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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2016

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Cuidador e cuidado: o sujeito e suas relações no contexto da assistência domiciliar

 

Caregiver and care: the subject and its relations in the context of household assistance

 

Cuidador y cuidado: el sujeto y sus relaciones en el contexto de la asistencia domiciliar

 

 

Ivete de Souza YavoI; Elisa Maria Parahyba CamposI
I Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A presente pesquisa teve como objetivo conhecer características emocionais e o contexto do trabalho do cuidador domiciliar, bem como o sentido do cuidar para esses sujeitos. Participaram do estudo dez cuidadores domiciliares familiares de pacientes com câncer e pacientes vítimas de AVC. Para a coleta dos dados, foram utilizadas entrevistas semidirigidas. Os resultados apontam que o cuidado domiciliar é uma experiência paradoxal, pois o cenário onde este se desenvolve é determinante para a apreensão da subjetividade do cuidador e do que se espera de suas tarefas. Observou­se dificuldade de compartilhamento de atividades entre membros da família, culminando em sobrecarga física e emocional do cuidador. Conclui‑se, assim, que a relação cuidado e cuidador não é um encontro simples; o domicílio é um cenário complexo, no qual se torna quase impossível homogeneizar ações e práticas de saúde.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; assistência domiciliar; care; cuidadores; psico‑oncologia.


Abstract

This reserch aimed to identify the emotional characteristics and the working context of the home caregiver, as well as the sense of caring for these subjects. Ten family home caregivers of cancer patients and patients suffering from stroke took part in the study. For the data collection semi­directed interviews were used. Results suggest that home care is a paradoxical experience, since the scenario where it develops is crucial to the understanding of caregiver’s subjectivity and what is expected of their tasks. Difficulties in sharing activities among family members, culminating in physical and emotional burden of the caregiver, were observed. We conclude, therefore, that the relationship between care and caregiver is not a simple conjuncture; the home is a complex scenario, where it becomes almost impossible to standardize actions and health practices.

Keywords: hospital psychology; household assistance; care; caretaker; psycho‑oncology.


Resumen

El presente estudio tuvo como objetivo conocer características emocionales y el contexto del trabajo del cuidador domiciliar, así como el sentido del cuidar para estos sujetos. Participaron del estudio diez cuidadores domiciliares familiares de pacientes con cáncer y de pacientes víctimas de ACV. Se han utilizado entrevistas semidirigidas. Los resultados apuntan que el cuidado domiciliar es una experiencia paradójica, pues el escenario donde el mismo se desarrolla es determinante para la aprensión de la subjetividad del cuidador y de lo que se espera de sus tareas. Se ha observado dificultad en la repartición de actividades entre miembros de la familia, culminando en sobrecarga física y emocional del cuidador. Por lo tanto, se concluye que la relación cuidado y cuidador no es un simple encuentro. El domicilio es un escenario complejo, por lo que se convierte casi imposible homogeneizar acciones y prácticas de salud.

Palabras clave: psicología de la salud; asistencia domiciliar; cuidar; cuidadores; psicooncología.


 

 

A demanda por serviços de assistência ao enfermo em domicílio é algo crescente, tanto no Brasil como em outros países da América e da Europa. Nesse contexto, a assistência domiciliar é pano de fundo para compreensão das questões psicossociais mais complexas, presentes em vários processos de adoecimento. Assim, estar em casa acamado, enfrentando um processo de adoecimento grave e necessitando de cuidados para a realização das necessidades básicas do dia a dia pressupõe auxílio e envolvimento familiar, evidenciando a necessidade de uma equipe multiprofissional que possa atender não só o paciente, mas a família.

O termo cuidador domiciliar é utilizado para designar a pessoa que será o apoio direto da equipe de profissionais de saúde nos cuidados junto ao paciente. Para melhor compreensão desse termo, vale ressaltar que, segundo Karsch (1998), cuidador pode ser formal, ou seja, indivíduo com uma formação específica para prestar os cuidados junto ao paciente, sendo, geralmente, remunerado – como enfermeiros, técnicos e outros – e cuidador domiciliar informal – caracterizado por pessoas que, na maioria das vezes, não possuem uma formação específica e aprendem a cuidar pela prática.

