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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.11 no.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Qual corpo para a psicanálise? Breve ensaio sobre o problema do corpo na obra de Freud

 

Which body for psychoanalysis? A short essay on the body´s problem in the work of Freud

 

¿Qué cuerpo para el psicoanálisis? Un breve ensayo sobre el problema del cuerpo en la obra de Freud

 

 

Monah Winograd; Larissa da Costa Mendes

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Não há, na teoria freudiana, um conceito de "corpo", embora ele esteja presente como problema ainda que implicitamente. Mas, afinal, de qual corpo se trata em psicanálise? O objetivo deste artigo é demonstrar que Freud não considerava o corpo apenas em seu aspecto simbólico e imaginário, tendo sempre levado em conta o fato de que o corpo é também matéria, sendo sua biologia igualmente determinante, em maior ou menor grau, do que se passa no indivíduo. Para tanto, são investigadas três temáticas: (1) o conceito de pulsão entendido como um ponto de indiscernibilidade entre o corpo como organismo e o corpo como sujeito, (2) a constituição do Eu sobre uma base corporal que o determina e (3) os sintomas histéricos e a noção de complacência somática, a qual introduz a consideração da materialidade orgânica e biológica do corpo nas formulações sobre a etiologia dos sintomas conversivos.

Palavras-chave: Corpo, Pulsão, Eu, Complacência, Psicanálise.


ABSTRACT

The freudian theory does not present a concept of the "Body", although it is there as an implicit problem. But which is the that Body psychoanalysis deals with, after all? The objective of this article is to demonstrate that Freud did not consider the Body only in its symbolic and imaginary aspects, having always taken in account the fact that the Body is also substance, being its biology equally determinant, in greater or minor degree, of what happens in the individual. To demonstrate it, three thematics are investigated: (1) the concept of drive, understood as a point of connection between the Body as an organism and the Body as a subject, (2) the constitution of the Ego on a corporal basis that determines it and (3) the hysterical symptoms and the notion of somatic complacency, which introduces the consideration of the organic and biological materiality of the Body in the etiology of the conversive symptoms.

Keywords: Body, Drive, I, Complacency, Psychoanalysis.


RESUMEN

No tiene, en la teoría del freudiana, un concepto del "cuerpo", sin embargo estea presente como problema a pesar de implícito. ¿Pero que cuerpo si se ocupa el psicoanálisis? El objetivo de este artículo es demonstrar que Freud no consideraba el cuerpo solamente em su aspecto simbólico e imaginario, tomando siempre en cuenta el hecho de que el cuerpo ES también sustancia, siendo su biología igualmente determinativa, em un grado de mayor o de menor importancia, de qué se passa en el individuo. Para tanto, se investigan tres temáticas: (1) el concepto de pulsión, entendido como punto de indiscernibilidad entre el cuerpo como organismo y el cuerpo como sujeto, (2) la constitución del Yo en una base corporal que La determina y (3) los síntomas histéricos y la noción de complacência somática, que introduce la consideración de la materialidad orgánica y biológica del cuerpo en las formulaciones acerca de la etiología de los síntomas conversivos.

Palabras clave: Cuerpo, Pulsión, Yo, Complacência, Psicoanálisis.


 

 

Introdução

Objeto de vários campos de saber, o corpo é um problema transdisciplinar, lugar de interseção de perspectivas múltiplas. Em uma de suas acepções correntes, "corpo" pode designar toda substância material que se apresente à percepção como um grupo permanente e estável de qualidades, independentemente do sujeito que percebe. Nesse sentido, é objeto, admitindo entre suas partes e entre ele mesmo e os outros objetos apenas relações exteriores e mecânicas, tal como o corpo-organismo estudado pelo fisiologista, pelo médico, pelo biólogo, entre outros. Abarcando o corpo-próprio, designa também o centro da existência do indivíduo e, ao mesmo tempo, sua potência de perceber, pensar e agir, definindo-se como modo de inserção do sujeito no mundo. Daí ser também, de um lado, histórico, social, tecido pela cultura através dos tempos e estudado pela sociologia, pela antropologia, pela psicologia social etc., e, de outro lado, individual, representado simbólica e imaginariamente, absorvido e transformado pela representação, marcando e constituindo a história singular de cada um: corpo-sujeito.

