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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2016
https://doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v18n2p46-56
PSICOLOGIA SOCIAL
Empoderamento e sentimento de injustiça nos trabalhadores da atenção primária do SUS
Empowerment and sense of injustice in primary care workers of SUS
Empoderamiento y sentimiento de injusticia de los trabajadores de la atención primaria de SUS
Lila Maria Spadoni LemesI; Teresa Cristina Barbo SiqueiraII; Gabriela de Souza CastroIII; Walquiria Vieira de AbreuIII
IPontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia - GO - Brasil. Centro Universitário de Anápolis, Anápolis - GO - Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia - GO - Brasil
IIICentro Universitário de Anápolis, Anápolis - GO - Brasil
RESUMO
Neste artigo, aborda-se a injustiça como uma construção cognitiva e afetiva, que difere da justiça, não só por ser seu oposto, mas por possuir outra dimensão de significado. A abordagem estruturalista das representações sociais norteou o planejamento metodológico desta investigação. Procurou-se investigar a injustiça vivenciada pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde, por ser um objeto de estudo socialmente relevante, que pode demonstrar o sofrimento destes trabalhadores e, além disso, evidenciar a estrutura da representação social neste grupo, com o objetivo de demonstrar que a forma como as pessoas lidam com a injustiça depende do poder que elas têm de intervir na realidade. Os resultados demonstram que a maneira como pessoas vivenciam a injustiça é modulada por suas pertenças sociais, sendo que os profissionais de nível superior se sentem muito mais empoderados que os de nível médio.
Palavras-chave: empoderamento; sentimento de injustiça; representações sociais; aspectos afetivos; Sistema Único de Saúde.
ABSTRACT
This article deals with the injustice as a cognitive and affective construction that differs from justice, not only for being its opposite, but by owning another dimension of meaning. The structuralist approach of social representations has guided the methodological planning of this investigation. we tried to investigate the injustice experienced by service providers of the health system, for being a socially relevant study object that can reveal the suffering of these workers and, besides, demonstrate the structure of social representation in this group, with the aim of showing that the way people deal with injustice depends on the power they have to intervene in reality. The results shows that the way people experience injustice is modulated by their social belonging, and the higher level professionals feel much more empowered than those of middle level.
Keywords: empowerment; sense of injustice; social representations; affective aspects; Health Unic System.
RESUMEN
En este artículo se discute la injusticia como una construcción cognitiva y afectiva que difiere de la justicia, no sólo por ser su contrario, sino porque tiene otra dimensión de significado. El enfoque estructuralista de las representaciones sociales guió la planificación metodológica de esta investigación. El objetivo es investigar la injusticia vivida por los proveedores de servicios del Sistema Único de Salud, como un tema de relevancia social que puede revelar el sufrimiento de estos trabajadores y también destacar la estructura de la representación social en este grupo, como también demuestran que la forma de hacer frente a la injusticia depende del poder han de intervenir en la realidad. los resultados muestran que la forma en que la gente experimenta la injusticia es modulada por su pertenencia social, y que los profesionales de alto nivel se sienten mucho más empoderados que los de nivel medio.
Palabras clave: empoderamiento; sentimiento de injusticia; representaciones sociales; aspectos afectivos; Sistema Único de Salud.
A psicologia social da justiça tem focalizado sua atenção nos aspectos cognitivos da justiça e pouco tem investigado a injustiça. As referências à injustiça geralmente a consideram como o contrário simétrico da justiça ou como um sentimento provocado pela quebra de algum princípio da justiça (Barclay, Skarlicki, & Pugh, 2005; Weiss, Suckow, & Cropanzano, 1999).
Esse artigo propõe estudar a injustiça como uma construção cognitiva e afetiva que difere da justiça, não apenas por ser seu oposto, mas por possuir outra dimensão de significado. Para isso, propomos investigá-la como uma representação social que, como tal, possui sua própria estruturação no pensamento coletivo.
Em trabalhos anteriores, demonstramos que as concepções de justiça e de injustiça são provenientes de duas representações sociais diferentes, concluindo que não se pode considerar a injustiça apenas como o contrário ou a consequência de uma infração da justiça, mas deve-se dar a ela o status de um fenômeno a ser estudado (Spadoni, 2009; Spadoni & Torres, 2010).