Observa-se que, mesmo com o apoio de uma equipe de profissionais coesa e capacitada, a manutenção dos serviços de saúde se apoia, diretamente, no cuidador formal ou informal, fazendo que, muitas vezes, a sobrecarga e a cobrança por um bom desempenho de funções sejam constantes, exigindo dele grande dispêndio de energia, gerando dúvidas e incertezas sobre o cuidado prestado.

Geralmente, o cuidador familiar domiciliar não está preparado para lidar com a situação de adoecimento agudo de um ente querido. O diagnóstico, às vezes, é repentino e inesperado. Mudanças de vida e reorganização de papéis acabam sendo necessárias, levando-o, muitas vezes, a apresentar comportamento de exclusão social, isolamento afetivo, depressão e perda da perspectiva de vida (Floriani, 2004). Nessa dimensão, observamos que o cuidado não se fundamenta em uma relação legal, contratual ou institucional: ele se fundamenta em uma relação que vai além dos códigos da consciência, circulando entre a representação e a sensação (Ceccim & Palombini, 2009).

Estudos sobre as tarefas do cuidador e o impacto do cuidar em sua saúde mostram que esses costumam apresentar sintomas físicos – como hipertensão arterial, diabetes, dores lombares – e a condição emocional mais frequente é a depressão. Segundo esses estudos, o transtorno depressivo está presente em 34% a 50% dos cuidadores, associados a fatores que vão desde a condição socioeconômica até o tipo de vínculo com o paciente (Bianchin, 2003).

Para Andrade, Costa, Caetano, Soares e Beserra (2009), dados como os antes apontados são preocupantes, pois vão na contramão do sistema atual de saúde que visa à desospitalização. Para essas autoras, novas estratégias devem ser criadas, contemplando o atendimento das necessidades dos cuidadores e de quem é cuidado.

Diante dessas considerações, justifica-se a relevância do presente estudo, pois observamos a necessidade de compreender a temática e a vivência do cuidador domiciliar familiar, de maneira mais abrangente, ressaltando não só as atividades rotineiras desenvolvidas por esses cuidadores, mas também obter informações subjetivas e relacioná-las em diferentes contextos. Dessa forma, a presente pesquisa teve como objetivo principal conhecer características emocionais e o contexto do trabalho de cuidadores domiciliares, bem como o sentido do cuidar para esses sujeitos.

 

Método

Foi realizado um estudo qualitativo que, segundo Turatto (2003), implica experiência de atendimento direto ao ser humano, unindo sinais e sintomas a dados observados anteriormente, levando em conta personalidade, meio ambiente e outros fatores inefáveis.

Participantes

A amostra foi composta por dez sujeitos: cinco cuidadores de pacientes com câncer e cinco cuidadores de pacientes acometidos por acidente vascular cerebral (AVC). Para um melhor delineamento do trabalho, optamos por entrevistar cuidadores de pacientes acamados e dependentes de cuidados básicos durante todo o dia, e, para identificar tal situação, recorremos à utilização da Escala de Katz que objetiva avaliar o grau de independência do paciente nas atividades de vida diária, tais como alimentar-se, banhar-se, vestir-se, arrumar-se, mobilizar-se e manter controle sobre suas eliminações (Duarte, Andrade, & Lebrão, 2007). Sem a pretensão de realizar uma análise estatística dos dados, sua utilização teve a função de confirmar e identificar, no momento da entrevista, cuidadores de pacientes com maior situação de dependência. Sendo assim, a partir do preenchimento da escala de Katz realizado pelos cuidadores participantes, obtivemos que todos os pacientes que eram alvo de sua atenção e cuidados apresentavam “grau de dependência total”. Utilizamos, ainda, como critérios de exclusão, cuidadores menores de 18 anos, cuidadores de pacientes pediátricos e indivíduos que exercem a tarefa de cuidador em período inferior a três meses.