Na teoria freudiana, de qual corpo se trata? Ora, o corpo não pertence ao edifício conceitual construído por Freud do mesmo modo que, por exemplo, os conceitos de inconsciente, libido, transferência ou aparato psíquico, como atesta a escassez de artigos ou comentários sobre a noção de corpo nos vocabulários e dicionários de psicanálise. Somente o Dicionário internacional da psicanálise (MIJOLLA, 2002) traz um verbete a respeito, incluindo entradas e noções variadas não pertencentes necessariamente ao campo psicanalítico, tais como "crença", "deusa-mãe", entre outras. Isso poderia ser explicado pela afirmação de que a psicanálise é, como o nome já indica, uma psico-análise, uma análise da "alma" ou do psiquismo1, e investigar os lugares do corpo na teoria freudiana (psicanalítica) seria investigar a função do corpo, como conceito e realidade, numa disciplina que se dirigiria inteiramente para a investigação do psiquismo humano. Resumido deste modo, o problema do corpo na teoria freudiana equivaleria ao problema do corpo numa doutrina filosófica dualista, tal como a cartesiana: de um lado, a res extensa e, de outro, a res cogitans, substâncias autônomas e independentes – o que absolutamente não é o caso. Ainda que a psicanálise possa ser definida como uma análise do psiquismo e que Freud não tenha se preocupado explicitamente em estabelecer uma doutrina específica das relações entre psiquismo e corpo, este último pertence de modo crucial ao ambiente empírico e nocional posto em jogo pela psicanálise. Ou seja, se o corpo (organismo e sujeito) não é um conceito técnico do freudismo, ele é, todavia, onipresente, mesmo implicitamente, raramente abordado por si mesmo e em si mesmo na metapsico-logia freudiana. Mais recentemente, o campo psicanalítico se debruçou sobre essa problemática de modo mais constante e insistente, como demonstra a proliferação de estudos a respeito na literatura, quer especificamente sobre o problema do corpo em Freud, quer articulando essa questão a outras, tais como a transferência ou os sintomas psicossomáticos (LAZZARINI; VIANA, 2006; FERRAZ, 2007; FONSECA, 2007; DIAS et al., 2008; BERGÈS, 2008; VILLA, 2008; LIONÇO, 2008;). Contudo, como o objetivo deste artigo é lançar luz especificamente sobre os corpos em jogo na teoria freudiana, serão investigados particularmente seus escritos e as formulações de alguns comentadores que auxiliem a desdobrar essa problemática.

De saída, não se devem negligenciar os dados estritamente históricos e biográficos: Freud era por formação um médico especializado em neurologia, e o positivismo científico era uma característica da Viena dessa época, quando ele começou a trabalhar. Um de seus mestres foi Ernst Brücke, eminente fisiologista para quem as únicas forças ativas no organismo eram as forças físico-químicas, o que justificava a intenção de trazer a investigação do psiquismo e da conduta humanos para o quadro das ciências naturais. Incontestavelmente, os primeiros escritos de Freud trazem a marca dos postulados positivistas transmitidos por Brücke, mesmo que deem um passo adiante: é, particularmente, o caso do Projeto, cujo propósito era fazer entrar a psicologia no quadro das ciências naturais, ou seja, "[...] representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim estes processos claros e livres de contradição" (FREUD, 2006b, p. 403). Mesmo que esse texto tenha sido escrito depois dos Estudos sobre histeria (1893-1895), no qual alguns conceitos importantes para o desenvolvimento ulterior da teoria foram delineados, não se pode negar a Freud a pertença ao seu tempo: ele era neurologista e, como tal, parecia aceitar a tese de que os mecanismos psíquicos ocorrem em e derivam de um corpo orgânico e biológico, são por ele determinados em parte – ainda que não fosse possível explicar essa determinação – e devem, em certa medida, ser abordados a partir dessa perspectiva.

Pouco a pouco, porém, a questão do corpo no freudismo se tornou o problema do lugar do corpo em uma pesquisa elaborada contra as teorias neurológicas que viam nas lesões orgânicas a etiologia exclusiva das chamadas "doenças da alma", particularmente a histeria. Como relembra Freud (2006j, p. 239), os neurologistas do final do século XIX.

