, e investigar a mobilidade das crianças e suas relações com os adultos que as acompanham, analisando, assim, as relações intergeracionais nos espaços públicos.

 

O novo campo interdisciplinar de estudos das infânciase a pesquisa sobre a criança na cidade

Na década de 1980, há uma modificação da representação da infância nas ciências sociais, passando a uma compreensão da criança, mesmo inserida no universo adulto, como um ser que cria e modifica o universo sociocultural em que está imerso (ABRAMOWICZ, 2018; BELLONI, 2009; COHN, 2005; CORSARO, 2011; MAYALL, 2013; MONTANDON, 2001; PROUT, 2010; QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2004; 2005; SIROTA, 2001). Esse olhar um tanto recente sobre a infância afirma que essa não é apenas uma etapa de passagem para a vida adulta e ganhou força com o estudo iconográfico do historiador Philippe Ariès (1981). Segundo esse autor, a infância é uma construção social. Essa afirmação representa um rompimento com as ideias essencialistas e biologizantes sobre a criança que eram hegemônicas nas ciências, até então, e propõe uma nova categoria de análise para a pesquisa social: a infância.

O campo interdisciplinar dos estudos das infâncias emerge, pois, considerando essa mudança teórica, epistemológica e metodológica de pesquisar as crianças e as infâncias:

[...] as crianças são sujeitos sociais e históricos, marcados por contradições das sociedades em que vivem. A criança não é filhote do homem, ser em maturação biológica; ela não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em deixar de ser criança). Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico da infância - seu poder de imaginação, fantasia, criação - e entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Esse modo de ver as crianças pode ensinar não só a entendê-las, mas também a ver o mundo a partir do ponto de vista da infância. Pode nos ajudar a aprender com elas (KRAMER, 2000, p. 5).

Na mesma direção, Cohn (2005) considera que as crianças são capazes de se apropriar desse universo no qual estão inseridas, atribuindo-lhe novos sentidos, uma vez que, se comparada ao adulto, "a criança não sabe menos, sabe outra coisa" (COHN, 2005, p. 33). Sendo assim, não há um processo de socialização que tenha uma direção única do adulto para a criança, mas como afirma Belloni (2007, p. 61), "do ponto de vista da criança, a socialização constitui um processo de apropriação e de construção, por meio da participação ativa do indivíduo jovem que intervém, age e interage com todos os elementos de seu universo".

Desta maneira, os estudos sociais das infâncias focalizam as crianças enquanto agentes de uma infância que "é construída diversamente e localmente mediante interação contínua" (PROUT, 2010, p. 735), tanto com o ambiente e as instituições em que vivem quanto com os seus pares e os outros grupos geracionais com os quais convivem.

Na sociologia brasileira, Fernandes (2004) elaborou uma análise acerca de grupos de crianças que se reuniam nas ruas, afastados da família e da escola, brincavam e formavam grupos, "as trocinhas do Bom Retiro", cuja característica ressaltada pelo autor era a elaboração de regras particulares de convívio e para as brincadeiras que se configuravam como criações das próprias crianças. Essas regras regulavam a formação dos grupos, os rituais de ingresso nas brincadeiras e nos grupos, as disputas de espaço e as relações de gênero, raça e sexo.

Porém, essa liberdade de acesso às ruas, tratada por Florestan Fernandes, não é uma realidade para todas as crianças na contemporaneidade. As formas de organização social nos espaços das cidades, especialmente nas grandes cidades, vêm sofrendo modificações e impondo às crianças limitações na sua mobilidade e autonomia para transitar e utilizar os espaços públicos (AITKEN, 2014; ARAÚJO, 2016; CHRISTENSEN, 2010; CHRISTENSEN et al., 2014; MÜLLER, 2012; MÜLLER; NUNES, 2014; SARMENTO, 2018).

Ao mesmo tempo em que a modernidade estabeleceu a escola como condição de acesso à cidadania, realizou um movimento de separação das crianças dos adultos e dos espaços públicos da cidade. Dessa maneira, ao passo que, na sociedade contemporânea, os adultos devem assumir um comportamento produtivo, é esperado das crianças que estejam apartadas desse mundo e vivenciem suas experiências de aprendizagem em casa ou na escola (ARIÈS, 1981).

A cidade contemporânea, pois, é caracterizada pela fragmentação e especialização dos espaços urbanos, os quais demarcam a exclusividade do ambiente conforme a faixa de idade do público. Crianças, adolescentes e adultos ocupam áreas que se destinam à sua identidade geracional, como creches, escolas e locais de trabalho (FARIAS; MÜLLER, 2017; MÜLLER; NUNES, 2014; SARMENTO, 2018).

Sarmento (2018) destaca a importância da cidadania ativa das crianças e propõe a discussão sobre os direitos sociais das crianças, entre esses, o direito à cidade, à brincadeira, ao convívio com outras crianças e com indivíduos de outras gerações. Nesse sentido, ocupando os espaços públicos, como o parque, a criança também ocupa um lugar na cidade e assume uma das dimensões de sua cidadania: o direito à cidade.

