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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.6 n.spe São Paulo  2004

 

ARTIGOS

 

Representações sociais da atuação do enfermeiro psiquiátrico no cotidiano*

 

Social representations of psychiatric nursing actions in daily life

 

 

Francisco Arnoldo Nunes de MirandaI ,Antonia Regina Ferreira FuregatoII

I Depto. de Enfermagem, UNOPAR
II Depto. de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Captar a atuação cotidiana do profissional enfermeiro e suas representações sociais no contexto institucional psiquiátrico foi o objetivo desta pesquisa. Utilizou-se instrumento projetivo (TSC) com 16 cenas que retratam a atuação do enfermeiro no contexto institucional. Os sujeitos foram 17 enfermeiros assistenciais de cinco instituições psiquiátricas do município de Ribeirão Preto e 17 enfermeiros doutorandos em Enfermagem Psiquiátrica, atendendo aos critérios éticos. Os achados foram submetidos à análise de conteúdo e à análise léxica do ALCESTE, com o suporte teórico das representações sociais. Os resultados mostram que o enfermeiro atua junto ao doente mental utilizando-se de artifícios mediados pelas relações técnicas, interpessoais, interacionais e institucionais. Considerando as permanências e diversidades de sua atuação, observa-se o afastamento do enfermeiro do objeto central do seu trabalho, o doente mental. Os elementos periféricos sustentam sua posição. Emanam desses resultados as representações sociais polêmicas, mediadas pela teoria implícita da dissonância cognitiva.

Palavras-chave: Enfermagem, Saúde mental, Representações sociais.


ABSTRACT

This research aimed to picture the daily actions of nursing professionals and their social representations in the institutional psychiatric context. We used a projective instrument (TSC) with 16 scenes that picture nurses’ actions in the institutional context. Subjects were 17 clinical nurses from five psychiatric institutions in Ribeirão Preto, Brazil, and 17 nurses who are doctoral students in Psychiatric Nursing, attending to all ethical criteria. Data were submitted to content analysis and to ALCESTE’s lexical analysis, based on the theoretical framework of social representations. Results demonstrate that the nurse deals with the mental patient, using tools mediated by technical, interpersonal, interactional and institutional relations. Considering the permanency and diversities in their actions, we observe the nurses’ distancing from the central object of their work, which are the mental patients. Peripheral elements sustain their position. These results give rise to polemic social representations, mediated by the implicit theory of cognitive dissonance.

Keywords: Nursing, Mental health, Social representations.


 

 

Introdução e referencial teórico

O cotidiano, compreendido como tridimensional, assemelha-se a uma película ou um filme em três dimensões (3D), no qual é preciso descobrir a nitidez das imagens, uma vez que a olho nu estas se apresentam imprecisas e vagas. Assim, é preciso descobrir o “terceiro olho” para simplesmente captar a impressão imagética e os conteúdos explícitos e implícitos que preenchem os espaços do ambiente projetado.

Nesse cotidiano, o enfermeiro está envolvido com conflitos, tensões, contradições, ambivalência e polissemia. Nesse local de atuação do profissional enfermeiro, a produção do saber e de sentido conforma dimensões explicativas das diferentes formas do conhecimento. Para Waldow (1998), o conhecimento da enfermagem tem características empírica, ética, específica e estética, diferenciando-se do modelo hegemônico de ciência.

A atuação profissional é uma ação que engendra a experiência passada no presente, servindo de guia e orientação para o futuro. Moscovici (1978) afirma que as representações sociais correspondem tanto à substância simbólica que entra na sua elaboração quanto à prática que produz esta substância, ou seja, as representações sociais são compartilhadas socialmente.

O passado, o presente e o futuro são dimensões inseridas na cotidianidade dos sujeitos psicossociais, independentemente do tempo e do lugar, que se revela na relação do eu com o outro. O outro não é redutível ao que eu penso ou sei sobre ele, mas é precisamente outro, irredutível na sua alteridade (JOVCHELOVITH, 1998).

