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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGO

 

Preferência lúdica de uma amostra de crianças e adolescentes da cidade de Vitória1

 

Playing preference of a sample of children and adolescents in the city of Vitória

 

 

Claudia Broetto RossettiI; Maria Thereza Costa Coelho de SouzaII

I Universidade Federal do Espírito Santo
II Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se investigar a preferência lúdica de 100 crianças e adolescentes brasileiros entre seis e 14 anos. Os resultados indicaram que meninas e meninos preferem jogos de regras, especialmente os praticados em espaços abertos. As meninas escolheram como jogo preferido “vôlei”, “basquete” ou “queimada”, enquanto os meninos preferiram “futebol” ou “videogame”. Constatou-se também que os jogos preferidos são jogados principalmente em casa, com irmãos e/ou amigos da escola, uma ou duas vezes por semana. Os adultos raramente foram citados como companheiros de jogo. Assim, jogos, brinquedos e brincadeiras continuam bastante presentes na vida das crianças e adolescentes, principalmente jogos de regras em espaços abertos e jogos eletrônicos.

Palavras-chave: Preferência lúdica, Jogos, Infância, Adolescência.


ABSTRACT

The aim of this research was to investigate the playing preference of a hundred Brazilian children and adolescents aged between six and fourteen years old. The majority of boys and girls prefer rule-based games in open spaces. Girls chose as a favorite game “volley”, “basketball” or “queimada”. Boys chose “soccer” and “videogame”. The favorite game was mainly played at home with brothers/sisters and/or schoolmates, once or twice a week. Adults were rarely cited as partners. Finally, it was verified that the games and toys are still important in the life of children and adolescents, specially the rule-based games in open spaces and the electronic games.

Keywords: Playing preference, Games, Childhood, Adolescence.


 

 

Introdução

Os jogos, as brincadeiras e os brinquedos encontram-se associados às crianças desde os primórdios da civilização humana, e, mesmo antes, no caso da infância dos grandes primatas. De fato, há uma surpreendente unanimidade de opiniões entre psicólogos, pedagogos e profissionais que cuidam da infância de uma maneira geral, que apontam para a importância das manifestações lúdicas como o modo espontâneo de meninas e meninos, de todos os grupos sociais e etnias, interagirem, se expressarem e se desenvolverem.

Uma análise mais ampla do tema indica que a pesquisa mundial sobre jogos tem aumentado em importância nas últimas décadas. De fato, parecem relevantes os dados quantitativos apresentados por Sutton-Smith (FROST, 1992), segundo os quais foram publicados aproximadamente setecentos artigos sobre jogos entre 1880 e 1980, sendo que pouco mais de uma dúzia datam de antes de 1930, enquanto mais de duzentos foram publicados somente na década de 1970.

Segundo Ruiz (1992), a preferência lúdica é um fenômeno relativamente efêmero e dependente de numerosos fatores como as modas infantis, as estações do ano, que permitem ou não a permanência ao ar livre, a influência de estímulos culturais como a televisão, os costumes sociais coletivos, as festas locais, o número de companheiros e brinquedos de que se dispõe etc. Dessa maneira, a preferência por um jogo ou por outro não deve ser tomada como um indicador exato de todos os processos psicológicos implicados no mesmo. Contudo, preferir um determinado jogo e não outro pode indicar que o jogo preferido é conhecido e dominado pela criança, pelo menos em um nível que lhe permite dizer que sabe como jogar esse jogo.

Dessa maneira, diversos estudos sobre a preferência lúdica de crianças e adolescentes têm revelado semelhanças e diferenças entre os jogos, brinquedos e brincadeiras preferidos em diferentes partes do mundo, com ênfase em aspectos diversos como: (a) a influência de diferentes ambientes de socialização na escolha do jogo preferido; (b) a percepção das crianças sobre as diferenças de gênero e os estereótipos sexuais presentes nos jogos e brincadeiras; (c) as concepções infantis sobre o brincar; (d) a influência do estilo cognitivo na escolha dos jogos e brinquedos preferidos e (e) fenômenos recentes da preferência lúdica como a escolha de jogos eletrônicos como preferidos.

Assim, Ruiz (1992) propôs, partindo da classificação piagetiana, uma nova classificação contendo três macrocategorias de jogos: jogos de ação, jogos de símbolos e jogos de regras. Na macrocategoria jogos de ação, a autora inclui todas as atividades simples de ação sobre objetos ou sobre o próprio corpo que visam o prazer da ação em si ou sucessos concretos, baseados na atividade física. Atividades como manipular areia, água, bolas etc., são classificadas como jogos de ação. Assim, as origens dos jogos de ação encontram-se no estágio sensório-motor, não desaparecendo nunca do conjunto de atividades humanas. Ainda segundo a autora, é sobre as ações típicas desses jogos que se dá a evolução até as outras formas de ação lúdica.