Dois conceitos são particularmente importantes no debate sobre as formas de apropriação do parque pelas crianças: os conceitos de mobilidade e de autonomia. A noção de mobilidade empregada nesta pesquisa condiz com a definida pela World Health Organization (WHO) e utilizada por Christensen et al. (2014, p. 700):

A noção de "mobilidade cotidiana" se refere a todo o espectro de movimentação corporal no qual as crianças se engajam durante suas atividades diárias (WHO, 1998), desde as atividades estacionárias realizadas enquanto estão paradas às atividades físicas mais vigorosas realizadas em um determinado local ou entre locais.

Segundo Farias e Müller (2017), a mobilidade urbana tem um importante papel na percepção que as crianças têm sobre a cidade. Os deslocamentos e movimentações na cidade trazem conhecimentos e aprendizagens sobre os espaços urbanos e possibilitam o estabelecimento de interações sociais e a construção de significados que vão constituir as identidades das crianças em suas relações com os territórios das cidades.

Por autonomia, foi utilizada, neste estudo, a noção desenvolvida por Montandon e Longchamp (2007, p. 108):

[...] a capacidade e o poder da pessoa de governar-se, de tomar as decisões que lhe concernem. Isso não quer dizer que esta capacidade seja totalmente imanente, desligada da realidade social, como se uma pessoa pudesse inverter ex nihilo seus pensamentos, como se suas emoções estivessem totalmente desligadas de outrem ou suas ações não implicassem nenhuma responsabilidade. Na verdade, uma pessoa é capaz de ser autônoma quando ela tem consciência dessa realidade. Certamente, ser capaz não quer dizer poder. Nesse sentido, seres submetidos ao poder de outrem podem ter a capacidade de ser autônomos, mas não a possibilidade, e vice-versa.

Os conceitos de mobilidade e autonomia orientam a análise dos registros feitos no presente estudo por permitirem uma compreensão da vivência das crianças no parque, que se configurou como uma experiência social que articulou espaço, tempo e relações intergeracionais constituintes da percepção da criança sobre a cidade.

 

Procedimentos de pesquisa

Foram realizadas sessões de observação não participante durante um mês, com a frequência de seis dias por semana, em horários diferentes: tarde e manhã. Esse formato de registro foi definido no intuito de registrar como a criança utiliza os equipamentos disponibilizados nos espaços do parque e como ocorre a interação infantil neste ambiente, tanto com seus pares quanto com os adultos. A escolha desse procedimento metodológico fundamenta-se no objetivo do estudo de procurar compreender as formas de interações inter e intrageracionais entre crianças e os adultos responsáveis que as acompanhavam, procurando causar o mínimo de interferência nas formas de controle pelos adultos e nas iniciativas de autonomia e de resistência das crianças (LAKATOS; MARCONI, 2002; RICHARDSON, 1999). As observações foram feitas em horários diferentes para alcançar uma diversidade maior no tocante às formas de uso dos espaços do parque pelas crianças e os grupos geracionais que as acompanhavam.

O roteiro de campo foi elaborado considerando os objetivos específicos propostos para esta pesquisa e compreendia a observação em três principais dimensões: relações da criança com o adulto que a acompanhava; relações entre crianças e utilização dos espaços e equipamentos pela criança. Os registros foram organizados nas dimensões estudadas e analisados a partir de um eixo definido que incluía a discussão sobre a mobilidade e a autonomia da criança, na sua apropriação dos espaços do parque.

Antes de apresentar os resultados deste estudo, faz-se necessário situar nosso locus de pesquisa, o Parque da Jaqueira. O bairro da Jaqueira está localizado na zona norte do Recife, Brasil, numa área predominantemente residencial. A escolha do parque como local de pesquisa se deve ao fato de ser uma das maiores áreas de lazer da cidade, o que atrai uma multiplicidade de públicos de diversas classes sociais e geracionais, residentes nas proximidades e em outros bairros que frequentam o espaço.

O Parque da Jaqueira possui quatro ambientes intitulados parques infantis, cada um desses espaços é dirigido a uma faixa etária que é indicada pela altura máxima que a criança deve ter para utilizar os brinquedos e equipamentos que são padronizados e confeccionados com madeira. Em cada parque, há um mapa com a localização dos outros parques e uma trena para verificação da altura da criança com o seguinte aviso: "Todas as crianças devem contar com a supervisão de um adulto responsável e respeitar a indicação de idade e altura de cada Parque Infantil".

O Parque Infantil 4, onde foi realizado o estudo, dirige-se a crianças de 4 a 8 anos de idade ou cuja altura não ultrapasse 1,35 metros. Nesse parque, há uma casinha da árvore, pedras, gangorras, balanços diversos, equipamentos de ginástica ao ar livre e uma tirolesa. Possivelmente, por ser o único espaço que tem esse último equipamento, o Parque Infantil 4 é o que apresenta maior procura de crianças de todas as faixas etárias.