As representações sociais da atuação do profissional enfermeiro são, ao mesmo tempo, individuais e sociais, por sua relação entre o eu e o outro, ou seja, pela alteridade. O enfermeiro é também objeto do seu próprio conhecimento, conferindo sua marca, que se caracteriza como uma construção identitária multifacetada. Para Andrade (1999), esse reconhecimento identitário pode ser mutante e contraditório entre si, mas mantém uma certa organização, coerência e estabilidade interna.

Segundo Jodelet (1998), as representações sociais têm funções de comunicação, apreensão e controle social, possibilitando a interpretação da realidade circundante. Essa interpretação rege nossas relaçA?ões com o mundo, orientando e organizando as formas de comunicação e de conduta.

Captar a atuação cotidiana do profissional enfermeiro e suas representações sociais no contexto institucional psiquiátrico foi o objetivo desta pesquisa.

 

Metodologia

Utilizou-se um instrumento projetivo denominado Técnica de Investigação Cotidiana (TSC), o qual contém 16 cenas que retratam a atuação do profissional enfermeiro no contexto institucional (as cenas retratam a atuação do profissional enfermeiro no contexto institucional por meio de desenhos, tal como nas revistas em quadrinhos). A “cartilha” é composta por dados de identificação, instruções e 16 desenhos sugestivos de uma jornada de trabalho (MIRANDA, 1996).

Nas duas etapas da coleta dos dados, os sujeitos participantes foram 17 enfermeiros assistenciais de cinco instituições psiquiátricas do município de Ribeirão Preto (Grupo A) e 17 enfermeiros pós-graduandos (ensino e pesquisa), doutorandos em Enfermagem Psiquiátrica (Grupo B), atendendo aos critérios éticos (MIRANDA, 2002).

Os critérios para inclusão dos sujeitos foram: 1) ser enfermeiro; 2) atuar nos serviços de saúde mental e psiquiatria; 3) atuar no ensino de enfermagem psiquiátrica ou saúde mental; 4) aceitar participar da investigação; 5) concordar com a utilização do procedimento projetivo.

O cotidiano do profissional enfermeiro é captado pelas manifestações discursivas emanadas do TSC sobre a atuação do mesmo, originando imagens (re)produtoras de sentido do contexto institucional. As relações que se estabelecem entre o pesquisado e o TSC remetem para a esfera do conhecido, criando um jogo de fantasias que envolve os sujeitos psicossociais e o contexto à medida que as imagens evocadas revelam a lógica estruturante do trabalho, tornando-o compreensível para si e para o outro, o doente mental.

Um dos maiores méritos do TSC é servir como artifício para deixar emergir do sujeito suas reminiscências sobre o objeto pesquisado. Esse movimento, único e singular, permite a apreensão da realidade, captando as determinações contextuais e as relações humanas.

Os achados foram submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 1977) e à análise léxica do ALCESTE (REINERT, 1990), tendo com o suporte teórico a teoria das representações sociais. O artifício é realizado independentemente da ação e da vontade do pesquisador, uma vez que o programa estatístico foi concebido e construído de forma aleatória e intencional, para evitar que o pesquisador interfira sobre o mesmo (OLIVEIRA, 1990).

O texto trabalhado pelo software constitui um único arquivo (corpus), preparado segundo os critérios definidos pelo programa.

 

Discussão de resultados

Os dados sob a luz da análise de conteúdo

Os dados brutos foram codificados seguindo regras da homogeneidade, pertinência e representatividade, sendo posteriormente recortados, agregados e enumerados, tendo por base a leitura flutuante, a fim de atingir a compreensão do conteúdo do material coletado e a emersão das unidades de significados.

Do corpus formado pelo material coletado das 16 cenas do cotidiano do enfermeiro emergiram quatro categorias: 1 – Atuação como controle de um saber (ACS); 2 – Atuação como poder de um saber (APS); 3 – Atuação como limites de um saber (ALS); 4 – Atuação como saber de um saber (ASS).

1 – Atuação como controle de um saber: controle é um artifício adotado pelo enfermeiro em vários momentos de sua atuação. Independentemente da forma de controlar, o enfermeiro desenvolve estratégias para estabelecer relações e julgamentos e, a partir daí, demarcar sua posição.