A autora distingue três subcategorias (ou categorias concretas) de jogos dentro da macrocategoria jogos de ação. Na primeira subcategoria, encontram-se os jogos motores-manipulativos, que derivam diretamente dos comportamentos sensório-motores. Na segunda subcategoria, estão os jogos de sucesso, que, apesar de ainda manterem o prazer de manipular, realizam-se também com a finalidade de construir algo ou de conseguir um sucesso específico, mais ou menos determinado pelo objeto que se manipula. Nesses jogos, a habilidade e a perfeição dos movimentos corporais são características secundárias, mas fundamentais. A terceira subcategoria de jogos de ação refere-se aos jogos eletrônicos, ou seja, “atividades lúdicas que, com um forte componente de ação, perseguem uma meta que vem marcada pelo desenho do brinquedo eletrônico que se manipula”. (RUIZ, 1992, p. 96).

A macrocategoria jogos de símbolos inclui, ainda segundo a autora, a relação entre significante e significado destacando-se como a característica principal ou o elemento que dá sentido ao jogo. Nesta macrocategoria, a autora identifica duas subcategorias (ou categorias concretas): jogos simples de símbolo e jogos simbólicos desenvolvidos ou sociodramáticos. Os jogos simples de símbolo são jogos elementares que, segundo a autora, se caracterizam por conter a fórmula significante/significado sem que se possa especificar-se o conteúdo da trama ou ficção representada, ou seja, “se caracterizam por uma dispersão dos elementos do significado e do significante que inunda toda a atividade infantil. Qualquer objeto pode ser empregado como se fosse outra coisa” (RUIZ, 1992). Por outro lado, nos jogos simbólicos desenvolvidos ou sociodramáticos, o simbolismo lúdico adquire estruturas representativas muito mais complexas. Nesses jogos, “um complexo sistema de símbolos se entrecruza com a ação e se acompanha de verbalizações em um contexto determinado, dando lugar a jogos sociais de alta complexidade representativa tanto em sua estrutura quanto em seu conteúdo” (RUIZ, 1992).

A terceira macrocategoria proposta é a dos jogos de regras. Nela estão todos os jogos baseados em uma série de normas objetivas compartilhadas pelos jogadores. De acordo com a autora, esses jogos são sempre sociais, já que devem ser compartilhados com os companheiros de jogo. A autora identifica duas subcategorias (ou categorias concretas) de jogos de regras: os jogos de regras em espaços abertos, ou jogos de rua, e os jogos de regras em espaços fechados, ou jogos de regra de mesa. Assim, segundo Ruiz (1992), os jogos de regras em espaços abertos são aqueles que precisam de um espaço suficientemente amplo para realizar ações que exigem deslocamentos dos sujeitos. Por outro lado, os jogos de regra de mesa, ainda que possam também ser jogados em espaços abertos, geralmente realizam-se em espaços fechados. Segundo a autora, nesse tipo de jogo, as regras “são impostas pela natureza do objeto ou brinquedo que determina o tipo de ações e verbalizações que o menino ou a menina se vêem obrigados a realizar”. (Ruiz, 1992, p. 98).

Dando continuidade à sua pesquisa, Ruiz (1992) apresenta uma vasta e completa revisão da literatura da área e realiza uma investigação sobre os jogos e brinquedos preferidos de 813 meninas e meninos da Espanha, entre quatro e 14 anos. Em uma segunda etapa da pesquisa, a autora investigou especificamente a importância dos jogos sociodramáticos na construção social do conhecimento.

Seguindo a mesma linha de trabalho, Denegri e Linaza (s/d) realizaram uma pesquisa com 160 sujeitos de ambos os sexos, entre seis e 15 anos, residentes em regiões urbanas (80 sujeitos) e rurais (80 sujeitos) do Chile, com o objetivo investigar a influência de diferentes ambientes de socialização na preferência lúdica dos sujeitos.