Análise dos registros: mobilidade e autonomia na vivência do parque infantil

A estrutura adotada para a análise dos registros estabeleceu três dimensões de análise:

a) dimensão adulto-criança: relações que são construídas no ambiente do parque entre grupos geracionais distintos, crianças e adultos (geralmente, os adultos eram os acompanhantes das crianças em suas idas ao parque), os limites de tempo e espaço impostos pelos adultos, a autonomia, as resistências e as transgressões das crianças;

b) dimensão criança-criança: relações entre pares (criança e criança), considerando as aproximações, os conflitos, as brincadeiras e o compartilhamento ou não de brinquedos e brincadeiras entre as crianças;

c) dimensão criança-espaço/equipamentos: a utilização dos espaços pelas crianças, sua mobilidade e a ressignificação pelas crianças dos equipamentos que estão disponíveis nesse ambiente.

As situações analisadas envolvem diferentes dimensões, mas são trazidas nesse estudo na perspectiva do que mais puderam ajudar na análise. Para tanto, foram selecionados alguns episódios para a discussão no âmbito do presente texto.

a) Dimensão criança-adulto

O aviso no interior do Parque Infantil 4 de que "todas as crianças devem estar acompanhadas por um adulto" anuncia a condição de dependência da criança perante o adulto no parque, alertando para a necessidade de proteção e segurança nesse espaço. A dependência da criança, pela sua condição de vulnerabilidade física, faz parte das representações sociais da infância na sociedade contemporânea que, historicamente, compreende a infância como um período de déficit de potencialidades e capacidades; portanto, associa a concepção de infância à ideia de desenvolvimento biológico e psicológico, universalizando o que é sócio e culturalmente diverso (GOMES; GOUVÊA, 2008).

Para analisar essa primeira dimensão, serão apresentados episódios de interação entre adultos e crianças, focalizando o eixo de discussão controle do adulto/autonomia da criança.

No Episódio 1, a criança solicita ao adulto sua permissão para se deslocar no parque, mas, mesmo obtendo a autorização do pai, só realiza o deslocamento com a companhia desse adulto, o que revela que a permissão pedida pela criança parece ser uma solicitação da companhia do pai para o seu deslocamento pelo parque.

Episódio 1

Um homem sentou-se num dos bancos do parque e posicionou, próximo ao banco, uma bolsa rosa e uma sandália de mesma cor. Após alguns minutos, possivelmente sua filha (que aparentava ter entre 4 e 6 anos de idade) vem sorrindo fazer-lhe uma pergunta:

- Papai, posso brincar no outro? (apontando para a gangorra)

O pai faz sinal positivo com a cabeça e a menina fica em pé em sua frente. Após alguns segundos, ela diz impaciente:

- Vai, papai! Levanta!

O homem sorri e coloca a bolsa nas costas, dirigindo seu olhar para a sandália. Após segurá-la em uma de suas mãos, ele estende a outra para sua filha e assim vão juntos para a gangorra.

Segundo Sabbag, Kuhnen e Vieira (2015), o fato de estar ou não acompanhada é um importante aspecto na caracterização da mobilidade e autonomia da criança. Alguns estudos vêm analisando a mobilidade infantil, considerando a licença ou permissão do adulto que a criança tem para se mover de forma independente no ambiente (MÜLLER, 2018; NETO; MALHO, 2004; O'BRIEN et al., 2000; SABBAG; KUHNEN; VIEIRA, 2015). Para O'Brien et al. (2000), o nível de mobilidade está muito relacionado às regras que os adultos, pais ou cuidadores definem para as crianças. Dessa forma, os adultos podem aumentar ou diminuir as possibilidades de exploração do ambiente pela criança.

Sabbag, Kuhnen e Vieira (2015) analisam resultados de estudos sobre a mobilidade infantil nas cidades, apontando fatores como os altos índices de violência, insegurança no tráfego de veículos, envolvimento de crianças e adolescentes com estranhos, que dificultam atitudes dos adultos mais permissivas em relação às crianças interagirem com o espaço urbano de forma mais independente.

As percepções que os adultos constroem sobre os espaços públicos têm relação com as próprias percepções das crianças. De formas diversas, adultos e crianças compartilham suas percepções que podem interferir umas nas outras. No episódio descrito, diante da permissão do pai que, por outro lado, não a estimula a se movimentar sozinha, a criança não exerce sua autonomia, mas requisita a presença do pai. Ressaltamos, nessa análise, a necessidade expressada pela criança da condução do adulto e a aceitação por esse dessa solicitação, parecendo que os limites para a mobilidade e autonomia da criança são consensuados entre esses dois atores.

No segundo episódio escolhido para essa análise, a mobilidade da criança é supervisionada pelo adulto, que procura intervir também no uso que a criança faz dos espaços e dos equipamentos do parque.

Episódio 2

Uma menina, que aparentava ter entre 6 e 8 anos de idade, aparece correndo em direção ao balanço, seguida por sua mãe. Em alguns instantes, a mulher tira da bolsa um celular e começa a fotografar a menina que sorri e faz poses para a foto. Após algumas fotos, a mãe guarda o celular em sua bolsa e se posiciona atrás da menina para empurrar a cadeira do balanço onde a criança havia sentado. Depois do primeiro empurrão, a mãe volta para a frente do balanço para fotografá-la mais uma vez, mas a menina parece se assustar com a altura e apenas segura firme no equipamento (sem olhar para o celular que tirava as fotos), parecendo aguardar a diminuição da velocidade do balanço. Assim que conseguiu colocar os pés no chão, ela, prontamente, desceu correndo e procurou sentar-se em outro balanço que tinha características mais adequadas às crianças menores, com um encosto nas costas, e diz:

- Esse daqui é muito mais melhor que não dá pra cair.

