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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n1p251-269 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

A compreensão da política por militantes do movimento trans alagoano

 

The understanding of politics by militants of the alagoan trans movement

 

La comprensión de la política por militantes del movimiento trans alagoano

 

 

Carolina C. Lins; Marcos R. Mesquita

Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Maceió, AL, Brasil

Correspondence

 

 


RESUMO

Tendo em vista o caráter recente da organização de movimentos sociais trans no Brasil, objetivamos analisar a compreensão da política por travestis e transexuais da cidade de Maceió, que integram a Associação das Travestis e Transexuais de Alagoas (Asttal). Tal estudo se mostra relevante considerando os contextos de transfobia e violência de gênero na cidade em questão. Para tanto, inserimo-nos nas atividades do movimento trans e participamos delas, que foram registradas em diários de campo. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete integrantes dessa associação. Obtivemos conclusões que se subdividiram em três categorias, as quais apontaram para dimensões como a política institucional, partidária; a política específica do movimento LGBT; e a política associada à cidadania e às políticas públicas.

Palavras chave: travestis; transexuais; movimentos sociais; política; gênero.


ABSTRACT

Considering the recent feature of the organization of trans social movements in Brazil, we aimed to analyze the comprehension of politics among travesties and transsexuals in the city of Maceió through the Association of Travestis and Transsexuals of Alagoas (Asttal). This study has relevance, considering the context of transphobia and gender violence in the city mentioned above. To do so, we participated in the activities of the trans movement, recording our experiences in field journals. Semi-structured interviews were also conducted with seven members of this association. We obtained conclusions that were subdivided into three categories that pointed to dimensions such as institutional, partisan politics; the specific politics of the LGBT movement; and the politics associated with citizenship and public policies.

Keywords: travestis; transsexuals; social movements; politics; gender.


RESUMEN

Considerando el carácter reciente de la organización de movimientos sociales trans en Brasil, objetivamos analizar la comprensión de la política por travestís y transexuales en la ciudad de Maceió, por medio de la Asociación de las Travestís y Transexuales de Alagoas (Asttal). El estudio se muestra relevante teniendo en cuenta los contextos de transfobia y violencia de género en la ciudad. Para tal fin, nos insertamos y participamos de las actividades del movimiento trans que fueron registradas en diarios de campo. También fueron realizadas entrevistas estructuradas con siete integrantes de la asociación. Obtuvimos conclusiones que se subdividieron en tres categorías, que señalaron para dimensiones como la política institucional, partidaria; la política específica del movimiento LGBT; y la política asociada a la ciudadanía y a las políticas públicas.

Palabras clave: travestís; transexuales; movimientos sociales; política; género.


 

 

1. Introdução

Este trabalho teve como objetivo analisar a compreensão da política por travestis e transexuais na cidade de Maceió, bem como entender o que as mobiliza à participação em um movimento social exclusivamente voltado a pessoas trans, tendo em vista uma predominância histórica dos movimentos LGBT no estrato gay da sigla, assim como a falta de visibilidade de ambas no plano social.

Estudar o engajamento político das travestis e transexuais se mostrou importante, uma vez que a realidade contundente de negação de direitos de tal parcela da população e a falta de atitude de instâncias públicas diante desse cenário têm sido a norma, segundo argumentos apresentados por Bento (2011, 2014). Além disso, Facchini (2005) aponta que travestis e transexuais possuem demandas políticas diferentes daquelas pautadas pelo movimento gay.

Direcionamo-nos a essa questão justamente para que seja possível estudar as especificidades das sujeitas que compõem o movimento travesti e transexual. A partir daí, as interseccionalidades existentes entre aquelas que participam de movimentos LGBT e aquelas dos movimentos trans (travestis e transexuais) podem ser minimamente conhecidas. Não se pretende, com isso, afirmar que as travestilidades e transexualidades não sejam consideradas nos movimentos LGBT, porém os movimentos de travestis e transexuais vêm em busca de demandas às quais a categoria homossexualidade não consegue atender, além de se tratar de movimentos que no Brasil intensificaram suas articulações políticas a partir dos anos 1990 (Carvalho & Carrara, 2013).