[...] não sabiam o que fazer do fator psíquico e não podiam entendê-lo. Deixavam-no aos filósofos, aos místicos e aos charlatães: consideravam não científico ter qualquer coisa a ver com ele. Por conseguinte, não podiam encontrar qualquer abordagem aos segredos das neuroses, e, em particular, da enigmática "histeria", que, na verdade, era o protótipo de toda espécie.

O corpo histérico não se assujeitava a uma aproximação puramente fisicalista, revelando ser mais do que somente orgânico e biológico e exigindo considerações a partir de outro ponto de vista.

Mas bastaria substituir um corpo pelo outro? Com efeito, quando Freud sublinha que os problemas somáticos observados em seus pacientes histéricos são produzidos por processos psíquicos (inconscientes), ele não fala do corpo do mesmo modo que os neurologistas ou fisiologistas. Contudo, também não se trata de libertar o psiquismo do reducionismo fisicalista para impô-lo, em um movimento reverso igualmente reducionista, ao corpo – mesmo esse corpo, no qual os sintomas histéricos se manifestam, não sendo entendido mais como origem, causa ou natureza, mesmo ele tendo se tornado palavra, signo e expressão. Certamente, a noção de corpo suposta em Freud é mais larga do que a de um corpo-objeto particularizado em um corpo-organismo, pois é também sujeito (BIRMAN, 2005), o que não significa que o corpo, em sua materialidade biológica e orgânica, esteja, por isso, necessariamente excluído como um fator determinante dos processos psíquicos.

A relevância dessa questão se faz notar pela constatação de que boa parte do campo psicanalítico, sobretudo a que sofreu forte influência da escola francesa (cf. MILÁN-RAMOS, 2007; BURGARELLI, 2007), tem sido marcada pela fetichização teórica e clínica do aspecto simbólico e imaginário do corpo, negligenciando o quanto sua natureza orgânica e biológica participa de modo determinante da configuração, da ocorrência e dos destinos dos processos psíquicos. Importa mencionar que isso vem mudando nos últimos tempos (cf. CUKIERT, 2004; FERREIRA, 2008). Neste artigo, pretende-se demonstrar que Freud não considerava o corpo apenas em seu aspecto simbólico e imaginário, tendo sempre levado em conta o fato de que o corpo é também biológico e orgânico.

Para introduzir o problema, é interessante investigar três temáticas que permitem perceber como o corpo é tratado na teoria freudiana. São elas: (1) o conceito de pulsão, que destaca um ponto de indiscernibilidade entre o corpo-organismo e o corpo-sujeito; (2) a constituição do Eu, a qual permite perceber como o corpo é a base sobre a qual o psiquismo se constitui, como ele determina essa mesma constituição e, ainda, como ele se torna corpo-próprio ao ser representado psiquicamente; e (3) os sintomas histéricos e a noção de complacência somática, a qual introduz a consideração da materialidade orgânica e biológica do corpo nas formulações sobre a etiologia dos sintomas conversivos, revelando o corpo-organismo no corpo-sujeito.

Para introduzir o problema, é interessante investigar três temáticas que permitem perceber como o corpo é tratado na teoria freudiana. São elas: (1) o conceito de pulsão, que destaca um ponto de indiscernibilidade entre o corpo-organismo e o corpo-sujeito; (2) a constituição do Eu, a qual permite perceber como o corpo é a base sobre a qual o psiquismo se constitui, como ele determina essa mesma constituição e, ainda, como ele se torna corpo-próprio ao ser representado psiquicamente; e (3) os sintomas histéricos e a noção de complacência somática, a qual introduz a consideração da materialidade orgânica e biológica do corpo nas formulações sobre a etiologia dos sintomas conversivos, revelando o corpo-organismo no corpo-sujeito.

Revisão e análise teóricas

Entre o corpo e o psiquismo: a pulsão

Definido em termos metapsicológicos como "[...] um conceito fronteiriço [Grenzbegriff] entre o anímico e o somático, como um representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a alma” (FREUD, 2006h, p. 117)2, o conceito de pulsão pode ajudar a entender como o corpo se apresenta nas formulações freudianas. Em alemão, Grenz significa fronteira ou limite, e Begriff quer dizer "conceito". Em termos geográficos, uma fronteira é a parte de um território que entesta com outro território, uma linha divisória não necessariamente fina. Nos trechos em que é vigiada e controlada, uma fronteira é uma faixa de terra de largura extensa, pertencente simultaneamente a ambos os territórios. A pulsão, por ser um Grenzbegriff, pode ser visualizada como essa faixa de terra de largura extensa, pertencente simultaneamente ao anímico e ao somático. Por definição, a pulsão se origina no interior do organismo e exerce uma ação constante sobre o psiquismo, da qual é impossível se furtar. Ela é, como diz Freud (2006h, p. 142), "[...] como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo".

