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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005
ARTIGOS
Terapia de grupo embasada em psicoterapia analítica funcional como abordagem terapêutica para dor crônica: possibilidades e perspectivas
Functional analytic psychotherapy enhanced group therapy as therapeutic approach for chronic pain: possibilities and perspectives
Luc VandenbergheI; Cristina Lemes Barbosa FerroII
I Universidade Católica de Goiás
II Clínica Particular – Goiânia
RESUMO
As implicações da dor crônica na vida de pacientes são complexas e profundas, e atingem a maneira de se ver e de ver os outros, sua sensação de dignidade e sua capacidade de enfrentar a existência. Este artigo descreve uma terapia comportamental de grupo diferente das tradicionais, no sentido que o foco não está em primeiro lugar no ensino de estratégias de coping, mas simultaneamente (1) em aspectos da vivência privada da dor: a experiência de si mesmo com as suas limitações, suas perspectivas e seu projeto de vida; (2) na dimensão interpessoal: a função e o significado da dor nas interações face-a-face, como afeta relações íntimas, a convivência na família e outros ambientes; e (3) na dimensão social mais ampla onde entram o estigma e o status especial conferidos em função da dor crônica, suas conseqüências empregatícias e seu papel como membro da sociedade. A abordagem da Psicoterapia Analítica Funcional para dor crônica pretende ir além de treinar habilidades, e ser um contexto para aprender com a experiência em si mesma: ampliar a interpretação das queixas e explorar o contexto subjetivo e interpessoal para possibilidades inesperadas de melhora.
Palavras-chave: Dor crônica, Terapia de grupo, Psicoterapia analítico-funcional, Análise clínica do comportamento, Relação terapeuta-cliente.
ABSTRACT
Chronic pain affects the life of patients in complex and profound ways. It changes the way in which patients see themselves and others, their feeling of dignity and their capacity to confront existence. The present article describes a behavioral group therapy that differs from the traditional ones, in that its focus is not in the first place on learning coping strategies, but simultaneously (1) on aspects of the private experience of pain: the experience of oneself with one’s limitations, one’s perspectives and one’s project of life; (2) on the interpersonal dimension: the function and the meaning of pain in face-to-face interactions, how it affects intimate relations, living together in the family and in other environments; and (3) on the broader social dimension where we deal with the stigma and the special status conferred in function of chronic pain, its consequences for employment and one’s role as a member of society. In adopting Functional Analytic Psychotherapy, this approach pretends to go beyond the training of abilities, and be a context for learning through experience itself. It seeks to help clients to broaden the interpretation of their complaints and to explore the subjective and interpersonal context in search of unexpected possibilities for improvement.
Keywords: Chronic pain, Group therapy, Functional analytic psychotherapy, Clinical behavior analysis, Therapist-client relationship.
Introdução
Como entender a dor crônica?
Um certo dualismo mente-corpo é comum em discussões sobre dor crônica. Tal compreensão coloquial cabe numa visão que restringe a dor a seu aspecto puramente sensorial. Se dor é uma sensação que sinaliza danos aos tecidos, uma lesão menor que não justifica a intensidade da dor, persistência da dor depois da lesão ou mesmo na ausência de uma lesão, deve sugerir um distúrbio mental. A atribuição da dor a processos físicos (o corpo) ou mentais (a mente) consiste numa visão dicotômica que pode levar a decisões terapêuticas simplistas. Se a dor é física, precisa de um tratamento somático, se ela é mental, precisa de uma abordagem psiquiátrica (NOVY, NELSON, FRANCIS e TURK, 1995).
A definição de dor proposta por Mersky (1979) e acatada pela IASP – Associação Internacional pelo Estudo da Dor (1986) supera a dicotomia. Nesta definição, dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada com danos atuais ou potenciais de tecidos ou descrito em termos de tais danos. Podemos falar, por exemplo: “senti uma fincada no peito”, ou “senti uma agulhada na minha cabeça”. Nestes casos não há um dano potencial de tecidos, mas mesmo assim, a dor foi descrita em termos de tais danos. A inter-relação entre as diferentes dimensões da dor (fisiológica, emocional, cognitiva-lingüística) pode ser explicada por uma rede de relações causais entre os elementos que constituem estas dimensões. Alternativamente pode-se supor que elas são apenas facetas diferentes de um fenômeno único que chamamos de dor.
A Teoria de Controle de Portão
A Teoria de Controle de Portão de Melzack (1982; 1993), às vezes também traduzido como Teoria de Comportas, é baseada em pesquisas que mostram que o sistema nervoso central modifica a intensidade e redefine sinais aferentes de dor. Nos cornos dorsais, por onde as fibras aferentes que trazem a informação sensorial entram na medula espinal, comandos provenientes do cérebro determinam se e como a informação entra no sistema central. Pode-se imaginar uma situação similar envolvendo porteiros que, seguindo as instruções de moradores no alto de um prédio, decidem se um mensageiro entra ou não e ainda o influenciam quanto à forma de passar a mensagem. A ativação de fibras A-beta fecha o portão e evita transmissão sináptica. A ativação de fibras mielínicas (rápidas) A-delta e fibras amielínicas (lentas) C iniciam e prolongam a transmissão de sinais de dor e determinam a generalização deles. Trata-se de um modelo da interação entre a atividade neural ascendendo (a entrada de informação sensorial no sistema) e descendendo (os comandos para inibição, ampliação ou modificação da entrada). Nestas interações variáveis como atenção, percepção, afeto ou emoção tem papéis importantes.