Segundo Carvalho (2011), os movimentos de travestis despontaram no cenário político nos anos 1990, e a categoria transexual surgiu e se agregou a esse movimento apenas em meados dos anos 2000, o que indica uma disparidade no que condiz à militância desta população, como também à constituição de suas identidades, de modo que inicialmente as travestilidades e transexualidades pautavam essa diferenciação entre si mesmas como algo relevante. Tal distinção esteve vinculada a categorias étnico-raciais, socioeconômicas e de saúde. Pensando nesse cenário inicial, a identificação das travestis se daria no espaço das duas primeiras categorias, por ser essa população constituída em grande parte de sujeitas negras e por estar situada entre a parcela da população de baixa renda (Benedetti, 2005; Duque, 2011); as sujeitas transexuais, por sua vez, teriam uma imagem construída em função de características ligadas à saúde, uma vez que são compreendidas numa lógica do diagnóstico psiquiátrico, sendo constituídas a partir das patologizações de gênero (Bento, 2011).

Conforme Carvalho (2018), tal caracterização já foi entendida como determinante para travestis e transexuais no surgimento do movimento social trans e, por vezes, apareceu no discurso das militantes quando sentiram a necessidade de se diferenciar, isto é, subdividir o movimento entre aquelas que se identificavam como mulheres trans e aquelas que se identificavam como travestis. Tal diferenciação já teve alguma relevância pelo fato de apontar um perfil mais higienizado, no que diz respeito às mulheres trans, e um perfil mais marginalizado, em relação àquelas consideradas travestis.

Contudo, o avanço nas discussões de gênero dentro e fora dos movimentos sociais tem promovido certo intercâmbio e maleabilidade na definição de tais identidades, de modo que o processo de identificação em comum de pessoas travestis e transexuais é em grande medida permeado por uma incompatibilidade entre a existência de seus corpos e um sistema de sexo-gênero binário e cisnormativo. Isto é, discursos construídos no cerne do campo religioso e dos saberes médico, jurídico e político tentam estabelecer limites de masculinidade e feminilidade, criando a ideia de que é possível construir uma classificação satisfatória para homens e mulheres, e consequentemente para travestis e transexuais, como apontam Oliveira e Grossi (2014). Ademais, a diferenciação entre essas identidades no campo dos movimentos sociais tem se mostrado mais como uma estratégia e disputa políticas, de acordo com pesquisa realizada por Carvalho (2018).

Para que se possa pensar a problemática estabelecida, também é necessário considerar que a cidade de Maceió, onde foi conduzido o estudo, é capital de um estado marcado por altos índices de violência contra mulheres (Waiselfisz, 2012), bem como por índices de assassinatos de pessoas trans, tendo ocupado o segundo lugar do país no ranking dos assassinatos por estado, proporcional à população (Benevides & Simpson, 2018). É importante observar que ambas as formas de violência atingem cotidianamente as travestis e transexuais, em ações físicas ou simbólicas, como salienta Benedetti (2005). Em razão de transgredirem as normas de gênero impostas, são tratadas como infratoras, passíveis de sofrer penalidades. Como afirma Louro (2004), o simples fato de serem trans aparece como principal motivador das ações violentas que lhes são infligidas.

Com relação a essa militância, sabe-se que teve sua origem atrelada ao surgimento de organizações não governamentais (ONGs) de combate à epidemia da Aids, fazendo com que a maioria dos movimentos ligados às travestis e transexuais no Brasil se vinculassem a instituições governamentais destinadas ao combate de doenças sexualmente transmissíveis (DST), HIV/Aids e hepatites virais. Com relação a essa pauta, o trabalho das ONGs e dos movimentos sociais voltados para o público LGBT dirige-se majoritariamente às trans, porque tal público ainda é compreendido como parcela da população "vulnerável", mesmo que a vulnerabilidade ao vírus HIV seja maior entre gays e bissexuais masculinos, fator associado de maneira direta com as homofobias e segregações às quais são expostos, com ênfase na parcela mais jovem dessa população (Brasil, 2013). Dessa forma, tais movimentos de combate à epidemia da Aids parecem ter sido um disparador para a organização política dessa parcela da população (Carvalho & Carrara, 2013).