Na tradução brasileira das obras completas de Freud, o termo Trieb é traduzido por instinto, o que dá margem a uma indistinção semântica entre as pulsões e as funções orgânicas. Tal indistinção encontra eco, em grande parte, na hipótese freudiana do apoio das pulsões sexuais sobre as pulsões de autoconservação (que consistem nas funções corporais que servem à conservação da vida individual). Porém, Freud jamais fez uso do termo instinto para se referir às pulsões, ainda que as pulsões de autoconservação, identificadas às funções biológicas que conservam a vida, pudessem ser designadas por tal termo, entendido como padrão de resposta inato e adaptativo.

Segundo as formulações de Freud (2006f), as pulsões sexuais estariam apoiadas inicialmente nas funções vitais (pulsões de autoconservação) e só secundariamente se tornariam independentes (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004). O exemplo mais célebre de tal relação é a atividade oral do bebê, a qual associa inicialmente a satisfação da zona erógena oral e a satisfação da necessidade de se alimentar do leite materno. O objeto buscado para a satisfação da necessidade de nutrição é o seio, mas o prazer obtido é irredutível à satisfação da fome, e, muito rapidamente, a necessidade de repetir a satisfação erógena se torna independente da nutrição. A culminância desse processo se dá com o abandono do objeto exterior – também fonte de satisfação da pulsão de autoconservação – como fonte de prazer erógeno em prol de uma satisfação em zonas do próprio corpo. Por exemplo, sugando o dedo, a criança buscaria o prazer obtido anteriormente e agora divorciado da necessidade de alimentação.

Portanto, a noção de apoio pressupõe uma coincidência inicial entre instinto e pulsão, revelando uma indiscernibilidade primária entre ambos. Dito de outro modo, o apoio inicial da pulsão nas necessidades vitais, sobretudo a nutrição, torna as experiências tanto de satisfação da necessidade quanto de prazer sexual inicialmente coincidentes (GARCIAROZA, 2004). Nesse sentido, pode-se inferir que não há separação ou intervalo inicial entre o pulsional e o biológico: eles se implicam, se sustentam e se garantem mutuamente. Tanto a vida pulsional depende da vida biológica quanto a vida biológica é assegurada pela vida pulsional: são instâncias contínuas e coextensivas (ANDRADE, 2003b).

Possivelmente por esse motivo, ao apresentar suas formulações sobre a noção de apoio e o conceito de pulsão, Freud (2006f, p. 125) apontava para as fronteiras, os pontos de conjunção e de disjunção entre os campos da biologia e da psicanálise:

A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar sobre a biologia da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação psicológica; era-me lícito assinalar os pontos de contato e concordância resultantes dessa investigação, mas não havia por que me desconcertar com o fato do método psicanalítico, em muitos pontos importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente diversos dos de base meramente biológica.

No artigo de metapsicologia consagrado à amarração do conceito, Freud (2006h) começa a extrair os elementos da pulsão da fisiologia. Dela, o metapsicólogo já tinha a idéia de estímulo e o esquema do reflexo, segundo o qual um estímulo trazido para um tecido vivo desde fora é descarregado para fora através de uma ação acorde aos fins, pois afasta a substância estimulada das influências do estímulo. A essas ideias, Freud acrescenta algumas especificações: a pulsão é um estímulo provindo do interior do corpo que atua como força constante incoercível por ações de fuga. E destaca quatro elementos: (1) a pressão: a soma da força ou a medida da exigência de trabalho para o psiquismo; (2) a fonte: o corpo e seus órgãos em seus ritmos e composições materiais diferenciados; (3) o objeto: variável ao infinito, por meio do qual a pulsão encontra sua satisfação; e (4) o alvo ou a meta: a satisfação pela descarga conforme o modelo do arco-reflexo. Pressão, fonte, objeto e alvo: seja qual for a classificação das pulsões com a qual o metapsicólogo trabalhe, serão sempre esses os elementos fundamentais do conceito freudiano de pulsão.