Instrumentos

Para a coleta de dados, utilizamos uma entrevista semidirigida, pautada por duas questões norteadoras: “Fale-me sobre sua vida, antes de você se tornar um cuidador domiciliar” e “Conte-me como tem sido sua vida depois de ter se tornado cuidador”.

Vale lembrar que, nesse tipo de entrevista, o entrevistado tem liberdade de associar ideias, às vezes, antecipando questões que seriam colocadas pelo entrevistador ou, ainda, explicitar pontos não previstos, mas que carregam estreita relação com o tema (Cruz, 2003).

Procedimentos

Por se tratar de um estudo voltado para o cuidador domiciliar, os dados foram colhidos nas residências dos pacientes acompanhados por um programa de assistência domiciliar, ligado a uma universidade pública da cidade de São Paulo. Todas as visitas foram previamente agendadas e realizadas individualmente pela pesquisadora. O setting para a realização das entrevistas variou, de acordo com a disponibilidade e espaço físico da casa do entrevistado.

Quanto à análise dos dados, as entrevistas foram examinadas utilizando-se o método da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011), destacando-se as seguintes categorias: o lugar do cuidador e o cuidado de si mesmo; significados do cuidar para o cuidador; recursos de enfrentamento utilizados pelo cuidador; lidando com a possibilidade de morte; e, por fim, o cuidador: suas relações familiares e sociais.

 

Resultados e discussão

Os discursos dos entrevistados foram organizados em cinco categorias principais:

O lugar do cuidador e o cuidado de si mesmo

Em razão da rotina difícil estabelecida e, muitas vezes, por causa da saúde do indivíduo acamado, torna-se extremamente difícil para o cuidador sair de casa ou organizar sua agenda de forma a priorizar seu próprio cuidado. Geralmente, relegando-se a um segundo plano, é comum seu adoecimento durante o exercício de seu papel (Schnaider, Silva, & Pereira, 2009). O autocuidado e a realização pessoal aparecem como algo secundário, pois a própria saúde do cuidador é negligenciada em favor da saúde do familiar acamado.

Dia desses, minha médica falou “o senhor tem que arrumar um tempo por causa da sua saúde. Se o senhor ficar doente, como é que o senhor vai cuidar dela?” (Clovis, 72 anos, cuidador da mãe com câncer)

Alguns participantes demonstraram dificuldade em falar de si mesmos, adotando um discurso que abordava, essencialmente, o familiar acamado, denotando uma espécie de “simbiose” com o processo de adoecimento do indivíduo cuidado. A entrevistada Lucia, ao ser solicitada a falar sobre como está sua vida enquanto cuidadora da sogra diagnosticada com câncer, mostra, em seu discurso, foco em atividades cotidianas que não exigem reflexão sobre como ela se sente nesse processo, indicando, ainda, certa passividade e automatismo.

Ah, a gente dá um jeito, né? [...] Que nem hoje, hoje, por exemplo, vou lavar minha louça, fazer meu almoço, né? Aí, quando o almoço tiver pronto, a gente almoça. Todo mundo vai sair... Pego, deixo a louça aí, aí quando eles chegarem... Quem chegar primeiro lava. (Lúcia, 72 anos, cuidadora da sogra com câncer)

Bianchin (2003) refere que o trabalho de cuidar é um fator que predispõe ao adoecimento físico e/ou psíquico; entretanto, entre os entrevistados observou-se que o cuidar apenas ressaltou problemas de saúde anteriores. Dos dez cuidadores entrevistados, quatro referiram fazer uso de medicamentos psiquiátricos, iniciados antes mesmo de se tornarem cuidadores. A fala de Benedita ilustra essa questão.