Destacam-se os vários sentidos para este controle: controle do outro, que pode ser individual ou coletivo, respectivamente, “é necessário que se converse com o mesmo” e “tomando banho os dois juntos?”; controle de si: “eu não falaria nada” / “eu o prepararia psicologicamente” / “eu quero um pouco de paz”; controle pela observação: “fique tranqüilo porque estamos sempre observando” / “vamos continuar com a observação” / “aumentar a vigilância”; controle corporal: “é muito difícil o confronto com o corpo” / “quando for tomar banho, feche a porta”; controle físico: “boto vocês na contenção” / “vamos contê-lo”; controle verbal: “eu tento a contenção verbal” / “ajudar com o manejo verbal antes de conter fisicamente”; controle indiferenciado ou indefinido: “coisas acontecem por aqui”; controle técnico: “uma medicação para diminuir a agitação” / “está dormindo com tanto Valium assim”; controle não físico: “ficar atento às suas atitudes” / “não podemos estimular”; controle espacial: “os portões estão fechados” / “esse é um hospital fechado” / “esta sala não é o local mais adequado” / “abri a porta para ver se está tudo bem”; controle institucional: “qualquer alteração comunicamos o médico” / “vou colocar no livro de ocorrências” / “o contrato será lembrado” / “cumpro todas normas do hospital”; controle dos impulsos: “não agüento essa enfermeira chata” / “estamos em certos serviços correndo risco” / “me incomoda muito as pessoas ficarem me abraçando”; controle humanizado: “não precisava de tanta agressão” / “o bom relacionamento amenizará a situação” / “vamos agora tentar ajudar” / “espero que você consiga melhorar mais”.

2 – Atuação como poder de um saber: o poder exercido pelo enfermeiro é um procedimento que orienta sua prática, a qual se situa entre o cuidado direto e a gerência dos serviços de saúde mental e psiquiátrico.

O enfermeiro exercita o poder estabelecendo relações e julgamentos que demonstram sua posição de fragilidade e vulnerabilidade diante do poder hegemônico e das outras profissões emergentes, assumindo aspectos coercitivos. Tal poder é justificado institucionalmente, um intermediário entre a hierarquia burocrático-administrativa e o fazer propriamente dito da enfermagem: o cuidado.

O poder institucional: “a instituição não permite” / “aqui no hospital não é permitido”; poder profissional: “vamos mais depressa com esse banho pois o café já está servido” / “o que é isso, vou contar para o seu médico”; poder hierarquizado: “chamar os profissionais envolvidos para uma conversa” / “quem cuida do banho é o auxiliar” / “se for reincidência, advertência”; poder moral: “vamos parar com isso, pouca vergonha” / “que pouca vergonha! Aqui não é lugar de se fazer isso”; poder corporal: “é melhor virar o rosto para o outro lado” / “vai ficar amarrado para poder se controlar” / “preciso fazer um exame físico”; poder punitivo: “vocês serão punidos” / “boto vocês na contenção” / “a sua advertência vai ficar registrada no prontuário”.

3 – Atuação como limites de um saber: sua atuação é um constante redimensionamento das tecnologias que envolvem aspectos técnicos e aqueles inter, intra e transrelacionais compreendidos no modelo hospitalocêntrico.

As manifestações discursivas circulantes são polissêmicas, tanto para o enfermeiro (revelando o controle de si), como para o outro (o doente mental e a instituição), destacando-se os aspectos organizacionais observáveis e imaginários.

Estabelecer os limites requer observações e saberes que sempre se somam aos comportamentos e suas relações com o todo institucional.

Os limites do outro: “vocês estão aqui para se tratar” / “vou separar esses dois”; limites de si: “volto outra hora... que situação desagradável” / “vou fazer de conta que não vi nada” / “preciso refazer-me”; limites espaciais: “será que ele percebeu minha presença naquele momento?” / “quando for se banhar feche a porta”; limites técnicos: “fico impregnado” / “medicação para diminuir sua agitação” / “estamos sempre observando”; limites físicos: “sempre de mãos presas para trás” / “ficou contido pois havia fugido”; limites morais: “situação incômoda” / “volto outra hora; que situação desagradável” / “será que eu fiz algo tão feio?”; limites relacionais: “acho que não é hora de tanta aproximação” / “como será a relação entre eles”; limites institucionais: “aqui é um hospital psiquiátrico, não um hotel” / “os portões ainda estão fechados”.