Nesse sentido, procurou-se investigar a injustiça vivenciada pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), por ser um objeto de estudo socialmente relevante que pode demonstrar o sofrimento desses trabalhadores além de evidenciar a estrutura da representação social neste grupo.
O acesso à saúde é um bem, ou uma riqueza, que não está disponível a todos os cidadãos brasileiros. Os recursos destinados parecem escassos diante do desafio de sustentar um sistema equitativo que promova, previna e recupere a saúde de todos, como afirma a Constituição Federal de 1988, no artigo 196. Essa escassez faz com que a distribuição dos recursos, na área da saúde, se torne uma questão de justiça distributiva.
Especialmente, na Atenção Básica, que tem sido caracterizada como a porta de entrada do SUS, os prestadores vivenciam essa escassez, e lidam com ela cotidianamente. Nem sempre é possível acolher o usuário, oferecer a escuta especializada e uma resposta resolutiva como prevê a legislação (Conselho Nacional de Secretários da Saúde - Conass, 2007). Por isso, os prestadores de serviço das unidades básicas convivem diariamente com a tarefa de distribuir os recursos, que vão desde a escuta até uma intervenção ou encaminhamento para outro nível de atenção.
A Estratégia da Saúde da Família (ESF), utilizada nas unidades básicas, produz uma aproximação da equipe com a comunidade e, consequentemente, aproxima-os também dos sofrimentos e pode aumentar o sentimento de impotência ou de empoderamento desses profissionais.
Todos da ESF devem trabalhar em equipe, mas cada um tem uma função específica. Alguns membros trabalham mais na prevenção e educação em saúde, como os agentes comunitários, os técnicos em saúde bucal e os auxiliares ou técnicos de enfermagem; enquanto outros se dedicam ao atendimento mais caracterizadamente intervencionista, como os médicos, enfermeiros e dentistas. Embora todo o trabalho se dirija à prevenção, para os usuários, o trabalho de medicar ou realizar algum procedimento visando à cura gera resultados mais imediatos e, portanto, mais valorizados pela comunidade leiga. Por isso, pressupomos que esses grupos, caracterizados pelo nível de escolaridade, vivem experiências diferentes no cotidiano de trabalho na ESF e, portanto, possuem construções afetivas diferenciadas quanto à vivência das injustiças sociais na atenção básica.
Psicologia da justiça em uma abordagem estruturalista das representações sociais
Para Moscovici (1951), a representação social tem dois aspectos: o perceptivo e o conceitual. Em seu aspecto perceptivo, ela registra e percebe o objeto; em seu aspecto conceitual, ela se distancia de seu contexto material para formar um conceito. Portanto, o termo representação é usado no sentido da apropriação do objeto pelo indivíduo, e o termo social especifica que esse processo de apropriação é produzido socialmente.
Tradicionalmente, nos estudos sobre representações sociais, não se considera que essa percepção inicial do objeto de representação seja imbuída de um caráter afetivo. Considera-se que este é um processo de conhecimento e, como tal, leva a marca social da linguagem.
No entanto, a ancoragem das representações sociais em um sistema de crenças e valores próprios de um grupo social nos leva à hipótese de que a afetividade permeia essa organização e também é ancorada a partir da partilha social.
Segundo Guimelli e Rimé (2009), quando o indivíduo vive uma situação emocionante, ele tende a relatar essa experiência aos seus conhecidos que, por sua vez, partilham com pessoas de outro grupo, sendo, portanto, experiências que circulam intensamente nas conversações ordinárias. Nesse sentido, Deschamps e Guimelli (2002) afirmam que esse processo de difusão das emoções promove a ancoragem de aspectos afetivos nas representações sociais.
A gama de emoções não varia muito de pessoa para pessoa, quando o fato é o mesmo, pois socialmente sabe-se qual é a emoção apropriada para cada tipo de situação.
Rouquette (1988) criou um conceito para explicar esses elementos do pensamento social que possuem forte carga afetiva e, por isso, provocam um rápido posicionamento do indivíduo diante de uma situação ou objeto social. Ele os nomeou de nexus e os diferenciou das representações sociais, pressupondo que seja uma forma distinta de pensamento social em que os componentes afetivos ultrapassam os cognitivos.