Nesse segundo balanço, ela consegue se balançar sozinha. Então, sua mãe apenas a observava, mas logo ela correu para a gangorra. Sua mãe rapidamente acompanhou e tentou auxiliar a criança no uso da gangorra, mas em pouco tempo a menina já alegou querer descer para ir à casa da árvore. Então, ela se dirigiu até lá. Nesse momento, sua mãe alertou que ela deveria subir pela escadinha, e ela assim o fez. Quando ela se posicionava para descer da casinha pelo balanço, sua mãe pede que ela espere um pouco e volte à escada para que tire uma foto ali. A menina logo põe a mão na cintura e sorri em direção à mãe. Depois da fotografia, ela desce do equipamento através do escorregador e se dirige à escadinha novamente, até que sua mãe pede para que dessa vez ela vá até a ponte para tirar outra foto, mas a menina se recusa. Então, a mãe pergunta se ela tem medo da "pontezinha" e ela logo responde que "não tem mais". Em seguida, a menina correu novamente até a gangorra e sua mãe foi atrás. Ao chegar ao local, a menina pede que a mãe tire uma foto sua, utilizando aquele equipamento, e a mãe responde:

- Não, tá bom!

Mas ela insiste:

- Vai, mãe! Só uma.

E então a mulher tira uma foto rápida e guarda o celular.

O episódio mostra a mãe acompanhando e, de certa forma, direcionando o deslocamento da filha pelo parque, por meio das fotografias que faz da criança, ao sugerir lugares por onde a criança deveria locomover-se e formas de utilização dos equipamentos. Num primeiro momento, a criança parece aceitar essa forma de controle da mãe. No entanto, em seguida, a criança recusa-se a dar continuidade ao movimento monitorado pela mãe, que insiste e desafia a criança. Nesse momento, a criança apodera-se do dispositivo de controle do adulto - o telefone celular que tirava as fotografias - e retoma o controle do seu deslocamento.

A criança mostra-se capaz de construir táticas de resistência ao adulto, como nos aponta os estudos de Corsaro (2011), e, ao seu modo, impor formas de deslocamento e utilização dos tempos e espaços no parque. Müller (2006) também analisou atitudes de resistência numa turma da Educação Infantil, que revelaram que as crianças conseguem se fazer participantes e protagonistas na escola e, embora tendo uma autonomia relativa, elas conseguem romper com lógicas adultas:

Não se trata de romantizar a capacidade das crianças em tolerar determinações de tempo e espaço tão penosas (...), mas sim de entender como se tornam paradoxais algumas relações das crianças com seus pares e com os/as adultos/as durante os momentos de trabalho, de brincadeira, de frustrações, de fantasias. E, quando não conseguem lidar com certas imposições, resistem. É ilusão pensar que se pode controlar todas as manifestações infantis (MÜLLER, 2006, p. 570).

Sendo assim, como nos episódios apresentados, no tocante à interação entre adultos e crianças nos espaços do Parque Infantil, evidencia-se uma relação em que a presença do adulto determina fortemente a dinâmica de mobilidade autônoma das crianças. Apesar disso, as crianças mostram-se capazes de escolher e direcionar suas ações e modificar as lógicas adultocêntricas.

b) Dimensão criança-criança

Nas interações entre crianças, foram registrados três movimentos: relações de aproximação e compartilhamento de brinquedos e brincadeiras; relações de rejeição de uma criança em relação à tentativa de aproximação da outra e relações conflituosas entre as crianças. O Episódio 3 apresenta o primeiro desses movimentos, a busca de uma criança pela aproximação de outra criança.

Episódio 3

Enquanto um homem (possivelmente o pai da criança) pegava a bolsa de sua filha para saírem, apareceu uma menina (aparentando ter entre 5 e 7 anos) um pouco maior que a filha dele (que aparentava ter no máximo 5 anos) e falou, olhando para os dois:

- Eu sempre faço novos amigos quando eu venho no parque. (fala olhando para o adulto)

Os dois então olharam para ela, que após alguns segundos em silêncio, continuou:

- Eu tinha uma amiga, mas ela hoje não vem não. (fala olhando para a criança)

O pai segura a mão de sua filha e os dois permanecem de mãos dadas, em silêncio, observando a menina que estava na frente. Após alguns segundos em silêncio, a menina continua falando, dirigindo seu olhar para a filha do homem:

- Vem! Vamo brincar! (segurando a mão da menina que estava com o adulto)

Então as duas seguem de mãos dadas correndo até a gangorra, enquanto o pai as segue sorrindo.

Nesse episódio, ressalta-se o movimento de autonomia e independência da criança que procura o contato com outra criança que está com seu pai, justificando sua atitude com a menção a uma amizade anterior e propondo uma nova amizade. Também se destaca o pedido de permissão para a aproximação que a criança faz, dirigindo-se ao adulto e não à própria criança. Parece que a primeira criança compreende que precisaria ser autorizada pelo adulto, e não necessariamente por uma criança, para que houvesse a aproximação.