4 – Atuação como saber de um saber: metáfora da atuação como saber de um saber. Para Guimelli & Jacobi (1990), o saber como dimensão da atuação do enfermeiro é resultante de dois modelos que norteiam sua prática: o clássico, de execução das prescrições médicas, e o próprio, caracterizado por uma definição de funções próprias.

O saber no modelo clássico está pautado nas técnicas decorrentes do ato médico e do modelo biomédico, de causa e efeito, sinais e sintomas. É um saber subordinado e subsidiário à prática médica e sua ciência, revestido da cientificidade técnica e do conhecimento da clínica.

O modelo próprio, em construção, delineia-se nos múltiplos modos diários de construir um cotidiano, enriquecido pela experiência humana de cuidar. Nesse sentido, a atuação é relacional, conformando a multicausalidade e as atividades interpessoais, redesenhando a atuação com diferentes níveis de competências e habilidades.

O saber técnico: “esta medicação tem a função” / “faz parte do seu tratamento”;saber corporal: “difícil o confronto com o corpo” / “é muito difícil falar de sexualidade”; saber profissional: “dá a sensação de que ela não vê o paciente” / “vou injetar lentamente para não doer”; saber pessoal: “é verdadeira esta imagem que as pessoas tem da gente”; saber psicológico: “vamos conversar sobre o que está acontecendo” / “ter um mínimo de sensibilidade”; saber social: “de alta poderão resolver esse problema” / “dança faz bem para a alma”; saber exploratório: “porque você está chorando?” / “o que fazer?” / “será que tem louco lá?”; saber experienciado: “fato que aconteceu na psiquiatria, há treze anos” / “vou fazer de conta que não vi nada” / “as coisas não são bem assim”; saber observado: “estamos sempre observando” / “vou observar a contensão” / “ver se esse sono é normal”; saber institucional: “hoje o plantão foi muito difícil” / “tentar elaborar prioridades” / “a mesma postura distante”; saber médico: “suspenda o sedativo” / “verificar a dosagem de Carbolitium no sangue” / “parece que está alucinando”; saber incerto: “será que todos os enfermeiros em psiquiatria são assim também?” / “espero que eles saibam o que estão fazendo”.

 

Os dados sob a luz do ALCESTE

As imagens geradas pelo ALCESTE são divididas por dois eixos, formando quatro partes iguais da mesma figura e uma distribuição espacial, doravante considerados quadrantes.

Neles se localizam as unidades semânticas significantes, distribuídas pelo programa. Os espaços geométricos de cada imagem indicam campos geradores de categorias, que se apresentam em sentido anti-horário, formando um círculo que se inicia no quadrante inferior. Tal como na análise de conteúdo, o ALCESTE identificou quatro categorias que se superpõem nos Gráficos 1 e 2: Q1 e relações por procedimentos técnicos (RPT); Q2 e relações interpessoais (RIT); Q3 e relações por interações sociais (RIS); e Q4 e relações institucionais (RIN). Olhando para os dois gráficos e sobrepondo os respectivos quadrantes, é possível fazer uma reflexão sobre a leitura feita pelo ALCESTE.

 

 

 

 

No Q1, o software agrupou os termos e as cenas “início da jornada”, “banho duplo”, “contenção” e “vigília”. Esse conjunto contém idéias das expectativas e dificuldades esperadas pelo enfermeiro no decorrer da jornada de trabalho, cujas situações são motivos de precaução, controle e observação, associadas a modos coercitivos. Estão incluídos aqui os procedimentos técnicos geradores de uma relação de poder e de domínio deste saber. Essa postura tem justificado o afastamento do enfermeiro do seu objeto do trabalho. Essa situação reflete o modelo hospitalocêntrico, total ou parcial, do modelo asilar e custodial.