Minhas filhas também se preocupam comigo. Elas sabem que eu faço um tratamento antidepressivo muito sério, quase me levou a loucura [...] Ai, este meu estado meio depressivo, já veio já destes problemas antes; não foi por causa dos meus pais. (Benedita, 54 anos, cuidadora do pai com câncer)

Os entrevistados referiram, também, dificuldades quanto à realização de tarefas do cotidiano, como dar banho, realização da mudança de decúbito (evitando, assim, escaras ou úlceras), troca de roupas, entre outros. O despreparo do cuidador para a realização dessas tarefas predispõe ainda mais ao aparecimento de dores lombares e problemas na coluna, e, além disso, quando os pacientes cuidados apresentam quadros com dores e alterações mentais – como demência – isso faz que o familiar acamado não durma bem à noite e, logicamente, acaba comprometendo o sono do cuidador, o que pode agravar seus problemas de saúde.

Tem três dias que a gente não dorme direito. Porque ela (se referindo à mãe) não dorme e não deixa eu dormir. E eu fico do lado dela, e ela fica empurrando e chutando. E ela fica agressiva quando ela tá assim. Ela empurra, ela bate, e xinga [...] Olha, às vezes, eu tenho um cansaço danado. (Selma, 35 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Significados do cuidar para o cuidador

Para Silveira, Caldas e Carneiro (2006), a dificuldade, a dor e as preocupações referentes ao ato de cuidar fazem que, constantemente, busquemos um significado para esse ato. Significar o sofrimento é algo necessário para aprender e crescer, do ponto de vista existencial. Assim, para o grupo estudado, o cuidar apareceu ora como um dom, ora como uma imposição. Para alguns entrevistados, o papel de cuidador não foi fruto de uma construção, ou seja, os sujeitos já tinham características, a priori, para ocuparem esse lugar dentro da família. Eles referiram que cuidar é um dom, como algo inato, pois, cedo ou tarde, eles seriam cuidadores informais.

Desde pequena que eu tenho isto, que eu gosto de ajudar. Eu já ajudei gente que nunca nem vi, já ajudei gente que não sei de onde veio pra onde vai. (Josefa, 61 anos, cuidadora do ex-marido com AVC)

Silveira, Caldas e Carneiro (2006) referem que há uma compreensão sobre o cuidado que envolve a construção de questões subjetivas e que são transmitidas entre as gerações, criando padrões, mitos e crenças de cada sistema familiar, levando à ideia de que o cuidado ao idoso ou ao membro doente seria um dever da família, mais especificamente, de um dos familiares. Alguns entrevistados referiram que o cuidado está relacionado a algo imposto, inerente ao fazer parte de uma família (como cuidar do pai, da mãe, do esposo, da esposa, do genro, da nora e outros). Não se trata de uma escolha, pois não haveria opções, apenas acatar o fato e exercer, de acordo com a conveniência do momento, ou até mesmo exercer o cuidado apoiando-se em preceitos religiosos que incentivam obediência a divindades maiores.

Minha filha, eu acho o seguinte, eu acho que pra Deus eu estou fazendo uma boa obra, porque a gente não pode correr da verdade, fugir da realidade. Se Ele (Deus) determinou que tudo isso acontecesse na minha companhia, então, sou eu que tenho que cuidar. (Josefa, 61 anos, cuidadora do ex-marido com AVC)

Os entrevistados revelaram, ainda, o não reconhecimento das atividades de cuidar como um trabalho propriamente dito. Molinier (2010), Guimarães, Hirata e Sugita (2010) e Soares (2010), ao enriquecerem a discussão sobre o tema, sugerem, inclusive, que novas formas de pensar o trabalho devam ser desenvolvidas e que a desvalorização do trabalho de cuidador – quer seja remunerado, quer não – tem uma relação direta com questões culturais e históricas, destacando-se as questões de gênero, à medida que o ato de cuidar costuma ser considerado uma atribuição “essencialmente” feminina. Corroborando uma imagem socialmente construída, Küchemann (2010) salienta que, mesmo com as mudanças sociais e políticas das mulheres no questionamento dos papéis tradicionais de gênero, é hegemônica a compreensão de que as atividades domésticas, a socialização das crianças e o cuidado aos idosos e doentes sejam de responsabilidade, quase que exclusiva, das mulheres.