A potência da criança na agência das suas interações sociais e construção de culturas infantis é apontada por muitos autores como parte da própria concepção de criança (BELLONI, 2009; COHN, 2005; CORSARO, 2011; MAYALL, 2013; SARMENTO, 2004, 2005). O campo interdisciplinar dos estudos das infâncias compreende a criança pela sua capacidade de agência, ou seja, a criança é ativa na construção de suas interações e conhecimentos. Essa perspectiva contrapõe a ideia da criança passiva, cujo desenvolvimento segue a trajetória única de lhe transformar num adulto.

Indo além dessa afirmação, a criança é concebida como construtora de culturas. As culturas infantis que resultam das interações entre pares e da capacidade de ressignificar as lógicas adultas (CORSARO, 2011; SARMENTO, 2004, 2005). Essa abordagem implica numa nova forma de tratar a criança e seu desenvolvimento: como sujeito, tem direitos; como ser capaz, pode participar do meio social em que vive. Assim, deve ser vista e escutada.

No próximo episódio, observa-se uma tentativa do adulto de mediar a aproximação entre as crianças.

Episódio 4

Comecei a observar uma menina que brincava com a areia, debaixo de um dos balanços. Seu pai a observava em pé, bem próximo a ela, com uma bolsa vermelha nas costas. Ela não tinha nenhum brinquedo, brincava sentada na areia e usando as mãos. Até que se aproximaram um homem e um menino. Antes disso, notei que estavam de mãos dadas e o homem apontava para o balanço. Ao chegarem mais perto, o menino parou e ficou observando a menina. Ao vê-lo olhando para a menina, o pai dela fala:

- Olha, filha! Um amiguinho! Chame ele pra brincar!

Antes que ela falasse, o pai do menino interrompe:

- Vai lá, cara! Pergunta o nome dela.

O menino continuou parado e então, seu pai falou:

- Pergunta quantos anos ela tem!

O menino permaneceu calado, com os olhos atentos, observando-a.

Após alguns segundos, a menina responde, olhando para a areia e sem parar de brincar:

- 5 anos.

O pai do menino responde com admiração:

- Ah! Ele também tem 5 anos.

O menino se agachou e começou a imitar os movimentos da menina. Como ela não lhe deu atenção, ele levantou e saiu correndo, ainda sem falar nada. Imediatamente seu pai corre atrás.

Diferentemente do episódio anterior, a aproximação entre as crianças é intermediada pelos adultos. No entanto, o que se evidencia é que as crianças têm suas próprias regras e formas de aproximação das outras crianças e de compartilhamento das suas brincadeiras. As crianças não adotaram a forma adulta de se aproximar e interagir, mas de forma particular, olharam, calaram e, no momento delas, aproximaram-se e afastaram-se.

A criança, como Kohan (2005, 2010) nos ajuda a compreender, também tem uma lógica para vivenciar o tempo que, nesse episódio, fica muito claro o quanto se diferencia das lógicas adultas. De forma singular, as próprias crianças ajustam seus tempos e, indiferentes às tentativas de controle do adulto, coordenam a aproximação e o afastamento uma da outra.

No próximo episódio, vamos analisar a disputa entre as crianças pela liderança da brincadeira.

Episódio 5

Um menino e uma menina jogavam bola. O primeiro conseguia um maior controle da bola e do jogo. Ao perceber que perdeu o controle da bola, o menino avisa à menina que não está mais brincando. Ela continua correndo com a bola, quando a bola começou a ir em direção contrária a ela. O menino rapidamente corre em direção à bola, voltando a fazer parte da brincadeira. A menina, no entanto, foi mais rápida e retomou o controle da bola, então ele logo voltou a dizer que não estava mais brincando e sentou-se ao meu lado. Em poucos segundos, ficou em pé no banco em que eu estava. Então, começa a sussurrar e, em seguida, pula do banco. Ao saltar, fica agachado por um tempo, na mesma posição derivada do pulo, e continua falando consigo mesmo, só que agora nessa posição. Então, sua amiga grita à sua procura e ele diz:

- Não estou brincando!

Se referindo à brincadeira com a bola, e continua:

- Estou brincando de Peter Pan.

A menina ignora a informação e o avisa que a mãe dele tinha que ir para uma aula de dança e estavam aguardando-o. Após alguns segundos, ele levanta-se e a segue.

Observa-se que as crianças criaram regras e compartilharam uma brincadeira, até que o menino resolve sair, talvez porque estava em situação desvantajosa quanto à posse da bola, talvez porque foi uma menina quem estava liderando a movimentação.

Muitos estudos vêm focalizando as questões relacionadas ao gênero nas brincadeiras e indicam a predominância de estereótipos tanto nos papéis assumidos por meninos e meninas, como na utilização de brinquedos (FIAES et al., 2010; FINCO, 2003, 2010; PEREIRA; OLIVEIRA, 2016; KISHIMOTO; ONO, 2008; SAYÃO, 2002).

