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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.11 no.3 São Paulo 2009
ARTIGO ORIGINAL
Imagens e significados da Aids entre usuárias dos serviços da rede básica de saúde do município do Rio de Janeiro
Aids’s images and meanings among users of the health basic net services of the Rio de Janeiro county
Imagenes y significados del Sida entre usuárias de los servicios de la red básica de salud del município del Rio de Janeiro
Sergio Corrêa MarquesI; Maria Antonieta Rubio TyrrellII; Denize Cristina de OliveiraI
I Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo identificar e descrever as imagens e os significados presentes na representação social da Aids entre mulheres assistidas na rede básica de saúde. Trata-se de um estudo qualitativo pautado na teoria das representações sociais. Participaram dele 46 mulheres assistidas nos serviços de atendimento à mulher em oito centros municipais de saúde. Os dados foram coletados com entrevista semiestruturada e tratados pelo programa Alceste. O resultado evidenciou que a Aids é uma doença contagiosa que significa morte e que, por isso, é vista como feia, ruim e perigosa, despertando sentimentos de sofrimento e medo. É considerada uma pandemia que se dissemina pela irresponsabilidade dos "outros". A prevenção é o fator essencial para o controle da síndrome. Por sua construção histórica e social, propicia o desenvolvimento de atitudes de discriminação e preconceito. Os conteúdos dessa representação social revelam aspectos que se constituem num instrumento para direcionar as práticas assistenciais e educativas.
Palavras-chave: HIV, Aids, Saúde da mulher, Serviços de saúde, Representação social.
ABSTRACT
The present work aimed at identifying and describing the images and the meanings present in the Aids´s social representations among women attended in the health basic net. It is a qualitative study based on the social representations theory. There participated of the study 46 women attended in the services of attendance to the woman in eight health municipal centers. The data were collected with semi-structured interview and treated by the Alceste program. The result evidenced that the Aids is a contagious disease that means death being objectified as ugly, bad and dangerous, arising sentiments of suffering and fear. It is considered a pandemia that is disseminated by the irresponsibility of the "others". The prevention is the essential factor for the syndrom control. By its historical and social construction, propiciates the development of discrimination and preconcepts attitudes. The contents of this social presentation reveal aspects that are constituted in a tool to guide the assistance and educative practices.
Keywords: HIV, Aids, Health woman, Health services, Social representation.
RESUMEN
El presente trabajo tuvo como objetivo identificar y describir las imágenes y los significados presentes en la representación social del Sida entre mujeres asistidas en la red básica de salud. Es un estudio cualitativo pautado en la teoría de las representaciones sociales. Participaron del estudio 46 mujeres asistidas en los servicios de asistencia a la mujer en ocho centros municipales de salud. Los datos fueron colectados con entrevista heme estructurada y tratados por el Alceste. El resultado evidenció que la Sida es una dolencia contagiosa que significa muerte siendo objetivada como fea, ruin y peligrosa, despertando sentimientos de sufrimiento y medo. Es considerada una pandemia que se disemina por la irresponsabilidad de los "otros". La prevención es el factor esencial para el control del síndrome. Por su construcción histórica y social propicia el desarrollo de actitudes de discriminación y preconcepto. Los contenidos de esta representación social revelan aspectos que se constituyen en un instrumento para dirigir las prácticas asistenciales y educativas.
Palabras clave: HIV, Sida, Salud de la mujer, Servicios de salud, Representación social.
Considerações iniciais
Na sua origem, quando ainda não tinha uma conformação de epidemia, a situação do HIV/Aids despertou a atenção de alguns setores da sociedade, notadamente a imprensa, escrita e falada, que passou a veicular as informações de que dispunham. Essas primeiras informações tinham, muitas vezes, um caráter sensacionalista, abordando aspectos principalmente relacionados aos primeiros portadores do vírus, que fizeram ressurgir velhas crenças e fantasmas que, ainda hoje, permeiam o imaginário de determinados grupos sociais. Alguns grupos de homossexuais masculinos mobilizaram-se, certamente pelo caráter estigmatizante que já se impunha à síndrome naquela época, e passaram a divulgar algumas informações para a população.
No curso da história desse fenômeno, os conhecimentos científicos adquiridos foram sendo disponibilizados, ao mesmo tempo em que o caráter epidemiológico passou a exigir medidas que pudessem, especialmente, conter o avanço do número de casos. O que se observou foi uma mobilização de vários segmentos da sociedade, como órgãos não governamentais, universidades, escolas, governo, entre outros, que passaram a difundir várias informações para a população. Os meios de comunicação de massa foram amplamente utilizados pela sua capacidade de cobertura da população em geral.
Essa estratégia de massificação das informações favoreceu o acesso das pessoas aos diversos conteúdos científicos inerentes à questão do HIV/Aids, principalmente em relação aos modos de transmissão e às medidas de prevenção. Assim, esses conteúdos foram sendo apropriados pelos indivíduos, complementando seus repertórios de informações, inseridos nos seus processos comunicacionais, propiciando, então, a construção e reformulação de suas representações.
Vários cientistas e estudiosos, como Tura (1997), Thiengo (2000), Camargo (2000), Marques (2002) e Oliveira e Costa (2007), têm investigado diferentes dimensões da representação social do HIV e da Aids em distintos grupos sociais, como adolescentes, trabalhadores, profissionais de saúde, mulheres, entre outros.