Contudo, se a fonte da pulsão é o corpo biológico, seus órgãos e seus processos orgânicos, seus destinos envolvem os processos psíquicos que, por sua vez, retornam diretamente sobre esse corpo, agindo sobre ele e transformando-o. Derivada do corpo, a pulsão retorna sobre ele e faz dele, ao mesmo tempo, origem e destino. Freud (2006h) identifica quatro destinos da pulsão: a reversão ao seu oposto, o retorno sobre a própria pessoa, o recalque e a sublimação. O primeiro consiste, basicamente, em uma mudança da atividade para a passividade. A reversão afeta apenas a finalidade da pulsão, sendo o modo ativo de obtenção da descarga substituído pelo modo passivo. Já o retorno sobre si mesmo (self) consiste no direcionamento do investimento pulsional para o próprio indivíduo, em vez dos objetos externos, coincidindo em parte com o processo de reversão ao seu oposto. A essência desse processo corresponde a uma mudança de objeto, enquanto a finalidade permanece inalterada. Ainda outro destino possível da pulsão é encontrar resistências à sua satisfação por meio do mecanismo do recalcamento, pois, embora a satisfação da pulsão seja em si mesma prazerosa, a descarga pode ser incompatível com as exigências feitas por uma das instâncias psíquicas, causando um desprazer cuja magnitude supera o prazer da satisfação. Quanto ao quarto destino da pulsão, a sublimação, Freud (2006g, p. 101) oferece uma definição no texto Uma introdução ao narcisismo: "A sublimação é um processo que diz respeito à libido de objeto e consiste em que a pulsão se volta para outra meta, distante da satisfação sexual; o acento recai então no desvio em relação ao sexual". A sublimação consiste, assim, na modificação do alvo e na mudança do objeto. São exemplos de sublimação a atividade artística ou intelectual, entre outras.

Tais destinos pulsionais referem-se exclusivamente à pulsão sexual e foram formulados no âmbito da primeira teoria pulsional que opunha pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, embora possam ser estendidos para a segunda teoria pulsional. Em 1920, no texto Para além do principio do prazer, tal teoria será definitivamente substituída por uma nova oposição, a saber, entre pulsões de vida e pulsões de morte. As pulsões sexuais e de autoconservação passam, doravante, a integrar às pulsões de vida e são pensadas como responsáveis pelo estabelecimento de vínculos. Já as pulsões de morte tendem para a redução completa das tensões. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo a autodestruição, elas seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se por meio da agressão ou de movimentos destrutivos (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004). Elas representam a disjunção e a possibilidade de dar lugar à emergência de novas formas, impedindo a cronificação das totalidades constituídas (GARCIA-ROZA, 2004).

Contudo, independentemente da teoria pulsional em causa, ao se considerarem a fonte corporal da pulsão e a exigência de trabalho que ela representa, pode-se afirmar ser por meio de sua apreensão pelo psiquismo que a inscrição de traços simultaneamente psíquicos e corporais pode se dar. Ou seja, tendo como origem o corpo biológico, o corpo pulsional será aos poucos moldado e inscrito no registro da representação – o que, de resto, absolutamente não o esgota, já que a pulsão renasce incessantemente como força que pressiona e exige satisfação. Assim, de um lado, o corpo considerado como fonte da pulsão não é da mesma ordem que o corpo simbólico e imaginário, como o da histérica por exemplo, pois não foi ainda representado nem aspirado ou atravessado pela linguagem. De outro lado, também não se confunde com e nem se esgota no corpo orgânico e biológico, pois não comporta nenhum princípio organizador interno e a priori.

A origem corporal do Eu

O corpo próprio não é um dado natural e originário, sendo inicialmente apenas um pedaço de carne, um estranho que será preciso subjetivar e do qual o sujeito deve se apropriar. Ou seja, é construído e assumido como próprio pelo sujeito secundariamente e se constitui gradativamente por meio do investimento das pulsões (ANDRADE, 2003a). É, ao mesmo tempo, objeto externo, na medida em que é percebido como uma unidade, como algo que está no mundo, e objeto interno, construído psiquicamente e que recebe estímulos de dentro do próprio corpo. Nesse sentido, é simultaneamente matéria e representação. Na teoria freudiana, o conceito de Eu é particularmente interessante para ilustrar tal ideia, pois traz em seu cerne a justaposição dessas noções.