A função da dor é ligada a um desequilibro no organismo que desencadeia programas para restaurar a homeostase. Estes programas incluem ativação neural, hormonal e operante. Por exemplo, as citosinas produzidas nos tecidos que sofreram danos, em conjunto com a estimulação central da dor percebida produzem uma cascata de atividades que leva à liberação de glicose para reparo dos tecidos e para sustentar a resposta de fuga ou luta que pode ser necessária para a sobrevivência do organismo agredido. Do outro lado, as citosinas que penetram o hipotálamo iniciam uma resposta de estresse, que também tem uma função adaptativa. O corpo inteiro se prepara para se proteger da melhor forma possível. As reações envolvidas neste processo incluem ativação nos níveis cognitivo, emocional e operante (MELZACK, 1998).
No nível cognitivo pode haver facilitação da percepção de perigo; atenção seletiva para possíveis fontes de dor e para possibilidades de fuga, ou interpretação ampliada da importância e do significado do perigo. Esta percepção exagerada da ameaça é adaptativa num primeiro momento, porque aumenta a probabilidade do organismo reagir. No nível emocional, dependendo do contexto, pode haver medo que facilita respostas de fuga, ansiedade que acompanha respostas de esquiva, ou tristeza, ligada a recuo, limitação de atividade e ao repouso. No nível motor, a tensão muscular sobe, e certos tipos de ação aumentam e outras diminuem em probabilidade. As cadeias de comandos envolvidas incluem o sinal para a experiência de dor. É um sinal para fugir, se defender, tencionar, esquivar-se de possibilidades de maior dano. A função é de proteger o organismo, criar condições que evitem pioras ou permitir a regeneração das lesões já adquiridas.
As mesmas cadeias de mecanismos que servem para alvos adaptativos como fuga e defesa estão envolvidas na dor crônica. Como vemos acima, as respostas não estão sob controle de informação objetivamente correta sobre danos aos tecidos, mas são os produtos de interação envolvendo processos centrais, incluindo emoções e interpretações do contexto. Quando estas reações não levam a um restabelecimento da homeostase, as mesmas podem iniciar um ciclo vicioso. Atenção seletiva para sensações corporais e medo dos mesmos, interpretação exagerada de possíveis danos, tensão muscular alta, ou imobilização prolongada dos músculos aos quais os sinais de dor se referem podem produzir condições que perpetuam a dor.
A tensão muscular prolongada pode levar à compressão dos capilares, causando condições de isquemia. As demandas aumentadas de energia podem gerar depleção de adenosina trifosfato, comprometer a recaptação ativa de CA++ e levar a um acúmulo de substâncias algiogências. Além disso, a atividade contrátil crônica pode causar inflamações que por sua vez podem provocar mais contração, mais dor e mais estresse. O estresse prolongado reprime o sistema imunológico e causa danos aos tecidos, o que leva a novas entradas de sinais de dor. O cortisol é um dos grandes vilões neste processo. Este hormônio serve para manter níveis altos de glicose para que o organismo possa sustentar a resposta de fuga, de luta ou de tensão prolongada. Mas para isto, o cortisol precisa quebrar proteínas nos músculos e nos neurônios e inibir a absorção de cálcio nos ossos. Um problema é que o hipocampo que freia a produção do cortisol também é agredido pelo cortisol que o destrói gradualmente. Com o hipocampo prejudicado não há mais como frear o cortisol.
Estresse psicológico também produz toda esta ativação cognitiva, emocional, hormonal etc. Além disso, exposição crônica a um estressor pode aumentar sensitividade a outros. Melzack (1998) relata pesquisa em que estresse pré-natal foi artificialmente aplicado em animais. Ele mostrou que quando os movimentos da mãe tinham sido restritos, os filhotes mostraram respostas fisiológicas mais intensas a estressores diferentes. Esta sensibilidade é reversível. No experimento diminuiu depois de um tratamento com manuseio suave pelos experimentadores.
O clínico deve levar em conta que a liberação cumulativa de pulsos de cortisol iniciados por tensões interpessoais ou vivências traumáticas tem os mesmos efeitos destrutivos sobre os tecidos que a atividade de cortisol iniciada pela dor. A importância deste potencial destrutivo do estresse interpessoal pode ser visto na etiologia dos nossos pacientes. É comum constatar histórias de infância que incluem abuso físico e estupro em pacientes adultos com dor crônica. Alterações fisiológicas relacionadas com conflitos e frustrações do cotidiano podem incluir pulsos de cortisol em alta freqüência. Quando as estratégias de fuga, de luta ou de esquiva com as quais a pessoa enfrenta as ameaças do seu cotidiano não são bem-sucedidas em remover ou amenizar as fontes de estresse, a cascata de respostas é perpetuada. Por isso enfocamos padrões interpessoais e problemas da vida que podem ir muito além da dor em nosso trabalho.
As dimensões interpessoal e social são importantes quando se trata da manutenção da dor. As reações à dor causam desequilíbrio interpessoal, social e empregatício, entre outros. A pessoa que sofre dor pode ser considerada um fardo para quem convive com ela. A dor dificulta as interações íntimas, o desempenho profissional e o convívio prazeroso. A pessoa se vê excluída e sem rumo, é tratada diferencialmente, às vezes recebe benefícios especiais em função do rótulo e vê sua vida mudar de forma drástica. As tentativas de adaptação muitas vezes frustradas e os problemas interpessoais que resultam destas mudanças desencadeiam novas reações de estresse, e podem levar a mais damos aos tecidos, mais tensão muscular e mais dor.