As mulheres têm recebido especial atenção nos estudos relacionados ao contexto da infecção pelo HIV e da Aids. Oliveira et al. (2009) desenvolveram uma pesquisa em que avaliaram 136 produções científicas da enfermagem sobre a Aids, no campo das representações sociais, no período de 1990 a 2006, incluindo dissertações, teses e artigos científicos, em que observaram o crescente interesse, especialmente a partir do início da década de 1990, na realização de estudos cujas temáticas envolvem a mulher, as relações de gênero, a gestação/maternidade e suas relações com a epidemia. Esses autores destacaram que essa tendência pode ser explicada em razão do processo de feminização da epidemia no Brasil, onde foi mais rápido, quando comparado com outras partes do mundo.
No Brasil, os casos de Aids em mulheres passaram a integrar os dados epidemiológicos a partir do início da década de 1980, quando a frequência desses casos era baixa e bastante diferenciada da população masculina. Os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde registravam na primeira metade da década de 1980, em relação às mulheres, 20 casos notificados em 1985. No período de 1980 a junho de 2008, foram identificados 506.480 casos entre homens e mulheres, sendo 172.995 na população feminina. Outro dado relevante refere-se à proporção entre indivíduos infectados do sexo masculino e do sexo feminino, que se reduziu drasticamente ao longo dos anos. A razão homem/mulher que em 1996 era de 15 : 1 passou para 1,5 : 1 em 2006 (BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO, 2008).
O que, inicialmente, era um fenômeno mais restrito aos homens e, principalmente, entre os homossexuais, hemofílicos e usuários de drogas, foi descaracterizado na segunda metade da década de 1980 com o aumento rápido de mulheres infectadas que não se enquadravam no conceito de "grupo de risco". Esse fato trouxe uma mudança no perfil da epidemia, revelando a vulnerabilidade das mulheres e configurando um novo conceito, o da feminização da Aids. Nesse contexto, foram observadas profundas implicações para a vida das mulheres, na medida em que, para elas, a epidemia passou a representar uma tripla ameaça: a suscetibilidade à infecção, a possibilidade da transmissão vertical e, quando os familiares adoecem pelo agravo, geralmente, cabem-lhes também a responsabilidade pelos cuidados dos doentes e dos afazeres domésticos (OLIVEIRA et al., 2009).
Esses dados revelaram a gravidade da situação da população feminina no contexto da epidemia e, provavelmente, se constituíram nos elementos motivadores do desenvolvimento de pesquisas dirigidas a essa população, cujos resultados apontam para a diversidade de fatores que propiciaram o surgimento desse processo, assim como para o agravamento dele. Porém, parece consenso que as representações de gênero ligadas especialmente ao posicionamento das mulheres nos relacionamentos sexuais constituem um dos principais motivos para a determinação desse quadro.
Os estudos no campo das representações sociais evidenciam que existem elementos comuns nas representações da Aids, independentemente dos grupos de pertença. No entanto, observa-se também que, ao longo da epidemia, os conteúdos das representações sociais se modificaram, inclusive em grupos específicos. Torres e Camargo (2008), por exemplo, mostram, com base em estudos com adolescentes, que a Aids, anteriormente associada à morte, passou a ser relacionada à prevenção e à responsabilidade, havendo, portanto, a incorporação de elementos novos às suas representações. Camargo (2000), ao estudar a representação da Aids entre estudantes universitários, constatou que o grupo associou a Aids com a promiscuidade, porém as mulheres consideraram como fator de disseminação do vírus a desinformação das pessoas, ao passo que os homens atribuíram tal ocorrência ao descuido das pessoas portadoras do vírus. Esse resultado, assim como o de outros estudos, revela que as representações da Aids para as mulheres têm uma estrutura distinta daquelas dos homens. Tal fato tem relação com os fatores de natureza individual, histórica, psicossocial, cultural, entre outros, que permeiam o universo feminino, configurando-se numa visão de mundo que tem influência direta na formação das suas representações.
Ainda que haja um interesse crescente na promoção de pesquisas voltadas para a população feminina, considera-se necessário estudar as representações da Aids de forma mais aprofundada nesse grupo, buscando apreender essas representações e como elas influenciam nas formas de enfrentamento da epidemia e nas práticas sociais. É importante também verificar as possíveis modificações das suas representações, com vistas a contribuir para o direcionamento de políticas e programas dirigidos a esse segmento da sociedade.
Assim sendo, no presente trabalho, buscou-se estudar as representações sociais da Aids entre mulheres assistidas nos serviços da rede básica de saúde, locais considerados privilegiados na difusão de informações acerca dessa temática. Definiu-se como objetivo do estudo: identificar e descrever as imagens e os significados presentes na representação social da Aids entre mulheres assistidas na rede básica de saúde, no âmbito dos programas de atendimento à clientela feminina.
Avalia-se que os estudos científicos no campo da teoria das representações sociais têm trazido contribuições para a compreensão do fenômeno e dos contornos assumidos pela epidemia e, também, contribuído para dar subsídios para a elaboração e a implantação de programas e ações, tanto de cunho assistencial como de caráter preventivo.
Metodologia
Para esta investigação, considerou-se apropriada a utilização da abordagem qualitativa, na medida em que se pretendeu, com base nas produções verbais das mulheres, ir além da projeção de suas subjetividades e procurar compreender as interfaces e interrelações das representações nas dimensões que caracterizam o fenômeno social estudado. O estudo pautou-se na teoria das representações sociais, na perspectiva da psicologia social.
Com a intenção de que os resultados tivessem representatividade do município do Rio de Janeiro, optou-se por desenvolver o estudo em oito centros municipais de saúde (CMS) localizados em todas as áreas geográficas desse município.