Quando uma situação é injusta, as pessoas são capazes de reconhecê-la mesmo antes de pensar no porquê ela é injusta, o que leva a pensar que os aspectos afetivos, nesse caso, precedem os aspectos cognitivos como pressupôs Rouquette (1988). Além disso, as emoções provocadas pela injustiça são conhecidas da coletividade, a ponto de gerar a expressão "sentimento de injustiça".
Nesse sentido, podemos considerar que o sentimento é uma estrutura afetiva, organizada a partir de algumas emoções diferentes, que variam segundo as peculiaridades das situações. Por isso, Lheureux e Guimelli (2009) pressupõem que os sentimentos se organizam em esquemas socialmente construídos e predispõem os indivíduos a sentir determinadas emoções e, consequentemente, a agir em função delas.
Por conseguinte, esse trabalho não se deteve em investigar o conteúdo das representações sociais da justiça e da injustiça, mas focalizou no aspecto afetivo dessas duas representações, buscando identificar quais são as emoções que compõem o que chamamos de sentimento de injustiça, em contrapartida com as emoções sentidas em uma situação justa.
Spadoni, Abreu e Castro (2014) demonstraram que os componentes emocionais das representações sociais da justiça e da injustiça possuem uma organização própria, capaz de produzir um atalho no processo cognitivo de construção das avaliações do caráter justo ou injusto das diversas situações cotidianas. Esse atalho dá a essas avaliações um aspecto não racional, já que a avaliação intervém antes mesmo que o raciocínio construa uma justificativa para ela.
Nesse sentido, apesar da pluralidade de abordagens da teoria das representações sociais, optamos por trabalhar com a abordagem estruturalista. Ela se distingue pela ênfase nas estruturas, que caracterizam a organização interna das representações sociais, deixando para segundo plano a investigação dos conteúdos (Flament & Rouquette, 2003).
Bouriche (2014) realizou um estudo para demonstrar que as emoções possuem a função de relacionar a dinâmica representacional à realidade social, pelo processo de ancoragem. Dessa forma, as emoções são um sinal do quanto as representações sociais foram eficientes em permitir que o indivíduo antecipe a realidade e saiba como agir. Quando o indivíduo é surpreendido pela situação, ele percebe que suas representações sociais precisam de mudanças.
Nesse contexto, quando um trabalhador sentisse a injustiça na distribuição de recursos do SUS, ele tentaria mudar a situação ou transformar suas representações sociais. Isto estaria de acordo com a teoria da equidade de Adams (1965), que afirma que as pessoas, ao se depararem com uma injustiça, tentam modificar a realidade desfazendo a injustiça. No entanto, de acordo com essa teoria, quando isso se mostra muito difícil, as pessoas se contentam em mudar suas ideias e a encontrar meios de reparar a injustiça apenas mentalmente. Nesse caso, pode-se perceber que a forma como as pessoas lidam com a injustiça depende do poder que elas têm de intervir na realidade, ou seja, de seu nível de empoderamento.
Segundo Kleba e Wendausen (2009), o empoderamento é um processo social multidimensional que leva ao aumento da autonomia pessoal, afetando grupos inteiros e até comunidades. Esse processo atua em pelo menos três esferas: a psicológica, a política e a grupal.
Neste estudo, focalizaremos a dimensão psicológica, que trata do sentimento de poder e de competência para intervir nas situações e obter resultados benéficos.
O empoderamento será mensurado a partir do conceito de Possibilidade Percebida de Ação (PPA). Dentro da perspectiva estruturalista das representações sociais, Rouquette (1988) a descreveu como uma variável que define o posicionamento do indivíduo em relação a um objeto social, sendo que o indivíduo pode se perceber como um agente capaz de intervir na realidade ou como um ser passivo e impotente.
Segundo Flament e Rouquette (2003, p. 128), a PPA deve ser mensurada em uma medida escalar em um contínuo entre os polos opostos "tudo depende de mim" e "nada posso fazer".
Em razão das características do trabalho de cada membro da equipe da ESF, formulamos a hipótese de que os profissionais de saúde com nível superior de escolaridade sentem-se mais empoderados que os profissionais de nível médio. Isso porque as funções dos primeiros possuem um carácter mais intervencionista, que possibilita resolver mais problemas de saúde, enquanto os segundos são pressionados pelo público a fim de obter acesso ao atendimento. Nesse sentido, pretende-se investigar não somente os aspectos afetivos da injustiça, mas, também, o papel do empoderamento na experiência cotidiana de trabalho desses profissionais.