O presente estudo aponta para essa discussão, mas, como não teve em seus objetivos esse foco de análise, não produziu registros que permitissem penetrar numa análise mais densa da temática das relações de gênero na infância. No entanto, assinalamos que, assim como a concepção de infância é uma construção histórica inserida nas relações de poder do mundo adulto, compreendemos as relações de gênero como estando atreladas em relações de poder que são produzidas e reproduzidas na sociedade. Dessa forma, as diferenças entre meninos e meninas, homens e mulheres, são demarcadas nas e pelas práticas culturais que definem padrões comportamentais distintos de masculinidade e feminilidade que se inscrevem nos corpos e constroem as identidades de cada indivíduo. Sendo assim, a brincadeira, como uma prática cultural, revela uma complexa rede de poder que também se insere no processo de formação de gênero.

No episódio descrito, o menino parece desconfortável com a perda do poder do controle da bola. Por outro lado, a continuidade da brincadeira, mesmo solitária, é mantida pela menina, que parece desconsiderar as movimentações do menino e a nova brincadeira anunciada por ele que se configurou como a resolução do impasse.

As situações de brincadeiras colaboram para o aprendizado sobre o exercício da liderança, de formas de compartilhamento dos brinquedos, respeito às regras para a convivência, entre outros importantes conhecimentos que auxiliam na superação de conflitos e construção das identidades (ANDRADE FILHO; FIGUEIREDO; SILVA, 2008; ALVES; DUARTE; SOMMERHALDER, 2017; FINCO, 2003; RIBEIRO, 2006).

Em seguida, apresentaremos uma situação de brincadeira de papéis, quando a criança assume funções e atividades das pessoas do seu cotidiano.

Episódio 6

Duas meninas trouxeram brinquedos de casa, duas bonecas e um carrinho de bebê rosa. As bonecas tinham nomes próprios: Larissa e Júlia. Elas brincavam de divertir as bonecas, "as filhas", que estavam no assento do balanço. Parecia que a brincadeira constava de acompanharem as "filhas", utilizando o balanço. Uma delas estava com o carrinho de bebê ao seu lado. Depois de uns minutos balançando e conversando com as bonecas, uma das meninas tirou as duas bonecas do balanço e as colocou no carrinho, enquanto a outra apenas olhava, empurrando em direção à sua mãe. Enquanto isso, a menina que não estava segurando o carrinho falou:

- Aí, a gente vai para a minha casa, tá?

Mas não obteve resposta. Ao chegarem próximo da mãe da criança que era dona dos brinquedos, a mulher as encorajou a continuarem brincando e diz que a filha deveria dividir o papel de mãe com a amiga, deixando ela carregar os "bebês" a partir de agora.

Rapidamente, a menina que até então observava timidamente pegou o carrinho e o dirigiu novamente até o balanço. Porém, ela não balançou as bonecas. Dessa vez, posicionou o carrinho para que as bonecas ficassem "olhando" enquanto ela tentava subir no balanço para brincar.

Enquanto isso, a outra menina que era a dona dos brinquedos chorava perto da mãe que, após alguns minutos, segurou em sua mão para irem até onde estava sua amiga. Aproveitando que a menina estava no balanço, a dona dos brinquedos imediatamente pegou o carrinho com as bonecas de volta e começou a brincar sozinha.

Nesse compartilhamento de brinquedos, as crianças reconhecem na criança que tem a propriedade dos brinquedos o poder de decisão sobre a brincadeira. Não há desacordo explícito entre as crianças sobre quem deve ficar com os brinquedos, até a interferência adulta. Essa ação da adulta sobre as regras da brincadeira abre espaço para uma troca de papéis: a criança, que agora está com as bonecas, decide como brincar. No entanto, a interferência cria um conflito entre as crianças, que não havia sido explicitado ainda. Por fim, a solução encontrada não mais favorece o compartilhamento da brincadeira e o poder sobre os brinquedos e sobre a brincadeira volta para a criança que tinha a propriedade dos mesmos. Enfim, ressalta-se, mais uma vez, a capacidade de resistência das crianças em aceitar as regras construídas pelos adultos e a reafirmação das suas próprias regras.

c) Dimensão criança-espaço

A terceira dimensão de análise diz respeito à relação da criança com o espaço do parque, considerando os equipamentos dispostos e a forma com que a criança se relaciona com eles, atribuindo-lhes significados. Foram identificadas três formas distintas de relacionamento entre a criança e o ambiente infantil: a primeira se refere à criança utilizar o equipamento, seguindo a proposta do brinquedo; a segunda, ao fato da criança utilizá-lo com outra proposta que não a convencional; e, finalmente, a terceira forma, que é quando a criança não utiliza ou utiliza seus próprios brinquedos.

Antes de adentrar nessas interações, é necessário discorrer um pouco sobre a estrutura e os equipamentos existentes no interior do Parque Infantil 4.