Participou do estudo um grupo de 46 mulheres assistidas nos serviços de assistência clínico-ginecológica, pré-natal/puerpério e planejamento familiar, sendo, em média, cinco de cada centro municipal de saúde. Os critérios de inclusão no estudo foram vinculados a dois aspectos: idade e número de vezes em que foram assistidas nas unidades. Em relação ao primeiro critério, foram incluídas aquelas com idade a partir de 20 anos e, em relação ao segundo, aquelas assistidas mais de duas vezes, pelo menos em um dos serviços anteriormente mencionados.
Para a obtenção dos dados, optou-se pela técnica da entrevista semiestruturada, cujo instrumento foi composto de duas partes. A primeira parte continha dez questões fechadas, reunindo variáveis pessoais, sociais e relacionadas à frequência e ao tipo de serviço que as mulheres utilizavam nos cenários do estudo. A segunda parte consistiu em um roteiro com sete perguntas que se constituíram em eixos norteadores para a condução da entrevista, cujos conteúdos eram aprofundados com base no discurso das mulheres e orientados para o propósito do estudo.
A coleta de dados foi realizada no período de junho a agosto de 2005, após aprovação do projeto pela Comissão de Ética em Pesquisa e pelos dirigentes das unidades que foram cenários do estudo.
O tratamento dos dados foi realizado pelo programa Alceste (análise lexical por contexto de um conjunto de segmentos de texto), por meio de análise hierárquica descendente do corpus composto pelas entrevistas.
A análise hierárquica descendente fornece um vocabulário que se insere em contextos textuais, caracterizados por segmentos de texto que compartilham esse vocabulário. Esses contextos ou mundos lexicais são, na sua totalidade, a expressão estável e coletiva de pontos de vista específicos de indivíduos (REINERT, 1993).
As classes compostas pelos contextos lexicais podem indicar representações sociais ou campos de imagens sobre um dado objeto. São os conteúdos das classes e as relações entre elas que determinarão se se trata de uma representação social em seus vários aspectos ou de mais de uma representação social (CAMARGO, 2005).
Apresentação dos resultados
A caracterização das mulheres estudadas pode ser configurada da seguinte maneira: a maioria (56,5%) tem de 20 a 29 anos; a maior parte (52,2%) diz não estar desenvolvendo atividades remuneradas; a metade delas (50%) é católica; a maioria delas convive com um único companheiro; o maior número de mulheres vive na zona norte e no centro; e a maioria das mulheres utilizou os CMS com maior frequência nos últimos cinco anos.
O software Alceste identificou 46 linhas estreladas, isto é, com asteriscos, definindo o número de unidades de contexto inicial (UCI), compatível com a quantidade de entrevistas analisadas e com o número de mulheres que participaram do estudo.
O corpus de análise foi dividido em 2.936 unidades de contexto elementar (UCE) que correspondem a fragmentos dos discursos das depoentes. Desse total, o software classificou para análise 2.166 UCE, representando 73,77% de aproveitamento do corpus de análise, que foram divididas em seis classes ou categorias. Dessas classes, utilizaram-se, no estudo, apenas aquelas que reúnem os conteúdos que tiveram maior relação com o objeto do estudo e que foram assim denominadas: representações da Aids, rastreamento do HIV e informações sobre transmissão e prevenção do HIV/Aids, que corresponderam às classes 2, 3 e 5 respectivamente.
A composição da classe 2 apresentou 600 UCE, contendo 13,14 palavras, em média, por unidade. Nessa classe, são evidenciados vários conteúdos que compõem a representação social do grupo, em especial as imagens e os conceitos que elaboram em relação ao HIV e à Aids. A classe 3 foi composta por 295 UCE, tendo em média 12,26 palavras por unidade. É nessa classe que o grupo estudado, ao abordar as situações vivenciadas, principalmente em relação à realização do teste anti-HIV, explicita diversos sentimentos que permeiam o enfrentamento acerca da possibilidade de conviver com o vírus da Aids. A classe 5 apresentou 218 UCE, com 12,29 palavras, em média, em cada unidade, cujo conteúdo expressa como as depoentes obtiveram informações, em especial sobre as formas de transmissão e prevenção da Aids, e como a partir delas elaboraram as suas representações.
Discussão dos resultados
Todo objeto que é estranho ou incompreensível intriga, chama a atenção das pessoas, as atrai e, ao mesmo tempo, gera nelas uma necessidade de compreendê-lo, de torná-lo familiar. E aí está, como nos ensina Moscovici (2003), a finalidade das representações sociais, isto é, tornar familiar, comum ou real aquilo que não é familiar, que gera um sentimento de não familiaridade. Para que isso ocorra, dois processos são acessados de forma não dissociáveis: a objetivação e a ancoragem. O primeiro se refere à elaboração de uma imagem sobre um conceito ou uma palavra, ou ainda à possibilidade de encontrar equivalentes não verbais para as ideias ou palavras. A ancoragem, por sua vez, constitui-se em classificar um objeto, dar nome a ele ou categorizá-lo com base em noções ou paradigmas estocados na memória, num pensamento preexistente (MOSCOVICI, 1978, 2003; SÁ, 1996; JODELET, 2001). Como afirma Moscovici (2003, p. 61), "[...] coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo tempo são ameaçadoras".