Também ressaltamos mais dois precedentes que fundamentaram o surgimento de um movimento trans. Em primeiro lugar, as travestis surgiram como uma nova identidade num movimento exclusivamente homossexual, resultando em uma estigmatização delas pela identificação com o feminino e em uma invisibilidade dentro do movimento e de suas demandas, como argumentam Carvalho e Carrara (2013) e Figari (2007). Em segundo lugar, há a questão da perseguição policial às travestis, impulsionada desde o período da ditadura militar no Brasil, que não só as impedia de trabalhar na prostituição, como também as violentava física e psicologicamente, chegando a executá-las e a fomentar a ideia de que essa população deveria ser exterminada (Carvalho, 2011; Figari, 2007; Green, 2000).

Considerando tal contexto, concebemos que a performatividade poderá inscrever essas sujeitas na política ao visibilizar suas existências e suas precariedades, de maneira que, embora possuam existências não autorizadas pela normatividade e sofram as penalidades já abordadas, ponham seus corpos nas ruas, sem que haja um protesto ou uma demanda específica, podendo tornar visíveis condições precárias de vida (Butler & Athanasiou, 2013). Esse processo que as movimenta e lhes confere visibilidade de modo a romper com uma cadeia de vulnerabilidades, dor, subsistência corporal e precariedades é por nós entendido como política. Por esse motivo, definimos como objetivos analisar como essas travestis e transexuais compreendem a política, e o que as tem mobilizado a participar do movimento social trans.

 

2. Método

Esta investigação, resultante de uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2014 e 2016, é de natureza qualitativa. Portanto, prezamos desde o seu início a necessidade de estabelecimento de vínculo e convívio com aquelas que produziram o estudo com a pesquisadora, o que nos remete à importância que a perspectiva da experiência a partir de um campo social específico possui para a pesquisa. Entretanto, levamos em conta que a "ciência é um campo de poder" (Haraway, 1995, p. 11), e, desse modo, a hierarquia pesquisadora-pesquisada sempre se mostra presente no fazer científico.

Assim, o delineamento do método se propôs a olhar a realidade estudada a partir de diferentes estratégias de pesquisa, como a observação participante, as entrevistas e a devolução de resultados, numa perspectiva interseccional.

2.1 Participantes

A presente pesquisa contou com a participação de sete travestis e transexuais que integram a Associação das Travestis e Transexuais de Alagoas (Asttal), que surgiu a partir da organização da população travesti e transexual para combater a violência sofrida no estado de Alagoas, sendo a cidade de Maceió seu campo de atuação. As colaboradoras tinham entre 29 e 54 anos de idade, eram negras ou pardas, em sua maioria de baixa renda, e suas escolaridades variavam entre ensino fundamental incompleto e ensino técnico completo.

2.2 Instrumentos e procedimentos

Para a realização deste trabalho, contamos com diferentes instrumentos que nos ajudaram a compreender as dinâmicas de participação das travestis e transexuais. O primeiro deles foi o diário de campo: um registro das atividades e reflexões cotidianas sobre as dinâmicas do cenário investigado. De acordo com Weber (2009), essa ferramenta não mostra sua importância simplesmente por acumular informações sobre os diversos fatores relatados, mas a partir do momento que atualiza o pesquisador sobre a relação estabelecida entre ele e os sujeitos participantes. O diário de campo também permite um distanciamento do que se está investigando, no sentido de um olhar diferenciado sobre a própria imersão do pesquisador, que proporcione reflexividade acerca de sua atuação e do processo de construção de conhecimento.

Escrever diários de campo só foi possível por intermédio da proposta da observação participante, de modo que estabelecemos idas frequentes à associação, especialmente para as reuniões, e estivemos presentes em todas as atividades vinculadas à Asttal. A nossa participação abarcou atividades culturais (shows transformistas e festa de São João), eventos ligados à Parada LGBT, ações no Dia da Visibilidade Trans, seminário para a criação do Ambulatório de Saúde LGBT, reuniões com representantes do Ministério Público, movimento LGBT com a Secretaria de Direitos Humanos do Estado de Alagoas, XII Encontro Regional de Travestis e Transexuais do Nordeste, festas de aniversário das militantes, conferências LGBT, festividades de fim de ano, além de diversas reuniões de fim de semana.