Outro dado encontrado no discurso dos participantes revela uma relação a ser destacada: a relação entre afeto e trabalho. Para alguns sujeitos, afirmar que cuidar de alguém querido é um trabalho é o mesmo que reclamar ou queixar-se da tarefa. Nesse sentido, observa-se que, quando há uma carga grande de afeto, o sujeito tende a não considerar seu ato como um trabalho. Os entrevistados parecem compreender que a noção de trabalho pressupõe regras e nenhuma forma de envolvimento afetivo. Esse dado pode ajudar a compreender uma queixa frequente de profissionais de programas de assistência domiciliares quanto à dificuldade apresentada por alguns cuidadores em desempenhar adequadamente o trabalho do cuidado, ou seja, há uma diferença entre o trabalho prescrito pela equipe de saúde (normas preestabelecidas de tarefas) e o trabalho que, de fato, é realizado (atividades que envolvem emoção e que não estão previamente estabelecidas).

Trabalho é aquela coisa que você levanta já de manhã para fazer aquilo. Você faz, você faz ou num escritório, ou dentro de casa mesmo. Vai, vou fazer uma faxina de alguém ou pra você. Quando eu faço a minha faxina, eu estou trabalhando. Quando eu estou cuidando da minha mãe, não é um trabalho. (Sueli, 56 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Por outro lado, o discurso de Rose aponta um aspecto positivo de ter assumido essa tarefa. Para ela, o cuidar significa, também, a possibilidade de ressignificação das formas de viver de cada um.

Bom, eu descobri que eu sou uma ótima cuidadora, porque eu não tenho nojo, eu não tenho dificuldade, eu tenho força pra carregar, pra cá, pra lá. [...] Então, foi uma mudança de vida, mas pra mim foi uma mudança muito boa, porque eu descobri que eu fazia um monte de coisas bem, que eu não sabia que podia fazer. (Rose, 60 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Recursos de enfrentamento utilizados pelo cuidador

Neste trabalho, considera-se o enfrentamento como um processo, pois, nessa perspectiva, o enfrentamento apresenta certa mobilidade, de acordo com tempo e exigências do contexto (Gimenes, 1997). Os entrevistados referiram que o cuidar, em muitos momentos, é uma situação difícil que resulta em grande sobrecarga. Para alguns, a religiosidade, a onipotência e a própria sublimação são recursos de enfrentamento frequentes. De acordo com Marques e Ferraz (2004), o apego à religiosidade, como fonte de superação de angústias e sofrimento, permite ao cuidador sentir-se acolhido e compreendido no enfrentamento, principalmente, no acompanhamento de pacientes em cuidados paliativos.

É o que eu penso assim pra me fortalecer, senão, se você toma tudo isto como um problema, aí eu caio. Aí eu encaro numa boa. Eu sou católica, não muito praticante, deixei um pouco de lado, mas eu faço minhas orações, agradeço. A primeira coisa que eu faço na vida é agradecer a Ele por tudo, mesmo no estado dela que tem gente pior. (Sueli, 56 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Observações de Laham (2003) reforçam essa compreensão, especialmente quando a autora pontua que, às vezes, cuidar do outro pode servir como proteção, para que o cuidador não enfrente o que é desagradável em sua vida. A atividade de cuidar, excessivamente, das pessoas teria, aí, uma relação direta com os processos de sublimação, pois cuidar do outro se caracteriza como uma atividade socialmente aceita e reconhecida.

Ainda, nesse sentido, temos outra dimensão da sublimação e o processo de cuidar: os sujeitos podem investir na criação de atividades paralelas às domésticas, para suportar a rotina diária do cuidar, com o objetivo de aplacar um pouco a angústia gerada pela grande carga emocional.