A terapia cognitivo-comportamental
De acordo com o modelo cognitivo-comportamental, crenças e significados atribuídos à experiência são determinantes de dor (TURK, 2003). Este modelo pode ser integrado como parte da Teoria de Controle de Portão. É possível entender estas crenças e atribuições em termos do modelo de Melzack (1982; 1993; 1998) como variáveis centrais que participam na interação entre ativação ascendendo (a informação sensorial) e ativação descendendo (a informação que vem do sistema nervoso central) acima descrita. As implicações do modelo cognitivo-comportamental para o tratamento são claras. O cliente precisa modificar o significado da experiência e ganhar senso de controle sobre os efeitos da dor. O foco da atenção do paciente pode ser modificado para incluir outros eventos e atividades. Sucessos e eventos positivos em geral devem ser atribuídos a um locus de controle interno. Distorções cognitivas como a catastrofização são desafiadas e o senso de controle que o paciente tem sobre suas respostas é promovido.
Outras variáveis do sistema nervoso central se referem às reações emocionais da pessoa às sensações corporais e às situações e contextos ligados à dor, como também ao significado emocional da dor para a pessoa. O medo pode servir como exemplo. Pesquisas de terapeutas comportamentais de orientação pavloviana mostraram o quanto o trabalho focado no medo de dor pode aumentar a eficácia do tratamento da dor crônica (VLAEYEN, DE JONG, ONGHENA, KERCKHOFFS-HANSSEN e KOLE-SNIJDERS, 2002). Seguindo o sucesso desta abordagem, autores de orientação cognitivo-comportamental, como Turk, Robinson e Buswinkle (2004) também prestaram mais atenção ao medo da dor. Assim, coerente com o ponto de vista da Teoria de Controle de Portão, a reestruturação cognitiva e o trabalho direto com o medo e outras vivências emocionais que o paciente tenha em relação à dor devem ser integrados em qualquer tratamento da dor crônica.
A psicoterapia analítico-funcional (FAP)
De um ponto de vista analítico-funcional, uma preocupação central é que as condições dolorosas crônicas se caracterizam pela perda de interesse em grande parte dos eventos do mundo externo. O paciente investe esforços na busca por diagnóstico, profissionais e tratamentos. Deixar de lado aspectos importantes da vida cotidiana como, por exemplo, atividades físicas e sociais ou desempenho profissional, pode gerar uma diminuição significativa de reforçadores. Ambientes nos quais a dor é mais evidente podem passar a ser percebidos cada vez mais como aversivo. Padrões de esquiva podem levar a ciclos viciosos em que a qualidade de vida deteriora progressivamente e a dor toma cada vez mais espaço na vida do paciente (VANDENBERGHE, 2005). Enquanto atitudes passivas e defensivas geram dificuldades interpessoais, a busca incessante por um diagnóstico específico dificulta a aceitação de um tratamento psicológico.
A terapia de grupo aqui proposta busca uma redefinição da maneira pela qual o paciente compreende e interage com a dor. Isto significa ampliar a interpretação das queixas com atenção para fatores situacionais e comportamentais. Não se trata de seguir explicações ou adotar estratégias propostas pelo psicólogo, mas de uma mudança de atitude do próprio paciente. Ele deve ser o agente ativo nesta mudança. As relações interpessoais que se desenvolvem espontaneamente entre terapeuta e participantes e entre os diferentes participantes constituem o contexto que pode propiciar esta mudança. A ênfase no que acontece entre as pessoas ali presentes é diretamente decorrente do modelo teórico que enfatiza as implicações contextuais de cada vivência e o papel central da ação do paciente (VANDENBERGHE, CRUZ E FERRO, 2003).
O formato de grupo possibilita discussões acerca das implicações e significados que a situação dolorosa tem para os diferentes pacientes. A troca de experiências e a confrontação de diferentes pontos de vista podem facilitar a correção de pensamentos catastróficos e crenças disfuncionais relevantes, bem como a elaboração e o treino de habilidades de coping. Estas possibilidades foram amplamente exploradas nas terapias de grupo de cunho cognitivo-comportamental, às quais nos referimos acima. Porém, o advento da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP; KOHLENBERG e TSAI, 1987; 1991/2001) abriu para o terapeuta comportamental um leque de novas possibilidades. As abordagens anteriores apostaram em técnicas didáticas e as atividades durante a sessão enfocaram apenas os problemas e mudanças na vida do cotidiano, deixando de lado o que estava ocorrendo na relação terapêutica. A análise funcional das trocas entre paciente e terapeuta, proposta por Kohlenberg e Tsai (1987), possibilitou o resgate do potencial curativo da vivência interpessoal durante a própria sessão, transformando a Terapia Comportamental numa Psicoterapia profunda.
O exercício conceitual que os criadores da FAP fizeram para a terapia individual foi repetido por nós na terapia de grupo. Na Psicoterapia de grupo, as relações interpessoais que constituem o ambiente terapêutico são as principais fontes de comportamentos clinicamente relevantes, que serão trabalhados pelo terapeuta valorizando a experiência em si mesma (VANDENBERGHE, 2004). As estratégias da FAP vêm de encontro às necessidades do terapeuta de trabalhar com vivências genuínas. O formato de grupo aumenta o leque de possibilidades terapêuticas, porque os clientes aprendem a partir das trocas espontâneas. O grupo é um ambiente de vivência intensa onde os diferentes comportamentos que mantêm a dor crônica podem ocorrer (Comportamento Clinicamente Relevante do primeiro tipo, ou CCR1) tanto como progressos ao vivo (CCR2) e no qual o controle verbal sobre os comportamentos se torna explícito (CCR3). O grupo de FAP proporciona assim oportunidades de transformação profunda que vão além do grupo de manejo de dor.