No Q2 encontram-se os termos referentes às cenas “banho individual”, “surpresa”, “medicação”, “olhar” e “banho feminino”. O relacionamento interpessoal, que deveria ser terapêutico nas 24 horas da atuação profissional do enfermeiro, apresenta-se apenas como controle. A idéia de controle sobre o corpo do doente mental está presente neste quadrante. As manifestações da sexualidade são vigiadas e controladas por meio da observação contínua e, se possível, sob contenção no banho individual e feminino, pela possibilidade da masturbação e pela ameaça de uma gravidez indesejada e pelo elemento surpresa. Segundo Schilder (1994), o corpo constitui objeto da atuação do enfermeiro, bem como suas estruturas anátomo-fisicológicas, libidiniais e sociológicas.

No Q3 destacam-se as cenas sobre a “dança”, o “grupo” e o “cafezinho” e os termos a eles ligados, assim como se destaca a categoria das relações por interações sociais. As questões do social, inseridas no trabalho, ressaltaram as identificações dos indivíduos nos seus diferentes papéis sociais, intensamente vividos. As cenas evocadas revelam situações de interação social e proximidade corporal, que também merecem destaque em função dos conteúdos simbólicos, lingüísticos e sexuais circulantes. O controle sobre a forma de pensar do doente mental está presente.

No Q4 as cenas “fuga”, “relato de ocorrências”, “saída” e “descanso” sugerem dois entendimentos distintos e complementares ligados à jornada de trabalho, acentuando a condição de penosidade do seu trabalho. As relações institucionais contêm as ações do cotidiano, ditadas pelo contexto, as quais nem sempre são questionadas por quem as executa.

A fuga é um evento previsto, todavia desagradável. Consiste na ruptura das funções e da atuação do enfermeiro, tornando-o vulnerável e passível de sanções, e que precisa ser confessada pelo relato como forma de justificar o evento. A fuga ainda pode indicar, subliminarmente, a necessidade do enfermeiro de sair do contexto em função das dificuldades inerentes ao objeto de trabalho, como um mecanismo de defesa pessoal e profissional. Pode ser um indício da melhora do quadro geral do paciente e não um agravamento das manifestações psicopatológicas.

A saída e o descanso sugerem o grau de dificuldade e o alívio de sair do contexto psiquiátrico, carregado de expectativas, dificuldades e gerador de efeitos ansiogênicos para o enfermeiro.

Nos Gráficos 1 e 2 estão as quatro categorias, distribuídas pelo cotidiano da atuação do profissional enfermeiro, evidenciando o seu distanciamento do “objeto” do seu trabalho – o doente mental.

A seguir, observa-se o Quadro 1, no qual o enfermeiro justifica e explica sua ação por meio da avaliação que faz da situação em si, permitindo, a posteriori, dar sentido às tomadas de posição e de decisão sobre os comportamentos manifestos e, ainda, como diferenciar-se daquele que não faz parte do seu grupo, o doente mental. Ao justificar sua atuação, garante sua preservação no sentido da diferenciação social. Assim, pode criar concepções estereotipadas das relações existentes no cotidiano, quer pela discriminação, quer pelo distanciamento pessoal e social.

 

 

Abric (1998), argumentando sobre a função justificadora, diz que é um caso interessante para o estudo das relações entre práticas e representações. Trata-se de um caso no qual a representação é determinada pela prática das relações, desse ponto de vista, aparecendo um novo papel das representações: o de manter ou reforçar a posição social do grupo de referência.

Justificada sua atuação num processo de avaliação diante dos aspectos mais significativos para si, o indivíduo destaca elementos da rotina de enfermagem como pré-codificados para guiar o seu comportamento e sua prática. Assim, em alguns momentos, atua mediante algumas prescrições já dominadas em função do grau de sua ocorrência. Estas geram um saber que facilita sua tomada de posição.

Ao se guiar perante esse saber, o enfermeiro se posiciona diante de si mesmo, do processo de trabalho, do contexto, de seus pares e do doente mental, atendendo a finalidades emanadas da situação, resolvendo tarefas, delegando competências, controlando e limitando por meio da seleção e da filtragem das informações, interpretadas e adequadas, tanto com a realidade quanto com o sistema de representação sobre a ação, a doença e o doente mental. Partindo desse saber, define a natureza das regras de convivência e de relacionamento, esclarecendo o que é lícito ou ilícito, tolerável ou inaceitável em cotidiano.