Um outro estudo amplo sobre o tema, do ponto de vista dos sujeitos, foi realizado por Mergen (1991), que estudou a preferência lúdica de adolescentes de uma cidade dos EUA, comparando os dados encontrados àqueles de uma pesquisa anterior, bastante abrangente sobre a preferência lúdica naquele país, realizada por Sutton-Smith e Roserberg em 1961. Houve uma predominância da atividade “assistir TV” em resposta à pergunta “O que você gosta de fazer para se divertir?”, tanto como uma atividade solitária quanto na companhia dos amigos. O autor também percebeu que, de uma maneira geral, os sujeitos entrevistados preferiam atividades “extramuros” (outdoors), mas atribuíam a essa expressão um valor diferente. Assim, são consideradas atividades extramuros todas aquelas que são desenvolvidas fora de casa, mesmo que seja em um local fechado.

Com o objetivo de investigar as percepções de crianças sobre as diferenças de gênero em jogos e brincadeiras, Carvalho, Beraldo, Santos et al. (1993) realizaram um estudo comparativo com crianças de cinco, oito e dez anos, de níveis socioeconômicos alto e baixo, residentes em São Paulo e Recife. As autoras partiram da hipótese da presença de pressões sociais diversas em ambientes sociais diferentes e, assim, buscaram investigar aspectos culturais do comportamento lúdico, abordando em particular as percepções de adequação sexual de brincadeiras por meninos e meninas de três faixas etárias e quatro contextos culturais diferentes. Não houve diferenças significativas nas respostas entre os sexos nas crianças de classe alta de São Paulo. Entre os demais sujeitos, no entanto, os meninos tenderam a se mostrar menos estereotipados que as meninas. As autoras ainda observaram que as respostas das crianças de nível socioeconômico baixo diferem menos das de nível socioeconômico alto em uma cidade menor, possivelmente porque o ambiente cultural interclasses seja mais estável.

Partindo do estudo descrito acima, Ortega, Cavarra, Rosa et al. (1999) realizaram uma pesquisa visando avaliar a influência das variáveis gênero e idade no tipo de jogo preferido por crianças. Os autores entrevistaram 360 sujeitos com idades entre cinco e 10 anos, alunos de escolas de classe média em Vitória, ES. Foi solicitado a cada sujeito que dissesse qual era o seu jogo preferido, como se joga esse jogo e se o jogo preferido era “mais de menino”, “mais de menina” ou “dos dois igual” e por quê. Os sujeitos de todas as idades preferem jogos de regras e a preferência por esse tipo de jogos aumenta com a idade. Pôde ser verificado também que os jogos preferidos de crianças de ambos os sexos são jogos de regras e que não há estereotipia sexual acentuada em relação aos jogos preferidos da amostra. Os autores verificaram ainda que, quando há estereótipo sexual, este é mais acentuado em meninos e que esta estereotipia não aumenta com a idade.

Ainda na mesma linha de pesquisa, Bonamigo e Koller (1993) buscaram verificar a influência dos estereótipos sexuais nos brinquedos das crianças de ambos os sexos, considerando a preferência por determinados brinquedos e a permissão que os sujeitos concediam ou não para outra criança brincar com um brinquedo estereotipado para o sexo oposto. O estudo aponta para a necessidade de evitar a estereotipia sexual tradicional que, segundo as autoras, em muitos aspectos é prejudicial às crianças por limitar as experiências lúdicas de meninos e meninas, experiências essas que se mostram fundamentais para um bom desenvolvimento afetivo e intelectual dos sujeitos.

De outro modo, com o objetivo de investigar, por meio de uma perspectiva metacognitiva 2, a concepção das próprias crianças acerca do brincar, Daudt, Sperb e Gomes (1992) realizaram uma pesquisa, com base na tese de que as crianças percebem e descrevem a atividade de brincar priorizando os meios ao invés dos fins. Do ponto de vista metodológico, este estudo mostra que, à luz de descrições temáticas, é possível agrupar as características do brinquedo em critérios, permitindo assim que se estabeleça um sentido comum sobre o que é este fenômeno desde o ponto de vista das próprias crianças.

Um fenômeno típico dos anos 1990 foi a popularização em massa dos jogos eletrônicos (videogames e jogos de computador) entre crianças e adolescentes. Por ser um fenômeno novo, diretamente relacionado ao avanço das novas formas de tecnologia, este tema tem despertado o interesse de muitos pesquisadores, como Campos, Yukumitsu, Fontealba et al. (1994), que realizaram uma pesquisa em São Paulo com o objetivo de caracterizar as preferências de um grupo de crianças e adolescentes em relação ao videogame.

Um outro estudo na área foi realizado por Buchman e Funk (1996), a fim de verificar a importância dos jogos eletrônicos violentos durante a década de 90, o qual contou com a participação de 900 meninos e meninas de quarta a oitava séries. Foram avaliados: (a) o tempo gasto jogando jogos eletrônicos em uma semana típica; (b) os jogos preferidos e (c) as diferenças de série e gênero na preferência lúdica.