Observa-se, neste estudo, que, embora de maneira mais discreta, ainda se mantém esse tipo de ancoragem, isto é, as pessoas estabelecem uma relação entre a Aids e o câncer, por julgarem que esse último ainda não tem cura ou porque não está assegurado o afastamento do risco de morte, mesmo com os avanços científicos e tecnológicos para o seu tratamento. Essa relação também se faz de maneira comparativa quanto aos aspectos que lhes são comuns, como a expectativa de vida, o sofrimento e a perpetuação da doença. No entanto, a Aids é sempre posicionada numa condição muito mais desfavorável do que o câncer, como pode ser observado nas UCE a seguir.
[...] acho que é um perigo maior [a Aids], comparando com o câncer. Leva mais à morte. Dizem que não, mas acaba levando à morte.
A mesma coisa é saber de um câncer, só que às vezes o câncer, você faz uma cirurgia, um tratamento, e às vezes você acaba, e a Aids não, você trata dez anos, doze anos, não sei, o tempo que for, mas continua com aquilo.
[...] apesar de que a Aids você tem como prevenir, então você pode evitar de ter e as outras doenças não. Câncer, por exemplo, não tem como evitar, às vezes a pessoa bebe, fuma e tem, a Aids não; então, a Aids para mim é a pior doença.
Ainda que a Aids esteja, de certa forma, ancorada no câncer, constata-se que, por ainda não ter cura e estando essa informação tão difundida de maneira precisa, a morte assume uma dimensão imagética e expressa o sentimento de destruição associado à doença. Estudos realizados com outros segmentos da sociedade têm revelado esse mesmo tipo de resultado, o que faz supor a existência de uma representação hegemônica no que se refere ao seu conteúdo imagético. A morte imprime uma série de qualificações à Aids, como podemos observar no presente estudo, assim como ocorreu de forma tão enfática em relação ao câncer há alguns anos. Por incorporar à imagem um significado tão forte – morte –, a Aids é adjetivada de "feia", "horrível", "o fim", "pesada", "perigosa", "ruim" e tantas outras qualificações identificadas nos discursos das mulheres estudadas. Constata-se que essas adjetivações ou metáforas não têm outra razão a não ser o fato de querer traduzir esse significado, evidenciado pelas justificativas dadas pelas depoentes.
[...] não é simplesmente um vírus, é uma doença horrível, que mata e que está se espalhando cada vez mais por aí. Não vamos fingir que é uma coisinha, vamos mostrar que é uma coisona, que é uma doença feia, não é simplesmente um pequeno vírus, tem que dizer: é uma doença, e Aids mata!
A Aids significa a morte, porque a pessoa com Aids só pensa na morte. Aquela pessoa não vai viver muito tempo, então a gente fica penalizado de ver as pessoas jovens, jovens mesmo.
Surgiu por falta de informação. Mas não sei por que se alastrou, não. [...] Significa uma coisa ruim. Porque aos poucos essa coisa vai acabando com a gente. Essa é uma das piores doenças que tem.
Supõe-se que tantas qualificações vinculadas a esse significado estejam refletindo a impossibilidade de se criar uma imagem, um símbolo único para a morte, e, assim sendo, as mulheres utilizaram várias imagens que mescladas passaram a constituir o núcleo figurativo dessa representação conforme definido por Moscovici (2003), isto é, um complexo de imagens que caracterizam visivelmente um conjunto de ideias.
Outro aspecto a ser destacado refere-se ao fato de esse significado conferido à Aids também refletir numa omissão na verbalização da sigla que identifica a síndrome, o que faz que as pessoas se referissem a ela como "essa doença", "essa coisa", entre outras expressões. Convém destacar, no entanto, que não se trata de uma ocorrência relacionada exclusivamente à morte, mas também à síndrome, em razão de uma construção social que a relaciona a situações que são consideradas socialmente inadequadas ou, ainda, que possam estar traduzindo comportamentos não aceitos dentro de determinados padrões morais hegemônicos.
Dessa maneira, observa-se que a Aids, ao possuir dimensões objetivas (morte, adoecimento e sofrimento, por exemplo) e subjetivas (preconceito, morte social e isolamento, entre outras), apresenta-se como um fenômeno continuamente reconstruído mental e simbolicamente pelos sujeitos do estudo. Esse fato implica um comportamento dúbio com relação a esse objeto, em que se evita objetivá-lo no cotidiano, escondendo-o por meio de generalizações (essa doença) ou de adjetivações específicas (desgraça, doença ruim), o que, de certa forma, parece atribuir simultaneamente certo grau de rejeição e de independência a essa entidade mórbida.
Ao mesmo tempo, ressalta-se que o uso de metáforas na produção verbal dos indivíduos, segundo Orlandi (2001), permite entrever a construção ideológica que fornece sentido às posições e atitudes adotadas perante a Aids. Nesse caso, somente por se manter escondida é que, pelo deslizamento linguístico, pode-se perceber o sentido atribuído à síndrome, qual seja, a de doença inespecífica, na medida em que é apreendida como uma doença do "outro" ou como designação de problema, produção de sentido estabelecida pelas consequências práticas do processo de adoecer.
Ainda sobre esse significado da Aids, verifica-se que ele determina ou gera sentimentos predominantemente negativos, como pode ser observado nos discursos. São sentimentos de tristeza e sofrimento que foram experienciados por algumas mulheres do estudo, por terem convivido diretamente com familiares portadores do vírus ou em decorrência do convívio próximo com pessoas portadoras ou com os familiares destas.
[...] mas eu acho que a pessoa se sente melancólica por dentro, ela não tem aquela alegria realmente que deveria ter, que quem tem saúde, tem tudo. Agora a Aids em si, eu acho uma tristeza só, não tem como classificar, eu acho que você perde a razão de viver, apesar da gente ter que continuar vivendo até os últimos dias lutando, tem que lutar, mas é uma luta em vão, toma remédio, toma tudo.