Estou fazendo meus talismãs, queria vender bastante, arrumar cliente fixo pra eu ficar fazendo talismã em casa e tá vendido. Isso vai acontecer, é uma coisa bonita, todo mundo que vê gosta. (Rose, 60 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Outro recurso de enfrentamento diz respeito ao sentimento de onipotência. O medo do desconhecido e o próprio despreparo para lidar com questões – não só externas, mas seus próprios conflitos internos – fazem que, muitas vezes, cuidadores não solicitem auxílio de terceiros, neguem aceitar ajuda, sentindo-se onipotentes, por acreditarem que podem cuidar de tudo sozinhos, não delegando tarefas. Com o passar do tempo, alguns cuidadores chegam a apresentar quadros depressivos ao se depararem com a impotência diante da debilidade da saúde do paciente e os limites de sua atuação (Schnaider, Silva, & Pereira, 2009):

Eles dependem muito da gente e como é que eu vou sair pra dançar num forró? E deixo minha mãe e meu pai aqui precisando de mim? (Benedita, 54 anos, cuidadora do pai com câncer)

Lidando com a possibilidade de morte e os desafios de planejar o futuro

A percepção de que alguns processos de adoecimento carregam consigo a ideia de morte iminente é frequentemente confirmada pela literatura (Campos, 2010). Em nosso estudo, isso ficou evidente, pois quando há um agravo no quadro de saúde do familiar acamado, geralmente surgem preocupações relacionadas à morte. Sendo assim, o medo é algo rotineiro e verbalizado. Evidencia-se, também, uma constante situação de alerta, na qual o sujeito se vê envolvido em uma tarefa que implica conviver com a possibilidade iminente de ter que lidar com algo desconhecido, ou seja, a possibilidade de morte do paciente cuidado.

Eu fiquei só aqui pra dar o remédio de manhã; seis horas e eu pedi a Deus que eu não encontrasse ele passado lá pro outro lado, porque eu não sabia e nem sei a minha reação, o momento é que diz, né? [...] Chegar lá pra dar uma medicação e ele já... Aí meu filho já resolveu tudo lá o mais depressa possível, porque eu disse “meu filho, eu tenho medo, não dele ter morrido, mas de como eu vou reagir?” (Josefa, 61 anos, cuidadora do ex-marido com AVC)

A importância em salientar a capacidade de estabelecer planos futuros na vivência do cuidador correlaciona-se diretamente com a qualidade de vida desses sujeitos. Para autores, como Yavo (2003) e Querido (2005), planejar o futuro e nutrir sentimentos de esperança pode ser um indicador de melhora na forma como algumas pessoas enfrentam momentos difíceis. Porém, para alguns cuidadores, pensar no futuro é sinônimo de pensar uma vida sem o familiar portador de doença grave, fato esse gerador de sentimentos de culpa e angústia.

Eu quero sair daqui, os meus planos agora nenhum, zero, até minha mãe morrer, então, por isso, que eu nem falo nisso, estou falando pra você porque é uma pesquisa, porque dá a impressão que eu estou querendo que minha mãe morra, e não é. (Rose, 60 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Corroborando um estudo desenvolvido por Querido (2005), nos cuidadores entrevistados, percebe-se um movimento de pensar no futuro como uma reflexão acerca do que é importante para si, confirmando, clarificando percepções no sentido de preservar ou reconstruir um sentido para a vida.

[...] De casar ainda não perdi a esperança, mas está cada vez mais diminuindo. Tenho plano de voltar a estudar, plano de trabalhar. (Selma, 35 anos, cuidadora da mãe com AVC)

O cuidador: suas relações familiares e sociais

Ao observar as relações familiares e sociais dos entrevistados, confrontamo-nos com relações tecidas por vivências do passado e fatos presentes. Nessas, familiares e amigos são uma constante na apreensão de vários discursos, quer seja na relação direta com o familiar acamado, quer seja na relação com o próprio cuidador. Nesse contexto, cuidar integralmente de alguém, atendendo não somente suas necessidades físicas básicas, mas também dar conta dos sentimentos presentes nessa relação, parece suscitar conflitos, latentes ou não.