Por fim, parece interessante analisar o trabalho realizado por Saracho (1994), que buscou relacionar a escolha e a prática de jogos e brincadeiras com os estilos cognitivos de crianças da educação infantil. Assim, o estilo cognitivo (dependentes e independentes) de 300 crianças entre três e cinco anos foi testado e a preferência lúdica de todos foi observada e registrada em vídeo.

Tendo como referência a literatura revisada, o presente trabalho objetiva investigar a preferência lúdica de uma amostra de crianças e adolescentes da cidade de Vitória, a partir do relato dos participantes sobre a prática de seus jogos preferidos. Objetiva-se, ainda, investigar a influência de variáveis como idade e gênero na preferência lúdica dos referidos participantes.

 

Método

Participaram da pesquisa 100 crianças e adolescentes, entre seis e 14 anos, sendo 50 meninas e 50 meninos, alunos de duas escolas particulares da Grande Vitória – ES, distribuídos de acordo com a tabela 1:

Tabela 1. Distribuição etária dos sujeitos que participaram da primeira etapa da pesquisa

 

 

Foram realizadas entrevistas individuais, de acordo com o método clínico-crítico de Piaget (1926/s/d), a partir do roteiro de entrevista abaixo:

Quadro 1. Roteiro de entrevista utilizado na coleta de dados

 

 

As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora e aconteceram nas dependências das escolas dos participantes durante o horário de aula. Os participantes foram entrevistados individualmente, em salas com bom isolamento acústico. Todas as entrevistas foram gravadas em fitas K-7 e posteriormente transcritas para análise.

 

Resultados e discussão

Durante a entrevista sobre a preferência lúdica, quase a unanimidade dos sujeitos respondeu que gosta de jogar. Quando perguntados sobre os jogos que mais gostavam os sujeitos responderam preferir uma variedade muito grande de jogos, como pode ser observado na Tabela 2:

Tabela 2 . Relação dos principais jogos preferidos pelos sujeitos da amostra

 

 

Assim, os jogos mais citados foram “futebol” (19%), “vôlei” (8%) e “basquete” (7%), sendo que enquanto “futebol” aparece como o jogo mais preferido pelos meninos, “vôlei” e “basquete” são mais preferidos pelas meninas.

Tendo em vista a enorme quantidade de jogos citados pelos sujeitos, buscou-se agrupar os jogos mencionados de acordo com a classificação proposta por Ruiz (1992). Assim, em primeiro lugar, meninas e meninos preferem jogos de regras em espaços abertos. Em segundo lugar, os meninos preferem jogos de ação eletrônicos e as meninas preferem jogos de regras em espaços fechados.

Vale ressaltar que, para Ruiz (1992), os jogos eletrônicos são classificados como jogos de ação e não como jogos de regras, pois, para a autora, o que predomina nesse tipo de jogo é o aspecto motor e a destreza, e as perícias manual e visual. Como esta foi uma classificação proposta já há mais de uma década e observando-se que, cada vez mais, os jogos eletrônicos têm se sofisticado em sua estrutura, talvez fosse o caso de propor uma revisão da teoria em questão – o que não é o objetivo do presente trabalho – com a finalidade de proporcionar o status devido ao fenômeno da proliferação dos jogos eletrônicos.

Chama a atenção também a baixa incidência de escolha de jogos simbólicos como preferidos, mesmo entre os sujeitos de seis e oito anos. Segundo a teoria proposta por Piaget (1946/1978), os jogos simbólicos seriam mais característicos do estágio pré-operatório (por volta de dois a sete anos) e os jogos de regras, por sua vez, seriam mais presentes a partir do período operatório concreto (que se inicia por volta de sete anos) em diante. No entanto, a escolha de determinado jogo de regras como preferido não implica necessariamente que esse jogo seja praticado como um jogo de regras. Assim, um determinado jogo de regras de mesa pode ser preferido por um sujeito de seis anos, mas este pode jogá-lo como se fosse um jogo simbólico, ou seja, mudando as regras, construindo novas regras etc.

Também foram investigados os tipos de jogos preferidos pelos sujeitos, de acordo com as diferentes faixas etárias estudadas, e constatou-se que, enquanto os jogos de regras em espaços abertos são cada vez mais preferidos à medida que aumenta a idade/série, os jogos de ação e simbólicos apenas aparecem nas séries iniciais e desaparecem nas seguintes. Essa evolução da preferência pelos tipos de jogos parece estar de acordo com a teoria proposta por Piaget (1946/1978).