Apresentação do grupo
Montar um grupo para dor crônica começa com a escolha de participantes com experiências semelhantes em relação à dor e suas implicações para o cotidiano. É explícita a intenção de fazer um trabalho psicoterápico (não somente aprender a lidar com a dor). Trabalhamos com sessões de uma hora e trinta minutos, uma vez por semana, com intervalos seguindo o calendário anual.
O grupo de FAP é uma teia de relações intensas com um complexo potencial curativo. No nível cognitivo, crenças errôneas e distorções a respeito da dor são desafiadas pela discussão de material informativo trazido por terapeutas ou participantes e de atitudes espontâneas no grupo. No nível operante, as estratégias de cada paciente para resolução de problemas, para lidar com relações interpessoais e com suas limitações e oportunidades de vida são enfocadas. No nível emocional, cada um é assistido ao elaborar seus sentimentos e usá-los de maneira inteligente para entender e resolver os problemas na sua vida. Os pacientes aprendem a tolerar suas emoções, a entender seus sentimentos e a achar recursos alternativos neles mesmos.
O programa é iniciado com ênfase no desenvolvimento do apoio social entre componentes do grupo e o terapeuta. Como muitos pacientes com dor crônica percebem a dor como contínua e independente do momento do dia e do seu próprio comportamento, é dedicado bastante tempo a conhecer os sinais do corpo. Os pacientes aprendem a identificar variações na intensidade da dor. Começa-se com discussões detalhadas envolvendo todos os participantes, buscando uma tomada de consciência de situações geradoras de estresse. Os participantes aprendem a identificar relações entre o nível da dor e situações, comportamentos privados (pensamentos e sentimentos) e comportamentos públicos (ações). Depois se procura ajudar cada paciente a desenvolver habilidades para resolução dos seus problemas idiossincráticos. As metas gerais do grupo incluem: (1) explorar implicações e significados da dor nos contextos em que está mais intenso; (2) elaboração e treino de habilidades de manejo de dor; (3) buscar uma redefinição dos papéis sociais dos participantes: relacionamentos, trabalho, família etc., já que estes estão envolvidos em ciclos viciosos que mantém a dor.
As primeiras sessões ocorreram em outubro de 2001, com Cristina Lemes Barbosa Ferro e Ana Carla Furtado da Cruz como terapeutas. Os participantes eram três pacientes com disfunção da articulação temporomandibular (ATM) e dor intensa. Eles viveram contextos muito aversivos e mostraram baixa motivação para a vida. Os três tinham em comum uma pobreza de repertórios para lidar com situações de dor; pouca compreensão de eventos internos e uso excessivo de remédios. Eles estavam presos em padrões disfuncionais de esquiva e fuga passiva que prejudicavam a qualidade de vida. As relações interpessoais eram dominadas por freqüentes relatos de dor e por atitudes que levaram necessariamente à própria derrota, mas eram justificadas pela dor.
Os padrões disfuncionais que permeavam a vida dos participantes eram diversos. Houve comportamento de fuga no trabalho (trabalho excessivo) e fuga do trabalho (desistir de atividades produtivas, recusa de propostas de trabalho). Houve tanto fuga de relacionamentos quanto comportamento de dor como estratégia de relacionamento interpessoal. Houve agressividade e irritabilidade em relações íntimas e peregrinação a profissionais de saúde. Os comportamentos clinicamente relevantes dos participantes na sessão freqüentemente caíram nas seguintes categorias: fuga das trocas interpessoais no grupo e esquiva de atividades propostas (CCR1); envolvimento nas discussões do grupo; escuta ativa dos outros; manejo de situações desencadeantes de dor durante a interação de grupo (CCR2); relato de comportamentos que contribuirão para resolução de problemas que ocorreram no grupo; consciência da própria responsabilidade na terapia (CCR3).
Para o processo, o grupo é de prima importância (VANDENBERGHE, 1994), mas dificuldades e progressos dos participantes devem ser vistos individualmente. Por isso, apresentamos a formulação FAP de cada um. Uma formulação FAP completa relata os problemas do cotidiano do paciente individual, as crenças relacionadas com estes, sua história de aprendizagem relevante, as metas da terapia decorrentes destes dados e os alvos específicos de atuação do terapeuta em relação a comportamentos clinicamente relevantes (CCR1, 2 ou 3) que podem ocorrer durante a sessão.
As formulações FAP dos participantes
Senhora A, solteira, 35 anos, sente dor na ATM e nos olhos. A mandíbula travava regularmente e deslocava-se, aumentando a dor que não respondia a tratamento farmacológico. Foram diagnosticadas uma degeneração óssea avançada, lesão e inflamação dos olhos, com envelhecimento precoce da córnea. Sofreu perdas momentâneas da visão e o prognóstico era de possível cegueira definitiva. Sofria de artrite reumatóide e se submeteu a quimioterapia para tratamento dos olhos. Realizou compressas para o alívio da dor.