Para além da participação na associação e do acompanhamento de suas atividades, registradas em diário de campo, realizamos entrevistas semiestruturadas com as militantes de modo a obter uma fala exclusiva sobre suas trajetórias de vida e atuação no movimento. Nas entrevistas realizadas, tratou-se da estrutura e organização da associação a que pertencem, de suas principais reivindicações, sua relação com outros movimentos LGBT e feministas, das estratégias de enfrentamento da transfobia, bem como da concepção de política que assumem. As sete militantes convidadas aceitaram e se disponibilizaram a participar em diferentes datas, num período de três meses. Utilizar essa ferramenta metodológica proporcionou uma aproximação maior entre a prática das militantes e a maneira como encaravam suas ações no campo da política. Para Minayo e Sanches (1993), a realização de entrevistas permite o desvelamento de particularidades das condições históricas, socioeconômicas e culturais que permeiam cada grupo pesquisado.

A transcrição das falas das participantes foi realizada com o auxílio do software Express Scribe por meio do qual foi possível aumentar e diminuir a velocidade dos áudios para transcrevê-los, especialmente em momentos em que a fala parecia "atropelada". Após a transcrição, fizemos leituras e releituras das entrevistas para destacar o que sobressaía nelas, iniciando um processo de elencar as principais categorias abordadas para uma análise mais aprofundada.

O processo de análise se inspirou na proposta de Bardin (2009) e foi conduzido em três fases: pré-leitura das entrevistas transcritas; releitura e seleção de unidades de significados; e categorização. A primeira fase consistiu em uma leitura flutuante das transcrições, de modo a se aproximar das informações a serem analisadas, compreender o contexto ao qual se referem e dar lugar às primeiras impressões sobre o material. Segundo Campos (2004), nessa fase as leituras feitas devem proporcionar a identificação de ideias principais e seus significados gerais, permitindo também que os pesquisadores transcendam as mensagens explícitas contidas no material. A segunda fase se organizou em torno dos objetivos da pesquisa, no sentido de tentar compreender nos relatos das entrevistadas questões relacionadas aos propósitos desta investigação. Já a última fase consistiu em agrupar as unidades de significado e transformá-las em categorias mais abrangentes relativas às noções de política das entrevistadas; no caso do presente estudo, essa transformação se deu de maneira não apriorística. Como ressalta Campos (2004), a categorização é totalmente dependente do contexto da entrevista das participantes, fazendo com que os pesquisadores tenham que consultar o material diversas vezes, sempre o intercalando com a experiência de campo, as teorias que embasam o estudo e seus objetivos.

 

3. Resultados

Um dos propósitos deste trabalho se concentrou em estudar a compreensão que travestis e transexuais engajadas no movimento social têm acerca da política e as concepções que norteiam suas atividades. Assim, a partir dos discursos das entrevistadas, três grandes categorias que tratam de diferentes noções de política surgiram e manifestam os seus entendimentos sobre ela, quais sejam: 1. a política associada à democracia representativa e seus limites; 2. a política associada às dinâmicas de organização e funcionamento do movimento LGBT; e 3. a política associada à cidadania e às políticas públicas.

A concepção associada à visão clássica da política, trazida pelas entrevistadas, apresenta uma forte crítica aos espaços de representação, tanto por seu desgaste quanto pelo descrédito das instituições; diz respeito ao modo como o modelo representativo, base do sistema político atual, tem sido insuficiente para mobilizar discussões e atender aos anseios da sociedade civil em geral.

A política institucional, ligada à ideia de democracia representativa e ao sistema político partidário, passa por uma crise em termos de adesão e crença por parte da população em geral (Souza, 2019). Também há uma percepção de que as instituições democráticas não conseguiram viabilizar, por meio dos diferentes instrumentos e espaços da política, os ideais prometidos, seja de redução da desigualdade social, seja de acesso às instâncias de decisão (Norris, 1999). Certamente, esses elementos repercutem no modo como as entrevistadas percebem a política no seu cotidiano. Como nos diz uma delas:

A política pra mim, a política pra mim, é uma coisa [...] ai, meu Deus, como é que eu digo essa política? É uma... a política pra mim é uma coisa não concreta, não certa, é uma coisa "prometosa", que promete as coisas, e que a política tá implantada, de repente muda essa política, como vem acontecendo agora no nosso Brasil, esse retrocesso em todos os departamentos, em todas as secretarias. Isso pra mim, me deixa... eu acho isso muito significante, que era pra tá num avanço agora nos anos 20, no século 20... século 21, e esse retrocesso imenso que tá acontecendo nessa política, mas que o culpado são as próprias pessoas, os eleitores, que não escolhem bem os seus políticos, porque aqui contamos nos dedos alguns políticos, mas a maioria deles não fazem nada e nós sabemos que são os que compram voto. [...] E esse retrocesso é isso que me entristece muito na política, porque ela não é transparente, política nunca foi transparente, é uma promessa antes de se elegerem, depois que se reelegem, mudam completamente as coisas, e isso vem desde há muitos anos, que eu nunca vi, pra mim ainda anda... (Entrevistada 1).

Outra forma de compreensão da política pelas travestis e transexuais que participam do movimento no estado passa pelas dinâmicas de organização e funcionamento do movimento LGBT. Nesse caso, há um entendimento de que a política tradicional "contaminou o movimento" de modo a se reproduzirem no seu interior práticas clientelistas. Assim, embora não seja possível generalizar, pois o movimento LGBT é abrangente, percebe-se que muitos militantes unem o ativismo no movimento social à atuação partidária, o que não constituiria problema, não fosse o caso de essas pessoas passarem a militar num sistema de "troca de favores" após seu candidato ser eleito.

Desse modo, as entrevistadas demonstram uma insatisfação com a reprodução de dinâmicas advindas da política partidária, que se inserem no movimento LGBT de forma instrumental, além de estarem desapontadas com a incorporação dessa lógica como moeda de troca para terem suas reivindicações ouvidas; nesse segundo caso, enxergam a política como um misto de desorganização e disputa por benefícios. Apresentamos a fala de uma das entrevistadas ao explicar o que significa política para si, e a própria experiência de participação em espaços deliberativos do movimento LGBT, para problematização da questão.

Também não estou satisfeita com muitas... muitas vezes quando existe uma conferência, um evento de uma coisa só, ao invés de se produzir o que tá acontecendo mesmo, é discussão de "picuinha" entre eles mesmo, não falo nem nós, né? Porque eu não faço parte disso, eu não compactuo com essas coisas (Entrevistada 2).

O relato dessa colaboradora da pesquisa também reflete de que maneira o movimento trans da cidade tem se organizado nos últimos anos: estão se inserindo nos campos LGBT ao mesmo tempo que percebem esses espaços de participação política como um lugar de entraves, em detrimento da produtividade. A título de exemplo, citamos a III Conferência Metropolitana LGBT, na qual houve diversas interrupções do evento para discussão entre dois participantes em virtude de mensagens ofensivas publicadas em redes sociais; e a III Conferência Estadual LGBT, na qual disputas pessoais e entre grupos que se desenvolviam nos bastidores do movimento evoluíram rapidamente para brigas em público, no próprio auditório onde acontecia o evento, conforme registrado em diário de campo. Nessa ocasião, as travestis e transexuais foram alvo de deboche, pela parcela gay do público, assim como suas propostas, culminando em tentativas por parte dessa parcela de transformar as proposições de projeto em algo mais "geral" ou "gaycentrado".

Essa política acaba adquirindo a representação de lugar de disputa por influência e prestígio, e não por diferentes concepções de mundo e sociedade, em que espaços deliberativos se convertem em lugares para "resolver desavenças". Talvez esses antagonismos entre os participantes presentes no movimento pudessem ser valorizados em suas diferenças persistentes "como o sinal e a essência de uma política democrática radical" (Butler, 2015, p. 55), não fossem os interesses monetários enraizados e os ideais de machismo e misoginia nos quais muitos estão mergulhados.

Aqui, faz-se importante pontuar que a concepção de democracia adotada no presente trabalho não é equivalente às realizações de um único ideal de sociedade, isto é, ainda que se alcancem vitórias legislativas e políticas públicas sejam formuladas, o exercício da democracia não se esgota nem se atinge uma plenitude, como explica Butler (2000). Tanto a resistência a uma norma que menospreza identidades trans quanto as disputas dentro do próprio movimento LGBT apontam para essa ideia de democracia, mesmo que haja controvérsias no projeto político que este assume, conforme discutido.