Material e método
Foi realizada uma pesquisa de campo, com um desenho quasi experimental, em sete unidades de saúde básica num município do estado de Goiás.
Participantes
A amostra pesquisada foi de 120 servidores, sendo 60 trabalhadores de nível médio e 60 de nível superior. Os trabalhadores de nível médio foram agentes comunitários de saúde e auxiliares ou técnicos de enfermagem, sendo os prestadores de serviço de nível superior, enfermeiros, médicos e dentistas.
A média de idade dos profissionais de nível médio foi de 36,7 anos, com desvio padrão de 9,32 anos, dos quais 8,33% eram do sexo masculino e 91,6% do sexo feminino. Com relação aos profissionais de nível superior, a média de idade foi de 29,3 anos com desvio padrão de 9,23 anos, dos quais 28,33% eram do sexo masculino e 71,66% do sexo feminino.
Procedimentos de coletas de dados
Os participantes foram solicitados a responder os instrumentos individualmente em seus respectivos locais de trabalho. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa pelo Parecer Consubstanciado n. 363.386/2013.
Desenho experimental
Desenho quasi experimental mediante a manipulação de cenários, tendo como variável independente (VI) o caráter justo ou injusto da situação apresentada pelo cenário. As variáveis dependentes foram as emoções provocadas pela situação justa ou injusta e o nível de possibilidade percebida de ação (PPA).
Instrumento
Foram elaborados dois tipos de questionários, mas cada participante respondeu somente a um tipo de questionário. Ambos os questionários apresentavam um cenário, contando uma estória escrita. Em um tipo de questionário, o cenário da estória era justo e apresentava uma situação ideal de acordo com o arcabouço legislativo do SUS e com a bioética. No outro tipo de questionário, a estória era semelhante, porém, o cenário era injusto, e descrevia uma situação incorreta, que violava tanto as leis do SUS quanto da bioética.
Em seguida, a primeira pergunta do questionário solicitava ao participante a escolha dos cinco primeiros sentimentos despertados ao se deparar com o cenário, em uma lista de doze opções (interessado, irritado, alegre, triste, surpreso, em paz, nervoso, entusiasmado, assustado, satisfeito, raivoso e calmo).
A segunda questão solicitava ao participante que atribuísse às doze emoções o caráter agradável ou desagradável. A terceira, se o cenário era justo ou injusto, a fim de verificar a eficácia da manipulação experimental, que se mostrou bem-sucedida.
Os dois questionários nos quais os participantes perceberam a situação em desacordo com a manipulação experimental foram eliminados das análises. A quarta questão, demandava o grau de intensidade da emoção, medido em escala de 1 (pouca intensidade) a 6 (muita intensidade). A quinta, inquiria sobre a possibilidade percebida de ação, graduada também de 1 (nada a se fazer) a 6 (poderia fazer muita coisa).
As duas últimas questões solicitavam a identificação do participante (sexo e idade).
Resultados
Fizemos inicialmente uma análise fatorial por correspondência (χ2 = 285, df = 10 e p < 0,001) para verificar a dispersão dos sentimentos segundo a condição justa ou injusta, apresentada no cenário do questionário. Nos prestadores de serviço de nível médio, o fator justo/injusto foi suficiente para explicar 100% da inércia total. Em termos de contribuição absoluta, as emoções mais significativas são: satisfação (38%), irritação (23%), tristeza (13%) e alegria (11%).
As emoções satisfação e alegria estão relacionadas às situações justas, assim como a calma (3%), o susto (1%) e a surpresa (1%), estes últimos em menor proporção. A irritação e a tristeza estão relacionadas às situações injustas e, em menor proporção, a raiva (8%) e o interesse (1%). Dessas emoções, foram consideradas agradáveis: alegria (100%), satisfação (100%), surpresa (76,6%), paz (98,3%), calma (98,3%) e interesse (91,6%). E foram consideradas desagradáveis: susto (60%), nervoso (100%), tristeza (100%), raiva (100%) e irritação (100%).