Os equipamentos não possuem uma altura elevada, considerando o público ao qual estão direcionados, mas oferecem diferentes desafios às crianças, como, por exemplo, a casinha da árvore tem três propostas: a criança pode chegar até a casa subindo pela escadinha, pela redinha, ou pelas pedras que estão dispostas para serem escaladas. Há, também, no ambiente desse parque infantil, outros equipamentos provenientes da mesma lógica de diversão: gangorras; balanços de diversos tipos e tamanhos; equipamentos de ginástica e tirolesa, obedecendo a padronização dos Parques Infantis que compõem o Parque da Jaqueira. Contudo, este último equipamento só é encontrado no Parque Infantil 4, sendo o que mais atrai as crianças.

No episódio a seguir, as crianças utilizam os equipamentos segundo a proposta do parque, ou seja, brincam conforme o esperado para a forma de utilização daquele brinquedo.

Episódio 7

Observei duas meninas de mesma estatura e que também aparentavam a mesma idade (cerca de 6 anos) no balanço. Uma se divertia empurrando a outra e elas tinham adotado os papéis de mãe e filha. Enquanto sorriam, a que estava sentada no balanço gritava:

- Mais alto, mamãe!

E então, a criança que estava em pé responde:

- Não, filha! Você pode se machucar!

A "filha" faz uma cara triste e ela continua:

- Se eu empurrar forte, você pode cair!

- Sim, mamãe! (responde de cabeça baixa)

As duas sorriem e em seguida a "filha" sugere que elas fossem em outro brinquedo.

A brincadeira de mãe e filha desse episódio segue a orientação do parque de que "todas as crianças devem estar acompanhadas por um adulto". Assumindo a função de proteger, a criança que assume o papel da mãe determina a intensidade da brincadeira e a altura com que o balanço pode ser utilizado. Por sua vez, a "filha" aceita o limite imposto pela "mãe", concordando com ele ou aceitando que, no papel de "filha", é o que deve fazer.

Para Borba (2009), a brincadeira é um fenômeno da cultura, ou seja, constitui-se como um conjunto de práticas, conhecimentos e artefatos construídos histórico e socialmente pelos sujeitos. A brincadeira permite à criança reconhecer-se como sujeito pertencente a um grupo social e a um contexto cultural, favorecendo o conhecimento sobre si mesmo e suas relações no mundo. Sendo uma atividade que é desenvolvida em conjunto, a brincadeira constitui-se como uma forma de manifestação das culturas da infância.

Já o episódio 8 diz respeito ao fato de a criança utilizar o equipamento do parque com outra proposta que não a convencional.

Episódio 81

Algumas crianças chegaram correndo e com fardamento de uma escola, seguidas por seus responsáveis. Então, surgiram algumas situações.

Inicialmente, observei uma mulher advertindo um menino que brincava de correr com uns amigos:

- Davi, tu tem que brincar. Né correr, não!

Logo após essa advertência, se formou uma fila enorme para brincar na tirolesa. Outra mãe advertiu uma criança que não tive tempo de observar se era um menino ou uma menina:

- Vai em outro (brinquedo)! Daqui a pouco chega a hora de voltar e tu não brincou.

Enquanto ela concluía sua fala, verifiquei um grupo de quatro meninos que aparentavam ter entre 4 e 6 anos de idade e tinham acabado de descer do escorregador da casa da árvore. Ao mesmo tempo em que um deles propunha um desafio:

- Eu duvido que vocês sobem por aqui! (gritou eufórico, apontando para o escorregador da casa da árvore).

E então um deles responde:

- Mas sobe por ali! (apontando para a escadinha da casa da árvore).

- Tu é muito fraco! (respondeu, enquanto tentava subir).

O menino consegue e fica em cima do escorregador esperando pelos amigos, enquanto grita:

- Vem, Miguel!!!! (fazendo sinal com a mão para o menino que acabou de indagá-lo).

Miguel também consegue subir, mas demonstra cansaço e respiração ofegante. Enquanto isso, o menino continua:

- Vai, João Victor!!!!

Novamente, o amigo consegue, e então ele grita:

- Tua vez, Pedro!!!

Pedro apresenta dificuldade e as três crianças que já estavam em cima do escorregador estendem a mão e tentam puxá-lo, apoiando-se na proteção do equipamento. Dessa forma, Pedro chega ao topo e os quatro comemoram.

Observam-se diferenças nos significados atribuídos por adultos e crianças aos espaços e tempos do brincar no parque infantil. Para os adultos, as crianças brincam no espaço do parque quando utilizam os equipamentos dispostos para esse fim: "Davi, tu tem que brincar. Né correr, não!" O mesmo ocorre com a concepção de tempo da outra mãe, quando diz: "Vai em outro (brinquedo)! Daqui a pouco chega a hora de voltar e tu não brincou", como se o tempo no parque fosse o tempo de utilização dos equipamentos do parque. Como já refletimos, os espaços e tempos das crianças são ressignificações que não coincidem com os espaços e tempos dos adultos. Brincar para as crianças parece significar estar no parque, deslocar-se, interagir com outras crianças.

Esse episódio revela também a proposta da transgressão no uso dos brinquedos e, diante da dificuldade de uma das crianças na realização da atividade, observa-se a solidariedade para o cumprimento da tarefa. São novas formas de utilização dos equipamentos do parque que têm uma nova ordem construída coletivamente, diferente da lógica adulta.