Spink (1994; 1999) afirma que existem diferentes tempos históricos que permeiam a construção dos significados sociais. Esses significados possibilitam a elaboração das representações sociais como formas de conhecimento prático que orientam as ações cotidianas. Assim, o contexto pode ser definido não apenas pelo espaço social no qual a ação se desenrola, mas, também, a partir de uma perspectiva temporal que é demarcada pelo momento da interação, da relação e da atuação propriamente dita.

Os comportamentos situacionais manifestos pelo enfermeiro circunscrevem o ambiente simbólico como uma justificativa para sua atuação, situada entre o tempo e o espaço, cujas reservas advêm de um estoque fragmentário da história da psiquiatria. Deste emergem conteúdos estereotipados permanentes, rígidos, cristalizados, que perpassam os entendimentos sobre a doença e sobre o doente mental e mantêm-se presentes na contemporaneidade. O enfermeiro reporta-se a esse repertório, evocando inconscientemente imagens e mensagens metafóricas de um tempo longo da história da psiquiatria.

Os comportamentos representacionais, segundo Vala (2000), dizem respeito àqueles determinados, no mínimo, pela situação concreta na qual ocorrem, e no máximo, por fatores pré-situacionais, situados no nível das atitudes e das representações.

Observou-se que os comportamentos representacionais estão determinando a forma da atuação do enfermeiro, que envolve a técnica na execução de procedimentos, como a medicação, e aquelas outras cujas habilidades e competências exigem uma compreensão da relação com o outro, o cuidar. O tempo vivido, nesse contexto, configura o saber de um saber e o controle sobre esse saber; é um tempo em que as relações interpessoais e as de interações sociais são objetos de compartilhamento entre os sujeitos de forma rotineira em seu cotidiano.

O tempo curto, metaforicamente dizendo, é a confirmação cotidiana de como o saber de um saber se (re)apresenta, estabelecendo o controle e os limites de um poder e de um saber que se conforma na situação de risco controlado da enfermagem. Assim como no tempo vivido, o comportamento do enfermeiro se baseia na forma como ele representa a sua atuação cotidiana. É sobre esse tempo que o presente estudo visualiza a atuação do enfermeiro em seu cotidiano.

Sua atuação é basicamente expressa por meio das relações que estabelece em seu cotidiano. Assim, as informações passam a ser compartilhadas por todos que compõem o cotidiano do enfermeiro, configurando um referencial próprio. As manifestações discursivas advindas dos processos de relações interpessoais, interacionais e institucionais revelam o modelo de estrutura e organização no qual sua atuação está inserida. A dialogicidade apresenta-se como uma ferramenta de trabalho, pois na vida cotidiana as relações desenvolvidas conferem sentido de sobrevivência, pessoal e profissional.

O enfermeiro, na condição de mantenedor e reforçador de sua posição, encontra dificuldades no desempenho de algumas atividades, pois alguns fatos e seus conteúdos, quando presentes, não são comparáveis, mas interligam-se ao seu modo de atuar, exigindo do mesmo decisões e posicionamentos. Conhecedor dessas ordenações, ele pode, de antemão, utilizando-se de um referencial similar, compará-las e, a partir dessa aproximação, adotar posicionamentos que revelam a natureza das relações por meio de intervalos espaciais e temporais. Assim, revela, além do seu aspecto criativo de atuar, o caráter polissêmico, definindo o tipo de suas representações diante dos fenômenos emergentes de sua cotidianidade.

 

Representações da atuação cotidiana do enfermeiro psiquiátrico

A atuação do enfermeiro gera um corpus de conhecimentos interditos sobre cada uma das formas de agir e pensar em seu cotidiano, donde se observa que a atuação passa pela questão da alteridade que lhe confere identidade social, profissional e pessoal, como forma de se relacionar.