Uma das definições mais célebres revela ser o Eu básica e originariamente a projeção mental da superfície corporal. Em uma nota de rodapé, acrescentada em 1927, Freud (2006j, p. 39) esclarece:

O eu em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de, como vimos anteriormente, representar as superfícies do aparelho mental.

1. Mesmo sendo o Eu, antes de tudo, um eu corporal, isso não significa que ele seja exclusivamente corporal. Com efeito, o Eu constituído como instância tem uma função de organização e articulação dos processos psíquicos. Contudo, o Eu é derivado do corpo, origem que justifica sua definição como corporal.

2. Como se opera essa derivação do Eu a partir do corpo? Do corpo brotam percepções externas e internas, pois ele é visto como um objeto externo ao mesmo tempo que fornece sensações que podem ser assimiladas a uma percepção interna. A justaposição dessas percepções permite que se forme uma imagem do Eu como instância diferenciada do corpo, mas nele encarnada, mesmo se é o corpo que o engendra.

3. O Eu é, simultaneamente, a superfície do corpo e a projeção mental dessa superfície, o que permite afirmar ser o Eu, de um só lance, corporal e consciência do corporal.

Para esclarecer essas ideias, Anzieu (1995) forjou o conceito de Eu-pele, correspondente ao Eu em seu estado originário. Para esse autor, o registro tátil possui uma característica distintiva relativamente a todos os outros registros sensoriais: está situado tanto na origem do psiquismo quanto fornece permanentemente para o psíquico uma espécie de tela de fundo sobre a qual os conteúdos psíquicos se inscrevem como figuras ou, ainda, constitui o envoltório-continente que permite ao aparelho psíquico abrigar conteúdos. Anzieu (1995) explica que a percepção simultânea que o tato oferece de um externo e de um interno prepara o desdobramento reflexivo do Eu consciente apoiado sobre a experiência tátil.

Segundo a sistematização realizada por Anzieu (1995): (1) o Eu apresenta uma estrutura dupla: a camada superficial funciona como para-excitação, filtrando o que chega do mundo externo, e a camada abaixo se dedica à recepção sensorial das excitações exógenas e à inscrição inicial de seus traços; (2) internamente, o Eu apresenta uma diferenciação entre a percepção (consciente) como superfície vigilante e sensível, mas incapaz de conservar registros do que nela ocorre, e a memória (pré-consciente) que registra e conserva as inscrições.

Assoun (1993) destaca que tal articulação entre Eu e corpo atua em dois planos distintos: o corpo intervém na gênese do Eu e o Eu é estruturado como um corpo, ao mesmo tempo, limite e extensão. Desempenhando fundamentalmente um papel relacional, o Eu opera a relação entre o fora e o dentro, e é desse modo que uma representação de si se constitui por um efeito projetivo, mais do que reflexivo. Por isso, Assoun (1993) sublinha ser o Eu em Freud menos a aparelhagem mental do corpo do que a subjetivação da superfície corporal. Trocando em miúdos, o Eu é menos produto de uma experiência corporal do que o evento da emergência do corpo como próprio.

E mais: definido como uma diferenciação no Isso por meio do contato com o mundo externo, o Eu se constitui gradativamente por meio dos registros das sensações de prazer e desprazer ligadas às sensações corporais. Tais registros de sensações não receberão necessariamente uma inscrição como representação, podendo permanecer apenas como signos de percepção. Portanto, a afirmação de que a maior parte do Eu é inconsciente se refere não somente às representações inconscientes que o compõem, mas também a esses signos de percepção aquém do registro representacional.

Uma outra leitura possível do Eu-corporal deriva precisamente dessa ideia de que o Eu se diferencia por meio do contato do Isso com a exterioridade. Trata-se do entendimento do Eu como uma espécie de amálgama entre o que o indivíduo traz à vida e o que a vida lhe traz, entre o biológico e o cultural. Freud (2006m, p. 275) apresenta a ideia de que o Eu traria tendências inatas em função de sua indiferenciação original relativamente ao Isso, tendências a serem atualizadas ou não por meio do encontro com o ambiente: "[...]mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já estão estabelecidas para ele". A relação do Eu com a hereditariedade é expressa em ainda outra passagem na qual é reconhecido que: "[...] as propriedades do ego com que nos defrontamos sob a forma de resistências podem ser tanto determinadas pela hereditariedade, quanto adquiridas em lutas defensivas [...]" (FREUD, 2006m, p. 275). Além disso, se o Eu se diferencia do Isso pelo contato com o ambiente, em seu interior se forma um precipitado, o Supereu. Derivado da internalização da figura parental, o Supereu passará a representar para o Eu a Lei da qual os pais foram veículo durante a infância. Assim como as tendências herdadas, a aquisição cultural exerce forte pressão sobre o Eu, o qual seria então uma espécie de composto que abarcaria a ação dos pólos biológico e cultural (ANDRADE, 2003b), tornando-os verdadeiramente indiscerníveis.