Houve uma busca persistente a tratamentos, o que levou a resistência contra propostas de novas intervenções. Tentou suicídio, não fez planos para o futuro e não reconheceu progressos nos tratamentos com diferentes profissionais. A possibilidade de mudança a angustiou. Apesar de reclamar e confrontar verbalmente qualquer sugestão construtiva, seguia bem as orientações médicas.
A paciente mostrou revolta em relação à forma em que a vida a tinha tratado (as mortes do irmão e da irmã, as agressões particularmente violentas que ela mesma tinha sofrido, a dor, os tratamentos dolorosos). Quando falava de sua dor, as sensações físicas, incluindo a própria dor, se intensificavam. Ela se queixou de pensamentos obsessivos em relação à morte violenta do irmão e manifestava intensa ansiedade no dia da semana e na hora do dia em que tinha recebido a notícia da morte dele. No ônibus, tinha medo de encontrar com o assassino. Em função de pensamentos relacionados à violência física, tomava banhos compulsivamente.
Em relações interpessoais, a paciente tipicamente confrontava e se opunha. Mostrou dificuldades graves em avaliar e aceitar pontos de vista diferentes dos dela e em ouvir os outros falar sobre os problemas deles. Ao se expressar, usava de muita ironia e sarcasmo, expondo sua opinião e expressando seus sentimentos às vezes de forma agressiva. Geralmente falava sem considerar as conseqüências. Não pedia de forma direta a outras pessoas, nem soube se colocar sem imposição. Fazia ligações insistentes e freqüentes a profissionais de saúde fora do horário razoável.
A paciente tinha dificuldade em organizar os pensamentos. Os sentimentos pareciam invadi-la num amontoado, emaranhado. Era difícil falar sobre si mesma, seus sentimentos e emoções. Sua dificuldade em confiar nas pessoas era grave. Fugiu de contato físico e não se permitiu ser vulnerável em relações, impedindo assim o desenvolvimento de intimidade. Muitas vezes usava da dor para se esquivar de contatos. As pessoas aceitavam a agressividade dela numa tentativa de protegê-la.
No decorrer dos anos, desenvolveu padrões de esquiva complexos perante situações aversivas. Trabalhava excessivamente e dormia muito pouco. Fez uso freqüente de analgésicos, às vezes mudando a dosagem de medicamentos por conta própria. Não se envolvia em eventos sociais ou atividades de lazer. Tinha dificuldade em relaxar e resistência a intervenções terapêuticas com este alvo.
Expressou as seguintes crenças no início do tratamento: nunca conseguiria ser feliz e não tinha nada para oferecer a um possível parceiro. Acreditou não poder controlar os próprios comportamentos. Chorar significava fraqueza. Para ela, demonstrar sentimentos era sinal de descontrole. Sentia-se profundamente culpada por não dar resultados positivos nos tratamentos.
Entre os alvos terapêuticos destacou-se que ela entendesse seus sentimentos, o porquê deles e especialmente que ela aceitasse como legítimos os sentimentos em relação às limitações advindas do seu quadro de saúde. Diretamente ligado a este alvo, também aprendeu a distinguir entre pensamentos, emoções e ações, a detectar situações geradoras de estresse e sua relação com a dor e a desenvolver táticas de manejo (coping). O manejo da dor, da ansiedade e de situações interpessoais que aumentam a dor estava relacionado com estas habilidades.
Trabalhou-se para que ela aprendesse a detectar os comportamentos disfuncionais que dificultam a construção de contatos interpessoais mais proveitosos. Isto incluiu a tomada de consciência do nível, freqüência e forma do relato da dor, aprender a expressar sentimentos e desejos de formas mais coerentes com as sensações de dor e com o contexto, abrir-se para contatos e dar oportunidade às pessoas de gostar dela. Outros alvos eram que ela começasse a tomar iniciativas, e pedir ajuda de forma mais aberta.
De acordo com as estratégias da FAP, estes alvos foram trabalhados ao vivo na sessão. Os primeiros desafios eram relacionados com momentos nos quais ela precisava prestar atenção e ouvir outros componentes do grupo, e teve que enfrentar publicamente a vergonha que sentiu do seu sofrimento. Um exemplo que ilustra suas dificuldades em relação à intimidade apareceu quando ela não deixava a terapeuta saber o endereço dela. Muitas vezes, estimulou as terapeutas a falar como tática de esquiva dos próprios conteúdos. Fez gracinhas sobre as terapeutas, se impôs e confrontou durante as sessões. As terapeutas investiam muito esforço em bloquear as estratégias de esquiva da paciente das atividades propostas para a terapia.
Enquanto no cotidiano as estratégias desafiadoras eram bem-sucedidas, no grupo a paciente foi colocada em cheque pelos outros participantes e começou a confrontar menos. Gradualmente, ela aceitou discutir estratégias para lidar com a dor, começou a participar de todas as sessões terapêuticas e a fazer as tarefas de casa. Outros progressos ocorreram quando ela conseguiu pedir desculpas depois de ter percebido como uma atitude rude na sessão afetou outras participantes, quando aceitou opiniões das terapeutas, quando começou a aproveitar mais as oportunidades de diálogo nas sessões, quando parou de ligar para as terapeutas e quando compartilhou seu ponto de vista em relação às dificuldades de outros componentes do grupo.