Em cada uma das opções de atuação, o enfermeiro desenvolve um repertório próprio e significativo para igual relação estabelecida, por ser uma consciência prática e funcional desse modo de atuar, tendo por base as estruturas estruturantes que se ancoram e se objetivam na compreensão dos conteúdos impregnados do tempo longo e imediatizados pelo tempo curto, interfaceando com o tempo vivido (habitus) sobre um saber e um poder que limitam e controlam a própria atuação junto ao doente mental.

No estudo sobre a atuação e o cotidiano do enfermeiro, a reatividade é revelada por meio da descentralidade da representação social do objeto de atuação. Configura-se como uma realidade oponente e objetiva, uma vez que toda realidade pode ser representada, (re)apropriada pelo indivíduo e pelo grupo, (re)construída no seu sistema cognitivo, identitário e funcional, integrada no seu sistema de valores, dependente da história e do contexto social e ideológico que o cerca, uma vez que as representações sociais não compartilham com idiossincrasias e conhecimento privado.

Segundo Wagner (1998), as representações sociais comportam conteúdos mentais estruturados. São conteúdos cognitivos, avaliativos, afetivos e simbólicos sobre um fenômeno social relevante, que tomam a forma de imagens ou metáforas, conscientemente compartilhadas com outros membros do grupo social. As representações sociais determinam a orientação do sujeito psicossocial dentro do seu contexto e revelam-se por meio das manifestações de interesse, assim como nas suas tomadas de decisões.

Os enfermeiros ancoram sua atuação, negando-a como um procedimento técnico. Por meio da objetivação que fazem da mesma frente ao contexto e adotando posturas diferentes e relacionais, não revelam a representação imagética do núcleo figurativo, porque sua atuação é ambivalente e polissêmica. Seu objeto representacional são as relações do eu com o outro, ou seja, a alteridade.

Como polêmica, sua atuação é revelada por meio de um núcleo central no qual se encontram mais divergências do que congruências, que se estruturam como um consenso entre os enfermeiros por sua atuação não-técnica, mas intermediada pelas múltiplas relações que daí resultam. Como sistema central, a negação ou a alienação da atuação no cotidiano psiquiátrico é, ao mesmo tempo vazia, rígida, coerente e estável. Os comportamentos manifestos são preferencialmente representacionais, pois se situam no modo de atuação específico na área, sendo concretizados por meio das interações que conferem uma aparente atuação diferenciada daquelas consideradas técnicas, por serem fruto das relações estabelecidas entre o doente mental e a instituição.

A descentralidade como uma dimensão da representação social do enfermeiro no cotidiano psiquiátrico é garantida pelo sistema periférico, uma vez que a organização central é a negação desse processo produtivo. Os elementos periféricos, por serem mais flexíveis e estarem situados no plano das relações humanas, mudam da mesma forma que na ação propriamente dita, pois dizem respeito aos movimentos que ocorrem nas relações.

A atuação do enfermeiro é pontual e sincronizada com a circularidade. Dessa forma, permite se distanciar dos demais níveis de atuação, ocasionando uma concepção geral da atuação em modo assincrônico. É por meio dos elementos periféricos que a atuação do enfermeiro revela as divergências, tal como em sua articulação com outros sentidos significativos, conforme afirma Herzlich (1972).

Do profissional, espera-se que desempenhe atividades administrativas e assistenciais, diretas e indiretas, que execute procedimentos técnicos e intervenções mais complexas, que delegue competências e supervisione as atividades dos membros da equipe de enfermagem, que desenvolva e implemente ações educativas em saúde e/ou programas de treinamento em serviço, entre outras. Todavia, é nos procedimentos humanísticos que a atuação do enfermeiro é desvalorizada, pois não são quantificáveis e dela demandam esforços para se manter atualizado diante das respostas a muitos questionamentos que circulam no seu processo de trabalho.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Antonia Regina Ferreira Furegato
EERP/USP
Av. Bandeirantes, 3.900 – Campus Ribeirão Preto
14040-902, Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail:furegato@eerp.usp.br

Tramitação
Recebido em fevereiro/2004
Aceito em março/2004

 

 

* Parte da Tese de Doutorado de MIRANDA (2002).