Solicitou-se ainda aos participantes que dissessem por que preferiam o jogo em questão. Alguns sujeitos mencionaram mais de uma razão, o que justifica o total de respostas maior do que o de participantes, como pode ser observado na tabela 3. A análise dos dados contidos nessa tabela permite constatar que os sujeitos preferem seus jogos favoritos principalmente por estes serem “divertidos/legais” ou por “características intrínsecas ao próprio jogo”, como a quantidade de peças ou o fato de poder fazer determinados movimentos no jogo.

Observa-se que respostas do tipo “divertido/legal” aparecem como as mais citadas, enquanto a “competição” só aparece em oitavo lugar em relação ao jogo preferido. Esse dado pode indicar que os jogos que são preferidos, o são muito mais por seu caráter lúdico e de divertimento do que por qualquer característica ligada à competição ou à obrigação de vencer.

Tabela 3. Respostas à pergunta “por que você gosta do seu jogo preferido?” dos sujeitos da amostra

 

 

Foi solicitado também aos participantes que contassem como se joga o jogo que eles escolheram como preferidos. Na verdade, essa pergunta foi feita com o objetivo de, indiretamente, inferir o conhecimento dos sujeitos em relação às regras dos seus jogos preferidos. As respostas encontradas foram basicamente de três tipos: em 55% das respostas, podem-se encontrar descrições pormenorizadas da prática do jogo preferido, incluindo regras e objetivos. Um exemplo de resposta desse tipo segue-se abaixo:

THI (12a 8m, 6ª; série, masculino) “Futebol tem as regras... Você tem que ver quem vai ficar com a bola... Toca pra cá, toca pra lá, você tem que correr atrás da bola... Qualquer tipo de agressão física ou psicológica você pode tomar cartão. Cartão amarelo; se você levar outro amarelo você é expulso... Se você levar vermelho é expulso logo... O objetivo é fazer gol...”

Por outro lado, 28% dos participantes forneceram descrições amplas de alguns aspectos envolvidos na prática do jogo; citaram algumas regras gerais, sem, no entanto, serem citados os objetivos do mesmo, como por exemplo,

BRU (8ª, 2ª série, feminino) “Você pega a bola e vai quicando... Você tenta jogar várias vezes na cesta. Quica e tenta jogar... Eu não sei como se ganha o jogo...”

Em um terceiro tipo de resposta, 6% dos sujeitos entrevistados apenas enunciaram o objetivo do jogo, sem comentar, no entanto, as regras e estratégias necessárias para atingir esse objetivo.

É interessante observar que 3% dos sujeitos entrevistados disseram não saber explicar/jogar o jogo preferido e 8% dos sujeitos deram respostas que não puderam ser incluídas em nenhuma das categorias acima.

Observou-se que as respostas se apresentam distribuídas, de uma maneira geral, de forma equilibrada entre as diferentes idades/séries, com destaque para a categoria “enuncia regras e objetivos" que se mantêm quase sempre como a mais presente nas diferentes faixas etárias, o que demonstra que, em linhas gerais, os sujeitos parecem conhecer as regras de seus jogos favoritos.

Também foi feita uma pergunta sobre o que é necessário para jogar o jogo preferido, com possibilidade de dar respostas múltiplas, o que explica o número maior de respostas do que o de participantes.

A Tabela 4 mostra que é possível distinguir claramente alguns tipos de resposta à pergunta em questão, sobre o que é necessário para jogar o jogo preferido. De fato, ocorreram 87 citações de “objetos inerentes ao jogo”, do tipo peças, tabuleiro, jogadores, uniformes etc., ou seja, a parte material necessária à prática do mesmo. Em segundo lugar, são necessários “atributos psicológicos” (50 citações) como atenção, calma, raciocínio etc., ou “atributos físicos” (27 citações) como estatura física, força, destreza etc. Aparecem também as categorias “parceiros/companheiros” (14 citações) e “tempo/espaço” (seis citações).

Tabela 4. O que é preciso para jogar o jogo preferido, segundo os meninos e meninas da amostra

 

 

Assim, constatou-se que enquanto a categoria “objetos inerentes ao jogo” tende a se tornar muito menos freqüente à medida que aumenta a idade/série, a categoria “atributos psicológicos” tende a se tornar cada vez mais freqüente. Esse fato parece indicar que, à medida que vão ficando mais velhos, os sujeitos tendem a priorizar em seus jogos preferidos aspectos mais subjetivos e internos, por oposição à predominância de aspectos materiais e externos entre os sujeitos mais novos. Essa tendência nos tipos de respostas parece estar bastante de acordo com o que propõe Piaget (1946/1978) em relação às etapas do desenvolvimento cognitivo, como já discutido acima.