Para mim, é uma doença muito ruim. A pessoa fica desesperançosa porque ela não sabe o dia de amanhã. Até procurando um emprego, tem lugar que pede exame de sangue. Mesmo que diga que não tenha preconceito sempre tem.
Embora relacionados com maior frequência à condição de fatalidade, esses sentimentos são revelados também em função de outras condições, como as limitações impostas aos indivíduos portadores, em consequência dos efeitos adversos dos medicamentos, o isolamento social a que alguns se impõem e o estigma que ainda permanece sobre as pessoas infectadas ou doentes. Observa-se, então, que eles estão relacionados não só à morte como terminalidade da vida, mas também à "morte social".
Com a evolução epidemiológica da infecção pelo HIV/Aids associada à propagação de informações, observamos que se fazem presentes nos discursos outros conceitos, significados, sentimentos e ideias que vêm dando uma nova configuração à representação social desse fenômeno.
Dessa forma, além de ser uma "doença" que define a temporalidade da vida de seus portadores, a Aids também é caracterizada como uma doença contagiosa. A noção de contágio está fortemente presente nos discursos do grupo estudado, expressando várias formas de transmissão do vírus, independentemente da necessidade de contato entre indivíduos, embora essa condição seja a que mais se evidencia. Esse contato ora se refere apenas à proximidade com a pessoa portadora do vírus, ora revela a necessidade de contato físico mais próximo com ela, numa situação que envolve a presença de solução de continuidade na pele ou mucosa, fator considerado necessário ao processo de transmissão. Na primeira noção de contágio, embora não muito frequente, é revelada uma atitude preconceituosa em relação ao indivíduo portador do vírus; na segunda, os líquidos corporais são mencionados como partícipes do processo de transmissão, com predomínio do sangue.
Observa-se ainda que essa noção nem sempre é explicitada com a utilização da palavra "contágio" e suas variações semânticas. Em alguns conteúdos, ela é subjacente ao contexto dos discursos das depoentes.
Eu acho que a Aids é uma doença muito contagiosa, perigosa. Eu acho que é uma doença muito perigosa. Às vezes você vê as pessoas feridas, às vezes você tem aquela pessoa que você gosta que tem esse problema.
Na relação sexual quando ocorre a ejaculação, o orgasmo, eu acredito que seja assim. Se existe outra forma de contágio, eu não estou muito bem informada, não. Porque pelo que me consta o sêmen contém o vírus, inclusive falaram para mim que a saliva também contém, que pode ser transmitida no beijo.
Nas representações de determinadas doenças, a noção de contágio é ancorada num saber médico passado, relacionado à teoria dos humores, em que a origem das doenças era associada predominantemente aos líquidos corporais, como afirma Jodelet (2001). Essa concepção ainda se faz presente no contexto social atual, servindo de fonte de explicação para a transmissão de várias doenças, não fugindo à regra no caso da Aids que, além do esperma e do sangue, é associada ao suor e à saliva, conforme exemplificado no discurso anterior.
A Aids também significa medo, angústia e pavor, isto é, sentimentos que são experimentados pelas depoentes, como também são observados por elas em relação a outras pessoas. Esses sentimentos estão relacionados, principalmente, com a possibilidade da contaminação e, ainda, com a possibilidade de terem de conviver com todas as repercussões de natureza orgânica e social inerentes à infecção e à Aids, ou seja, os transtornos físicos, o sofrimento psíquico, a morte, a discriminação, entre tantas outras. Para algumas entrevistadas, a possibilidade de confirmação da soropositividade para o HIV implicou, inclusive, rejeitar a realização do teste anti-HIV durante a assistência pré-natal.
Já fiz o exame HIV. Eu fiquei com medo. A gente nunca sabe. Só sabemos o que temos por fora, por dentro nunca sabemos. Só sabe através de exame mesmo. Eu confesso que fiquei com medo, não por mim, mas pelo companheiro, porque em homem não se pode confiar.
Aqui no posto de saúde oferece o exame HIV. Eu não tenho vontade de fazer, não. Sabe por causa de quê? Eu tenho medo. Sério! Eu previno. Mas eu saber que eu tenho, é gostoso assim, Deus que me perdoe, mas, por exemplo, você tem e você não sabe.
O medo da contaminação foi explicitamente colocado pelas mulheres que se submeteram ao exame anti-HIV durante a gestação. Resultado semelhante foi constatado no estudo com duzentas gestantes no Programa de Pré-Natal em dois centros de saúde de Brasília, realizado por Matos (2005). No entanto, essa autora observou que, em algumas situações, a recusa em realizar o referido teste estava relacionada ao possível desconforto da mulher em ter de pensar sobre a sua posição na relação afetivo-conjugal.
É necessário destacar que o medo é um sentimento ou uma sensação de grande inquietação perante um perigo ou uma ameaça reais ou imaginários. Pode, inclusive, variar de um leve receio ao pânico. Ante situação da Aids, parece que a intensidade com que esses sentimentos se manifestam varia em função da situação na qual a pessoa se encontra, mas está continuamente presente. Como se pôde observar, alguns relatos narraram situações de medo intenso, que levou as depoentes a postergarem a data para saber o resultado do exame anti-HIV que haviam realizado. Há, entretanto, situações que revelam que, ao obterem a confirmação do resultado negativo para esse exame, as pessoas perceberam que essa sensação foi amenizada nos exames posteriores, porém não afastada totalmente. Em alguns relatos, as depoentes mencionaram perceber que pessoas do seu convívio social não se propõem a realizar tal exame em virtude do medo.