Além disso, percebemos nos discursos dos entrevistados que eles se ancoram, muitas vezes, em um ideal de família (Palomo, 2010), e que há uma expectativa, tanto da sociedade quanto do grupo familiar, de que quando um membro da família adoece, é esperado que alguém da própria família assuma essa tarefa – e essa expectativa costuma recair mais intensamente sobre as mulheres (Küchemann, 2010; Molinier 2010; Guimarães, Hirata, & Sugita, 2010; Soares, 2010).

[...] eu tive que cuidar dela mesmo porque não tem outras pessoas; eu sou a única filha [...]. (Sueli, 56 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Tal cenário parece levar os cuidadores a apresentarem dificuldades de entrar em contato com sentimentos negativos, como raiva e frustração, por terem que se dedicar ao outro integralmente. Isso pode ser percebido por falas contraditórias, como as de Clovis:

Dizer para você que eu acho que tá bom, não. Mas tá bom em parte porque eu ainda estou tendo saúde para cuidar disto tudo. Eu pensava que ia ser melhor. A gente nunca pensa que o negócio vai ser péssimo. A gente sempre acha que vai ser melhor. (Clovis, 72 anos, cuidador da mãe com câncer)

Quanto a isso, ficou evidente, no discurso de alguns dos entrevistados, a dificuldade em exercer o cuidado, quando, anteriormente ao adoecimento do paciente, já havia uma situação conflituosa. Isso se mostra ainda mais conflituoso quando o próprio entrevistado sente que não foi bem cuidado pela pessoa que, agora, terá que atender como cuidador, como ilustra o discurso de Sueli:

Depois que minha mãe casou ela dava mais atenção lá pra turma, pra família do marido, né? [...] Eu tava sempre vivendo a minha vida, mesmo porque ela foi contra eu casar de novo, né? Aí depois que ela fica doente, aí me traz e me diz: pega que a mãe é sua. (Sueli, 56 anos, cuidadora da mãe com AVC)

Por sua vez, mesmo em situações em que não havia conflitos anteriores, foi possível observar a dificuldade em assumir o cuidado integral de um ente querido, quando a situação envolve quadros muito graves, quando apresentam quadro de doença demencial, alterações de humor e comportamentos de difícil manejo.

Porque pra cuidar de uma pessoa da idade dela é meio difícil, né? Tem hora que a gente estressa um pouco, né? A gente perde um pouco a paciência, a gente tem que sair, dar uma relaxada, depois volta de novo. Ela é meio malcriada, ela responde, a gente, responde, aí a gente perde a cabeça. Ela é assim quietinha, mas explode. (Clovis, 72 anos, cuidador da mãe com câncer)

Dos dez participantes do estudo, apenas três referiram contar com auxílio para os cuidados do paciente, e apenas no período noturno, podendo assim dormir de maneira mais tranquila. Os demais entrevistados, além da rotina diária, tinham que se encarregar do cuidado à noite. Algumas falas revelaram que há dificuldade em perceber e assumir conscientemente o desgaste físico agravado pelas noites “maldormidas” ou pelas constantes solicitações do familiar acamado. No caso de Selma, isso se evidencia, pois, durante a entrevista, fomos interrompidos pelos inúmeros chamados de sua mãe acamada. Ela, entretanto, em nenhum momento se queixou disso, pelo contrário, procurou verbalizar o quanto se esforçava para lidar com a situação.