Composto de sensações corporais não necessariamente inscritas em representações, constituído em sua origem como a projeção mental da superfície corporal e tematizado por meio de sua dupla determinação biológica e cultural, o Eu em Freud está enraizado no corpo. Dito de outro modo, do corpo emerge gradativamente uma projeção mental em diversos níveis: (1) sensações provenientes do corpo, (2) organização dessas sensações como a imagem mental da superfície corporal e, finalmente, (3) conjunto de representações psíquicas mais ou menos estáveis, através das quais o sujeito regula sua relação consigo mesmo e com o mundo. Vê-se como, ao ser subjetivado e constituir o núcleo do Eu, o corpo transborda os limites da matéria, não podendo mais ser reduzido à sua pura biologia. Ao mesmo tempo, embora subjetivado e tornado palavra e expressão, o corpo também não se restringe à representação consciente ou inconsciente que o sujeito faz dele. O corpo apresenta aspectos que não apenas transcendem o campo da pura subjetivação, mas também a determinam.

Os sintomas histéricos e a complacência somática

Os sintomas histéricos de conversão oferecem ainda outro bom exemplo de como o corpo é considerado por Freud tanto em seu aspecto orgânico e biológico quanto em seu aspecto simbólico e imaginário, ou seja, como organismo e sujeito. No final do século XIX, particularmente por causa dos trabalhos de Charcot, a problemática apresentada pela histeria à medicina, com seu método anatomoclínico, estava na pauta do dia. A histeria caracterizava-se por sintomas de ordem somática, como nevralgias, anestesias e paralisias, convulsões, vômitos, anorexia etc., cujo ponto comum era a impossibilidade de encontrar uma etiologia orgânica — por isso, alguns consideravam tratar-se de simulação. Para Freud, ao contrário, os sintomas histéricos deveriam ser considerados expressão simbólica de um conflito, cujas raízes estariam na história do sujeito: os sintomas corporais seriam efeitos de processos psíquicos e, como tais, teriam se tornado palavra, mais do que matéria.

O que caracterizaria os sintomas de conversão seria, assim, seu caráter altamente simbólico, pois utilizam o corpo para exprimir significações. Vê-se como a palavra "sintoma" assume, para Freud, um sentido absolutamente diverso da medicina, na medida em que é entendido como pantomima do desejo inconsciente, expressão do recalcado. Vale sublinhar que, se inicialmente o sintoma histérico de conversão era visto como a representação de um trauma, mais adiante ele será definido como a expressão de uma realização de desejo conflituosa e de um fantasma inconsciente.

Esquematicamente, os sintomas histéricos apresentam as seguintes características:

1) A anatomia à qual a histérica se refere quando fala das partes "lesadas" de seu corpo é a de uma consciência e uma linguagem ingênuas e corriqueiras sem nenhuma relação com conexões fisiológicas ou neurológicas reais.

2) O sintoma, por não ter relação com nenhuma lesão anatômica, assume uma dimensão simbólica que toma vida na palavra da histérica: o sentido do sintoma só pode ser interpretado relativamente ao processo psíquico que ele expressa e manifesta.

3) O corpo assume uma função imaginária de modo relativamente independente de sua realidade material, já que não há lesão ou afecção física diagnosticável.

Noutras palavras, Freud demonstra que, por mais manifestos que sejam, os sintomas corporais histéricos não encontram seu princípio de inteligibilidade na configuração anatômica das partes ou nos segmentos do corpo, nem em uma correlação funcional de ordem fisiológica. Portanto, o corpo na histeria é um corpo fantasmático, cuja existência se deve à função imaginária, da qual a histérica retira suas referências à anatomia. Aspirado pelo simbólico, o corpo constitui-se como signo e é decalcado sobre o corpo-organismo, que, a partir daí, transforma-se em expressão.