A partir disso, a compreensão de política toma um terceiro caminho, em certa medida vinculado à política institucional e mais distante do perfil da política LGBT que acabamos de expor. Ao serem questionadas sobre a política e suas reivindicações como movimento social, associaram-nas à busca de direitos e à criação, ao fortalecimento e à manutenção de políticas públicas, indicando uma luta pela coletividade atravessada por leis e regulamentação do Estado.

Eu acho que política é quando a gente luta por direitos iguais, por necessidades e por uma coisa que é justa, que nos dá direitos. Quando a gente se reúne, coloca o assunto em pauta, leva para o papel e corre atrás pra que aquilo se concretize, for concretizado, se resolva, em benefício da nossa classe social, tá entendendo? Quando falo políticas públicas são coisas voltadas para nossos benefícios, direitos nossos que nós lutamos para obter (Entrevistada 3).

Com o avanço do movimento trans, há uma luta permanente por direitos humanos. Embora muitos dos direitos reivindicados já estejam previstos na Constituição, aparentemente não se aplicam a essas sujeitas que, dada sua invisibilidade e abjeção, não conseguem acessá-los. Conforme discutimos ao longo deste trabalho, a população travesti e transexual é comumente atingida por violência, física ou simbólica, o que provoca uma restrição na liberdade de circular por determinados espaços (Cavalcanti, Barbosa, & Bicalho, 2018). Além disso, o mesmo preconceito que regula essa violência também restringe radicalmente o acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho, à moradia digna e à segurança pública, de acordo com os dossiês organizados por Nogueira, Aquino e Cabral (2017) e Benevides e Simpson (2018). Assim, a maneira como o Estado e parcelas da sociedade têm li-dado com essa população viola, pelo menos, os artigos 5° e 6° da Constituição, demonstrando que, embora estejam "protegidas" na forma da lei, é necessário que lutem para que a legislação seja cumprida ou para solicitar a criação de políticas específicas que reiterem os direitos já previstos.

No entanto, a solicitação para que seus direitos sejam cumpridos e políticas públicas sejam criadas é um processo complexo que requer uma luta coletiva, a qual se concretiza "quando irrompem no cenário político-social atores, invariavelmente considerados cidadãos de segunda classe, reivindicando direitos plenos, tratamento digno e respeitoso e atenção básica diferenciada" (Brasil, 2002, p. 61).

Entre as inúmeras políticas públicas já conquistadas ou visadas pelo movimento social de travestis e transexuais do estado, destaca-se o nome social, reivindicação que esteve sempre em pauta, tendo sido amplamente difundida nos meios social e governamental, revelando sua magnitude em ambos os espaços.

Mulher, nossas reivindicações são... que não seja negado os nossos direitos [...]. Reivindicação... queremos ter o direito de usar os banheiros públicos femininos, queremos que nosso nome social seja respeitado nas escolas, nos prontuários médicos, como já temos no cartão SUS, e essas são as duas mais fortes da nossa luta do movimento trans (Entrevistada 1).

O nome social atua como um dispositivo antidiscriminação nos meios citados por uma das militantes, de modo a evitar que pessoas trans passem por situações de humilhação social ao serem chamadas por nomes pelos quais não atendem mais e que não representam sua identidade de gênero. Cabe salientar que, no período em que a pesquisa foi conduzida, ainda não era possível mudar de nome e gênero pelas vias de uma legislação específica que respaldasse esse processo, sem a exigência de laudos psiquiátricos, por exemplo.

Desse modo, conforme nos indicam as entrevistadas 1 e 3, as principais demandas desse movimento social alagoano acabaram se concentrando na execução de políticas públicas que viabilizem o acesso da população trans aos direitos básicos, evitando, assim, situações vexatórias, como no caso da utilização do nome social em escolas e postos de saúde. Da mesma maneira, pleiteiam a construção de um espaço de atenção à saúde de pessoas trans, bem como o financiamento de ações educativas que possam instruir essa parcela da população não só sobre DST (como ocorre para os LGBT em geral), mas para uma atenção maior relacionada ao uso inadequado de hormônios e a procedimentos estéticos e cirúrgicos.