E ela fica assim, veja! Ela não fica calada. Porque se ela ficasse calada, né? Tudo bem, mas ela conversa, conversa a noite todinha. E quando às vezes ela me chama eu finjo que não estou ouvindo. Ela fica: “Selma, Selma, Selma.” Enquanto eu não falar “oi”, ela não sossega. (Selma, 35 anos, cuidadora da mãe com AVC)

No presente estudo, ficou claro o quanto o sujeito que assume o cuidado do ente adoecido é afetado pela relação grupal, e as alterações na vida diária familiar – que podem se intensificar em razão do quadro do familiar adoecido – podem tornar o ambiente fértil para a eclosão de crises familiares (Andrade et al., 2009). É importante salientar que essas alterações dizem respeito não só ao papel de cuidador, mas também a ter que assumir novos papéis, criando novos arranjos de ordem prática e emocional. Aliás, ao se falar em “arranjos”, podemos destacar o aspecto da necessidade de readequação dos espaços de convivência, bem como a própria administração dos bens da família. Reorganizar os cômodos da casa, assumir a tarefa de provedor financeiro do grupo, auxiliar o cuidador principal são exemplos de quanto a situação de adoecimento grave suscita na família uma necessidade de reformulação e busca de maior coesão, algo que nem sempre acontece na prática (Yavo, 2003).

A vida do cuidador fica, muitas vezes, totalmente comprometida com essa atividade. Viagens e saídas mais longas são inviabilizadas pela dificuldade em encontrar alguém que substitua o cuidador, de forma a realizar plenamente as especificidades exigidas pela tarefa de cuidar. O discurso de Selma revela que ela se sente sobrecarregada e tem que escolher entre viver a própria vida ou assumir o cuidado do familiar.

Eu nunca saí. Dormir fora, nunca dormi. Queria viajar, passear um pouco [...] Tem dia que eu falo assim: ah, meu Deus, estou precisando de um SPA! (Selma, 35 anos, cuidadora da mãe com AVC)

 

Considerações finais

Foi possível identificar que a maioria dos cuidadores é do sexo feminino (filhas, noras ou esposas). Esse dado também é evidenciado na literatura corrente sobre o assunto, salientando a questão de gênero envolvida nessa temática (Molinier, 2010; Guimarães et al., 2010; Soares, 2010), pois a ideia de que a família, em especial, as mulheres, tem que assumir o cuidado dos doentes é preservada até os dias de hoje. Cabe, ainda, destacar que em estudos posteriores seria interessante indagar se essa expectativa é algo que diz respeito a uma cultura específica, como algo típico de uma cultura latina, mais afetiva ou tradicional, por exemplo, ou se envolve questões que podem ser extrapoladas de forma mais generalizada.

Neste estudo, observamos que o custo emocional dessa suposta imposição social, moral e cultural mostrou-se alto, com consequências na saúde física dos entrevistados. A falta de cuidado pessoal, distúrbios psiquiátricos, queixas orgânicas – como problemas na coluna, dores lombares, hipertensão – foram frequentes no grupo, sugerindo que há um longo percurso a ser construído para que ocorra uma melhora na qualidade de vida desses sujeitos.

Sem a intenção de eximir a família da responsabilidade, faz-se necessário debater a questão, em que cuidar seja entendido como um papel que pode ser compartilhado com outros membros da família – quer sejam irmãos, quer sejam genros, quer sejam maridos – e, até mesmo, com o próprio Estado. Entretanto, embora tenha sido possível reconhecer que, na prática, não há compartilhamento de tarefas, sobrecarregando a pessoa do cuidador familiar, não pretendemos “vitimizar” o cuidador, mas favorecer, por meio do presente estudo, um espaço de reflexão acerca do reconhecimento desse sujeito e suas demandas, visando, acima de tudo, contribuir para o desenvolvimento de serviços de apoio que possam garantir efetivo suporte aos envolvidos.

Para finalizar, acreditamos que a discussão sobre essa temática não é conclusiva, pois pudemos perceber quão delicado é acreditar que a relação cuidado e cuidador seja um encontro simples, dado que o domicílio é um cenário complexo, no qual pode parecer impossível homogeneizar ações e práticas de saúde.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ivete de Souza Yavo
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo
Avenida Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária
São Paulo – SP – Brasil. CEP 05508­03
E-mail: ivesouza@uol.com.br

Submissão: 30.10.2014
Aceitação: 23.11.2015

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