A paciente se permitiu ser vulnerável ao falar da atração que sentiu por um homem que ela não pode aproximar, ao permitir que o senhor B a levasse para casa depois da sessão e ao admitir que as sessões eram importantes para ela. Ela chorou no grupo, propôs discussões sobre problemas de relacionamento íntimo na sessão e compartilhou suas dificuldades com os colegas sem desencadear a tensão e as respostas fisiológicas habituais. Conseguiu discutir situações que a deixavam irritada sem se tornar agressiva ou irônica. Gradualmente, aprendeu a tirar dúvidas, a pedir e a questionar abertamente.
A paciente resolveu interações problemáticas que acontecem no grupo com habilidade, e ligou para os outros participantes com o intuito de reorganizar os horários dos encontros. Logo ela questionou abertamente (sem sarcasmo ou agressividade) a colaboração no grupo e fez perguntas sobre o relacionamento entre as psicólogas. Ela trouxe presentes para as terapeutas e várias vezes insistiu em pagar a sessão em segredo, apesar de ser combinado que o atendimento seria sem ônus. Um ano depois do início do grupo, registrava altos níveis e freqüências de dor, porém nas sessões terapêuticas não emitiu mais comportamentos de dor. Quando estava com dor durante a sessão, podia dizer e continuar a interagir com o grupo sem agressividade, ironia ou sarcasmo.
Dois anos após o início do grupo estas mudanças já tinham afetado seu cotidiano. Tomou iniciativas não relacionadas com dor e se empenhou na resolução de problemas práticos. Começou a discriminar situações durante as quais sentiu medo e entendeu como estas eram relacionadas com a dor, identificando aspectos de situações que desencadeavam sentimentos de raiva e irritabilidade, e fez escolhas em relação às táticas que iria usar. Os comportamentos compulsivos desapareceram, como também os pensamentos intrusivos sobre a morte do irmão. Utilizou respiração diafragmática para o alívio da ansiedade e depois de discussões sobre estratégias de coping na sessão aprendeu também a lidar com a situação de perda temporária da visão.
Após mais um ano, quando o grupo ainda estava se encontrando com intervalos maiores, a senhora A conseguia lidar melhor com problemas novos no seu quadro de saúde e não fazia mais interpretações catastróficas. Hoje enfrenta situações de relacionamento de maneira construtiva. Relata ter significativamente menos conflitos nas suas relações de amizade e profissional, afirmando sentir muito menos medo da dor e menor ansiedade em geral.
A paciente escolhe atividades de lazer melhores e mais diversas, e participa de encontros da igreja e visitas a familiares. Seus relacionamentos interpessoais melhoraram quando ela começou a identificar e entender seus sentimentos e deixou de justificar seus comportamentos de agressão às pessoas em função de seus sentimentos. Falou com médicos com menos agressividade e conseguiu conversar com pessoas importantes para ela, resolvendo situações que antes não enfrentava. Diminuiu a freqüência de ligações para os profissionais (cirurgiões dentistas e outros) fora do horário de atendimento e relatou perceber melhoras em relação a tratamentos.
O Senhor B, 33 anos, foi encaminhado pelo cirurgião dentista com disfunção da ATM e dificuldade na fala, quadro clínico sem diagnóstico. Depois de uma seqüência de fracassos no nível pessoal, tinha passado a viver com a família da irmã. Na ocasião, tinha abandonado todos seus alvos, inclusive os profissionais. Só almejava melhorar sua fala, meta que também motivou sua entrada no grupo. Tinha vergonha da sua condição e medo da avaliação de outros; sentiu-se desanimado e com medo de fracasso. Em encontros sociais, evitava o contato físico, apesar deste fazê-lo sentir-se bem. Geralmente concordava com as propostas dos outros; não se opôs, por exemplo, a opiniões de profissionais quando não acreditava neles, mas não persistia para a concretização das propostas, nem quando pareceram construtivas.
Na sua família de origem, recebeu críticas de forma muito aversiva e aprendeu que abraço ou outras amostras de aproximação não são atitudes masculinas. Já adulto, foi traído em amizades, nas relações profissionais e no casamento. Várias vezes, em momentos-chave da sua vida, quando tomou decisões importantes e bem-pensadas, confiou muito nas pessoas e teve grandes perdas nos níveis pessoal e financeiro. Tinha aprendido a acreditar que todas suas iniciativas, mesmo as menores, fracassariam sempre, e que sucesso no nível pessoal, profissional ou outros dependia de fatores externos e incontroláveis por ele.
Os alvos elaborados em relação aos seus problemas incluíam voltar a dialogar, a explicar a opinião dele, traçar metas e objetivos, tomar iniciativas, colaborar ativamente e persistir. Além disso, era considerado importante que ele aprendesse a entender seu corpo e respeitar os limites do mesmo.
As terapeutas tiveram inicialmente muita dificuldade em bloquear sua esquiva de sentimentos e sensações decorrentes das atividades e interações sociais no grupo e em levá-lo a fazer tarefas de casa. Quando ele finalmente chegou a refutar opiniões das terapeutas, as mesmas acataram suas colocações e gradualmente ele começou a participar das discussões nas sessões. Um passo importante neste processo foi quando ele chegou a dar uma sugestão a outro membro do grupo e foi bem acolhido. Sua continuidade no grupo foi por si mesmo uma melhora ao vivo, já que ele vinha mantendo, há anos, o hábito de interromper os tratamentos iniciados. Durante as atividades propostas no grupo e em relação às tarefas de casa, ele começou a enfrentar desafios e tomar iniciativas. Um exemplo de sua mudança de atitude ocorreu quando ofereceu caronas às outras participantes e estas aceitaram.