Ainda que o objetivo do presente artigo seja compreender as noções de política das militantes, é importante pontuar que as diversas possibilidades apresentadas pelas entrevistadas foram analisadas à luz de um entendimento de política como possibilidade de enfrentamento de matrizes normativas que determinam quais vidas importam e quem merece ter vida digna, isto é, a possibilidade de essas militantes compreenderem que têm direito à existência as conduz para o campo da política, conforme Butler e Athanasiou (2013).

 

4. Discussão

De acordo com as entrevistadas, apesar de atuarem politicamente, a política, de modo geral, é associada a algo no qual não se deve depositar confiança ou credibilidade, lugar em que se criam promessas que jamais serão cumpridas. Tal visão pode se apresentar, em parte, pela tradição de candidatos a cargos políticos traçarem planos de governo que, via de regra, não são cumpridos; desse modo, "a corrupção não é entendida como um produto das relações do poder político com o poder econômico, mas como um desvio de pessoas sem caráter" (Miguel, 2018, p. 25). As críticas feitas pelas militantes provavelmente decorrem de uma compreensão da política muito vinculada à corrupção, utilizando-se de uma narrativa de declínio moral (Miguel, 2018) como justificativa.

Nesse caso, percebemos uma visão da política que se mostra extremamente negativa, o que pode indicar uma supervalorização da política institucional - significativamente desacreditada e desgastada como um mecanismo de construção da democracia -, em detrimento de outras formas de política. O que nos parece problemático não é apenas essa visão generalizada que se estende à população brasileira, mas também o fato de que as pessoas que a apontam são militantes de um movimento social, o que pode estar atrelado ao cerceamento dos seus direitos ou ao acesso escolar precário que tiveram, aliado a uma dimensão da política vinculada, quase que exclusivamente, aos escândalos de corrupção.

Embora seja contraditório que os participantes de um movimento social não se vejam majoritariamente como agentes políticos, isso parece nos revelar mais uma crítica a um sistema político que não tem conseguido dar respostas aos seus anseios e às suas necessidades, do que negligência, despolitização ou descompromisso com a militância que praticam diariamente. Portanto, como enfatiza Florentino (2008, p. 230) ao analisar um significativo afastamento da população em geral de instituições políticas clássicas, como os partidos:

É importante perceber que o afastamento dessas instituições políticas não significa um esgotamento da política em si, mas um esgotamento da capacidade de atração espontânea e voluntária que os partidos exercem sobre a população. [...] As pessoas percebem que a política impacta suas vidas (de maneira negativa, até), mas não conseguem ver um sistema político que as deixe impactar a política. Não se pode confundir essa rejeição crítica com simples alienação, que seria mascarar o contexto e causas dessa crítica.

A conjuntura apresentada também revela um aglomerado de tensões que acaba constituindo o movimento LGBT e revelando contradições que demarcam muito mais as especificidades dos diferentes grupos e menos aquilo que os une (Colling, 2015; Medrado & Carneiro, 2017). A despeito desse cenário de desamparo, tanto da política institucional quanto do movimento LGBT, as militantes consideram-se cidadãs e apresentam um conhecimento de que a implementação de políticas é direito, e não favor concedido pelo poder governamental, entendendo-as como um retorno de impostos pagos em produtos e serviços. No entanto, a plena cidadania parece longe de ser alcançada. Segundo Bento (2014, p. 166),

[...] há um modus operandi historicamente observável das elites que estão majoritariamente nas esferas da representação política no Brasil, qual seja: a votação/aprovação de leis que garantem conquistas para os excluídos (econômicos, dos dissidentes sexuais e de gênero) são feitas a conta-gotas, aos pedaços.

Dessa maneira, os direitos fundamentais dessas sujeitas ficam à mercê de políticas que não as incluem. Os projetos de lei construídos para melhorar a qualidade de vida dessa população, pelo menos alguns deles, estão atravancados há anos em uma das instâncias de votação tanto por desinteresse dos políticos, que não os enxergam como uma prioridade, quanto pela oposição de fundamentalistas religiosos, como argumentam Bento (2014) e Bulgarelli (2018).