Uma outra pergunta feita aos sujeitos foi sobre com quem eles costumam jogar o jogo preferido. Observou-se que os parceiros de jogo mais citados foram os “pais/irmãos/parentes” (28%), os “colegas da escola” (25%) e os “amigos de onde se mora” (19%). Um detalhe interessante é que os professores (nem mesmo os de Educação Física) nunca aparecem como parceiros de jogo.

No entanto, pode-se também observar que, à medida que a idade/série aumenta, a categoria “pais/irmãos/parentes” vai se tornando menos freqüente, até desaparecer por completo na oitava série. Assim, os membros da família vão sendo substituídos pelos amigos nas atividades lúdicas, à medida que as crianças vão se tornando adolescentes.

Também foi solicitado aos participantes que se relatasse qual o lugar em que mais praticavam seus jogos preferidos. Observou-se que o espaço protegido da casa, das quadras e campos dos condomínios é, freqüentemente, o lugar onde mais se joga (51%). A quadra da escola também aparece (22%), mas quase que somente relacionada às aulas de educação física. Os clubes, academias e escolinhas específicas também foram citados por 10% dos sujeitos. Parece importante assinalar que ainda há aqueles que moram em casas e que brincam na rua com os vizinhos, principalmente à noite (8%).

Analisando os mesmos dados em relação às diferentes faixas etárias dos sujeitos, é possível perceber que enquanto a categoria “em casa” vai se tornando cada vez menos freqüente como lugar da prática do jogo preferido, as categorias “na escola” e “na casa de amigos/parentes” vão se tornando cada vez mais freqüentes, à medida que a idade/série aumenta. Essas respostas também parecem estar de acordo com o anteriormente discutido a respeito dos companheiros de jogo.

Perguntou-se também aos participantes com que freqüência jogavam o seu jogo favorito, a fim de verificar a hipótese inicial de que a escolha do jogo preferido estaria relacionada à prática constante do mesmo. Assim, pode-se constatar que os jogos preferidos em geral são praticados uma (20%) ou duas vezes (19%) por semana, principalmente nos fins de semana.

Observou-se ainda que as freqüências da prática do jogo preferido encontram-se distribuídas de uma maneira relativamente uniforme nas diferentes faixas etárias e que há sempre o predomínio da freqüência de uma ou duas vezes por semana da prática desses jogos. Assim, pode-se inferir que, para a média dos sujeitos, os jogos preferidos são praticados uma ou duas vezes por semana, geralmente nos fins de semana, o que determina uma prática regular, ainda que não tão intensa. Esse panorama parece confirmar em parte a hipótese de que a freqüência da prática do jogo preferido é uma variável importante em relação à determinação da preferência lúdica dos sujeitos.

Uma outra pergunta feita aos sujeitos foi sobre os jogos que eles menos gostavam. A tabulação das respostas mostrou que os jogos menos preferidos são “futebol”, “basquete” e “vôlei”, ou seja, exatamente os mesmos três jogos de regras em espaços abertos que foram os mais escolhidos como preferidos pelos sujeitos da amostra. A diferença parece estar em quem escolhe qual jogo como preferido. De fato, o jogo mais rejeitado pelas meninas foi o “futebol” e os mais rejeitados por meninos foram “basquete” e “vôlei”.

Contudo, pode-se constatar que os jogos de regras em espaços abertos são o tipo de jogo menos preferido, seguido pelos jogos de regras em espaços fechados (de mesa). Dessa maneira, conclui-se que a categoria dos jogos de regras é, ao mesmo tempo, a mais preferida e a menos preferida dos sujeitos entrevistados. Uma possível explicação para esse fato talvez se encontre nas respostas dadas por alguns sujeitos que escolheram jogos de ação eletrônicos como menos preferidos e justificaram dizendo que já haviam jogado tanto os referidos jogos que haviam “enjoado” dos mesmos. Se for assim, muitos jogos menos preferidos de hoje podem ter sido jogos preferidos de ontem.

Uma outra hipótese refere-se a uma oposição relacionada a comportamentos estereotipados relacionados ao gênero, ou seja, meninas, por exemplo, que escolheram o “vôlei” como jogo preferido, freqüentemente escolheram o “futebol” como jogo menos preferido, justificando que este é “jogo de menino”, “muito violento” etc.