Estudos realizados por Tura (1997), Madeira (1998), Thiengo (2000) e Marques (2002), sobre as representações sociais da Aids, também evidenciaram que essa sensação de medo foi experimentada pelos sujeitos, relacionada especialmente à possibilidade de contaminação. Para Joffe (2000), o medo e outros sentimentos são produtos de representações emocionais da síndrome que foram construídos historicamente. Associa-se a isso o fato de terem sido incorporadas às representações informações mais precisas acerca da síndrome, tornando-se mais objetivas as razões para a presença de tal sentimento.
O que se quer afirmar é o fato de o medo e as demais expressões que congregam o mesmo significado serem de natureza multifocal, isto é, existem vários medos, haja vista o HIV/Aids oferecer uma diversidade de situações geradoras de inquietações, as quais não estão ligadas só à condição patológica. Esses medos são tão reais, tão presentes, que parecem se manifestar no imaginário de uma forma concreta, podendo assumir, inclusive, uma dimensão imagética também no contexto dessas representações sociais. Portanto, a presença desses sentimentos ou dessas sensações nos estudos das representações sociais necessita ser valorizada pelas pessoas envolvidas com as práticas assistenciais e educativas.
O conceito de prevenção constitui mais um elemento que integra as representações do HIV/Aids, sendo evidenciado dentro de um contexto predominantemente prático e real e não apenas em sua dimensão conceitual. Os relatos referentes às mais variadas práticas preventivas, que são conhecidas ou identificadas pelas depoentes, ainda que com ênfase para o uso do preservativo e o não compartilhamento de seringas e agulhas, refletem sua íntima relação com o objeto representado e, por conseguinte, o seu grau de inserção nessa representação social.
Eu penso que hoje em dia as pessoas têm que se prevenir mais, tomar muito cuidado com o parceiro, ainda mais aquelas mulheres que saem com mais de um, têm que se prevenir, têm que fazer exame HIV, têm que ver se está com o vírus HIV.
Aids é coisa triste. Coisa triste, deixa saudades. Porque tem muita gente que não se conscientiza que tem que usar camisinha, que tem que se prevenir de qualquer forma, muitos usam drogas, injetam, quer dizer, não pensam antes, aí depois sofrem as consequências.
Neste estudo, a falta de adoção de práticas preventivas serve de explicação para a disseminação do HIV, desde a origem da epidemia até os dias atuais. O incentivo às medidas de prevenção e a prática destas são considerados fatores essenciais para conter esse fenômeno. Dessa forma, a prevenção assume uma posição de destaque, sendo concebida como o fator mais acessível para o controle da epidemia, uma vez que outras medidas identificadas como mais eficazes, como vacinas e medicamentos que possam levar à cura, são consideradas ainda remotas pelo grupo estudado.
Os conteúdos relativos à esfera da prevenção no contexto do HIV/Aids, tal a intensidade pela qual foram (e ainda são) difundidos, passaram a compor um repertório de interpretações, explicações e regras na vida cotidiana e nos discursos dos grupos sociais. Outro aspecto que também tem contribuído para esse processo é o fato de as medidas de prevenção se constituírem em algo concreto, com uma aplicação prática, que não se inserem somente no nível das ideias. E, ainda, retratam a única possibilidade real de evitar a contaminação e a disseminação da infecção.
Quando a Aids, surgiu tratava-se de um fenômeno cuja emergência era incompreensível para a sociedade. Embora fosse reconhecida como uma "doença", pois causava transtornos orgânicos que, inclusive, levavam à morte, ao mesmo tempo apresentava características até então peculiares, na medida em que atingia especialmente determinadas pessoas, como os homossexuais masculinos, com maior frequência, e as prostitutas. Constituía-se, então, como algo incomum e, portanto, também não familiar, que carecia ser mais bem compreendido.
No curso da epidemia, foram associados outros aspectos aos já pontuados, como a emergência dos usuários de drogas, revelando um novo grupo também vulnerável, e nesse cenário foram realizadas associações com aquilo que era tangível aos indivíduos e grupos, havendo a construção de novas teorias e interpretações.
No entanto, por ser um tipo de agravo à saúde considerado restrito a esses segmentos da população, outros grupos sociais não se percebiam expostos aos riscos de infecção pelo HIV, principalmente as mulheres, em especial as casadas, resultando na não incorporação no seu cotidiano das práticas de prevenção. Esse quadro também favoreceu a construção, no imaginário social, da Aids como uma "doença de alguns" ou uma "doença do outro", relacionada aos grupos marginais da sociedade (PARKER et al., 1994; BARBOSA; VILLELA, 1996; GUIMARÃES, 1996; JOFFE, 2000; DOMINGUES, 2004; MATOS, 2005).
Ainda que com contornos diferentes, essa concepção constitui um traço forte no âmbito das representações pertinentes ao grupo estudado. Embora percebam que todos estão vulneráveis, principalmente as outras mulheres, consideram-nas como vítimas dos "outros", os quais não se previnem, não têm cuidado consigo e com as demais pessoas, e não buscam ou não se interessam em obter informações, como pode ser observado nos seguintes discursos:
[...] que acham que com elas nunca vai acontecer, vai sempre bater na porta do vizinho, mas nunca vai bater na porta delas.
Elas acabam percebendo, essas garotas novas, adolescentes, doze, treze anos, estão com Aids, estão grávidas e as crianças acabam também vindo com essa doença, Aids, e isso vai passando de uma maneira que hoje em dia está difícil de controlar.