Nos prestadores de serviço de nível superior, o fator justo/injusto também foi suficiente para explicar 100% da inércia total. As emoções mais significativas são: satisfação (35%), irritação (18%), tristeza (12%), raiva (10%), calma (8%) e nervosismo (7%).
As emoções irritação, tristeza, nervosismo e raiva estão relacionadas à injustiça e são consideradas emoções desagradáveis pelos participantes. A satisfação e a calma estão relacionadas à justiça. As emoções que menos contribuíram para a inércia foram: alegria (4%), susto (0%), interesse (0,6%) e paz (3,8%), e tais emoções associam-se ao cenário justo.
Foi formulada a hipótese de correlação bivariada entre a intensidade do sentimento e a PPA. Realizou-se uma correlação entre a intensidade das emoções e a PPA apenas no grupo que foi exposto ao cenário de situação justa. Os resultados demonstram uma correlação negativa R(30) = -0,0175 p < 0.05, indicando que, nos prestadores de nível médio, quanto maior a intensidade do sentimento da injustiça menor a PPA.
A segunda correlação realizada foi entre a intensidade das emoções e a PPA apenas no grupo que foi exposto ao cenário de situação injusta. Os resultados dos prestadores de nível médio demonstram novamente uma correlação negativa R (30) = -0,0646 p < 0.05, ou seja, quanto maior a intensidade do sentimento da injustiça menor a PPA.
As correlações nos levam a concluir que, nesse grupo de participantes, caracterizados por serem prestadores de serviço do SUS, com escolaridade de nível médio, as emoções intensas diminuem o sentimento de empoderamento, tanto diante das injustiças quanto perante as situações justas. Esse dado pode indicar um sentimento de impotência ante as situações vivenciadas por este grupo no trabalho.
As mesmas correlações foram repetidas para o grupo de prestadores de serviço de nível superior. Para isso, foi feita uma correlação bivariada do grupo exposto ao cenário injusto, o qual mostrou correlação positiva R (30) = 0, 157, p < 0,05, ou seja, quanto maior a intensidade da emoção, maior a PPA e vice-versa. A intensidade da emoção provocada pela situação injusta vai aumentar a PPA aumentando a probabilidade de as pessoas tentarem fazer algo para corrigi-la.
Quando repetimos a correlação bivariada entre participantes que foram expostos ao cenário justo, a correlação é positiva R (30) = 0,302, p < 0,05, ou seja, quanto mais forte a intensidade das emoções, mais forte é a PPA e vice-versa.
Nesse grupo de participantes, os resultados demonstram que a intensidade do sentimento sempre vai aumentar a possibilidade percebida de ação, o que indica um forte senso de empoderamento, demonstrando uma crença de que sempre se pode fazer algo para melhorar a situação.
Em resumo, os prestadores de nível superior do SUS reagiram aos cenários demonstrando um senso de responsabilidade e empoderamento, no qual a PPA permanece alta, seja em situações justas ou injustas. O inverso acontece em relação aos prestadores de nível médio que se consideram impotentes, seja em relação à situação justa ou injusta.
O caráter agradável ou desagradável de cada emoção foi definido pelo percentual de participantes que consideram cada emoção agradável/desagradável (Tabela 1). A justiça está relacionada a emoções consideradas agradáveis nos dois grupos estudados, como satisfação, alegria, calma e paz. Os prestadores de nível médio consideram ainda duas emoções, que são interesse e surpresa, demonstrando possivelmente o caráter inusitado da situação experimental que descreve um atendimento justo ideal.
A Tabela 1 demonstra que a injustiça é relacionada às emoções desagradáveis, como raiva, tristeza, irritação e nervosismo. Para os profissionais de nível superior, ela causa também uma agradável surpresa. Parece que esses profissionais avaliam que as injustiças acontecem raramente.
Nota-se que houve um consenso das emoções relacionadas ao caráter justo e injusto das situações nos diferentes grupos. No entanto, as emoções susto e surpresa apresentam uma diferenciação que parece indicar os lugares sociais de cada grupo. Enquanto a surpresa é considerada agradável pelos profissionais de nível superior, quando acontece numa situação injusta, os profissionais de nível médio relacionam-na à situação justa, podendo indicar que os profissionais de nível superior se espantam quando acontece uma injustiça, enquanto os de nível médio se surpreendem quando acontece uma situação justa. Possivelmente, os profissionais de nível médio avaliam os atendimentos como predominantemente injustos, enquanto os de nível superior avaliam-nos como justos.