Contudo, embora expressivo e tornado palavra, em verdade, o sintoma histérico liga dois corpos: o corpo material, biológico e orgânico, sobre o qual são inscritas significações diversas, e o corpo que é assim fabricado como expressão do conflito inconsciente. Tal ligação operada pelo sintoma conversivo é representada pela ideia freudiana, pouco aprofundada pelos comentadores de sua teoria, de complacência somática. Trata-se da noção de que cada corpo, em sua constituição biológica e orgânica, apresenta pontos de fragilidade por meio dos quais os processos psíquicos tendem a se manifestar: o corpo ou um órgão específico facilita a expressão simbólica do conflito inconsciente (CERCHIARI, 2000).

Ao introduzir essa noção, Freud (2006c) problematiza de modo polêmico a origem dos sintomas histéricos, questionando paradoxalmente sua determinação puramente psíquica e introduzindo o somático também como fator determinante. É que, para o metapsicólogo, a questão da origem dos sintomas conversivos não jaz na escolha entre uma etiologia puramente psíquica e outra somática, pois "[...] todo sintoma histérico requer a participação de ambos. Não pode ocorrer sem a presença de uma complacência somática fornecida por algum processo normal ou patológico no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado" (FREUD, 2006c, p. 47-48). Vê-se como, mesmo no caso da sintomatologia conversiva, jamais foi questão de decidir por uma causa unicamente determinante: ainda que os sintomas histéricos corporais manifestem, representem e expressem processos psíquicos, eles também são expressão de aspectos físicos, biológicos ou orgânicos do corpo no qual se apresentam.

 

Considerações finais

Com base nas observações de pulsão como conceito que exige a consideração do corpo biológico como fonte de estimulação, da constituição do Eu sobre uma base corporal e da noção de complacência somática, vê-se como o corpo, no discurso freudiano, é bem mais do que apenas fruto da representação, pois supõe uma outra ordem além do simbólico: a existência de um "corpo primeiro", o corpo material, orgânico e biológico.

Se a psicanálise revela o mais íntimo do humano e da relação que existe entre seus atos os mais diversos, em nome de qual critério deve-se excluir o corpo daquilo mesmo que define os humanos? E por qual razão superior a determinação de seu papel na vida psíquica deve permanecer relegada à pré-história da psicanálise ou à sua mitologia? Como se a materialidade do corpo aviltasse o valor cultural e humano da psicanálise. Sem dúvida, a instituição do corpo como linguagem e símbolo especifica o discurso psicanalítico. Mas será somente isso que importa apreender de toda a obra freudiana? Uma coisa é certa: quando não se tem mais corpo, não se precisa mais de alma.

 

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Endereço para correspondência
Monah Winograd
Rua Prof. Luiz Cantanhede, 130/302
Laranjeiras – Rio de Janeiro – RJ
CEP 22245-040
e-mail: winograd@uol.com.br

Tramitação
Recebido em dezembro de 2008
Aceito em setembro de 2009

 

 

1 A palavra que Freud usa em alemão – Seele – pode, segundo o contexto, ter o sentido de "espírito", "alma", "psique" ou "mente". De acordo com a análise da tradução para o português feita por Luiz Hanns (1996), para Freud, Seele era equivalente a psique. Já naquele tempo e ainda hoje, no âmbito médico, a palavra Seele é empregada tecnicamente, participando da composição de palavras como Seelenartz (psiquiatra) e Seelenkrankheit (doença mental). Portanto, apesar de poder ser corretamente traduzida por "alma", Seele não carrega de modo tão profundo o sentido de "parte imortal do homem", como acontece no português. Ainda segundo Hanns, em Freud, Seele aproxima-se mais do sentido que lhe empresta Goethe: força motriz, tendência, índole. Utilizaremos, de modo intercambiável, as palavras "mente" e "psiquismo", deixando de lado "alma" e "espírito", por guardarem uma conotação religiosa ausente do pensamento freudiano.
2 Uma variação dessa fórmula pode ser encontrada nos ensaios sobre a sexualidade: “Assim, ‘pulsão’ é um dos conceitos do limite do anímico relativamente ao corporal” (FREUD, 2006f, p. 153). Embora o texto date de 1905, essa frase, tal como a fórmula no texto, foi escrita em 1915.

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