Esse panorama favorece a criação de uma "gambiarra legal", como Bento (2014) conceitua, que estimula uma precarização no exercício da cidadania dessas pessoas e, na maioria dos casos, a substituição de leis a serem aprovadas por políticas públicas. Apesar de estas últimas serem de vital importância para certos segmentos da população e trazerem benefícios jamais alcançados antes, é inegável a efemeridade que elas podem adquirir. Visto dessa maneira, damo-nos conta de que suas identidades de gênero são respeitadas parcialmente, colocando-as numa corda bamba em que ora essas sujeitas têm direitos ora não, abrindo espaço para episódios de transfobia institucional.

Como compreendemos no decorrer da discussão, essas militantes se reconhecem como atrizes sociais e refletem sobre o contexto político em que estão inseridas, demonstrando certa clareza sobre quais identificações não encontram reconhecimento e pelas quais desejam lutar. Esse panorama indica que a participação política pode ser entendida não apenas como tentativa de diálogo com o governo, mas também como espaço simbólico de reivindicação. Conforme Butler (2000), essas reivindicações acabam sendo reformuladas numa linguagem mais hegemônica, fazendo com que elas não só aumentem o poder estatal, mas também posicionem o Estado como lugar privilegiado da democratização.

De modo geral, esse eixo da pesquisa revelou compreensões dominantes acerca do tema política, comumente baseadas em concepções midiáticas às quais as sujeitas têm acesso, além de uma contribuição do movimento LGBT para reduzir a precariedade na visibilização das pessoas trans no meio político, e também o aumento da vulnerabilidade e desumanização operadas pelo Estado na forma da manutenção de ações que as afastam do acesso às garantias constitucionais pre-vistas para todos os cidadãos, fazendo com que sua luta se restrinja à reafirmação de si mesmas na qualidade de sujeitas.

 

5. Considerações finais

A presente pesquisa relatou dados pertinentes sobre um movimento social trans localizado no Nordeste, considerando suas especificidades. A questão da política, central para essa investigação, trouxe resultados que poderíamos chamar de convencionais, apresentando desde uma noção popularizada de política até concepções pessoais decorrentes da experiência da militância dentro do movimento social.

Assim, pudemos notar uma dificuldade de inserção na esfera política, possivelmente resultante de uma série de fatores que conduzem a população trans a não se engajar e, em especial, a ser vista como protagonista de uma luta menos legítima. Como ressaltam Nogueira, Aquino e Cabral (2017) e Benevides e Simpson (2018), a restrição de acesso à educação e a trabalhos regulamentados nos parece decisiva nesse processo de iniciativa e abertura para o ativismo, no qual a experiência subjetiva de integrar um movimento social parece não ser suficiente para garantir a sustentação da participação, de modo que nos questionamos sobre a efetividade de meramente apontar "comodismos" individuais, em vez de refletirmos o quanto a experiência da militância pode ser utilizada como ferramenta de fortalecimento de uma coletividade. Além disso, o fato de terem suas pautas, em muitas ocasiões, menosprezadas dentro de espaços deliberativos do movimento LGBT acarreta uma menor disposição à participação política.

Destacamos ainda a importância de observar nas entrelinhas os limites e as possibilidades éticas quando se realiza uma pesquisa com uma população vulnerável. O cuidado com a inserção no grupo, a atenção à interpretação das narrativas e experiências dessas militantes e um olhar para as diversidades e desigualdades são questões que exigem uma ação mais reflexiva do pesquisador, sendo necessário nos destituirmos da ideia de dar voz a essas pessoas, uma vez que a análise seria uma interpretação nossa de determinada realidade relatada pelas militantes.

Por fim, compreender as motivações para participar, ou não, de um movimento social se mostra fundamental à medida que nos damos conta das inúmeras barreiras colocadas nas vidas dessas sujeitas para que não entendam o que é política e não participem desse campo, justamente o que as militantes desse movimento ousam saber/fazer.

 

Referências

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Correspondence:
Carolina Cavalcante Lins
Avenida da Arquitetura, s/n, Cidade Universitária
Recife, PE, Brasil. CEP 50740-550
E-mail: carolina.lins88@gmail.com

Submission: 21/11/2017
Acceptance: 29/08/2019

Nota dos autores
Carolina Cavalcante Lins, Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP), Universidade Federal de Alagoas (Ufal); Marcos Ribeiro Mesquita, Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP), Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

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