Na vida cotidiana, as mesmas mudanças podem ser ilustradas pelas iniciativas que tomou de pesquisar de forma independente sobre seu problema de saúde, de fazer uma cirurgia que poderia não adiantar, de realizar cursos profissionalizantes e viagens de trabalho e pelo novo habito de participar de reuniões de família, com os quais nunca tinha conseguido lidar até então. Dois anos depois do início do grupo, ele mora sozinho e é independente financeiramente outra vez.
A senhora C, 26 anos, foi encaminhada pelo cirurgião dentista. Sofria de uma inflamação crônica na ATM. Queixava-se de enxaquecas freqüentes e de dor persistente no rosto, mais intensa nos finais de semana. Fez uso excessivo de analgésicos e refugiou-se no sono esperando que a dor passasse.
A paciente não conseguiu lidar com situações novas. Tinha dificuldade para pedir e agradecer, e usou comportamentos de dor para fugir de pessoas e situações. Desvalorizou-se por meio da forma superficial utilizada para falar de suas experiências. Por exemplo, conversou com qualquer pessoa sobre seus problemas, banalizando os mesmos. Manipulou situações a seu favor sem se expor ou precisar falar abertamente sobre seus pensamentos.
Não admitia erros e não expressava sua opinião. Reagiu mal a críticas e se comportava em função de agradar o outro. Submetendo-se a manipulação e mentiras conscientes de namorado, família e chefe, não conseguiu recusar pedidos e acabou fazendo o trabalho dos outros e assumindo as responsabilidades deles.
Era desorganizada, tendo perdido documentos e se atrasando freqüentemente para o trabalho. Não administrou seu tempo, e perdeu oportunidades e credibilidade dos colegas. Comprometeu a qualidade de seus trabalhos porque sempre os entregou na última hora.
A vivência na família de origem aparentava ter sido caótica. Expressão de desejos e sentimentos era desqualificada. Seu pai servia como modelo de como pressionar os outros de maneiras indiretas e disfarçadas a fazer o que quer sem ter que pedir. Sua mãe era modelo de como encobrir problemas para manter a ilusão de uma família unida. Totalmente submissa ao pai, a mãe tinha sido negligente na educação das filhas.
Em ambientes alcoólicos (tanto pai, namorado e sogra eram alcoólatras), a paciente aprendera que, ao isolar-se, os outros iriam atrás dela, e assim ela obtinha bajulação. Chegou a passar todo seu tempo livre com a sogra porque esta pagou a bebida, poupando dinheiro para o namorado. Em relações interpessoais em geral, aprendeu a fazer com que os outros se sentissem culpados por exigir qualquer coisa dela. Outros a socorreram na desorganização no trabalho e estudo, sem que ela precisasse pedir, e o chefe encobriu seus erros. Sempre que emitia comportamento de dor, as pessoas permitiam que se isolasse.
Acreditou que pedir algo às pessoas ou expor sentimentos era sinal de fraqueza, que não precisava se esforçar, já que, no final, tudo sempre deu certo. Além disso, acreditava que as pessoas não podem mudar e que não teve influência sobre a própria vida. Na sua opinião, os sentimentos determinavam seus comportamentos – assim, precisava controlar os primeiros e não se permitir qualquer sensação.
Os alvos particulares apurados para ela visavam a abordar suas dificuldades em dizer “não”, em pedir e em agradecer. A intenção era que aprendesse a compartilhar responsabilidades em vez de manipular pessoas. Para isto, ela precisava aprender a tomar decisões e a definir prioridades; planejar em função dos próprios alvos; identificar situações que desencadeavam dor e tensão e entender os sinais fisiológicos de ansiedade; permitir-se entrar em contato com eventos privados de maneira não-defensiva e aprender a lidar com as condições do pai.
O grupo naturalmente providenciou contingências nas quais C aprendeu a ouvir os outros participantes e nas quais precisou, por vezes bem explicitamente, dizer “não”. Chegou, nestas condições, também a pedir o que desejava, sem desencadear sensações fisiológicas desagradáveis. O grupo ofereceu condições favoráveis para que se abrisse e dialogasse sobre possíveis mudanças na sua vida. Esta abertura foi uma melhora importante e encontrou reforço natural nas sugestões práticas que os outros participantes deram. Enquanto geralmente ela puniu o comportamento dos outros, dizendo que tudo era muito difícil, ela acatou o que eles sugeriam, reforçando assim o comportamento deles de oferecer idéias e discutir construtivamente. Do outro lado, seu novo comportamento encontrou reforçamento natural na demonstração de confiança do grupo na sua capacidade de aproveitar as sugestões e resolver seus problemas.
Outra mudança aconteceu ao vivo, quando ela resistiu a um pedido de B para mudar o horário do grupo. Em vez de aceitar e tentar agradar, ela deixou claro os problemas que esta mudança traria para ela. O grupo discutiu o assunto e conseguiu uma solução que agradava a todos. Esta experiência parece ter sido particularmente reforçadora, já que a partir deste momento ela também conseguiu explicitar os próprios valores, preferências e motivos em relação às atividades do grupo. O comportamento de agradecer passou a acontecer naturalmente, no decorrer de trocas entre a paciente e as terapeutas e em relação com os outros participantes. Começou a centralizar sua conversação acerca de assuntos íntimos fora da terapia, na sua amizade com a senhora A, com quem começou a se encontrar para trocar receitas, engajando-se em outras atividades novas.