[...] aí muitas coisas acontecem por causa de muitas coisas ruins, porque eles [homens] falam que é chupar bala com papel, sendo que isso é para o bem deles mesmos, mas ninguém quer pensar antes.
[...] não pensam antes, no caso vai ter uma relação sexual, eles já querem logo, sem usar a camisinha, a maioria dos homens, quer dizer, muitas mulheres vão na cabeça deles e acabam indo também, porque está ali com aquele fogo e não quer nem saber.
[...] depois das mulheres são os homens que também correm risco. As pessoas não têm responsabilidade. Eu acho que as pessoas tinham que ser mais responsáveis. É muito difícil. As pessoas não têm responsabilidade. As pessoas não ligam.
Assim, observa-se como traço distintivo da representação analisada o fato de imputar a responsabilidade ao "outro" – em relação tanto à disseminação como à falta de controle da epidemia –, mas nunca a elas, que também não adotam com regularidade certas práticas preventivas, como o uso do preservativo, que não conseguem promover uma negociação efetiva com seus parceiros, que abolem o uso do preservativo sob a égide da confiança na relação estável com o parceiro.
O "outro", na concepção do grupo estudado, envolve os homens, de forma predominante, os adolescentes, outras mulheres e, ainda, os usuários de drogas, especialmente as injetáveis. Os motivos elencados anteriormente justificam o comportamento irresponsável dessas pessoas, expondo ao risco outras pessoas consideradas, por vezes, vítimas indefesas, como as crianças que são infectadas por transmissão vertical. Convém registrar que, embora não excluam os homossexuais masculinos desses grupos, não conferem a eles um destaque, como fora em tempos passados, como os responsáveis pela disseminação do vírus. É revelado, inclusive, que as pessoas com essa orientação sexual estão mais precavidas e, portanto, não expõem ao risco outras pessoas com as quais mantêm relacionamentos.
Matos (2005) afirma que as representações sociais constituídas sobre a doença, como também em relação aos indivíduos atingidos por ela, implicam duas maneiras distintas de encará-la. Assim, no imaginário popular, essas representações traduzem-se:
[...] na percepção dos "culpados" como agentes ativos [...] que optam por transitar dentro de um universo de comportamentos marcados pelos estigmas da transgressão, violação e infração às normas morais estabelecidas [...]. No que diz respeito às "vítimas" associa-se à idéia de passividade, de submissão ao infortúnio e à epidemia, seja pela sua fragilidade física, seja pela submissão aos padrões morais e culturais a que estão submetidas (MATOS, 2005, p. 38).
Imputar a responsabilidade ao "outro" significa, portanto, imprimir-lhe culpa pela disseminação da Aids. Observa-se, ainda, nos discursos analisados, que a culpa por tal fato não está limitada às pessoas consideradas "irresponsáveis", mas também é estendida ao setor público e a alguns profissionais.
Eu acho que somos nós os normais, porque nós estamos sempre precisando tirar sangue, temos que tomar uma injeção. Agora está tendo agulha descartável, mas a gente vai saber se muitas vezes tem uma pessoa ali que tem a Aids, não tem outra seringa e está precisando tomar um medicamento e não aplica na mesma?!
Essas pessoas que usam drogas, ou até que vão a um posto de saúde, ou em outro lugar onde o médico não limpa a agulha, aplica injeções sem trocar agulha, também pode passar Aids e outras doenças.
[...] se ela não esterilizar o alicate e vir outra pessoa atrás sentar e fazer, sabe que vai contaminar. O dentista também é a mesma coisa. Vai aplicar anestesia na pessoa, se não jogar aquela agulha que eles aplicam anestesia fora, você não sabe quem vem atrás.
[...] no dentista, com agulha quando vai colocar a anestesia se não tiver direito a seringa, pode contrair HIV. Eu acho que sim, eu não sei, não sei se a pessoa vai ter a dignidade de usar aquilo ali e jogar fora.
É interessante notar que não é incomum esses discursos apresentarem relatos que refletem incertezas e desconfianças em relação à atuação de profissionais, tanto da área da saúde como outros que lidam com materiais perfurocortantes, a exemplo das manicuras, no que diz respeito ao uso de materiais descartáveis ou devidamente esterilizados. Apesar da compreensão de que esses profissionais, principalmente os da área da saúde, detêm conhecimentos acerca das condições para a utilização desses materiais, isso não exclui, no imaginário do grupo estudado, a possibilidade de também adotarem condutas irresponsáveis, como a reutilização de material potencialmente contaminado. A doação de sangue também constitui uma fonte de risco em decorrência dessas crenças, ainda que apontada de modo pouco expressivo. Observa-se resultado semelhante na pesquisa realizada por Giacomozzi e Camargo (2004), com vinte mulheres assistidas no ambulatório de ginecologia de um hospital universitário. Nesse estudo, as mulheres expuseram preocupação e medo de contrair o HIV em situações que envolvem a transfusão de sangue ou outro procedimento hospitalar. Entretanto, sentem-se prevenidas por manterem uma união estável com seus parceiros, demonstrando, como afirmam os autores, uma baixa percepção de autovulnerabilidade.
À esfera pública de forma geral, nela incluídos os governantes do país, serviços de atendimento à saúde e os profissionais que neles atuam, é imputada uma parcela de culpa por não oferecerem informações à população, principalmente dirigidas às práticas de prevenção. Portanto, na concepção delas, tornam-se igualmente responsáveis pela exposição da sociedade ao risco da infecção e, por conseguinte, pela progressão epidemiológica da Aids, demonstrando, inclusive, que existe uma vulnerabilidade social.