E, finalmente, respectivamente nos episódios 9 e 10, apresentaremos situações em que as crianças não utilizam os equipamentos do parque ou utilizam seus próprios brinquedos.

Episódio 9

No balanço, próximo à placa de indicação do parque, havia uma menina (que aparentava ter entre 5 e 6 anos de idade) com uma pedra na mão, desenhando na areia. Ao me aproximar, vi que ela estava montando uma amarelinha, enquanto outra menina (que aparentava ser um pouco mais nova e ter entre 3 e 4 anos de idade) esperava, pulando incessantemente sem sair do lugar.

Episódio 10

Um senhor com duas crianças, um menino e uma menina (que aparentavam ter a mesma idade, entre 6 e 8 anos), estava com um brinquedo de bolha de sabão ensinando as crianças a fazerem suas próprias bolhas. Até que, em determinado momento, a menina olha para o menino e diz:

- É dos dois!

O menino se recusa a dividir o uso, então o senhor que os acompanhava fala:

- É dos dois, sim!

Logo em seguida, o menino volta a dizer:

- Não (enquanto pega o copo da mão do senhor que estava com eles).

Os dois episódios foram trazidos para essa análise, unicamente, por envolverem situações em que as crianças não utilizam os equipamentos do parque. Sendo assim, no episódio 9, as crianças não utilizam os equipamentos, mas fazem uso de uma pedra encontrada no parque e do espaço livre que há nele para construir uma relação de compartilhamento da brincadeira e, no episódio 10, as crianças também não utilizam os equipamentos do parque por estarem utilizando seu próprio brinquedo. Enquanto no primeiro episódio há uma proposta de compartilhamento da brincadeira, jogar amarelinha, no segundo, não há acordo sobre isso e, mesmo com a intermediação do adulto, com a proposição do compartilhamento do brinquedo, as crianças resolvem manterem-se isoladas na brincadeira.

 

Conclusão

A análise dos registros realizada aponta a capacidade de agência da criança no desenvolvimento de suas brincadeiras no parque, com a possibilidade de exercer autonomia ao escolher parceiros, brinquedos e brincadeiras e de deslocar-se com relativa autonomia pelos espaços e equipamentos disponíveis. Esses achados vão na direção dos estudos das infâncias que afirmam a agência da criança, enquanto produtora de cultura e ser relacional e de direitos.

Também se evidenciam as intervenções dos adultos quanto às formas de organização dos tempos e espaços das crianças no parque, tentativas de definição sobre o deslocamento das crianças, as formas de brincar e de se relacionar com as outras crianças. Ressalta-se a dificuldade por vezes observada na escuta da criança pelo adulto e na ausência de significados atribuídos aos seus gestos e movimentos, parecendo haver grandes distanciamentos entre eles. A normatividade e as visões adultocêntricas também são evidenciadas em estudos das infâncias, no entanto, o presente estudo ressalta a capacidade de resistência e de transgressão das crianças, ao construir suas próprias regras sobre como e com quem brincar, reafirmar suas escolhas e criar funções e objetivos novos para os espaços e os equipamentos que o parque oferece.

Como conclusão, o presente estudo pretendeu lançar luzes sobre as formas de apropriação que as crianças fazem dos parques e de suas relações com outras crianças e com os adultos. A pretensão foi contribuir com o debate sobre criança e cidade, com foco no parque enquanto espaço público, trazendo uma reflexão sobre as possibilidades de as crianças exercerem sua autonomia e capacidade de mobilidade e construírem culturas, em função da sua condição de cidadania e do seu direito à cidade.

As evidências quanto à capacidade das crianças de reinterpretarem espaços e equipamentos no parque nos apontam a necessidade de favorecer o desenvolvimento da criatividade e da autonomia nos usos desses espaços, com a oferta de possibilidades mais livres e menos dirigidas do que as atividades propostas pelos adultos para as crianças. O presente estudo questiona a postura adulta de controle e monitoramento da brincadeira das crianças e ressalta suas possibilidades de resistência e solução de conflitos, sem a interferência adulta. O reconhecimento dessas capacidades das crianças pelos adultos é importante no sentido de que a sociedade precisa compreender a cidadania das crianças e, assim, respeitá-las no seu direito à cidade. A pesquisa sobre as infâncias nas cidades tem um papel importante na garantia desse direito e na proposição de transformação social, subsidiando as políticas públicas, a gestão do espaço público e o planejamento urbano.

 

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Data de Recebimento: 31/01/2021
Data de Aprovação: 01/07/2021

 

 

Milene Morais Ferreira
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE/FUNDAJ, Recife, Brasil. Integrante do Grupo de Pesquisa Infância e Educação na Contemporaneidade (GPIEDUC) e do Grupo de Pesquisa Criança, Sociedade e Cultura (CRIAS), Brasil. Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Brasil.
E-mail: milenemorais2008@gmail.com
Patrícia Maria Uchôa Simões
Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Pós-Doutoramento em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Brasil. Docente e atual coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE/FUNDAJ, Recife, Brasil.
E-mail: pusimoes@gmail.com

 

 

1 Os nomes das crianças são fictícios para preservar suas identidades.

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