Depois de dois anos, estes progressos também eram evidentes no cotidiano. Chegou a conversar com pessoas importantes para ela e a resolver problemas dos quais antes se esquivava. Ela pede ajuda quando precisa, e isto inclui um uso adequado dos contatos com profissionais de saúde. Utiliza estratégias para lidar com a dor, diminuindo o consumo de analgésicos. Só usa remédios agora em casos extremo de TPM. Identificou que receber crítica provoca dor e náusea e discrimina situações em que se comporta de forma que a deixa tensa, e conseguiu organizar o ambiente de trabalho e cumprir com obrigações no tempo adequado (isto mexeu no ambiente de trabalho dela), utilizando melhor o tempo em geral.
Aceita o alcoolismo do pai e procura ajudar, aceitando também suas limitações perante essa problemática. Finalmente, ela pode ter influenciado o fato de o namorado ter parado de beber. Três anos após o início do grupo, C continua organizada no trabalho. Já que o chefe não faz mais o trabalho para ela, não precisa mais agradá-lo e o relacionamento de manipulação e cobrança se transformou num relacionamento seguro, no qual ela assume suas responsabilidades.
O processo de Psicoterapia analítica funcional em grupo
Na abordagem acima ilustrada, os comportamentos verbais não são interpretados somente em função de seus conteúdos, que tratam muitas vezes de relações com pessoas que não estão presentes. Eles são considerados atos genuínos dentro de um contexto de trocas interpessoais que acontecem durante a sessão. De acordo com a FAP, o que acontece entre terapeuta e cliente é relevante por si só. Quando se fala sobre assuntos fora da sessão, não se deveria esquecer que o diálogo é, em primeiro lugar, uma questão de trocas entre as pessoas que estão falando. Estas trocas são comportamentos por si mesmos, e têm funções próprias, independentes das referências que fazem a eventos e situações fora da sessão sobre os quais terapeuta e paciente estão falado.
O grupo apresentado usava também intervenções baseadas na discussão de mudanças na maneira de agir ou pensar do paciente fora da sessão. Como por exemplo, o desenvolvimento de novas estratégias que o cliente vai aplicar lá-fora, seu treino em role-play, ou a discussão crítica de crenças que o cliente tem. Este nível do processo terapêutico supõe uma leitura do relato verbal na sua função de referência a conteúdos alheios. No segundo nível, pressupõe-se que o crescimento só pode acontecer na própria sessão. Isto é a leitura que a FAP faz, onde a experiência terapêutica é apreciada por si mesma. A terapia de grupo deixa de ser um momento de troca de informações e passa a ser valorizada por momentos de vivências genuínas onde os participantes podem passar por experiências de mudança profunda.
No primeiro nível, o êxito depende da habilidade do terapeuta que deve acertar na técnica. O psicólogo deve saber o que são as soluções e sempre ter um controle firme sobre o processo terapêutico. No segundo nível, a pessoa do terapeuta está no centro do processo. Erros do terapeuta podem se tornar momentos chaves do tratamento. O psicoterapeuta analítico funcional assume abertamente que não tem as respostas e que está disposto a enfrentar o desconhecido. Esta atitude é duplamente importante em nosso trabalho. De um lado, tem implicações diretas no trabalho com a dor crônica. Do outro lado é importante para tornar a terapia de grupo um processo curativo.
O terapeuta que abre mão das suas certezas e se vulnerabiliza ao participar plenamente no processo é mais bem preparado para trabalhar com um problema subjetivo como a dor. A dor crônica é uma experiência do outro (no caso do cliente) que o terapeuta não pode entender plenamente. Convencer-se de ser um especialista nas experiências dos outros, inevitavelmente leva a uma atitude rígida e uma falta de abertura para o que as experiências genuínas destes outros podem contribuir no tratamento.
Esta atitude, também oferece vantagens ao terapeuta que quer trabalhar com grupos. O grupo é um ambiente dinâmico e imprevisível, onde em muitos momentos, incoerências lógicas predominam. Abertura para a experiência implica também em tolerar (e conseguir trabalhar produtivamente) com ambigüidade e contradição. Os episódios de interação entre pessoas não correspondem às leis da lógica clássica e o terapeuta deve estar preparado para ser colocado em cheque, sem por isso deixar de ser terapeuta. Em diferentes momentos as terapeutas abriram mão do controle que tiveram sobre o processo terapêutico, aceitaram ser questionadas no seu relacionamento com o grupo e entre elas, se deixaram desviar do foco planejado quando assim podiam dar espaço a CCRs 2 que emergiam repentinamente.
Conclusões
Visto no todo, os progressos dos participantes do grupo incluem a capacidade de identificar e relatar eventos privados diferentes da dor, detectar situações interpessoais que antecedem aumento da dor, o desenvolvimento de estratégias variadas de coping ou manejo em relação a eventos interpessoais e com acontecimentos privados relevantes. Os participantes chegaram a desenvolver táticas novas para lidar com situações problemáticas do cotidiano e atividades produtivas que geraram reforçadores. Porém as formulações de caso de cada participante ilustram o quanto as mudanças necessárias no tratamento de dor crônica são idiossincrásicas. Não há um perfil típico do paciente com dor crônica que pode determinar o conteúdo de um tratamento padronizado para este problema.
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Endereço para correspondência
Luc Vandenberghe
Rua J-51 Q. 136 Lt. 31 – Setor Jáo
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e-mail: luc.vandenberghe@terra.com.br
Tramitação:
Recebido em 20/02/2005
Aceito em 20/03/2005