Dois aspectos ainda merecem ser abordados neste tópico de análise. O primeiro deles diz respeito ao fato de infecção pelo HIV/Aids, para o grupo estudado, também se caracterizar como uma pandemia. Essa palavra não faz parte do vocabulário de nenhuma depoente, mas é identificada em seus discursos quando mencionaram dados referentes às dimensões numérica e geográfica que abrangem o fenômeno Aids, conforme evidenciado nos seguintes discursos.
Eu penso que é uma doença que tomou conta do mundo inteiro e que ataca toda população. Não é só aqui no Brasil; em todos os países você encontra a maior parte da população, ou então, de cinquenta por cento, vinte por cento da população tem alguém da família ou está com Aids.
[...] tem em vários países e eu acho que foi por intermédio do sangue que está contaminado com o vírus e que foi atingindo todo mundo, foi espalhada. É uma das piores doenças. E a pessoa evitando, a pessoa não vai contrair Aids.
A forma como apresentam esse conceito evidencia que para elas isso é um fato real, que não está numa dimensão do imaginário. É um dado que, na maioria das vezes, foi obtido por meio de informações processadas pelos canais de comunicação de massa. No entanto, a responsabilidade pela amplitude do fato é projetada para os governantes, para a falta de informações e, também, atribuída às pessoas que não adotaram ou não adotam medidas de prevenção contra a infecção, conforme já assinalado anteriormente.
O segundo aspecto se refere à questão da discriminação e, por extensão, do preconceito com relação aos portadores do vírus, como pode ser observado a seguir.
Quando você sabe que está com Aids, parece que a tua vida começa a acabar ali naquele determinado momento, não pela doença, mas pelo preconceito que as outras pessoas têm com você.
Para mim, é uma doença muito ruim. A pessoa fica desesperançosa porque ela não sabe o dia de amanhã. Até procurando um emprego, tem lugar que pede exame de sangue. Mesmo que diga que não tenha preconceito, sempre tem.
Observam-se relatos de situações envolvendo esses significados que caracterizam a estigmatização dos indivíduos portadores do vírus. Em outros, há afirmação de que esses aspectos existem não apenas em relação aos portadores da Aids, mas também em relação a outros grupos da população, como os idosos; ou simplesmente que se trata de um comportamento comum das pessoas. No entanto, ao serem abordados, esses aspectos não foram colocados em nenhum momento como uma atitude delas, mas sim de outras pessoas.
Pode-se supor que esse tipo de posicionamento do grupo seja uma resposta às campanhas que foram realizadas com o intuito de abolir o preconceito, tão presente e marcante no início da epidemia. No entanto, pode ser uma forma de ocultar essa atitude, que não é aceitável socialmente e que, portanto, não deve ser revelada publicamente.
Considerações finais
As representações sociais reúnem imagens, significados, conceitos, valores pessoais e sociais que, no decurso da comunicação social, são recriados, reelaborados, construindo conhecimentos ou teorias do senso comum. Esses conhecimentos constituem um repertório comum de interpretações e explicações, regras, normas e procedimentos necessários à vida cotidiana e de fundamental importância para a comunicação dentro dos grupos sociais.
É fato que as representações sociais de um determinado objeto apresentam variações nos seus elementos dentro de um mesmo grupo e entre diferentes grupos. Essas variações interindividuais ou intergrupais podem ser atribuídas às diferentes posições sociais e experiências de vida de cada indivíduo, conforme revela a caracterização dos sujeitos do estudo. No entanto, o que se busca apreender nos conteúdos da representação social de um determinado grupo é o universo consensual, que é o que o capacita a compartilhar um estoque de conceitos, ideias e imagens considerados mutuamente aceitos. Dessa forma, com base no que foi exposto na análise precedente, pode-se estruturar a seguinte composição dos conteúdos da representação social da Aids no grupo estudado.
Trata-se de uma doença contagiosa que significa morte e, por isso, é considerada feia, horrível, ruim e perigosa, despertando sentimentos de sofrimento, tristeza e medo, principalmente. Ela é considerada uma pandemia que se dissemina pela irresponsabilidade dos "outros" (homens, outras mulheres, adolescentes, profissionais), que não buscam informação e não se protegem, ou então adotam condutas que expõem as pessoas ao risco. A prevenção é o fator essencial para o controle da síndrome. Por sua construção histórica e social, propicia ainda o desenvolvimento de atitudes de discriminação e preconceito.
Os conteúdos dessa representação social revelam aspectos consensuais que expressam como o grupo retrata o fenômeno da Aids, cuja compreensão pode constituir um instrumento para direcionar as práticas assistenciais e, especialmente, as de caráter educativo, revelando a contribuição do estudo. Evidenciam, inclusive, a importância do campo de estudo das representações sociais para as intervenções em saúde.
Destaca-se, por fim, que os elementos ora abordados não esgotam todo o potencial da representação social da Aids no grupo de mulheres deste estudo. Outros saberes, interpretações, significações e práticas que lhes têm servido para o enfrentamento desse fenômeno também estão presentes em seus discursos. Evidenciam outras dimensões da representação social desse fenômeno, que se traduz num problema de saúde pública de grande magnitude, e, assim sendo, precisam ser compreendidos para que possamos fazer intervenções com vistas a contribuir para a redução dos seus danos.
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Tramitação
Recebido em agosto de 2009
Aceito em outubro de 2009