Dessa maneira, pode-se observar que, enquanto os jogos de regras em espaços abertos vão sendo mais escolhidos como menos preferidos, os jogos de regras em espaços fechados vão sendo menos escolhidos como menos preferidos à medida que a idade/série aumenta. Ou seja, a rejeição aos jogos de mesa parece ficar menor à medida que aumenta a idade dos sujeitos. Não foi possível, até o momento, formular uma hipótese para tentar explicar tais condutas.

Em seguida, foi solicitado aos participantes que dissessem por que haviam escolhido tais jogos como menos preferidos. Também com a possibilidade de dar respostas múltiplas, o que explica o número maior de respostas do que o de participantes. Assim, as categorias “é muito chato/enjoado/monótono/demorado” (26 citações) e “não tem a habilidade/força necessária” (20 citações) foram as mais citadas, ou seja, pode-se inferir que um número considerável de sujeitos não gosta dos jogos que escolheu como menos preferidos por julgar que não tem a habilidade e/ou a força para jogar bem determinado jogo. Dessa maneira, já que não dá para jogar bem, o jogo é escolhido como menos preferido.

Outras categorias que também apareceram foram “é muito violento/machuca” (17 citações), “é muito difícil” (seis citações). É interessante ressaltar que muitos sujeitos (13 citações) não sabiam ou não lembravam porque não gostavam do jogo menos favorito.

Por último, foi proposto um cruzamento dos dados referentes aos jogos mais preferidos com aqueles dos jogos menos preferidos pelos sujeitos da amostra, com o objetivo de verificar a hipótese de associação entre as variáveis, por meio do teste estatístico tau de Goodman e Kruskal (AGRESTI, 1990) 3. Esse cruzamento pareceu relevante quando se observou o dado curioso dos mesmos tipos de jogos aparecerem freqüentemente como mais e menos preferidos pelos sujeitos. De fato, em um primeiro momento, imaginou-se que a maioria dos pares de jogos mais e menos preferidos para cada sujeito seria formada por tipos de jogos diferentes ou antagônicos. Nesse caso, seriam obtidas respostas do tipo “sujeito ‘a’ prefere determinado jogo de regras em espaços abertos e menos prefere determinado jogo de ação eletrônico”, o que nem sempre ocorreu. Os resultados dos cruzamentos em questão encontram-se na tabela 5. Assim, nesta tabela , se analisarmos a variável “jogo preferido” em relação à variável “jogo menos preferido”, temos uma associação significativa entre as variáveis (p < 0,0001), com valor moderado (tau = 0,510). Por outro lado, quando analisamos a variável “jogo menos preferido” em relação à variável “jogo preferido”, também temos uma associação significativa e moderada entre as variáveis (p < 0,0001 e tau = 0,488). Isso quer dizer que saber qual o jogo preferido do total da amostra dos sujeitos ajuda em cerca de 50% para saber qual o jogo menos preferido dessa mesma amostra e vice-versa.

Tabela 5. Associação dos jogos preferidos com os jogos menos preferidos dos sujeitos da amostra

 

 

Dessa maneira, pode-se observar que, para 41 sujeitos da amostra, os jogos de regras em espaços abertos são os mais preferidos e os menos preferidos. Um exemplo de resposta típica encontrada na amostra, sobretudo entre as meninas, é a resposta de ROB (10 a, 4ª série) que escolheu como jogo preferido o “vôlei”, que é um jogo de regras em espaço aberto, e como jogo que menos gosta o “futebol”, que é igualmente um jogo de regras em espaço aberto.

Já para 17 sujeitos da amostra os jogos de regras em espaços fechados foram escolhidos ao mesmo tempo como jogos mais preferidos e menos preferidos. Um exemplo é a preferência lúdica de BAR (oito a e 9 m, 2ª série) que escolheu como preferido o jogo de regras em espaços fechados “jogo da velha” e afirmou que o jogo que menos gosta é o “baralho”, que também é um jogo de regras em espaços fechados.

Finalmente, para 16 sujeitos da amostra, os jogos de ação eletrônicos são ao mesmo tempo os mais preferidos e os menos preferidos. Um exemplo desse tipo de preferência lúdica aparece nas respostas dadas por MAI (10 a e 10 m, 4ª série) que escolheu como preferido o jogo de ação eletrônico “The Syms” e como jogo que menos gosta um outro jogo de ação eletrônico chamado “Doom”.