Considerações finais
Os resultados demonstraram que os aspectos afetivos foram ancorados nas representações sociais de forma diferente em cada grupo de participantes. Temos a hipótese de que isso ocorreu em virtude das diferenças no papel exercido por grupo.
Embora as situações vivenciadas sejam comuns aos dois grupos de participantes, cada um as vivenciou de um lugar social e, por isso, a construção coletiva das ideias do senso comum resultou em ancoragens diferentes das emoções (Jodelet, 1989).
Os prestadores de serviço de nível médio sentem irritação e tristeza ao presenciar uma injustiça sendo cometida contra um usuário. Ambas são emoções consideradas desagradáveis, sendo que quanto maior a intensidade dessas emoções, maior o sentimento de impotência, ou seja, menor a crença de que se pode fazer algo para corrigir as injustiças. Isso justifica o sentimento de tristeza, mais subjetivo e voltado para si mesmo, ao contrário da raiva, que parece mais externa e impulsiona à ação.
Ao serem expostos a uma situação justa com o usuário, os prestadores de nível médio sentem satisfação e alegria, sentimentos agradáveis. E, à medida que esses sentimentos se intensificam, se sentem menos propensos a agir.
Percebe-se que, embora os sentimentos sejam modulados pela situação justa ou injusta, esse grupo permanece diminuindo a PPA à proporção que os sentimentos aumentam. Isso significa que possivelmente se sentem impotentes e desempoderados em relação ao atendimento. Provavelmente, sentem que nada podem fazer.
O inverso é caracterizado no grupo dos prestadores de nível superior, pois esses se sentem empoderados e responsáveis, tanto pelas situações justas quanto pelas injustas vivenciadas pelos usuários. Diante de uma situação justa, eles sentem satisfação e calma, considerados sentimentos agradáveis pelos participantes. Entretanto, embora sejam sentimentos que parecem evocar a tranquilidade e a passividade, nos prestadores de nível superior, à medida que eles se intensificam, cresce também o sentimento de empoderamento, aumentando a vontade de agir.
Ao assistir uma situação injusta, o prestador de nível superior sente raiva, irritação, nervosismo e tristeza, sentimentos considerados desagradáveis. À proporção que esses sentimentos se intensificam, cresce também a crença de poder fazer algo para modificar essas situações e corrigir as injustiças. Esse sentimento de responsabilidade pela injustiça justifica o aparecimento do nervosismo, da irritação e da raiva, sentimentos que levam à ação.
Nesse sentido, pode-se perceber que os profissionais de nível superior, que trabalham na atenção primária, sentem-se responsáveis e empoderados, para atender com qualidade os usuários, enquanto os profissionais de nível médio se sentem impotentes diante das mesmas situações.
Esse dado nos mostra que o empoderamento dentro das unidades de saúde reflete as relações sociais fora delas, pois os funcionários de nível médio são socialmente mais desprivilegiados e, geralmente, também necessitam dos recursos do SUS para cuidar da saúde. Demonstra, ainda, a necessidade de reafirmar os princípios da autonomia e do protagonismo dos sujeitos previstos no HumanizaSUS (Brasil, 2010).
Sen (1997) afirma que o processo de empoderamento deve equilibrar as relações de poder, favorecendo os que possuem menos recursos. Além disso, em nível individual, o empoderamento se caracteriza por níveis mais altos de autoestima, autoconfiança e autoafirmação (Gohn, 2004), indicando que, possivelmente, os trabalhadores de nível médio passam por sofrimento psicológico, em função desse sentimento generalizado de impotência ante as situações vivenciadas.
O sofrimento no trabalho, vivenciado pelos prestadores de serviço perante as injustiças, pode resultar em morbidades como a síndrome de Burnout. Em ambos os casos, o profissional de nível médio e superior, o sofrimento é expresso em emoções desagradáveis e em sentimentos de impotência ou de responsabilização.
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Endereço para correspondência:
Lila Spadoni
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
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E-mail: lilaspadoni@gmail.com
Submissão: 3.7.2015
Aceitação: 15.3.2016