Assim, esse cruzamento de dados demonstra que, surpreendentemente, muitos sujeitos da amostra escolheram o mesmo tipo de jogo como preferido e menos preferido. Tais resultados talvez apontem para o fato de que um determinado jogo pode ter-se tornado menos preferido após ter sido jogado até a exaustão, o que indicaria uma outra implicação da prática freqüente de um jogo. Também é possível supor que os jogos mais preferidos e menos preferidos apresentem diferenças significativas em termos de características e regras.

Dessa maneira, pode-se concluir que os jogos de regras dominaram o panorama da contextualização dos jogos mais e menos preferidos. Esse resultado parece estar de acordo com a teoria proposta por Piaget (1946/1978) que afirma que a preferência por tipos diferentes de jogos está relacionada aos diferentes níveis de desenvolvimento cognitivo. Assim, jogos de regras seriam tipicamente preferidos por sujeitos cujo desenvolvimento cognitivo já tenha alcançado o nível operatório (aproximadamente a partir dos sete anos em diante), no qual provavelmente se encontra a grande maioria dos sujeitos entrevistados na presente pesquisa.

 

Conclusões

Os dados apresentados e discutidos acima mostraram que os jogos preferidos são jogados principalmente em casa (no caso dos participantes que moram em apartamentos, em áreas como quadras e playground), com irmãos e/ou amigos da escola, uma ou duas vezes por semana. O fato dos adultos raramente serem citados como companheiros de jogo e dos professores nunca serem mencionados nessa função merece uma reflexão. De fato, parece que a lógica da separação entre o mundo adulto (relacionado à produção de bens, ao trabalho) e o mundo infantil (relacionado ao prazer e ao divertimento) continua muito presente nos dias atuais. Este fato parece ser agravado, por um lado, pela dificuldade crescente dos pais de obter tempo para ficar com os filhos e, por outro, pela dificuldade histórica que as atividades lúdicas têm enfrentado para se inserirem no cotidiano da vida escolar como um todo e não apenas nas aulas de educação física.

Constatou-se também que os jogos preferidos por meninas e meninos são, sobretudo, os jogos de regras, e dentre esses, a maioria dos sujeitos prefere os jogos de regras em espaços abertos, ainda que a escolha de um jogo preferido nem sempre esteja relacionada à prática freqüente do mesmo ou ao domínio pleno de suas regras e estratégias.

Os jogos e brincadeiras são preferidos muito mais pelo divertimento que podem proporcionar, ou seja, pelas características de ludicidade próprias dos mesmos, do que por características relacionadas à competição, por exemplo. Esse dado chama a atenção em uma época onde há tamanha ênfase dos aspectos competitivos em todas as esferas da vida. Parece que, no caso da preferência lúdica, a escolha continua sendo mais pautada na possibilidade de divertimento e prazer que pode advir da prática de determinado jogo ou brincadeira.

Por fim, os resultados apresentados e discutidos acima permitem concluir que, de uma maneira geral, jogos, brinquedos e brincadeiras continuam bastante presentes na rotina diária das crianças e adolescentes entrevistados, com destaque para os jogos de regras em espaços abertos e para os jogos eletrônicos.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Claudia Broetto Rossetti
UFES – Depto. de Psicologia – Cemuni VI
Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras
29075-910 – Vitória – ES
Telefax: 27-3335-2504
cbroetto@npd.ufes.br

Tramitação:
Recebido em: 01/03/2005
Aceito em: 29/06/2005

 

 

1 Artigo derivado da Tese de Doutorado intitulada "Preferência lúdica e jogos de regras: um estudo com crianças e adolescentes entre seis e quatorze anos", defendida pela primeira autora, sob orientação da segunda autora, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em Novembro de 2001, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

2 Segundo Coll, Palácios e Marchesi (1995) o termo metacognição apresenta-se muitas vezes de uma maneira muito ampla e ambígua. Por um lado, pode referir-se ao conhecimento que o indivíduo pode alcançar sobre seus próprios processos mentais e por outro, ao efeito que esse conhecimento exercerá sobre suas condutas. Na pesquisa relatada, os autores parecem utilizar o termo mais de acordo com o primeiro significado proposto.

3 O teste estatístico tau busca inferior o valor de uma medida de associação entre duas variáveis, onde os valores de tau se situam entre 0 (zero) e 1 (um). Valores pequenos de tau (próximos de zero) significam associação fraca entre as variaveis, entretanto valores altos (próximos de 1), significam associação forte. No reste de significância da associação foi adotado um nível de 5% de significância (p = 0,05).